Open-access Pessoas migrantes, refugiadas e deslocadas no Oriente Médio e Norte da África: visibilidade e direitos

Migrants, refugees and displaced persons in the Middle East and North Africa: visibility and rights

Embora a mobilidade seja uma característica bastante comum em todos os contextos e em todas as sociedades atuais, há bastante heterogeneidade quanto à visibilidade. Enquanto algumas fronteiras e corredores migratórios são extremamente midiatizados, outros permanecem opacos e ignorados ou visibilizados em função de interesses específicos. É o caso de muitos deslocamentos Sul-Sul, geralmente lembrados ou noticiados quando “transbordam” (overflow, nas palavras de Zaccara e Gonçalves, 2021), quando ultrapassam as ronteiras físicas e simbólicas do política e economicamente aceitável.

Essa invisibilidade não diz respeito apenas à ausência de cobertura midiática, mas também ao excesso de cobertura enviesada nos meios de comunicação que distorcem a realidade com base em estereótipos. Esse processo aprofunda o desconhecimento em relação às pessoas migrantes e seus projetos, bem como às causas e às consequências dos deslocamentos. Um exemplo paradigmático é constituído pelas migrações no MENA (acrônimo de Oriente Médio e Norte da África), pouco noticiadas ou, com muita frequência, excepcionalizadas, não apenas por interesses políticos e econômicos, mas, por vezes, como afirma Estella Carpi no dossiê desta edição da REMHU, até por “abordagens etnocráticas humanitárias”.

Independentemente se por razões solidárias ou exploratórias, seja para denunciar abusos ou, então, para legitimar violações de direitos e intervenções, a ausência de uma séria genealogia dos deslocamentos no Oriente Médio e Norte da África, de um olhar multicausal e multidisciplinar e, sobretudo, a estigmatização dos sujeitos migrantes mediante representações distorcidas e tipificações étnicas e religiosas, acaba por ocultar as experiências dos sujeitos, suas histórias, suas narrativas, suas razões (Fassin, Rechtman, 2020, p. 386). Nas conhecidas palavras do protagonista do romance de Ralph Ellison: “Quando se aproximam de mim, só enxergam o que me circunda, a si próprios ou o que imaginam ver — na verdade, tudo, menos eu” (Ellison, 2013, p. 25).

No caso específico do MENA, contribui a essa invisibilidade a frequente utilização superficial e generalizada de determinadas taxonomias migratórias e étnicas – como “refugiado”, “migrante econômico”, “migrante forçado”, “traficante de pessoas”, entre outras –, assim como a categorização de eventos complexos através de expressões oriundas do assim chamado mundo ocidental, como “primavera árabe” ou “crise dos refugiados”. Tais expressões, além de refletirem a perspectiva e os interesses de quem as cria e utiliza, acabam inevitavelmente condicionando a leitura desses complexos fatos históricos. Por que não falar, por exemplo, no segundo caso, em “crise da hospitalidade europeia”?

É nessa perspectiva que a REMHU, no dossiê da Revista n. 63, apresenta alguns olhares sobre migrações na região do MENA, buscando abordagens interdisciplinares e, sobretudo, pautando a necessidade de um conhecimento mais aprofundado e articulado sobre essa realidade complexa e diversificada. Agradecemos aos organizadores convidados, Luciano Zaccara e Maria do Carmo dos Santos Gonçalves, remetendo ao artigo deles para uma introdução e apresentação mais detalhada do dossiê.

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A seção “Artigos” do n. 63 da REMHU se inicia com dois textos sobre a imigração venezuelana no Brasil. No primeiro, Iana Santos e Igor José de Renó Machado abordam a gestão militarizada dos abrigos promovida pelo governo brasileiro com a Operação Acolhida para administrar o fluxo em Boa Vista, no Estado de Roraima. Na opinião dos autores, sob a égide da ação humanitária, o que está sendo realizada é uma gestão securitária de controle e fiscalização das pessoas em mobilidade, inclusive no que diz respeito ao processo de interiorização. Em outros termos, “a saída política articulada por essa ambientação ‘humanitária’, na qual organizações internacionais têm seu lugar e as organizações civis locais são paulatinamente excluídas, é pura e simplesmente um enrijecimento da política migratória”. Trata-se de uma tendência presente também em outras partes do mundo que só confirma a espraiada obsessão pela criminalização – ou talvez “inimização” – das pessoas em mobilidade.

Numa ótica análoga, mas não idêntica, João Carlos Jarochinski-Silva e Rosana Baeninger propõem uma análise da imigração venezuelana no Brasil a partir de uma perspectiva das migrações Sul-Sul. Essa perspectiva possibilita enxergar a complexidade e a diversidade do fenômeno em relação a outros fluxos e, inclusive, entender melhor os processos de gestão. Entre outros aspectos o autor e a autora atentam para duas questões que gostaríamos de destacar. Em primeiro lugar, a superficial interpretação do fluxo na ótica da “temporalidade” ou da provisoriedade – na esteira talvez de fluxos forçados transfronteiriços Sul-Sul típicos de outros continentes – que alimenta respostas parciais e precárias, sem o devido respeito pelos direitos humanos e por soluções duradouras. Em segundo lugar, a militarização da fronteira e o envolvimento de recursos do Norte Global remete para o fenômeno da externalização das fronteiras: o Brasil, neste caso, parece atuar como um “país-tampão” no controle e estancamento da migração venezuelana.

Ambos os artigos, no fundo, remetem para uma espúria combinação entre lógicas “humanitárias” e securitárias, uma mescla em que as duas vertentes podem reciprocamente se sustentar na ótica do que Fassin (2018, p. 10) chama de governo humanitário. Ainda assim, a recente “criminalização da solidariedade”, que ocorre em vários países, atesta a incompatibilidade entre securitismo e direitos humanos, cuja aproximação se sustenta unicamente por uma interpretação deturpada destes, onde o foco se concentra na “tutela” e na “docilização”. É por isso que na atualidade se tornou relevante, entre outros aspectos, compreender as implicações da mudança de narrativas e vocabulários, a saber: “quando falamos de sofrimento em vez de desigualdade, de trauma em vez de violência, de resiliência em vez de resistência, ou de crise humanitária em vez de ocupação por parte de um país inimigo” (Fassin, 2018, p. 292).

O artigo de Alisson Ferreira, Mariá Lodetti e Lucienne Borges aborda o sofrimento psíquico enfrentado pelas pessoas que passam pela experiência de uma imigração não voluntária. A pesquisa realizada com pessoas migrantes sírias, venezuelanas e haitianas em Florianópolis e em Foz de Iguaçu, no Brasil, atenta como a ruptura nos projetos de vida pode provocar impactos psicológicos e sofrimento psíquico, conforme atestado pelos estudos da etnopsiquiatria. Além disso o autor e as autoras destacam as consequências das frustrações advindas da ruptura educacional, sobretudo no que diz respeito à revalidação de diplomas e à inclusão universitária - geralmente processos burocráticos “homogêneos e padronizados”, “incondizentes com as especificidades e com a diversidade cultural inerente a tais propostas educacionais”. O artigo ainda evidencia a importância dessas políticas de inclusão na área da educação, porque geram esperança e possibilidade de recomeços.

A perspectiva de gênero nos estudos sobre saúde mental é o ponto levantado pelo artigo de Itzel Eguiluz. A feminização do fenômeno migratório não é algo novo, mas só recentemente as mulheres estão sendo incluídas nas pesquisas sobre mobilidade humana, inclusive no que diz respeito às consequências psicológicas dos deslocamentos. Nessa ótica, a autora chama atenção para a necessidade de atualização dos conceitos de análise, no sentido da produção de conceitos que abarquem também as vivências das mulheres migrantes. A “síndrome de Ulisses” avalia os riscos da saúde mental das pessoas migrantes, mas não leva em consideração a perspectiva de gênero. Por outro lado, na perspectiva da autora, a assim chamada “síndrome de Penélope” não responde necessariamente aos desafios das migrações femininas. Sugere-se, portanto, a utilização de outro referencial, a saber, Nellie Bly (a síndrome de), a fim de integrar a perspectiva de gênero e, inclusive, da cultura nos estudos sobre saúde mental e migrações.

O artigo de Deivison Mendes Faustino e Leila Maria de Oliveira analisa a aplicabilidade nos estudos sobre migração, diáspora e xenofobia no Brasil do conceito de “xeno-racismo”, elaborado pelo romancista srilankês Ambalavaner Sivanandan. Esse conceito, apesar de evidenciar os contornos da relação entre xenofobia e racismo no estágio atual de acumulação capitalista, torna-se frágil diante de cenários em que a xenofobia se apresenta como racializada. Segundo o argumento do autor e da autora, as sociedades desenvolvidas através da colonização, como é o caso do Brasil, apresentam um cenário desigual na distribuição e no acolhimento de estrangeiros, a depender da origem e da heteroidentificação nos marcadores sociais da diferença. Essa seletividade, nomeada como xenofobia racializada, apresenta características particulares no contexto brasileiro, não abarcadas pelo conceito de xeno-racismo.

A questão da integração das pessoas migrantes em Portugal é focada no artigo de Geisa Daré numa perspectiva política e jurídica. A autora apresenta um panorama geral sobre as recentes migrações no país ibérico e o tratamento jurídico e político dos direitos de cidadania, principalmente no que diz respeito à participação política, à residência permanente e ao acesso à nacionalidade. Em termos gerais, observa-se um grande esforço do governo português a fim de colocar em prática medidas de integração, principalmente mediante a instituição de órgãos específicos e políticas que visam facilitar o acesso a direitos. No entanto, apesar dos esforços, é necessário verificar até que ponto essas medidas são capazes ou suficientes para promover um efetivo processo de integração da população migrante.

O compromisso da sociedade civil organizada com vistas a promover uma migração segura e uma adequada integração no país de chegada é focado no artigo de Ana Irene Rovetta Cortés, que traz uma análise sobre o “apadrinhamento de refugiados” a partir da experiência de 17 países do mundo ocidental. Conforme a autora, o modelo originário do Canadá era norteado pelo princípio da adicionalidade (aumentar o número de pessoas refugiadas acolhidas), pela possibilidade de escolha por parte dos “padrinhos” (não necessariamente refugiados estatutários) e pelo envolvimento da sociedade civil. A evolução e comparação dos diferentes modelos revela como o esquema do apadrinhamento possui muitas potencialidades em termos de proteção e promoção dos direitos dos migrantes. Ainda assim, não faltam questionamentos, visto que há vários interesses envolvidos, não apenas na ótica dos direitos humanos.

Na Seção “Relatos e reflexões”, Terezinha Santin, mscs, apresenta os desafios enfrentados pela Pastoral dos migrantes na acolhida de migrantes venezuelanos em Boa Vista e Pacaraima, no Estado de Roraima. O relato demonstra, de maneira sensível, a capacidade de transformação que a acolhida e o cuidado com as pessoas migrantes podem promover. No contexto de atuação da pastoral, ajudar, acolher e cuidar é semente plantada nas pessoas que são atendidas e faz com que elas também passem a ajudar e acolher quem está chegando. A ótica da reciprocidade se faz presente mesmo em uma situação de dor, separação e perda na vida das pessoas em mobilidade.

A resenha de Renata Ferreira da Silva e Juliane Sant’Ana Bento sobre o livro Migração e Intolerância de Umberto Eco encerra o número 63 da Remhu.

Desejamos a todas e todos uma boa leitura.

Referências bibliográficas

  • ELLISON, Ralph. Homem Invisível José Olympio, 2013.
  • FASSIN, Didier. Ragione umanitaria Una storia morale del presente. Roma: DeriveApprodi, 2018.
  • FASSIN, Didier; RECHTMAN, Richard. L’impero del trauma Nascita della condizione di vittima. Milano: Meltemi, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021
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