Resumo
As migrações representam modificações nos territórios geográfico e subjetivo que precisam de acolhida e suporte para manutenção do fio de condução entre o sujeito que migra e sua própria história. Este artigo apresenta reflexões sobre a construção de um Serviço de Psicologia dentro de um Centro de Referência de Atendimento a Imigrantes, em Santa Catarina, na cidade de Florianópolis, e a utilização da escuta psicológica como ferramenta na qualificação da acolhida e integração de imigrantes e refugiados nesta região.
Palavras-chave migração; psicologia; refúgio; acolhimento psicológico
Abstract
Migrations represent changes in the geographic and subjective territories that need to be received and supported, looking for the maintenance of the conduction between the migrating subject and their own history. This article shows reflections on the construction of a Psychology Service within a Reference Center for Assistance to Immigrants, in Santa Catarina, in the city of Florianópolis, and the use of psychological care as a tool in qualifying the reception and integration of immigrants and refugees in this region.
Keywords migration; psychology; refugee; psychological care
Este artigo é oriundo de reflexões teórico-práticas em contextos de atenção psicológica a pessoas migrantes e refugiadas a partir da experiência da construção do Serviço de Psicologia do Centro de Referência de Atendimento a Imigrantes de Florianópolis, em Santa Catarina (CRAI/SC). Os autores deste manuscrito fazem parte diretamente do Serviço de Psicologia, seja na assistência ou na supervisão dos casos acompanhados. Entendemos, no entanto, a prática deste serviço anterior à inauguração do CRAI/SC, uma vez que em outras instâncias - especialmente vinculadas ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina - já se vinha elaborando sobre a importância de um acolhimento qualificado e acompanhamento psicológico a esta população por meio de práticas de pesquisa e extensão destinadas à comunidade. Isto porque partimos de uma reflexão crítica acerca do sofrimento e na compreensão dele como algo inerente à condição humana, mas sempre passível de escuta independente do contexto sociocultural.
Na tessitura de uma compreensão sobre o sofrimento como algo que flui por entre as relações humanas, isto é, mais do que algo inerente ao humano como categoria estanque, fala-se aqui de diferentes condições de possibilidade de vida, suas implicações no âmbito social e os efeitos psíquicos desta intersecção. A categoria “humano” pode ser compreendida de formas diferentes, seja o significado que recebe perante um olhar de espécie ou na função que exerce junto a uma lógica de estratificação (Braidotti, 2013), ou seja, conferir ao “humano” um balizamento considerando determinadas vivências socioculturais e experiências de vida com propósitos regulatórios, numa economia subjetiva sobre aquilo que é ou não é “humano”. Butler (2015), neste sentido, adverte sobre vidas que podem perder esta categoria de “humano” pela falta de enquadramento possível neste ideal regulatório; logo, apesar de ainda serem vidas em um sentido biológico do termo, não são mais percebidas ou passíveis de serem enlutadas como aquelas consideradas “humanas”. Assim, com noções limitantes da existência do humano naturalizado, cria-se uma precarização seletiva de determinadas vidas para qualificação do sofrimento.
Tomamos como critério chave, então, a prática de desnaturalização da categoria humano, o que nos permite refletir sobre estratificações criadas a partir de modos de funcionamento social que sistematicamente excluíam ou desqualificavam determinados modos de vida. A precariedade é percebida como um aspecto generalizado do “humano”, o que sugere a análise sensível às condições de vida capazes de tornar uma vida, algo vivível ( Butler, 2015). Quando falamos sobre migração, portanto, inevitavelmente precisamos colocar em debate como é este “social” e quais matrizes de inteligibilidade para o reconhecimento do outro são consideradas na compreensão daquele que chega. Afinal, não ser reconhecido pelo outro como pertencente deste “social” pode ser condição primária de sofrimento.
Na questão da migração é importante considerar, além disso, a chancela da hegemonia cultural dentro da geopolítica e quais os efeitos disso tanto para os sujeitos que transitam quanto para o amparo social e cultural perante as relações humanas de acolhimento. Desestabilizar o já colocado sobre o sofrimento humano a partir de diferentes óticas, as quais problematizam a patologização de um rol de diferenças, convoca-nos a pensar sobre a exclusão: pessoas em situações sociais críticas não buscam apenas comer ou garantir a subsistência, também buscam sofrer menos. Desconsiderar este fato pode significar permanecer numa perspectiva excludente acerca da precariedade.
Nesta perspectiva, apresentamos nossas elaborações sobre a categoria sofrimento e os efeitos psicossociais quando rebatidos na especificidade da migração para que, posteriormente, possamos elaborar sobre a configuração de um serviço de atenção psicológica que busca a manutenção de um fio de coerência que liga este sujeito que sai de seu lugar de origem ao sujeito que chega num novo cenário de vida, adentrando em novos territórios.
Migração involuntária, sofrimento e efeitos psicossociais
O conceito de migração, como qualquer outro, é definido e pode ser discutido por diversas áreas do conhecimento. Para incitar as problematizações propostas nesse artigo, optamos por adotar a noção de migração como um movimento populacional de travessia de fronteiras entre os limites de Estados-nação ou, ainda, fronteiras internas circunscritas em um mesmo território nacional, independentemente da extensão e das causas do movimento ( OIM, 2009). Trata-se de uma definição que compreende mobilidades humanas e, portanto, diz respeito a sujeitos em deslocamentos geográficos que ao partirem de seus locais de origem iniciam o processo migratório e nesse sentido são chamados imigrantes. As classificações derivadas do último termo são muitas, não consensuais e articuladas principalmente com questões sociais, políticas e econômicas.
A busca por outros horizontes de vida há muito levam aos deslocamentos, que variam desde desejos de realização de projetos pessoais até a alternativa imposta para sobrevivência, devido a condições difíceis em determinados contextos, como extrema miséria, desastres ambientais, perseguições, conflitos e guerras. No que concerne às motivações, um modo de pensar o tema é situar a diferença entre migração voluntária e migração involuntária - também chamada de migração forçada1. Na primeira, compreendem-se sujeitos que não se veem coagidos a partir, mas sentem-se movidos por diversas razões a buscar algo novo em outro lugar, podendo planejar o deslocamento e, geralmente, encontram-se diante da opção de retorno ao seu local de origem. Já no segundo, a migração se apresenta como uma das poucas alternativas, muitas vezes a única, frente à ameaça a vida do sujeito que migra ou daqueles ligados a ele. Ou seja, o imperativo das migrações involuntárias consiste em forças que levam o sujeito a se lançar à experiência migratória como estratégia de sobrevivência. Engendradas no contexto geopolítico, tais forças geralmente extrapolam as possibilidades de previsão de um possível retorno - não se sabe quando uma guerra vai acabar, por exemplo -, o que dificulta a elaboração de estratégias de permanência e integração em outro local.
No âmbito das ciências psicológicas, se propor ao estudo e trabalho no campo das migrações significa trazer à tona a dimensão subjetiva implicada nos processos migratórios e elaborar uma práxis referente aos efeitos do deslocamento geográfico para o sujeito que migra, sua família, comunidade de filiação, origem, trânsito e recepção. Isso não significa se abster das dimensões anteriormente citadas concernentes ao tema, uma vez que parte-se da compreensão de psiquismo estruturado no campo cultural e social; mas se afirma a urgência de compor olhares e escutas que não desprezem as singularidades desse campo, possibilitando um terreno seguro para as manifestações de mal-estar passíveis de decorrerem das mobilidades. Assim, uma das especificidades do terreno psicológico relativo às migrações propõe elaborações relativas ao sofrimento ( Martins-Borges, 2017 ). As reflexões que seguem referem-se, especialmente, a sujeitos no contexto de migrações involuntárias.
De acordo com Freud (2014/1926), a constituição psíquica possui um caráter traumático, o que demarca uma premissa universal no que concerne ao psiquismo para a teoria psicanalítica. No entanto, o traumático que pode decorrer dos eventos violentos que motivam a migração involuntária extrapola esse conceito fundante do psiquismo. Trata-se de determinados acontecimentos da vida do sujeito caracterizados: pelo extremo excesso no que se refere à intensidade; por um risco real de ameaça à vida ou premissas básicas que ligam o sujeito a ela; pela incapacidade imediata de reação frente ao ocorrido; pelo rompimento (ainda que temporário) das teias de representação disponíveis para o sujeito operar frente às adversidades. Cabe sempre lembrar que esse acontecimento está inserido em um tempo histórico.
Ao utilizar ferramentas teóricas de historicização, como as apresentadas por Foucault em sua obra, por exemplo, podemos dissecar esta perspectiva de acontecimento, entendo-o como fruto de emergências de cadeias de tensões discursivas e aspectos múltiplos concernentes a vida de algum sujeito ou cultura, as quais podem exercer função de forças e limites (Bergeret, 1996), inclusão e exclusão ( Foucault, 2005 ) criando campo de possibilidades para a ida ou a permanência, seja na migração voluntária ou involuntária. Pensar sobre a migração como um acontecimento, portanto, é colocar em suspeição o evento em si e pensá-lo em perspectiva na história do sujeito em trânsito, uma vez que assim é possível trazer para a discussão a subjetividade e os aspectos psicológicos envolvidos neste movimento.
Na tradição clínica, ainda que se admita a inscrição do sujeito no laço social, o exame mais analítico daquilo que decorre no e do contexto muitas vezes é relegado ao pano de fundo; ora, não se trata apenas de uma questão de perspectiva: o campo social não é estático, capaz de ser dissociado do sujeito - ou este dele - e deslocado para um lugar “fora de foco” sem produzir efeitos. Decorre dessa ínfima operação consequências no campo, não apenas em um ou outro, ainda que as consequências variem a depender da posição de cada um nesse contexto. De acordo com Pussetti e Brazzabeni (2011), em um artigo especificamente dedicado à questão do sofrimento e as políticas de assistencialismo, a emergência da noção de sofrimento social avança a discussão do que até então se chamava sofrimento humano. Este foi por muito tempo pouco interessante e acessível a métodos de análise sociocultural devido à marca universal, que em algum período da história compreendia-se como experiência inata. A mudança do “humano” para “social” marca uma alteração na gramática do natural para o construído.
Compreendemos o sofrimento, não só o que acomete o imigrante, pela perspectiva que evoca as relações entre os processos históricos e sociais e a experiência subjetiva do mal-estar. As situações migratórias contemporâneas exemplificam os efeitos nocivos que incidem sobre os sujeitos em mobilidade ou já “estabelecidos” em outro lugar. A escuta de imigrantes demonstra o quanto seus corpos portam as marcas dos acontecimentos violentos que os fizeram sair; são aqueles que se encontram fora das zonas que circunscrevem a geografia de pertencimento territorial e sociocultural e, assim, geralmente sofrem com o agravamento da dificuldade de comunicar o vivido por habitarem esse “não-lugar” ( Martins-Borges, Pocreau, 2012 ; Martins-Borges, 2013).
A mobilidade geográfica produz, ainda que temporariamente, um efeito de abalo na comunicação entre o mundo interno - psíquico - e externo - cultural e social -. A cultura, enquanto umas das constituintes de uma apropriação identitária por parte do sujeito e fonte de organização, ao definir o que é ou não permitido, promove uma noção de pertencimento e para tanto nomeia “o estrangeiro”, afirma a alteridade. Logo, no contato com a diferença cultural, a ausência das representações de origem pode gerar vulnerabilidade, como se o sujeito ficasse completamente sem recursos para se afirmar diante da diferença (Betts, 2013). Isso acaba por lançar muitos desses sujeitos ao desamparo, por se verem alijados do acesso aos recursos que os situaria no novo espaço. Essa posição compromete a produção de uma “trama de sentido”, a criação de um contorno simbólico. Não ser reconhecido na diferença por aqueles que engendram o campo social, por mais contraditórias que as estruturas desse campo sejam, contribui para a desarticulação de seus lugares na história e reafirmam uma impossibilidade de gozar dos benefícios de pertencer a algum lugar ( Martins-Borges, 2013).
A condição de sofrimento pode agravar-se pela falta de domínio do idioma no país de acolhimento, a ausência da família e pessoas significativas, a dificuldade de comprovar suas qualificações educacionais e profissionais e a diferença das lógicas de funcionamento cotidiano entre o país de origem e o de acolhimento. De acordo com Lussi e Marinucci (2007), acrescentam à vulnerabilidade a baixa probabilidade de retorno à terra natal; a exposição à violência em travessias irregulares ou perigosas até o país de destino; as condições precárias de trabalho que aceitam por terem dependentes econômicos no país de origem; o limitado acesso a serviços públicos básicos; e a indiferença do Estado e da sociedade civil do país de origem, que de acordo com os autores, influencia a forma como o país de acolhimento recebe tais cidadãos.
Lançado para além da fronteira de seu território de origem, o imigrante ao chegar a outro lugar sofre de um excesso de determinação - passa a compor uma categoria - que legitima também sua permanência à margem, mas, após a mobilidade, as margens do território de acolhimento. O que está em discussão aqui não é a negação do fato de que muitos desses sujeitos foram expostos a condições traumáticas e por isso sofrem. Mas antes, trata-se de uma tentativa de resgate do conhecimento dos motivos que os fizeram expostos a situações traumáticas e mais: as razões pelas quais após se deslocarem nos espaços continuam, muitas vezes, “fora de lugar”, fora da possibilidade de ocupar um lugar que não se restrinja a condição de sofrimento. Nesse sentido, enfatiza-se a relevância de considerar os processos sociopolíticos que se relacionam ao sofrimento, a fim de incidir numa interface que acolha o sujeito em sua diferença ( Martins-Borges, 2018 ; Pussetti, 2009; Rosa, 2016). Senão, corre-se o risco de reincorporar o sofrimento ao nível individual.
As consequências dos deslocamentos forçados também atingem os territórios de saída, de trânsito e de chegada com todos aqueles que compõem esses lugares e, por conseguinte, demandam uma reorganização social frente ao fenômeno. Pussetti (2009) discute as biopolíticas de saúde mental que versam sobre a condição do migrante e a produção do sofrimento alvo das políticas de saúde mental, como necessariamente engendradas no jogo das relações que também produzem o deslocamento forçado, e, portanto, o sujeito migrante. Ou seja, o “problema” do imigrante é antes o problema de contextos históricos, econômicos e políticos que atuam como forças coercitivas de deslocamento.
A emergência de um reposicionamento do olhar e da escuta ao que demanda o sujeito imigrante - e em consequência, da realização prática frente ao tema - só se torna possível ao problematizar a representação da vulnerabilidade psicológica como característica intrínseca ao sujeito migrante (Pussetti, 2009; Rosa, 2016). É preciso ter em conta a relação entre sofrimento de um na composição do quadro com os outros, em cenários que mesmo arquitetados, em tese, para a promoção de um bem-estar social, são organizados em estruturas com potencial de produção de sofrimento que varia do sutil ao explícito. De acordo com Pussetti (2009, p. 40), “o corpo emerge como um arquivo histórico e lugar de resistência, e os seus sintomas como um comentário político sobre as complexas relações que situam os imigrantes em processos sociais amplamente para além do contexto local”.
Epistemologicamente, falar assim significa trazer o sujeito e a maneira como se relaciona com o social como temática inicial, de forma que, quando se fala de exclusão, também se considera desejo, temporalidade e afetividade, ao mesmo tempo em que se considera nesta análise as relações de poder, a economia e os direitos sociais. Assim sendo, pensa-se no sofrimento em sua dimensão ético-política, analisando as formas sutis de espoliação humana por trás da aparência da integração social e, desta forma, entende-se a exclusão e a inclusão na atualidade e sua especificidade da migração a partir de suas sólidas bases em problemáticas antigas: a desigualdade social, a injustiça e a exploração, as quais ganham formas variadas de expressão a depender do laço social (Sawaia, 2005).
Desigualdade social pode ser compreendida como a negação imposta pela estrutura social e determinados grupos de se apropriarem da produção material, cultural e social que eles mesmos produzem, de existir em determinados espaços e de expressar desejos e afetos (Sawaia, 2005). Desta forma, o sofrimento ali produzido deixa de ser validado como um fato complexo e multideterminado, passando a ser classificado como uma vivência individual, fato que culpabiliza o sujeito e enfraquece as possibilidades de ações coletivas de enfrentamento da desigualdade, ao passo em que o Estado, neste contexto, torna-se isento da promoção de sofrimento, uma vez que, este é puramente oriundo de questões de cunho individual. Portanto, construir espaços de trabalho que incidam sobre os efeitos psicossociais a partir da escuta dos sujeitos imigrantes, requer dos pesquisadores, profissionais e gestores uma ética do deslocamento, onde o vaivém do trâmite singular e coletivo é fundamental.
A construção de um espaço de escuta psicológica dentro de um CRAI
A Psicologia no contexto da escuta do sofrimento relacionado à migração surge em busca de formas possíveis de acolhida para estas narrativas de vida marcadas pelo sofrer oriundo do movimento do sujeito por entre territórios diferentes. Ou seja, falaremos sobre ensaios de estratégias para que o fazer da psicologia não perpetue espaços de exclusão e possa adequar para a práxis da psicologia clínica e social as reflexões acerca do sofrimento debatidas até aqui neste artigo. Começaremos por apresentar a construção do espaço de acolhida a imigrantes e refugiados em sua maneira mais ampla, na garantia de mínimos sociais, para depois adentrar no trabalho da psicologia inserido neste contexto. Para isso, tomaremos como exemplo o caso do CRAI da cidade de Florianópolis, o qual conta com serviço de psicologia inserido em sua equipe de trabalho.
Trajetória local de atenção a imigrantes e refugiados em Florianópolis
No cenário nacional, Santa Catarina é o 4º estado que mais recebeu solicitações de reconhecimento de refúgio em 2017 (SNJ, 2018), mas a história do estado em receber imigrantes é longa. A região metropolitana de Florianópolis tem sido escolhida como região acolhedora para muitos imigrantes e refugiados, especialmente na última década (GAIRF, 2015), fato que inevitavelmente teve seus efeitos nos serviços socioassistenciais, não necessariamente pelo aumento da demanda, mas pela especificidade que ela passa a ter que absorver. Isto, aliás, pode-se dizer ser um cenário comum em cidades com intenso fluxo migratório, o que convoca a sociedade civil, governantes e agentes públicos a agirem de modo a qualificar os serviços e que estes sejam, de fato, acolhedores.
Se pensarmos o conceito de território num híbrido entre Milton Santos (2002) e Suely Rolnik (2014), os migrantes uma vez que “viventes” de determinado território geográfico, criam na interação com o meio também um território subjetivo, o qual constrói um campo de novas necessidades que passam a ser compartilhadas também com quem acolhe. As políticas de Saúde e Assistência Social, por exemplo, atentas e instrumentalizadas com o território como uma ferramenta de ação (BRASIL, 1990; BRASIL, 1993), começam a perceber este território em transformação e, inevitavelmente, precisam buscar por suporte para esta atenção que cotidianamente ganha novas facetas e gramáticas sobre o sofrimento, muitas vezes, em novos idiomas.
A atenção especializada a esta população não começa a partir do Estado, no entanto. Historicamente a Igreja Católica, em uma de suas frentes de ação, busca pela proteção e acolhidas de imigrantes. Por meio da Pastoral do Migrante, em Florianópolis, até o início de 2018, os serviços citados acima encontravam amparo a partir de um trabalho específico, algo que carecia na rede pública. Funcionando como um serviço de referência, portanto, era possível garantir atendimento especializado em Proteção e Integração2, inicialmente, sendo realizados por estudantes de graduação e pós-graduação vinculados ao Eiréne, Centro de Pesquisas e Práticas Decoloniais e Pós-coloniais aplicadas às Relações Internacionais e ao Direito Internacional da Universidade Federal de Santa Catarina. Posteriormente, a partir de 2013, contou-se também com acolhimento e atendimento psicológico em parceria com o NEMPsiC, Núcleo de Pesquisa sobre Psicologia, Migrações e Culturas, do departamento de Psicologia também da Universidade Federal de Santa Catarina.
No que concerne a aproximação entre imigração e psicologia em Florianópolis, o NEMPsiC tem uma contribuição fundamental na construção dessa relação. O núcleo foi constituído em 2014 como uma estrutura de pesquisa, formação e intervenção vinculada ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Com o objetivo geral de focalizar os fazeres psicológicos no contexto da Psicologia Clínica Intercultural, da Etnopsiquiatria e da saúde mental, teceu-se, por meio de projetos junto aos diferentes níveis de atuação do psicólogo e de produção científica no âmbito da psicologia, ações em pesquisa, ensino, extensão e inserção social.
Dentre as atividades de extensão realizadas pelo NEMPsiC, as permanentes foram aquelas que proporcionam atendimentos psicológicos a imigrantes e refugiados: a Clínica Intercultural e o Acolhimento Psicológico e Grupos de Conversa com Imigrantes e Refugiados. A Clínica Intercultural, fundada em fevereiro de 2012 (ela é precursora do NEMPsiC), é uma adaptação do Service d’Aide Psychologique Specialisée aux Immigrants et Réfugiés (SAPSIRⓒ) e apoia-se no modelo epistemológico e metodológico deste último. De forma breve, o SAPSIRⓒ surge, no ano de 2000, na Universidade Laval (Québec, Canadá) e suas atividades foram realizadas, até 2011, na Clínica de Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Laval. Desde então, o SAPSIRⓒ passa a integrar o sistema público de saúde e assistência social, na cidade de Québec. Com um aporte teórico e metodológico apoiado na Etnopsiquiatria, o SAPSIRⓒ protagoniza a diferença cultural no seu modelo de intervenção e tem a cultura como uma parte indissociável das produções psicológicas em todas as dimensões da vida do sujeito. O dispositivo clínico adotado é o da coterapia intercultural (Pocreau, Martins-Borges, 2013), em que os atendimentos psicológicos são realizados por uma equipe de terapeutas, preferencialmente de diferentes origens culturais. Nos casos de pacientes encaminhados por outros profissionais, solicita-se que os últimos acompanhem o paciente no primeiro atendimento com o objetivo de transferir a confiança e vinculação profissional ( Martins-Borges, Pocreau, 2012 ).
Em uma perspectiva semelhante à do SAPSIRⓒ, a proposta principal da Clínica Intercultural consiste em possibilitar uma escuta qualificada, por meio de atendimentos psicológicos a imigrantes e refugiados que atualmente residem na Grande Florianópolis ( Martins-Borges, Jibrin, Barros, 2015 ). Os atendimentos são oferecidos no Serviço de Atenção Psicológica - SAPSI da Universidade Federal de Santa Catarina, clínica-escola que acolhe estagiários e projetos de extensão do programa de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia. A Clínica Intercultural iniciou com três integrantes/terapeutas e, no ano de 2018, contou com 10 membros, entre alunos de graduação, pós-graduação e psicólogos. No que se refere aos atendimentos psicológicos, os pacientes são encaminhados pelas instituições parceiras ou chegam por demanda espontânea. Os atendimentos podem ser realizados - em alguns casos - na língua materna do paciente e, quando a presença de um mediador/interprete é necessária, espera-se dele não apenas a tradução da língua, mas, igualmente, a validação de dados e práticas culturais que escapam ao conhecimento dos terapeutas e que podem ocupar um lugar determinante nos sintomas apresentados. Quando necessário, os atendimentos são realizados em outras unidades de saúde da universidade, como as Clínicas Médicas ou a Unidade de Emergência do Hospital Universitário. Tais ações permitem, ao mesmo tempo em que o atendimento psicológico é realizado, discutir com os profissionais locais sobre as questões interculturais que podem estar agindo - de forma positiva ou não - no acompanhamento do paciente.
Outro projeto de extensão iniciado em 2016 - este precursor do Serviço de Psicologia no CRAI - que também possibilitava atendimento psicológico a imigrantes e refugiados foi o Acolhimento Psicológico e Grupos de Conversa com Imigrantes e Refugiados, realizado na Pastoral do Migrante de Florianópolis. Na Pastoral, as intervenções eram feitas em duas modalidades distintas. O Grupo de Conversa consistia em um dispositivo de roda de conversa que visava promover um compartilhamento de experiências acerca dos desafios da migração. Já o Acolhimento Psicológico era realizado quando se identificavam situações de sofrimento psíquico. Esses acolhimentos, realizados nos espaços da Pastoral do Migrante - local de maior fluxo de imigrantes em Florianópolis, à época - facilitavam o contato com as pessoas e possibilitavam a continuidade de um acompanhamento psicológico, uma vez que colaboravam para o encaminhamento posterior para os espaços da Clínica Intercultural, na universidade. Visto que a chegada à Clínica Intercultural constituía em um dos maiores desafios encontrados na efetivação dos encaminhamentos para a psicoterapia - a UFSC não fazia parte do território geográfico e subjetivo da maioria dos imigrantes de Florianópolis -, o projeto na Pastoral surgiu como uma forma de levar a escuta psicológica até essa população.
Abertura do CRAI de Santa Catarina
Sabendo da importância da descentralização de um trabalho que era realizado principalmente pela igreja católica e da necessidade de responsabilização do Estado no que diz respeito à acolhida das pessoas na região, em 2014, cria-se o Grupo de Apoio a Imigrantes e Refugiados, o qual tem em sua coordenação compartilhada fundamentalmente membros da sociedade civil que buscam alertar e tensionar, junto a órgãos públicos de gestão e atenção, sobre as questões referentes a esta temática (GAIRF, 2015). Em decorrência das mobilizações do GAIRF, inicia-se em 2016 a tentativa de implementação de um CRAI, similar ao que já havia sido aberto em São Paulo no ano de 2014, mas com um diferencial: desde o projeto inicial havia a previsão de um profissional da psicologia na equipe mínima, especialmente por conta do trabalho realizado dentro da Pastoral do Migrante e os resultados dele.
No início de 2018, após intensas mobilizações e tensões políticas, finalmente o CRAI foi aberto em Florianópolis com abrangência estadual, a partir de uma parceria entre a Ação Social Arquidiocesana e a Secretaria Estadual de Assistência Social, Habitação e Trabalho. A equipe conta com agente de proteção, agente de integração, assistentes administrativos, assistente social, coordenador e psicólogo. Desde a inauguração do serviço, foram atendidas pessoas de mais de 60 nacionalidades de quatro dos continentes habitados. Em sua maioria, os imigrantes atendidos são originários do Haiti ou de outros países latino-americanos (Argentina, Venezuela, Peru, etc.). Em média, pensando em toda a equipe, foram realizados 600 atendimentos por mês desde a inauguração deste serviço, o qual vem apresentando crescimento frequente da demanda ao passo que tem sido um serviço conhecido pela população em questão (CRAI, 2018). A demanda de maior evidência é a busca por emprego e condições de permanência na cidade de acolhida, trazida, em sua grande maioria, com uma queixa frequente de entristecimento e desamparo perante a dificuldade de conseguir emprego e se estabelecer na região.
Neste aspecto, adentramos na especificidade do fazer da psicologia. Convocada a atuar quando o sofrimento visível é percebido por parte da equipe ou por demanda espontânea, a escuta clínica se propõe a auxiliar o sujeito na conexão com sua própria história em um novo cenário. Falamos aqui de uma escuta da psicologia que precisa atentar para esta dimensão do perdido e a dificuldade de “localizar-se”, a qual toma um lugar primordial na experiência subjetiva. Esta dificuldade pode promover efeitos de desenraizamento ou de desterritorialização (Rosa et alii, 2009), os quais podem surgir à nossa cultura por meio de somatizações, adoecimentos inespecíficos e, dentro de nosso fazer ocidentalizado, possíveis patologias a partir de enquadres de normalidade centrados em padrões de constituição subjetiva específicos de nossa própria cultura. Os ouvidos, neste momento, também precisam de deslocamento.
Possibilidades de um Serviço de Psicologia em um CRAI
A fim de promover escuta dentro de um serviço especializado, portanto, a psicologia foi se construindo a partir do desejo de acolher este sofrimento em sua dimensão ético-política. Especialmente porque as dificuldades encontradas no processo migratório, que envolvem desde o deslocamento até o acolhimento em si, podem ser vivenciadas como um novo traumatismo, especialmente na perspectiva da perda da coerência e da continuidade de si (Martins-Borges, 2013). Este acolhimento e atendimento psicológico, então, procura auxiliar o sujeito na manutenção do fio de coesão entre o que parte e aquilo que fica e busca por projeto de futuro de si. No entanto, alguns questionamentos começam a surgir sobre esta prática de acolhida e escuta, especialmente no que se refere à psicologia: sendo realizada, quais são as ferramentas desta escuta que podem auxiliar nesta “continuidade de si”, apontada pela autora supracitada? Quais elementos nossa psicologia, da forma que é construída em nossa matriz cultural, apresenta para promover esta escuta?
Parte das atividades realizadas pelo Serviço de Psicologia do CRAI foram construídas com apoio da orientação epistemológica e metodológica decorrente das pesquisas e práticas desenvolvidas pelo NEMPsiC. Ressalta-se nesse sentido as experiências oriundas do SAPSIR© e da Clínica Intercultural3. A primeira ação do Serviço de Psicologia no CRAI foi a articulação com a rede de saúde, assistência social, educação e segurança pública disponíveis na região e apresentação deste serviço que, a partir daquela data, passa a fazer parte da rede. Tal ação sugere a importância de uma perspectiva não centralizada na construção da atenção especializada a imigrantes. Assim, não se procura reduzir o acolhimento das demandas desta população ao CRAI, mas sim que o serviço sirva como parte de uma atenção integral, proporcionando função de conexão do sujeito e seu território, ou seja, mediação. Desta maneira, o foco da atenção acaba sendo promover uma escuta sensível ao encontro com as diferenças culturais e utilizar dele como ferramenta para inserção destes sujeitos ao seu novo campo de possibilidades de existência.
Criou-se, além disso, um espaço de acolhimento individual por demanda espontânea, de modo a ouvir aqueles que demonstravam interesse para isto. Todavia, os deslocamentos na escuta citados acima, envolvem conceber que a psicologia, para algumas culturas, não se inscreve no campo simbólico da mesma forma que para nós. Percebemos que proporcionar este espaço como condição sine qua non para intervenção da psicologia é prever uma concepção basilar do que é nosso fazer e seus possíveis efeitos a partir da escuta do sofrimento. A perspectiva do trabalho, portanto, é o cuidado em saúde mental que busque a minimização dos efeitos psicossociais negativos provenientes dos processos de migração. Delineado o campo de atuação, a intervenção realizada visa aproximação destes sujeitos ao acesso às políticas públicas de atenção, cuidado e acolhida por meio da escuta qualificada.
Retomando Sawaia (2005), as ações são norteadas em dois campos centrais, dos quais temos ramificações: ordem material e jurídica, sobre a qual se debruçam as implicações de permanência deste sujeito como alguém legítimo perante este Estado acolhedor e sua dimensão prática no que diz respeito a moradia, alimentação e mínimos sociais; e a ordem intersubjetiva cuja ação da psicologia adentra na escuta do sofrimento tal qual abordamos em nossa discussão. Assim, apostamos especialmente em ações coletivas e grupos operativos que possam construir vínculos potentes de inserção desse sujeito com marcos simbólicos locais e estabelecimento de relações de troca. São executados os seguintes grupos: Grupo para mulheres e bebês, Grupo de informações sobre trabalho, Grupo de visita ao museu, Time de futebol com imigrantes e refugiados e Roda de conversa na entrega de cesta básica. A partir destas atividades, reconfigura-se a escuta tendo como base o cotidiano, ou seja, experiências da ordem material e relacional a fim de fazer a ação da psicologia cada vez mais próxima à realidade dos sujeitos.
Da mesma forma, em atendimentos psicossociais em parceria com a assistente social, a escuta proposta rompe com silêncios promovidos por parte deste processo de deslocamento de modo a situar o sujeito no espaço de fala. A partir disso, são realizados encaminhamentos à rede com cuidado de pessoalizar esta ação por conta de possíveis barreiras linguístico-culturais que possam impedir a procura ou acolhida em outros serviços. O acompanhamento é realizado de maneira longitudinal por meio de ligações telefônicas periódicas, tanto para o serviço foco do encaminhamento quanto para o sujeito em questão.
Na especificidade do atendimento psicológico individual, ele é realizado, quando possível, utilizando a técnica da coterapia e da mediação cultural, oferecendo escuta por tempo determinado. Esta prática tenta cumprir uma função de apoio no enfrentamento das dificuldades cotidianas vivenciadas por essa população, além de um trabalho específico e mais elaborado no que diz respeito às questões de natureza psicológica como traumas, medos e inseguranças ( Martins-Borges, Jibrin, Barros, 2015). Este trabalho também fala de tentativas de promoção de noção de continuidade em histórias de vida partidas pela necessidade de migração. Assim, o vínculo terapêutico tenta estabelecer função de reaproximação com processos de identificação com o novo momento de vida (Pocreau, Martins-Borges, 2013).
Em situações extremas, frequentes em casos de migração involuntária, os referenciais identificatórios são abalados e a escuta psicológica promove presença e valorização da palavra, seja ela em qualquer idioma. Assim, esta prática de escuta, seja ela na sua modalidade individual ou munindo-se dos processos grupais, tenta romper barreiras e ressignificar a possibilidade de experiência compartilhada com o outro, aproximando-se de uma escuta de resgate de memória e testemunho (Rosa et alii, 2009), especialmente quando o outro parte de referenciais simbólicos, afetivos e culturais de diferentes matrizes.
O desafio de se trabalhar em um espaço como este e construir um serviço de atenção psicológica se dá em articular estratégias clínicas e políticas que fundamentem o enfrentamento do sofrimento ético-político presente nos processos migratórios, especialmente em sua dimensão involuntária (Rosa et alii, 2009). Assim, integrar os sujeitos acompanhados pelo CRAI aos serviços socioassistenciais, escutar o sofrimento e trabalhá-lo com o ferramental da prática psicológica da forma que apresentamos, emerge como denúncia de possíveis mecanismos do binômio inclusão/exclusão na contramão de silenciamentos perversos promovidos pelo encontro com a diferença.
Considerações finais
Elaborar considerações acerca de um trabalho em - e sobre o - movimento é, no mínimo, desafiador. Esta característica, num olhar sobre o serviço de psicologia, não se deve apenas à delicadeza dos discursos ouvidos nos atendimentos, mas especialmente ao modo que buscamos escutar, sobre o qual debruçamos as reflexões aqui apresentadas. Hoje, um serviço como CRAI/SC, híbrido entre Estado e Ação Social, terceiriza um não que é oferecido pelo Estado, mas servido pelo dispositivo que se propõe referência na atenção. O que queremos discutir com esta afirmação é justamente a esperança que se cria com o estabelecimento de um Centro de Referência, como se todas as questões relacionadas à acolhida de imigrantes e refugiados fossem magicamente solucionadas a partir de um único serviço. Entende-se que esta lógica responde ainda a um olhar totalizante do cuidado e que precisa ser desconstruído.
Por exemplo, quando alguém chega de outro país sem condições financeiras para se estabelecer, procura, muito possivelmente, o CRAI/SC para receber acolhida e amparo. No entanto, ao chegar com suas bagagens repletas de expectativas em nosso serviço, dificilmente o teto é encontrado de imediato, uma vez que as políticas públicas socioassistenciais ainda não absorveram demandas referentes à crise que envolve os movimentos migratórios recentes. A construção de um Centro de Referência é tão importante quanto a conversa dele com os demais serviços de atenção e cuidado.
Isto é, uma vez que as políticas públicas não acolhem integralmente as demandas por conta de limitações enfrentadas pela macro e micropolítica nacional, criam-se formas de amenizar a recusa, numa tentativa de levar à especialidade a responsabilidade principal de acolhida. Todavia, sabe-se que isto não se faz sem rede e, por isso, no serviço de psicologia, entende-se o não por vezes apresentado como uma corresponsabilização entre o sujeito atendido e os profissionais em questão para que, juntos, sejam desenhadas estratégias de integração que sensibilizem a escuta para além do CRAI/SC.
Assim, a escuta que citamos ganha dimensões de ordem ético-política e a psicologia neste contexto busca não apenas acolher e encaminhar, mas também promover autonomia para reivindicação de direito à integração e meios de vida. O CRAI/SC e especificamente o serviço de psicologia, para a rede socioassistencial, pode ser acionado num viés de matriciamento, tal qual na saúde, a fim de sensibilizar e relativizar o olhar sobre a cultura dentro dos próprios dispositivos da rede, sem a necessidade intrínseca de acompanhamento no serviço especializado.
Dada esta perspectiva híbrida entre psicologia clínica e psicologia social, os atendimentos da psicologia num serviço como o CRAI, muitas vezes, podem ser associados ao trabalho do serviço social pela concretude da ação, algo que carece às pessoas que lá chegam: querem respostas, querem casa, querem comida, querem mínimos sociais. Quando somos diretamente solicitados pelos usuários na especificidade da psicologia, eles apresentam como maior demanda o que se denominou de “sofrimento psíquico relacionado à migração”. Esta categorização generalista é oriunda do levantamento de dados para relatório de atividades (CRAI, 2018). De fato, esta categoria segue numa dualidade entre corpo/mente decorrente de um pragmatismo que prioriza o materializado no corpo ante o sentido pelo psíquico e, por isso, damos evidência a este último.
Se desdobrarmos o termo e afinarmos a escuta - e o que interessa à escuta psicológica são estes desdobramentos - encontraremos formas múltiplas de manifestação deste sofrimento que, por muitas vezes, transforma o corpo numa fronteira em conflito. E, como tal, sofrendo consequências pela difícil posição de “entre”, encontramos um corpo possivelmente abjeto (Butler, 1999) por conta das distâncias que impossibilitam de imediato a corporificação da norma. O corpo entra em colapso. De imediato e a partir de experiências recentes no CRAI, percebe-se a importância de promover modificações em nossos paradigmas de assistência. Com isto, buscamos enfatizar a importância da elaboração de uma gramática que seja comum entre as partes na perspectiva de novos enquadres para o sofrimento, os quais consideram o deslocamento, a cultura e a busca por novas condições de possibilidade de vida.
Assim, propor um serviço de psicologia neste contexto rompe como um grande desafio e busca promover o que Rosa et alii (2009) apresentam como o deslocamento da clínica do sintoma para a clínica do traumático. É importante salientar que esta última é intrinsecamente demarcada pelas dinâmicas de inclusão/exclusão que citamos anteriormente e que demanda um olhar sobre sofrimento em perspectiva. Ou seja, a escuta precisa considerar os demarcadores sociais e políticos que, por vezes, mitificam a existência migrante como o “estrangeiro” passível de exclusão e merecedor do “não reconhecimento”. O CRAI/SC, como serviço de referência vinculado ao estado, está intimamente atrelado às situações macropolíticas que exercem efeitos de modulação neste “social” que vai desde a percepção dos brasileiros sobre a migração até condições mínimas de funcionamento. Como serviço especializado, portanto, busca legitimar histórias, escutar seu sofrimento e auxiliar na tentativa de se fazer vidas possíveis em territórios menos áridos, mantendo o fio de condução e manutenção entre temporalidades, territórios e afetos.
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1
O termo migração forçada é recorrente nos textos sobre migrações e, principalmente, sobre refúgio. Ao utilizarmos migração involuntária não buscamos invalidar o primeiro, mas sim acrescentar e enfatizar a dimensão psíquica do sujeito migrante tão presente - no entanto, tão pouco aprofundada - nas migrações forçadas. Percebemos na migração forçada a dimensão geográfica, política e, sociológica; na migração involuntária, percebemos o sujeito. Uma referência não exclui a outra; elas são complementares. Buscamos nesse posicionamento simplesmente nomear o foco de nosso trabalho.
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Quando nos referimos a Proteção, falamos sobre a garantia de condições legais de permanência destes sujeitos no território nacional. Já na Integração, fala-se de um serviço de busca por inserção no mercado de trabalho, moradia, por exemplo. Estes dois setores, cada um em sua especificidade, trabalham com a busca de garantia de direitos a pessoas de outras nacionalidades em território brasileiro a partir de pactos internacionais ou num viés constitucional.
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3
Para saber mais detalhes a respeito destes serviços, recomenda-se a leitura de: MARTINS-BORGES, Lucienne; POCREAU, Jean-Bernard. Serviço de atendimento psicológico especializado aos imigrantes e refugiados: interface entre o social, a saúde e a clínica. Estudos de Psicologia, v. 29, n. 4, p. 577-585, 2012; MARTINS-BORGES, Lucienne; JIBRIN, Marcio; BARROS, Allyne Fernandes Oliveira. Clínica intercultural: a escuta da diferença. Contextos Clínicos, v. 8, n. 2, p. 186-192, 2015.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Abr 2019 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2019
Histórico
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Recebido
15 Jan 2019 -
Aceito
11 Mar 2019