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Tratamento da correção monetária dos juros da dívida interna* * Este trabalho foi elaborado com a colaboração de Bruno M. Ribeiro.

Monetary correction of interests of the internal debt

RESUMO

O objetivo deste trabalho é defender o ponto de vista de que, assim como os pagamentos de amortizações não representam parte da dívida do setor público, o correção monetária da dívida e outros encargos similares não devem ser considerados como parte desse déficit. Essa afirmação deve ser ainda mais enfatizada no caso de países com altas taxas de inflação, onde os gastos com indexação monetária e outros encargos similares passaram a ter, progressivamente, maior participação no Produto Interno Bruto. Para um melhor entendimento da real situação financeira do Governo, foi feito um ajuste na série das contas nacionais. Nesse sentido, e para dar andamento à política fiscal, foi excluído da despesa com encargos da dívida interna o valor correspondente à correção monetária. Isso significa que a indexação monetária em um contexto de altas taxas de inflação é melhor classificada como principal do que como encargo da dívida. É importante notar que este artigo se baseia em outro anterior, também de Sílvio Rodrigues Alves, intitulado “O Desafio do Déficit Público”, publicado na Revista de Economia Política n.” 30 (abril-junho/1988). em junho de 1988, o mesmo ponto de vista foi defendido pelo Sr. Blezer, Sr. Tanzi e Sr. 1988).

PALAVRAS-CHAVE:
Dívida pública; gerenciamento da dívida; correção monetária

ABSTRACT

The aim of this paper is to defend the viewpoint that, in the same way as the amortizations payments don’t represent part of the public sector debt, the monetary correction of the debt and other similar charges shouldn’t be considered as part of this deficit. This assertion should be even more emphasized in the case of countries with high inflation rates where expenditures with monetary indexation and other similar charges became, progressively, a bigger share of the Gross Domestic Product. Regarding to a better understanding of the Government’s real financial situation, an adjustment was done at the national account series. In this sense, and in order to work out the fiscal policy, the amount corresponding to the monetary correction was excluded from the expenditure of domestic debt charges. This meant that monetary indexation in a context of high inflation rates is better classified as principal rather than debt charge. It is important to note that this paper is based on a previous one, also by Sílvio Rodrigues Alves, entitled “O Desafio do Déficit Público”, published in Revista de Economia Política n.” 30 (April-June/1988). Afterwards, in June 1988, the same viewpoint was defended by Mr. Blezer, Mr. Tanzi and Mr. Teijeiro in the paper “The Effects of Inflation on the Measurement of Fiscal Deficits” (Occasional Paper 59, International Monetary Fund, Washington, D.C., June 1988).

KEYWORDS:
public debt; debt management; monetary correction

O objetivo do presente ensaio consiste na defesa do argumento de que, da mesma maneira como os pagamentos de amortização não representam parte do déficit do setor público, a correção monetária e outros encargos similares também não deveriam ser parte desse déficit.

Essa assertiva se tornaria ainda mais evidente no caso dos países com elevadas taxas de inflação, onde as despesas com correção monetária e outros encargos similares têm mostrado representatividade progressivamente mais acentuada em relação ao Produto Interno Bruto (PIB).

No caso brasileiro o déficit do setor público representa um duplo desafio. Em primeiro lugar pelas dificuldades· cada vez maiores em reduzi-lo, tendo em vista a crescente participação dos encargos financeiros, consequência da acumulação de desequilíbrios ao longo de muitos anos, financiados por aumento da dívida pública. Ou seja, adiada a decisão de aumentar a receita ou reduzir a despesa no momento oportuno, o financiamento via endividamento só faz agravar o problema, tornando cada vez mais difícil sua solução.

Além das dificuldades para a redução do déficit público, existe ainda outro obstáculo, que consiste na escolha da metodologia mais adequada para medi-lo. Tal problema, que à primeira vista pode parecer de fácil solução, tem se constituído, na prática, em desafio adicional, demandando frequentes revisões nas estatísticas do déficit público.

A experiência brasileira refere-se, basicamente, à metodologia utilizada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) na avaliação do desempenho da economia dos países membros, denominada necessidades de financiamento do setor público. Contudo, como a série disponível de estatísticas do setor público no conceito do FMI é bastante recente, torna-se conveniente, para melhor entendimento dos atuais problemas na área das finanças públicas, começar analisando a evolução do déficit público pelo conceito das contas nacionais, que oferece informações para um período mais longo.

POUPANÇA DO GOVERNO EM CONTA CORRENTE

Pelas contas nacionais, a situação das finanças governamentais é avaliada através da observação do comportamento da poupança do governo em conta corrente, definida como a diferença entre sua receita líquida - ou seja, arrecadação de impostos menos transferências - e sua despesa corrente, que corresponde ao pagamento de salários e encargos, mais compras de bens e serviços. Note-se que, pelo conceito das contas nacionais, as empresas estatais estão classificadas no setor privado.

É a poupança do governo em conta corrente que permite a realização de investimentos sem pressionar a dívida pública. Na medida em que o governo não consegue manter nível adequado de poupança em conta corrente, se vê obrigado a lançar mão de recursos adicionais do setor privado para a realização de seus investimentos, que incluem construção de escolas, estradas, saneamento básico etc. Além disso, o governo também se endivida para viabilizar transferências de capital a empresas estatais, que atuam nas mais diversas áreas da economia.

Ao realizar despesas sem dispor dos correspondentes recursos, o governo está comprometendo a sua poupança futura e, ao mesmo tempo, reduzindo sua capacidade de investir, uma vez que os investimentos governamentais, por sua própria natureza, não produzem, a curto prazo, retornos financeiros suficientes para cobrir os encargos de financiamentos.

Tal fato pode ser claramente verificado ao se analisar a evolução da poupança do governo a partir de 1970. Naquele ano, a carga tributária bruta correspondia a 26,0% do PIB e as transferências a 9,2%, o que resultava em receita líquida de 16,8% do PIB, amplamente suficiente para cobrir as despesas correntes, que alcançavam 11,3%, resultando em uma poupança em contracorrente de 5,5% do PIB (Tabela 1).

Tabela 1:
Poupança do governo em conta corrente (Conceito de Contas Nacionais)

Por conseguinte, o governo, abrangendo toda a administração direta federal, estadual e municipal, podia investir, em 1970, até 5,5% do PIB com recursos próprios, sem necessidade de aumentar seu endividamento. Naquele ano, a dívida mobiliária interna federal, estadual e municipal representava pouco mais de 5% do PIB, e os juros da dívida interna pouco mais de 1%.

Cinco anos depois, em 1975, ainda que se tenha verificado ligeira melhora na arrecadação bruta de impostos, acompanhada de redução na despesa corrente do governo, a poupança em conta corrente cai de 5,5% para 3,8% do PIB, em decorrência do aumento das transferências, que passam de 10,3% para 11,8% do PIB. Tal comportamento reflete, basicamente, a pressão adicional dos subsídios, que passam a representar 2,8% do PIB, contra 0,8% em 1970. Os encargos da dívida interna continuam pouco expressivos na composição das transferências, apresentando até uma pequena queda em relação a 1970.

Em 1980, embora a despesa corrente do governo apresentasse sensível declínio, a poupança caiu para apenas 1,1 % do PIB, como consequência da forte queda da receita líquida, que passa a representar apenas 10,1% do PIB, contra 14,5% em 1975 e 16,8% em 1970. Enquanto a carga tributária bruta continua sua tendência declinante, caindo para 24,2% do PIB, as transferências aumentam para 14,1% do PIB, impulsionadas, mais uma vez, pela escalada dos subsídios, que já alcançam 3,6% do PIB. Só então começa a se verificar presença mais significativa dos encargos da dívida interna, que se aproximam dos 2% do PIB.

A partir de 1980, contudo, é que a situação se complica de fato. A carga tributária bruta continua caindo, a despesa corrente começa a se elevar, e as transferências, pressionadas pelo aumento dos encargos financeiros, disparam de vez. A essa altura, o governo já havia cortado metade de seus investimentos, sacrificando a qualidade dos serviços prestados e prejudicando até programas prioritários na área social.

A escalada das taxas de juros internacionais, que chegam a alcançar o nível recorde de 7,3 % a.a. em 1981, seguida da interrupção do fluxo de recursos externos para os países em desenvolvimento, introduz outro importante agravante para complicar ainda mais a situação.

Como consequência, o Produto Interno Bruto, após apresentar crescimento médio de 8,7% no período 1971-1980, despenca violentamente em 1981, com redução de 3,1 %. No ano seguinte o PIB apresenta pequeno crescimento (l,1%) , voltando a cair novamente em 1983 (- 2,8%). Comparando-se o produto per capita, verifica-se que seu nível em 1983 representava apenas 88,9% da produção de 1980, só recuperada no exercício de 1986. Além disso, a inflação, que inicia os anos 70 no nível de 20%, alcança o patamar dos 100% ao começar a década de 80, passando rapidamente para os 200% a partir de 1984, podendo alcançar 1000% em 1988.

Nesse contexto, confundindo-se entre as causas e consequências da recessão e da inflação, a poupança em conta corrente do governo passa a ser negativa a partir de 1982, alcançando o percentual de -8,4% do PIB em 1985, quando a receita bruta foi quase totalmente absorvida pelas transferências, infladas pela disparada dos encargos da dívida interna, que alcançam 10,8% do PIB (1,3 em 1970).

Assim, em 1985, de uma receita bruta correspondente a 22,0% do PIB, resta liquidamente apenas 1,3%, após descontados 20,7% de transferências, das quais mais da metade referente aos encargos da dívida interna.

Em 1988, com a aceleração da inflação, o desequilíbrio das contas do governo se agrava ainda mais, com os encargos nominais da dívida interna podendo alcançar 14,4% do PIB, o que elevaria as transferências a 25,2% do PIB, superando, pela primeira vez, a receita tributária bruta, estimada em 22,1% do PIB. Portanto, a receita líquida seria negativa em 3,1% do PIB, o que resultaria em déficit em conta corrente de 14,9% do PIB, considerada a estimativa de 11,8% para as despesas correntes.

Em tal situação é impossível conceber uma política fiscal restritiva o suficiente para equilibrar as contas do governo e recuperar sua capacidade de investimento. Ora, se os encargos da dívida já representam mais da metade da carga tributária, seria necessário um aumento de mais de 50% dos impostos só para compensar esses pagamentos. Mesmo assim, com uma carga tributária absurdamente alta (36% do PIB), a poupança em conta corrente seria próxima de zero.

O que restaria fazer em uma situação como esta?

É evidente que, em um contexto de elevado endividamento público e inflação acelerada, os encargos nominais da dívida pública tendem a crescer em proporção muito superior à da receita do governo.

Na Tabela 2 verifica-se que o saldo médio da dívida pública federal em circulação (OTN + LTN) deverá mostrar representatividade próxima a 20% do PIB em 1988 (coluna 6). Tendo em vista que a correção monetária deverá alcançar 12,9% do PIB (Tabela 1), o seu pagamento representaria liquidação correspondente a 64,5% do total da dívida pública federal, o que seria desejável, porém altamente improvável, em razão da impossibilidade de geração de carga fiscal suficiente para atender a esses encargos nominais.

Tabela 2:
Dívida mobiliária interna (saldos médios em Cz$ milhões)

Dessa forma, para melhor entendimento da real situação das finanças do governo, com vistas à formulação da política fiscal, procedeu-se a um ajuste na série de contas nacionais, de modo a retirar, da despesa de encargos da dívida interna, a parcela correspondente à correção monetária. Ou seja, considerou-se que a correção monetária, em uma conjuntura de inflação elevada, é melhor classificada como principal do que como encargo da dívida. A série resultante desse ajustamento, (Tabela 3) fica bem mais compreensível e apropriada à formulação da política fiscal.

Tabela 3:
Poupança do governo em conta corrente (Conceito de Contas Nacionais)

Na Tabela 3 verifica-se que os juros da dívida interna, que até 1980 se mantêm em percentual reduzido (0,7% do PIB), pulam para 2,2% do PIB em 1985, como consequência do elevado endividamento do governo, reflexo, em grande parte, do aumento das taxas de juros internacionais e da interrupção do fluxo de recursos externos.

A gradativa redução da carga tributária bruta e o aumento dos juros da dívida interna explicam a acentuada deterioração das finanças do governo, cuja poupança em conta corrente - ajustada na forma descrita - cai de 6,1% do PIB em 1970 para 0,2% em 1985, aumentando para 2,0% em 1986, como consequência da recuperação da arrecadação, e voltando novamente a cair em 1987 e 1988, alcançando resultados negativos estimados em 1,2% e 1,9% do PIB, respectivamente.

Enquanto isso, a dívida mobiliária consolidada dos governos federal, estadual e municipal aumenta rapidamente, passando de 5% do PIB em 1970 para 8% ao final da década e mais de 20% em 1988.

No que se refere aos investimentos, o governo ainda consegue, até 1975, mantê-los no patamar de 4% do PIB. A partir daí, contudo, há clara tendência declinante, chegando-se aos anos 80 com investimentos governamentais correspondentes a pouco mais de 2% do PIB.

O reconhecimento da impossibilidade de manutenção de tamanho desequilíbrio tem levado o governo, a partir de 1987, a enfatizar a necessidade de urgente recuperação das finanças governamentais, tanto através do aumento da carga tributária líquida, como da contenção das despesas correntes.

OS EFEITOS DA INFLAÇÃO NA MENSURAÇÃO DOS DÉFICITS FISCAIS

Conforme mostrado anteriormente, o ajustamento na série de contas nacionais, retirando da despesa de juros da dívida interna a parcela correspondente à correção monetária, propiciou uma série mais compreensível e apropriada à formulação da política fiscal. Nesse sentido, considerou-se que o pagamento de correção monetária, em uma conjuntura de inflação elevada, é melhor classificada como amortização do principal do que como encargo da dívida.

Esse ponto de vista é reforçado em estudo recente, de autoria dos professores Vito Tanzi, Mario I. Blejer e Mario O. Teijeiro (1988BLEJER, Tanzi e Teijeiro, (1988) “The effects of inflation on the measurement of fiscal deficits”. Occasional Paper 59. Washington, D.C., International Monetary Fund, jun. ), intitulado “Os efeitos da inflação na mensuração de déficits fiscais”. Os principais aspectos desse estudo serão exaustivamente explorados nesta e nas duas próximas seções.

A inflação afeta a receita e o gasto do governo de diferentes formas; como consequência, ela geralmente altera o porte do déficit fiscal. Conquanto exista agora uma ampla literatura que discute a relação entre receita fiscal e inflação, existe pouco material escrito que discuta o impacto da inflação sobre o nível do gasto público.

A princípio pareceria realista assumir que diferentes partes do orçamento responderiam diferentemente à pressão inflacionária. Entretanto, essas reações geralmente dependem de considerações políticas, forças sindicais, regras de indexação para salários e pensões, e assim por diante.

Torna-se, pois, difícil generalizar a “relação automática” entre o nível de gasto público e a taxa de inflação. Uma grande exceção é representada pelo comportamento de pagamentos nominais de juros relacionado ao atendimento do serviço da dívida pública. Para esta categoria de despesa é agora geralmente reconhecido que um aumento na inflação esperada geralmente conduz a um aumento regularmente automático nos pagamentos de juros nominais.

O aumento do pagamento de juros em um contexto inflacionário é geralmente explicado pelo “efeito Fisher”, segundo o qual, durante um período inflacionário, a taxa nominal de juros tende a aproximar-se da taxa real que houver prevalecido na ausência de inflação mais a taxa esperada de inflação. Assim, não obstante na prática as taxas nominais de juros possam crescer mais ou menos do que o nível teorizado por Fisher, não haveria dúvida com relação ao fato de que, quando a taxa esperada de inflação cresce, a taxa nominal de juros também cresce, a não ser que artificialmente reprimida pela ação governamental.

Um aumento na taxa esperada de inflação pode conduzir a rápidos e dramáticos aumentos nas despesas nominais de juros quando a dívida pública interna representa proporção substancial do PIB.

A título de exemplo e, para efeitos de simplificação, considere-se que toda a dívida do governo se encontre em poder de um único indivíduo, que tem toda a sua renda formada pelos pagamentos de juros recebidos do governo, estabelecendo seu comportamento como consumidor sobre aquela renda. Considere-se, também, que a dívida pública é formada por títulos de curto prazo. Seja o porte dessa dívida igual a US$ 1 milhão. Com expectativa de estabilidade de preços e uma taxa de juros nominal (e real) de 5%, a renda do indivíduo e a despesa de juros do governo seriam exatamente iguais a US$ 50 mil.

Com uma taxa de inflação esperada de 10% e assumindo que o efeito Fisher se mantém, a taxa nominal de juros se tornaria 15%. Então a renda nominal de juros recebida pelo indivíduo cresceria de US$ 50 mil para US$ 150 mil e, naturalmente, a despesa de juros por parte do governo cresceria em igual valor. Portanto, um aumento na taxa de inflação de zero para 10% elevou em 200% a despesa do governo com juros. Este exemplo permite-nos evidenciar a principal questão a ser analisada no presente estudo: como um indivíduo cuja renda de juros cresce de 200% reagiria a esse aumento? Três reações alternativas podem ser consideradas.

A primeira considera um indivíduo perfeitamente racional. Ele percebe que, enquanto sua renda proveniente de juros nominais cresceu de 200%, sua renda real não variou, porque US$ 100 mil dos US$ 150 mil de renda de juros nominal representam apenas uma compensação pela erosão do valor real de seu capital financeiro. Essa compensação será denominada correção monetária.

A correção monetária representa um retorno de capital em vez de um retorno sobre o capital, uma vez que uma taxa de inflação de 10% reduz o valor real de seu capital financeiro em US$ 100 mil após um ano.

Os adeptos dessa escola iriam defender a ideia de que o indivíduo iria tratar esses US$ 100 mil exatamente da mesma maneira como haveria tratado um pagamento de amortização igual a US$ 100 mil, uma vez que, em um senso econômico real, embora não em um senso contábil ou legal, representa uma amortização.

Assim, seu comportamento como consumidor continuará a ser determinado pelo valor real de sua renda permanente que, presumivelmente, não terá variado. Em outras palavras, o indivíduo poupará toda a correção monetária. Portanto, não se deve tratar essa correção monetária de maneira diferente dos pagamentos normais de amortização. Tendo em vista que os pagamentos de amortização não representam parte do déficit fiscal, a correção monetária não deveria também ser parte desse déficit.

A segunda alternativa assume que o indivíduo não distingue entre pagamento de juros reais e correções monetárias, indiferente à magnitude da taxa esperada de inflação. Contudo, na qualidade de consumidor, ele iria tratar integralmente o pagamento de juros de US$ 150 mil, recebidos quando a taxa da inflação é 10%, da mesma maneira que os US$ 50 mil de pagamentos de juros, recebidos quando a taxa de inflação esperada era zero. Assim, ele iria se comportar como se a sua renda real tivesse, de fato, crescido de US$ 50 mil para US$ 150 mil.

Sob essa suposição, que é a única implícita na medida convencional do déficit fiscal, as correções monetárias são tratadas como renda, enquanto os pagamentos de amortizações não são considerados renda por aqueles que os recebem, ou despesa corrente por parte do governo, não sendo, portanto, considerados como responsáveis por aumentos no déficit ou por afetar a demanda agregada. A medida convencional do déficit é, portanto, altamente sensível à taxa de inflação, sempre que o porte da dívida interna seja significativo.

Na terceira alternativa pode-se assumir que as duas anteriores apresentam uma versão irrealista da realidade. À proporção que a taxa esperada de inflação cresce, o enfoque convencional propicia uma medida progressivamente mais distorcida do porte do ajustamento fiscal necessário para que o país consiga a estabilidade econômica.

Note-se que por ajustamento fiscal entende-se o aumento na participação da receita do governo em relação ao PIB, ou a redução na participação das despesas governamentais não relacionadas a juros comparativamente ao PIB. Assim, o ajustamento fiscal é relacionado ao que se conhece como “déficit primário”, que representa o déficit fiscal convencional, líquido do pagamento de juros.

Infelizmente, se por um lado é fácil criticar essas duas versões antagônicas da medida do déficit fiscal, é muito difícil, ou até impossível, propor uma medida alternativa que não mostre as fraquezas referidas para as duas primeiras.

Efeitos da inflação sobre os déficits fiscais Definição convencional de déficits fiscais

Os déficits fiscais, conforme convencionalmente definidos em um regime de caixa, medem a diferença entre os desembolsos totais de caixa do governo - incluindo despesas de juros, mas excluindo pagamentos de amortização sobre o saldo existente da dívida pública - e o total das receitas de caixa (incluindo receita fiscal, receita não fiscal e subvencão, mas excluindo recursos de empréstimos).

Essa definição difere do Sistema de Contas Nacionais (SCN) em dois aspectos importantes: 1. é calculada em regime de caixa, enquanto a definição do SCN é primordialmente baseada em regime de competência; 2. considera o empréstimo líquido ao setor privado como despesa contribuindo para a determinação do déficit.

Voltando à definição de déficits fiscais em regime de caixa, vale ressaltar que nem todas as despesas relacionadas ao atendimento do serviço da dívida pública estão incluídas na mensuração do déficit. Assim é que os pagamentos de juros são adicionados a despesas não relacionadas à dívida, porém os pagamentos de amortizações são excluídos. Por outro lado, as receitas correntes são registradas como renda do governo, enquanto recursos de empréstimos não o são. Dessa forma, os déficits refletem a diferença a ser coberta pelo financiamento líquido do governo, incluindo empréstimo direto do Banco Central.

Contudo, os déficits fiscais assim definidos não propiciam uma medida direta da expansão monetária nem uma medida da pressão bruta do governo sobre os mercados de crédito, tendo em vista que os financiamentos requeridos para financiar pagamentos de amortização não são incluídos como parte do déficit.

Assim conceituado o déficit, existem dois tipos de operações financeiras governamentais, cada uma envolvendo a dívida mantida internamente, que não afetam o déficit fiscal corrente.

Primeiro, qualquer operação que envolva apenas mudança na composição da dívida do governo, como, por exemplo, a substituição de títulos de longo prazo por títulos do Tesouro de curto prazo e vice-versa. Segundo, qualquer operação que envolva a monetização da dívida governamental existente.

O primeiro tipo de operação reflete uma política de administração de dívida desenhada com vistas à obtenção de uma estrutura particular de maturidade da dívida do governo. O segundo tipo reflete operações de open-market pelo Banco Central, isto é, política monetária pura.

Portanto, a definição convencional de déficit fiscal é independente da estrutura de maturidade da dívida interna existente do governo e do grau de monetização da dívida que o Banco Central possa manobrar para objetivos puramente de política monetária.

Essa conclusão não é válida para prazos mais longos, de vez que tanto a política de administração da dívida como as operações de open-market irão, eventualmente, afetar o porte do déficit.

Efeitos da inflação sobre o pagamento de juros e sobre déficits fiscais convencionais

A inflação tem impacto direto sobre o serviço de juros nominais da dívida pública sempre que incorporada em expectativas e, portanto, refletida em taxas nominais de juros. A fim de isolar esse efeito das outras consequências de inflação sobre o orçamento do governo, imagine-se que: l. as despesas não relacionadas a juros crescem pari passu com a inflação; 2. através de ações discricionárias, formuladores de política ajustem o sistema de impostos a um novo meio ambiente inflacionário, de maneira a manter constante a participação da receita de impostos, no PIB.

É óbvio que uma hipótese como essa não pode ser adotada para pagamentos de juros sobre a dívida do governo. O crescimento do pagamento de juros nominais sobre a dívida interna existente está em geral fora do controle das autoridades fiscais, à medida que se acha amarrado à evolução das taxas de juros de mercado e a cláusulas de indexação. Geralmente, entretanto, conforme já mostrado, o aumento nos pagamentos de juros nominais não representa uma transferência real de poder de compra do governo para os detentores da dívida.

Contudo, ainda que os detentores da dívida não se encontram mais ricos em termos reais em virtude do nível mais elevado das taxas de juros nominais, em termos relativos podem estar mais ricos caso a inflação tenha reduzido as rendas reais de outros grupos.

No Apêndice, o efeito que um aumento na taxa de inflação produz sobre déficits fiscais convencionais na presença de taxas de juros flutuantes acha-se formalmente ilustrado. O exercício pressupõe que as receitas do governo e as despesas não relacionadas a juros seguem a evolução do nível de preços. Em outras palavras, pressupõe que o déficit primário não é afetado pela taxa de inflação (o déficit primário consiste na diferença entre despesa do governo, excluindo todos os pagamentos de juros, e a receita do governo). Além disso, pressupõe também a presença de um efeito Fisher completo, tal que as taxas nominais de juros se ajustem completamente à taxa esperada de inflação para render uma taxa real de retorno constante esperada. Ademais, a inflação atual e a esperada são pressupostas iguais e toda a dívida é de origem interna. Naturalmente, se a taxa atual de inflação diverge da taxa esperada, a taxa real ex post irá variar.

Sob essas hipóteses, mostra-se que, quando a inflação se acelera, as despesas de juros nominais crescem mais do que proporcionalmente ao nível de preços, conduzindo a um aumento no déficit fiscal, em relação ao PIB. O contrário se verifica se a taxa de inflação se desacelera.

O entendimento é de que, enquanto a inflação, por hipótese, não afeta o valor real das receitas e das despesas não relacionadas a juros e, portanto, não afeta o déficit primário, aumenta o valor real dos pagamentos de juros para compensar os tomadores de títulos públicos federais da redução no valor real do saldo da dívida existente. A magnitude desse efeito depende tanto da taxa da inflação como do porte do saldo dos juros flutuantes da dívida interna.

Uma demonstração similar fornecida no Apêndice indica que os déficits convencionais não são afetados pela inflação, quando a dívida pública se encontra ou vinculada a um índice (e a correção monetária é então considerada como amortização), ou denominada em moeda estrangeira.

Essa demonstração é aplicável aos casos da dívida interna indexada, desde que o aumento no valor nominal da dívida devido à indexação seja excluído da definição convencional de déficit.

Caso a parte indexada seja incluída, os resultados são os mesmos do que com dívida flutuante.

Para mostrar esse resultado, isto é, que os déficits convencionais não são afetados pela inflação quando a dívida pública se encontra ou vinculada a um índice, ou denominada em moeda estrangeira, considera-se que a taxa de câmbio real não varia. Ademais, considera-se que a inflação externa seja zero.

Quando a inflação interna se acelera, a depreciação da moeda conduz a um incremento no valor interno da dívida externa proporcional à variação do nível de preços do país. Não obstante o valor real do saldo da dívida não se altere, os pagamentos de juros crescerão à mesma taxa dos preços internos, mantendo constante sua participação no PIB.

Entretanto, na presença da inflação, e considerando que a dívida interna é constituída por instrumento de curto prazo, a participação relativa do déficit convencional no PIB torna-se uma função da taxa de inflação, do tamanho da dívida pública interna e da composição interna e externa do total da dívida pública.

Os países cuja dívida pública seja integralmente denominada em moedas estrangeiras não terão seus déficits fiscais como parcelas do PIB afetados por suas taxas de inflação, independentemente da magnitude desse déficit.

Por outro lado, os países cujas dívidas são mantidas a taxas de juros flutuantes irão, contrariamente, refletir um déficit fiscal dependente da taxa de inflação e da magnitude de sua dívida pública.

Essa assimetria resulta exclusivamente da convenção de que, enquanto todos os pagamentos de juros nominais (inclusive o prêmio de inflação contido na taxa de juros nominal) são considerados despesas, contribuindo assim para o déficit fiscal, os pagamentos de amortizações não são considerados despesas e, portanto, não contribuem para o aumento do déficit medido sob a ótica convencional.

Nos períodos de elevadas taxas de inflação, a taxa à qual um país se acha implicitamente forçado a amortizar seus débitos aumenta, porém a amortização de fato não é reconhecida como tal. Quanto mais elevada for a taxa de inflação, mais rápida será a amortização implícita.

As consequências da inflação sobre o déficit na presença de alguns tipos de instrumento de dívida também merecem comentário. À medida que títulos federais de longo prazo com juros fixos têm-se constituído no principal instrumento de financiamento do governo, as despesas de juros nominais não serão afetadas por uma eclosão inflacionária que não tenha sido antecipada à época em que os títulos foram vendidos. Isso significa que, inicialmente, os gastos com juros e, portanto, o déficit fiscal, tendem a declinar como parcela do PIB. Nesse caso, o governo tem um ganho inflacionário às custas dos tomadores de títulos de longo prazo. Existirá uma taxação de capital implícita sobre aqueles que detêm a dívida pública. Essa taxação de capital pode ser considerada parte do imposto inflacionário arrecadado pelo governo sobre seus passivos monetários e outros. Entretanto, quando esses instrumentos de longo prazo se tornam devidos à época de seus resgates, a amortização terá de ser financiada pela emissão de novos títulos. Estes irão render uma maior taxa de juros, que irá refletir a expectativa de taxa de inflação aumentada.

Conforme antes mencionado, o caso de dívida interna indexada é quase idêntico ao caso da dívida externa, desde que o ajustamento do principal à inflação - isto é, a correção monetária - seja tratado como amortização, não sendo portanto considerado como despesa de juros.

Assim é que nem o Manual de Estatísticas de Finanças Governamentais, do Fundo Monetário Internacional, nem o do Sistema de Contas Nacionais, das Nações Unidas, recomendam a inclusão de pagamentos de indexação como despesas determinantes de déficits.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALVES, Sílvio Rodrigues, (1988) “O desafio do déficit público”, Revista de Economia Política, 8 (2) abr.-jun.
  • BLEJER, Tanzi e Teijeiro, (1988) “The effects of inflation on the measurement of fiscal deficits”. Occasional Paper 59. Washington, D.C., International Monetary Fund, jun.
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    Este trabalho foi elaborado com a colaboração de Bruno M. Ribeiro.
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    JEL Classification: H63

APÊNDICE

Impacto da inflação sobre o déficit na presença de diferentes modalidades de endividamento

Neste apêndice uma demonstração formal é desenvolvida para mostrar o impacto diferenciado da inflação sobre déficits convencionalmente definidos na presença de diferentes modalidades de endividamento.

Para tornar essa. demonstração o mais simples possível, assume-se que:

  1. a renda real permanece constante ao longo do tempo;

  2. o orçamento está inicialmente em equilíbrio, sendo os pagamentos de juros reais financiados por um superávit de todas as outras operações;

  3. as taxas nominais de juros sobre a dívida pública mudam imediatamente seguindo variações na taxa de inflação, de modo a manter constante a taxa real de juros;

  4. são iguais as taxas de inflação esperada e ocorrida;

  5. as políticas governamentais mantêm receitas e despesas não relacionadas a juros crescendo pari passu com a inflação;

  6. a taxa de inflação é constante.

O equilíbrio inicial no orçamento implica que:

D o = G o - R o + S o · r = ϕ , (1)

onde

  • Do = déficit fiscal no períod

  • Ro = receitas no período ini

  • Go = despesas do governo n

  • So = saldo da dívida públic

  • r = taxa real de juros.

Dívida com juros flutuantes

O pressuposto de total ajustamento da taxa nominal de juros (i) à inflação implica que:

i = 1 + π 1 + r - 1 = 1 + r + π + π r - 1 = π + r 1 + π (2)

O déficit fiscal no período n (Dn) tornar-se-ia:

D n = G o - R o 1 + π n + S o + i = 1 n D n - i π + r 1 + π (3)

O primeiro termo do lado direito da equação (3) reflete o pressuposto de que as receitas do governo e as despesas não relacionadas a juros crescem pari passu com a inflação. O segundo termo representa o montante de pagamentos de juros no período n; o saldo da dívida sobre o qual o juro nominal é pago no período n é igual ao saldo da dívida no período zero (So) mais os déficits acumulados até o início do período n.

A equação (3) implica que, dada a equação (1), o déficit no período 1 é:

D 1 = G o - R o 1 + π + S o + D o π + r 1 + π

Como D = ϕ

D 1 = G o - R o 1 + π + S o π + S o r 1 + π D 1 = G o - R o + S o r 1 + π + S o π D 1 = S o π

Para o período 2 o déficit será:

D 2 = G o - R o 1 + π 2 + S o + D 1 π + r 1 + π D 2 = G o - R o 1 + π 2 + S o + S o π π + r 1 + π D 2 = G o - R o 1 + π 2 + S o π + S o r 1 + π + S o π 2 + S o π r 1 + π D 2 = G o - R o 1 + π 2 + S o π + S o π 2 + 1 + π 2 S o r D 2 = G o - R o + S o r 1 + π 2 + S o π 1 + π = S o π 1 + π D 2 = S o π 1 + π (5)

Generalizando, tem-se:

D n = S o π 1 + π n - 1 (6)

Dado o pressuposto de um nível fixo de renda real, isto é, que o PIB nominal cresça à mesma taxa da inflação, tem-se:

P I B n = P I B o 1 + π n (7)

Pode-se, pois, concluir que o déficit em termos do PIB será dado pela relação:

D n P I B n = S o P I B o · π 1 + π (8)

que é função positiva da taxa de inflação e do saldo inicial da dívida com juros flutuantes da dívida em termos do PIB.

Dívida externa

No caso da dívida externa, bem como no caso da dívida interna indexada, na qual a indexação não é tratada como despeça determinante do déficit, a taxa de juros não é afetada pela inflação interna (a inflação externa é suposta nula). Os pagamentos totais de juros, entretanto, irão crescer com a inflação porque o valor nominal do saldo da dívida em termos de moeda corrente nacional cresce à medida que a taxa de câmbio se desvaloriza. A equação (3) tem de ser reformulada para (3a):

D n = G o - R o 1 + π n + S o + n D n - i π + r 1 + π (3)

D n = G o - R o 1 + π n + S o + n D n - i π + r 1 + π (3a)

O segundo termo do lado direito reflete os pagamentos de juros. A taxa de juros (r) é aplicada sobre a dívida inicial indexada pela taxa de depreciação da moeda corrente (d) e sobre a dívida acumulada em decorrência de déficits subsequentes, indexada também até o final do período n.

Tendo em conta o pressuposto de que d = r, a equação (3a) para o período 1 torna-se:

D 1 = G o - R o 1 + π + S o 1 + π r = 1 + π G o - R o + S o r = ϕ

e, para o período 2:

D 2 = G o - R o 1 + π 2 + S o 1 + π 2 r = 1 + π 2 G o - R o + S o r = ϕ

O orçamento, contudo, permanece balanceado à medida que o aumento nos pagamentos de juros nominais seja igual ao aumento no excesso original de receitas sobre despesas não relacionadas a juros.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1989
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