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O conselho da moeda: um órgão emissor independente

The currency board: an independent issuing institution

RESUMO

Um programa de estabilização bem-sucedido é um conjunto harmônico de reformas estruturais. O equilíbrio fiscal não é uma condição suficiente. É necessário restabelecer a credibilidade monetária. Três alternativas para estabelecer uma referência monetária com base em uma moeda estrangeira são examinadas. Uma nova moeda emitida por uma instituição independente totalmente lastreada por uma moeda de reserva aceita internacionalmente é a alternativa proposta. Argumenta-se que a instituição responsável pela emissão da nova moeda deve se basear na experiência dos Conselhos de Moeda. A supervalorização da moeda devido à inflação inercial residual é um problema frequente. A introdução gradual da nova moeda conversível é proposta como uma tentativa de reduzir o grau de referência à inflação passada na formação de preços. Os riscos associados a um período de circulação paralela de duas moedas são examinados. Finalmente, alguns dos argumentos contra esse tipo de reforma monetária são analisados brevemente.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização; regime monetário; currency board

ABSTRACT

A successful stabilization program is a harmonic set of structural reforms. Fiscal equilibrium is not a sufficient condition. It is necessary to reestablish monetary credibility. Three alternatives to establish a monetary reference based on a foreign currency are examined. A new currency issued by an independent institution fully backed by an internationally accepted reserve currency is the alternative proposed. It is argued that the institution responsible for the issuance of the new currency should be based on the experience of Currency Boards. Overvaluation of the currency due to residual inertial inflation is a frequent problem. The gradual introduction of the new convertible currency is proposed as an attempt to reduce the degree of reference to past inflation in price formation. The risks associated with a period of parallel circulation of two currencies are examined. Finally, some of the arguments against such kind of monetary reforms are briefly analyzed.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization; monetary regime; currency board

“There is no subtler, no surer means of overturning the existing basis of society than to debauch the currency. The process engages all the hidden forces of economic law on the side of destruction and does it in a manner which not one man in a million is able to diagnose.”

(John Maynard Keynes, The Economic Consequence of Peace, 1920)

“The most important mitigating device is to slow inflation gradually but steadily by a policy announced in advance and that adhered to, so that it becomes credible. That is feasible for moderate inflations. It is not feasible for major inflations, let alone hyperinflations. In such cases, only a shock treatment is feasible; the patient is too ill to support a long-drawn-out cure.” “No country can continue to operate at Brazil’s hyperinflationary rates without abandoning its national currency and adopting a substitute.”

(Milton Friedman, Money Mischief, 1992)

Nunca é demais repetir que um programa de estabilização e de retomada do crescimento bem-sucedido exige uma série de medidas estruturais. Podem ser resumidas em seis pontos que devem compor um conjunto harmônico de reformas:

  1. equacionamento fiscal para adequar as despesas públicas às receitas e ao limite não inflacionário de financiamento público;

  2. reorganização e redefinição do papel do Estado, limitando-o a suas funções clássicas e ao planejamento indicativo;

  3. reorganização jurídico-institucional inspirada no modelo conceitual da economia de mercado competitivo;

  4. desburocratização e simplificação de toda atividade econômica;

  5. integração competitiva aos mercados internacionais; e

  6. investimento racional e permanente na educação, na pesquisa científica e tecnológica.

É inegável que a agenda do governo Collor inclui desde o início propostas muito próximas a esse conjunto de reformas. O resultado prático, contudo, foi até aqui um fracasso. Substituída a equipe do governo inicial, o segundo governo Collor iniciou-se com Marcílio Marques Moreira no Ministério da Economia e se completou com a última reforma ministerial. Por um breve período, a impressão dominante foi que se afinariam finalmente o discurso e a prática.

Desde outubro do ano passado, a aceleração da inflação foi, pela primeira vez, interrompida sem que se recorresse a controle de preços e salários ou a qualquer outro tipo de artifício. A credibilidade conseguida pelo ministro Marcílio foi suficiente para interromper a sequência choque-explosão inflacionária que prevaleceu desde o fracasso do Plano Cruzado. A inflação continuou, entretanto, insuportavelmente alta.

Uma vez que o processo inflacionário atingiu o estágio avançado e crônico a que chegamos, não é mais possível reduzir gradualmente a alta dos preços. O controle das despesas na boca do caixa e os juros altos impedem que a inflação se acelere, mas têm custos sociais e políticos que vão se tornando rapidamente intoleráveis. Ainda que não se verificasse a grave crise provocada pelas denúncias de corrupção, a probabilidade de sucesso de uma política gradualista seria mínima. As reformas modernizadoras enfrentariam de qualquer forma dificuldades políticas crescentes, que a fragilidade do governo neste momento deverá tornar intransponíveis.

Como preservar a capacidade de promover as indispensáveis reformas estruturais e recuperar o investimento e a atividade econômica? Esse desafio só tem uma resposta: a recuperação da credibilidade da moeda. Não há estabilidade de preços sem credibilidade monetária. Longos anos de inflação e de déficits públicos financiados com emissão de moeda levaram o cruzeiro ao completo descrédito. Das três propriedades da moeda, a saber, reserva de valor, unidade de conta e meio de pagamento, o cruzeiro já perdeu por completo a primeira e a segunda. Preserva-se por enquanto como meio de pagamento devido às restrições legais e de ordem prática à circulação de moedas estrangeiras.

Recuperar a credibilidade há tanto tempo perdida não é rápido nem simples. Só com a estabilidade de seu poder de compra recuperada e preservada por alguns anos será possível restabelecer o cruzeiro como moeda com todas as suas propriedades. Sem moeda estável, a atividade econômica enfrenta dificuldades, maior é o sacrifício exigido para equilibrar as contas públicas, ao mesmo tempo que se torna mais difícil o apoio às reformas modernizadoras. Sem equilíbrio fiscal e eficiência industrial, não há como criar as condições para a estabilidade da moeda. Esse é o círculo vicioso que precisa ser interrompido.

Além da reorganização fiscal e das reformas estruturais, a interrupção de um processo inflacionário crônico exige a criação de uma unidade de conta, uma referência monetária, o que se convencionou chamar de uma âncora dos valores nominais. O recurso a uma moeda estrangeira é a alternativa mais frequente. Por ser a moeda internacionalmente mais utilizada, o dólar americano é o candidato natural.

Sob a denominação genérica de dolarização, existem três alternativas básicas de definição de um padrão de referência baseado no dólar. A primeira e a mais radical seria a de substituição completa da moeda nacional pelo dólar, que passaria a circular livremente. Trata-se da eliminação da moeda nacional e da incorporação do país à área monetária americana. Este é o caso do Panamá, que não tem moeda própria. Um país que abre mão de sua própria moeda e utiliza uma moeda estrangeira abdica das receitas de seignorage em favor do emissor desta última. Tais receitas correspondem aos ganhos com a totalidade dos juros nominais que deveriam ser pagos pelo país emissor da moeda para se financiar não monetariamente. Ao carregar um estoque de moeda estrangeira que não paga juros e é desvalorizado pela inflação do país emissor, um país transfere para o Tesouro do país emissor a totalidade dos ganhos de seignorage que decorreriam de um estoque equivalente de moeda própria à taxa de inflação do país emissor. Se este não fosse motivo suficiente para descartar a simples substituição da moeda nacional por uma moeda estrangeira, bastaria refletir sobre os obstáculos políticos que suscitaria para abandoná-la como onerosa e irrealista.

No extremo oposto, a alternativa mais simples e menos radical é a mera fixação da taxa de câmbio da moeda nacional em relação ao dólar, com garantia de conversibilidade. Trata-se, entretanto, de uma aposta de alto risco. Nada indica que o câmbio fixo e a conversibilidade sejam capazes de reverter o descrédito acumulado num longo período de irresponsabilidade fiscal e monetária. Para que um programa nessa linha seja bem-sucedido, é preciso dispor de um importante estoque de reservas internacionais com o objetivo de resistir a ataques especulativos e eliminar a curtíssimo prazo todo e qualquer desequilíbrio orçamentário, fonte de emissão monetária. Ainda que satisfeitas essas condições, os elementos de inércia na formação de preços que persistem até os últimos estágios das hiperinflações garantem um resíduo inflacionário que, com o câmbio fixo, provoca a sobrevalorização cambial. Com a estabilidade monetária recém adquirida ainda frágil, qualquer tentativa de desvalorização, ou mesmo a simples hipótese de desvalorização, provocaria renovadas pressões inflacionárias que iriam comprometer um bem conduzido programa de estabilização.

Uma alternativa composta pelos dois casos extremos é a de fixar a taxa de câmbio, garantir a conversibilidade e autorizar a circulação concomitante do dólar e da moeda doméstica. Este é o programa do ministro argentino Domingo Cavallo. A inflação caiu imediatamente, as expectativas foram revertidas e os investimentos, reativados. Ao se aproximar do segundo aniversário, o programa argentino é um inegável sucesso. Permanecem ainda dúvidas em relação a dois aspectos importantes. O primeiro é quanto à velocidade do ajuste fiscal para manter a regra de não financiara setor público com emissão monetária, o que vem sendo cumprido graças às receitas advindas da venda de ativos no programa de privatização. O segundo é quanto à capacidade de sustentar a paridade cambial entre o peso e o dólar, dado que a inflação doméstica no período ainda foi superior à inflação americana. Em particular, os preços ao consumidor subiram mais que os preços no atacado. Tal fato reflete o elemento de inércia que persiste, mesmo após a estabilização monetária, especialmente na formação dos preços dos chamados bens não-comerciáveis, como os serviços e outros de peso no índice de preços ao consumidor.

Uma quarta alternativa, que pode ser vista como um aperfeiçoamento do programa argentino para evitar os problemas mencionados, é a criação de um órgão emissor independente, que seja capaz de sustentar a conversibilidade de sua moeda a uma taxa de câmbio fixa. Trata-se de instituição semelhante aos Currency Boards que existiram em quase todos os regimes coloniais ingleses e estão hoje circunscritos a Singapura e Hong-Kong.

Um sistema de Currency Board se define pela obrigação do Board emissor de converter, a uma taxa fixa, a qualquer momento e sem restrições, a moeda de sua emissão pela chamada moeda-lastro. Para assegurar a conversibilidade de sua moeda, o Board se obriga a manter ativos financeiros líquidos e realizáveis em moeda-reserva no mínimo à totalidade do estoque emitido de sua moeda. Em outras palavras, o Board mantém pelo menos 100% de reservas em moeda-reserva para lastrear a emissão de sua moeda.

O desenho institucional do Board é simples: trata-se de um órgão independente, que poderia até mesmo ser uma fundação privada, cujo único objetivo estatutário é emitir uma moeda própria conversível a qualquer momento na moeda-reserva a uma taxa de câmbio fixa. O Board teria um conselho com um número fixo de diretores, com mandatos de duração determinada e não coincidentes. O Conselho seria responsável pela gestão dos fundos em moeda-reserva que lastreiam a moeda emitida por ele. Como o Board não teria nenhuma das funções de Banco Central, nem qualquer atuação no mercado financeiro doméstico, sua estrutura seria mínima, com reduzido quadro de funcionários. O Board não teria relação direta com o público que usaria o sistema bancário para transações com a moeda emitida pelo Board. Apenas o sistema bancário e o Banco Central transacionariam com o Board para compra ou venda da moeda do Board contra pagamento em moeda-reserva.

Todo o resultado operacional do Board, depois de constituídas provisões adequadas para eventuais perdas, seria transferido anualmente para o Tesouro. Fica assim assegurado que o benefício da emissão de toda moeda de curso legal no país é apropriado pelo Tesouro. Garante-se, dessa forma, o ganho de seignorage que se perderia caso se permitisse a circulação de dólares, como é o caso na alternativa argentina.

A recuperação da receita de seignorage é importante, mas não a única vantagem em relação ao modelo argentino. No programa de estabilização da Argentina, a taxa de câmbio da moeda nacional, que voltou a se chamar peso, foi fixada de uma vez por todas em relação ao dólar. O programa argentino é, portanto, uma combinação da verdadeira dolarização ao estilo Panamá, com a simples fixação da taxa de câmbio para servir de âncora nominal aos preços domésticos. Se, por um lado, ao permitir a circulação paralela do dólar, abre-se mão de receitas de seignorage, por outro, ao fixar o câmbio, incorre-se nas dificuldades da sobrevalorização cambial, que qualquer taxa residual de inflação superior à americana terminará por provocar. É justamente a sobrevalorização do peso que hoje constitui a maior ameaça à economia argentina. Apesar da circulação livre do dólar e da taxa de câmbio fixa, a inflação tem sido superior à inflação americana. O resultado é a sobrevalorização cambial, com suas consequentes distorções sobre o balanço comercial e, eventualmente, a necessidade de desvalorizar a moeda doméstica, o que poria em risco a estabilidade de preços recém-conquistada.

A circulação simultânea da moeda emitida pelo Currency Board e do cruzeiro, com taxas de câmbio livre entre as duas moedas, é uma alternativa que ajudaria a evitar os problemas enfrentados pela Argentina. A moeda do Board cumpre o papel de restabelecer um padrão monetário confiável, por ser conversível e integralmente lastreada, sem que se abra mão de receitas de seignorage. Com uma referência monetária estável e imune à tentação do governo de abusar da emissão para se financiar, a atividade econômica e o investimento se recuperam. A retomada do crescimento facilita a própria reorganização fiscal, que necessariamente toma tempo. No entanto, ao introduzir a moeda do Board em circulação simultânea com o cruzeiro, sem fixar de imediato a taxa de câmbio entre elas, ganha-se em flexibilidade para avançar nas reformas de fundo e reduzir o risco de sobrevalorização provocada por resíduos de inflação superior a internacional.

O problema de fixar subitamente a taxa de câmbio é que a economia, por mais longe que tenha avançado no processo inflacionário, não substitui por completo a moeda nacional como padrão de referência. Isso só ocorre quando se atinge a hiperinflação aberta, com desorganização econômica avançada e a total rejeição da moeda nacional, como nas experiências das grandes hiperinflações europeias da primeira metade deste século. Com a capacidade computacional da informática moderna e o grau de sofisticação financeira atual, é pouco provável que se repitam hiperinflações como as que devastaram as economias europeias. Os inúmeros substitutos próximos para a moeda, as chamadas quase-moedas ou moedas indexadas, mantêm a economia com uma capacidade mínima de operação, ainda que com taxas de inflação que, na ausência da sofisticação financeira, seriam catastróficas.

A contrapartida dessa resistência aos últimos estágios da hiperinflação é que a economia não se dolariza, isto é, não substitui por completo a moeda nacional por uma moeda estrangeira. Mantêm-se assim critérios de reajustes de preços com base na inflação passada, uma indexação retroativa formal ou informal, que caracteriza os processos inflacionários crônicos e lhes dá um componente autônomo ou inercial. Nas hiperinflações abertas, após a completa rejeição da moeda nacional, basta fixar a taxa de câmbio dessa moeda em relação à estrangeira que a substituiu para estancar imediatamente a alta dos preços. A estabilidade exige, evidentemente, a capacidade de sustentar a paridade cambial, que por sua vez reclama que o governo tenha sido capaz de reequilibrar as finanças e não emitir moeda para se financiar, mas não há mais qualquer elemento de inércia.

Para evitar que a inércia, ainda presente antes da hiperinflação aberta, sobreviva à estabilização e cause resíduos inflacionários incompatíveis com a estabilidade monetária e cambial, deve-se permitira circulação simultânea da moeda do Board com a moeda velha. No período de transição, um número cada vez maior de transações e preços será cotado e liquidado na moeda do Board. Reduz-se assim o grau de referência à inflação passada na moeda velha para fixação de preços. A economia vai se “dolarizando” na moeda do Board e perde gradualmente a memória inflacionária da moeda velha. Quando a referência à moeda velha estiver se tornando insignificante, basta fixar a paridade entre ela e a moeda do Board. A velha moeda, assim como no caso de hiperinflações abertas, terá seu valor imediatamente estabilizado. Para sustentar tal estabilidade, é evidente, será necessário que o excessivo déficit público tenha sido eliminado e que não haja emissão além da estritamente compatível com a demanda da moeda. Não há aqui nenhum milagre. Estabilidade monetária requer disciplina fiscal. Não há estabilidade sustentável sem equilíbrio orçamentário.

Então por que criar o Currency Board, permitir circulação simultânea de duas moedas, para só num segundo momento fixar a paridade da velha moeda? Por que não eliminar o déficit via reforma fiscal e, em seguida, fixar o câmbio do cruzeiro em relação ao dólar? A resposta é que a moeda lastreada conversível do Board será imediatamente estável e se tornará a referência para os contratos e as transações, a despeito do sucesso da reforma fiscal ou da política monetária conduzida pelo Banco Central em relação ao cruzeiro. A atividade econômica e os investimentos podem se recuperar imediatamente e as reformas de fundo, das quais a reorganização fiscal é parte, podem ser mais facilmente postas em prática. Com uma nova e confiável referência monetária, eliminam-se gradualmente as referências à inflação passada e qualquer resíduo de inércia, ao estabilizar o cruzeiro num segundo momento.

A principal crítica à introdução de uma moeda de circulação paralela é a de que, sendo ela superior e mais confiável, provocará uma imediata rejeição do cruzeiro. Se isso for verdade, corre-se o risco de acelerar a inflação em cruzeiros até a hiperinflação aberta. Antes de tudo, é preciso lembrar que nesse caso não haveria risco de hiperinflação, mas apenas da rejeição e do consequente desaparecimento do cruzeiro. A crise associada à hiperinflação aberta não correria risco de acontecer, pois a moeda do Board substituiria integralmente o cruzeiro.

A possibilidade da rejeição imediata do cruzeiro se baseia numa transposição indevida da chamada lei de Gersham: a má moeda expulsa a boa de circulação. A boa moeda reduz a demanda pela moeda que é incapaz de manter seu poder de compra. Enquanto a boa moeda tende a ser entesourada, procura-se gastar o mais rápido possível a má.

A transposição da lei de Gersham para o contexto em que não há apenas moeda e bens, mas também títulos, invalida a inexorável conclusão de que haveria uma explosão inflacionária em cruzeiros, ao se introduzir uma moeda superior em circulação paralela. No modelo cuja única alternativa para a moeda são bens e mercadorias, toda a redução da demanda por moeda no equilíbrio de carteira dos agentes se transforma, automática e necessariamente, num aumento de demanda por bens. Quando há adicionalmente um título financeiro que paga juro denominado na moeda velha, a redução da demanda de moeda não se transforma automaticamente em demanda por bens, mas, sim, em demanda por títulos, que são substitutos mais próximos da moeda que os bens. Só assim é possível evitar a aceleração inexorável da inflação, ao garantir taxas de juros reais positivas nos títulos. A introdução da moeda estável e confiável emitida pelo Board reduz a demanda por cruzeiros. Isso é inevitável. O ganho de seignorage, ou, nesse caso, o imposto inflacionário arrecadado pelo governo sobre a base monetária em cruzeiros, reduz-se porque a quantidade real de cruzeiros retida pelo público será menor. O governo terá menor espaço de financiamento monetário e deverá compensar a perda por maior financiamento em títulos.

Tal financiamento poderá ser feito em títulos denominados na moeda do Board para liquidação, ou em cruzeiros, ou na própria moeda do Board. No primeiro caso, estaríamos diante de títulos públicos tradicionais, indexados à moeda do Board ou ao dólar. No segundo caso, teríamos títulos a serem pagos numa moeda que o governo não tem poder de emitir. Tais títulos representariam, assim, um risco completamente distinto dos títulos públicos tradicionais. Quando o governo vende um título para liquidação na moeda que pode emitir, o risco que incorre o comprador não é o de não receber, pois é sempre possível emitir para pagar, mas o de receber numa moeda que tem reduzido seu poder aquisitivo. Se o governo emite um título que, no vencimento, deve resgatar numa moeda que não tem capacidade de emitir, esse título implica um risco de crédito semelhante ao de qualquer título privado. Tais papéis concorreriam com os títulos privados e o próprio mercado se encarregaria de limitar via juros exigidos, e até mesmo via restrições quantitativas, o endividamento público numa moeda cujo poder de emissão o governo não detém.

Dois tipos adicionais de argumentos são usados para justificar a tese da inviabilidade da adoção de uma moeda conversível. O primeiro é que não teríamos o volume necessário de reservas internacionais. Trata-se de um argumento correto quando aplicado à alternativa de simples fixação da taxa de câmbio com ou sem garantia de conversibilidade. No caso da criação de um Conselho da Moeda que só possa emitir contra no mínimo 100% de reservas da moeda lastro, tal observação não procede. A conversibilidade com lastro do modelo de Currency Board é equivalente à adoção do sistema de padrão ouro, e sua adoção não depende da existência de reservas internacionais no momento de sua introdução.

Em princípio, mesmo que as reservas internacionais fossem nulas, seria possível criar um Conselho da Moeda que se disporia a entregar sua moeda, com curso legal no país, em troca de dólares que não teriam curso legal. Trata-se de trocar dólares, que não podem ser usados para liquidar transações no país, por certificados de recibos de dólares emitidos pelo Board, que têm curso legal e garantia de conversibilidade a qualquer momento, com base nas reservas integrais mantidas pelo Board. Independentemente do volume de reservas internacionais no Banco Central, o Board acumularia seu próprio estoque de reservas em moeda forte à medida que houvesse demanda por sua moeda, que seria vendida com paridade fixa de um para um com o dólar.

Para facilitar e apressar a introdução da moeda conversível, seria desejável que o Banco Central alocasse uma fração das reservas internacionais disponíveis, digamos 25%, para comprar a moeda emitida pelo Conselho. Com a moeda adquirida junto a este, o Banco Central poderia recomprar parte da base monetária emitida em cruzeiros e, assim, pôr em circulação a moeda emitida pelo Conselho. O crescimento do estoque de moeda conversível em circulação dependeria exclusivamente da demanda. Se os juros internos na moeda conversível fossem muito superiores aos juros externos em dólares, haveria um influxo de dólares para o Conselho e um consequente aumento do volume de moeda conversível em circulação. A expansão da oferta de moeda conversível reduziria os juros até que cessasse o influxo de recursos. Estaria estabilizada a oferta de moeda conversível segundo o clássico mecanismo de arbitragem da conta de capital, num regime de padrão ouro.

O último argumento contra a adoção de qualquer medida além do controle do caixa e da sustentação de juros altos é psico-político. A tese é a de que qualquer medida que reduza de forma drástica e imediata a taxa de inflação é politicamente perigosa. Toda e qualquer proposta que não se fixe exclusivamente numa reforma fiscal seria um retorno às mágicas e às pajelanças. Sob pretexto de acelerar a queda da inflação, ocultar-se-iam novas tentativas de adiar o ajuste fiscal e as reformas estruturais sem as quais não há realmente estabilização sustentável. Particularmente no momento em que o governo está fraco e ameaçado, qualquer tentativa de reduzir rapidamente a inflação seria apenas uma jogada política para fortalecer o governo e ganhar tempo com custos ainda maiores no futuro próximo. Uma vez que a inflação pareça controlada, torna-se politicamente impossível insistir nos sacrifícios exigidos para o definitivo equacionamento fiscal. A experiência dos últimos anos dá a esta tese um forte respaldo.

A criação de um órgão emissor independente, entretanto, não deixa alternativa. Ou se promove o ajuste fiscal capaz de adequar as despesas públicas à capacidade de financiamento não inflacionário, ou a moeda emitida pelo Banco Central desaparece, substituída pela moeda do Board. Se o setor público continuar incapaz de ajustar suas despesas, não terá alternativa senão a de se tornar inadimplente racionando pagamentos. Incapaz de emitir a única moeda aceita, o ajuste é obrigatório. O modelo do Currency Board é uma camisa de força. Em última instância, sua adoção obriga ao ajuste fiscal. Mas dá ao setor privado uma referência monetária imediata, para que sua atividade não fique transformada e inviabilizada enquanto o ajuste não vem.

O Currency Board é uma proposta de mudança institucional para restabelecer um padrão monetário estável e independente. Não se trata de mais um pacote-surpresa sigilosamente elaborado, mas de uma medida institucional que deveria ser debatida no Congresso, pré-anunciada e divulgada. Depois de tantos anos de irresponsabilidade monetária, só um órgão emissor independente e com cem por cento de reservas em moeda forte será capaz de restabelecer um padrão monetário estável e confiável. Sem moeda estável, o país continuará a agonizar numa crise que transcende o econômico. Crise social, política e moral, na qual toda tentativa de promover reformas institucionais modernizadoras esbarrará.

  • 1
    JEL Classification: E52; E58; E42; E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1992
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