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"Só falta falar!" A irrelevância moral da linguagem e o argumento da sobreposição das espécies

"If they could only speak..." The moral irrelevance of language and the argument from species overlap

Resumo

O presente trabalho procurará investigar a importância moral da linguagem como condição necessária para atribuição de status moral. O problema levantado diz respeito à análise da justificação e da consistência dessa demarcação. Para tanto, o principal ponto de apoio teórico consistirá na utilização do argumento da sobreposição das espécies, comumente designado por argumento dos "casos marginais". Mesmo que se pressuponha que animais não humanos não sejam competentes do ponto de vista linguístico, haveria uma inconsistência lógica em se admitir seres humanos incapazes de linguagem na comunidade moral ao mesmo tempo em que os animais não humanos são dela excluídos.

Palavras-chave:
Linguagem; Status Moral; Argumento da Sobreposição das Espécies; Animais não Humanos

Abstract

The article is about the moral importance of language as a necessary condition to determine one´s individual moral status. The problem, therefore, concerns the analysis of the justification and consistency of this moral attributive aspect of language. The main theoretical support to deconstruct this view will be the argument of species overlap, commonly called the "marginal cases" argument. Even if it is assumed that non-human animals are not linguistically competent, there would be a logical inconsistency in admitting human beings incapable of language into the moral community at the same time that non-human animals are excluded.

Keywords:
Language; Moral Status; The Argument from Species Overlap; Nonhuman Animals

Introdução

O debate acerca do estatuto moral dos animais não humanos integra o debate acadêmico há mais de meio século, tendo consolidado um campo de estudo no âmbito da Ética Aplicada denominado comumente por Ética Animal, Ética Interespécies (DeMELLO, 2012DeMELLO, M. Animals and Society: An Introduction to Human-Animal Studies. New York: Columbia University Press, 2012.). Paralelamente, a Antropologia, desconfortável com o correlacionismo antropocêntrico, fez surgir um núcleo de trabalhos voltados às metafísicas indígenas e à multiplicidade de naturezas possíveis (VIVEIROS DE CASTRO, 2012VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Transformação” na antropologia, transformação da “antropologia”. Mana, Rio de Janeiro, v. 18, p. 151-171, 2012., p. 167), sendo factível hoje tratar da existência de um campo de investigação ligada à antropologia da natureza (DESCOLA, 2013DESCOLA, P. A antropologia da natureza de Philippe Descola. Entrevista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, v. 14, n. 27, 2013.) e mesmo de uma virada ontológica nos estudos antropológicos que passaram a incorporar diretamente a reflexão acerca da condição animal (INGOLD, 1994INGOLD, T. Humanity and animality. In: INGOLD, T. (Ed.). Companion Encyclopedia of Anthropology. London: Routledge, 1994.). A Literatura, por sua vez, já organiza a temática por meio da Zooliteratura e da Zoopoética (MACIEL, 2011MACIEL, M. E. (Org.). Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.) e no campo do Direito se consolida, com força cada vez mais nítida, o debate a respeito da subjetividade jurídica dos animais não humanos (REGAN, 1983REGAN, T. The Case for Animal Rights. Berkeley: University of California Press, 1983.).

O presente trabalho procurará investigar a importância moral da linguagem como condição necessária para atribuição de status moral. Existe uma longa tradição filosófica que associa diretamente o caráter proposicional da linguagem [enunciados apofânticos ou assertóricos com conteúdo de verdade ou falsidade] à cognição [palavras como símbolos de estados mentais] e, em virtude disso, estabelece uma incomensurabilidade cognitiva entre humanos e animais não humanos. Em linhas gerais, a tese geral é a de que para que um indivíduo pudesse ter acesso a crenças e desejos deveria possuir cada um dos conceitos a respeito dessas crenças e desejos. Por sua vez, para formular esses conceitos deveria necessariamente possuir linguagem (DAVIDSON, 1984DAVIDSON, D. Thought and Talk. In Inquiries into Truth and Interpretation. pp. 155-179. Oxford: Clarendon Press, 1984.).

De acordo com essa compreensão, seres não linguísticos seriam incapazes de elaborar conceitos abstratos e, portanto, estariam privados de estados de consciência. Disso decorreria que estariam privados de acesso à comunidade moral. Evidentemente, as implicações morais dessa afirmação são absolutamente desastrosas para os animais não humanos, pois usualmente são classificados como entes não dotados de competência linguística.

O objetivo específico deste artigo será demonstrar que existe uma inconsistência do argumento de inclusão (ou de exclusão) moral com base na posse da linguagem. O problema central a ser investigado, portanto, diz respeito à análise da justificação e consistência da delimitação do status moral com base na capacidade linguística. Para tanto, o principal ponto de apoio teórico consistirá na utilização do argumento da sobreposição das espécies [species overlap], comumente designado por argumento dos "casos marginais", que remete à distinção tradicional entre agentes e pacientes morais. Ambas as categorias integram o gênero dos sujeitos morais. A distinção fundamental entre elas reside no fato de que os agentes morais são capazes de realizar juízos valorativos sobre o agir (podem deliberar e tomar decisões autonomamente) enquanto os pacientes morais não possuem esta capacidade (embora possam ser afetados de maneira relevante em seu bem-estar experimental1 1 O presente trabalho parte do pressuposto de que a senciência, compreendida como a capacidade para as sensações de prazer e dor, deveria ser tomada como o critério mais plausível para atribuição de status moral. Normalmente assumimos que é um problema moral causar dor sem uma justificativa robusta para tanto. O próprio conceito de crueldade está normalmente associado à causação de dor ou sofrimento desnecessários a seres humanos ou quaisquer outras criaturas sencientes. Embora se possa debater o alcance das causas justificantes para a dor e o sofrimento, poucos sustentariam que sua causação é moralmente indiferente. ). Os entes que ocupam a categoria dos casos marginais são tipicamente pacientes morais. Em um jogo de tudo ou nada, a delimitação binária entre as capacidades cognitivas humanas e não humanas seria, nesse caso, inconsistente não só em razão da continuidade biológica entre as espécies, mas principalmente pelo fato de admitirmos seres humanos incapazes de linguagem na comunidade moral ao mesmo tempo em que excluímos os animais não humanos.

O dualismo homem-animal

O pensamento ocidental geralmente pode ser caracterizado por grandes dicotomias. As oposições entre natureza e cultura; natural e artificial; corpo e alma; primitivo e civilização; razão e emoção; humano e animal, dentre tantas outras, são relevantes e fixam o próprio campo demarcatório desses espaços de compreensão. Esse paradigma oposicional e dualista conforma e consolida sistematicamente a pré-compreensão no sentido de que os animais não humanos estariam definitivamente marcados por uma condição de falta, de ausência, quando comparados à humanidade (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2019LOURENÇO, D. B.; OLIVEIRA, F. C. S. de. Vedação da crueldade contra animais: regra ou princípio constitucional? Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 24, n. 2, p. 222-252, mai./ago de 2019., p. 224) . Nesse sentido, “[...] as ideias sobre humanidade e seres humanos formaram as ideias sobre os animais e foram por estas formadas” (INGOLD, 1994INGOLD, T. Humanity and animality. In: INGOLD, T. (Ed.). Companion Encyclopedia of Anthropology. London: Routledge, 1994., p. 14), ou, ainda, “a identidade do homem e a do animal iluminam-se a partir de sua mútua confrontação” (LESTEL, 2011LESTEL, D. A animalidade, o humano e as “comunidades híbridas”. In: Maciel, M. E. (Org.). Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011. p. 23-54., p. 24).

É curioso perceber que existe hoje um senso comum relacionado ao fato de que a humanidade se encontra inafastavelmente inserida na dimensão biológica da animalidade [argumento do contínuo das espécies], afinal:

[...] não há dúvida alguma sobre o fato de que a espécie Homo sapiens integra o reino animal, sendo apenas mais uma espécie dentre tantas outras. De outro lado, a condição animal revela uma fronteira praticamente intransponível que separa essas duas categorias. Os animais representariam, como condição, aquilo que justamente se contrapõe ao fenômeno humano (condição humana2 2 Para os fins do presente trabalho, a expressão "condição humana" está sendo empregada de maneira genérica, e não no sentido específico apresentado por Hannah Arendt. ), todo um enorme bloco de seres que estão excluídos, por ausência de singularidade, do padrão considerado relevante para ingresso na subjetividade moral e jurídica3 3 É importante assinalar que ser moralmente considerável e ser parte da comunidade moral não são expressões necessariamente equivalentes. Negar a inclusão de não humanos na comunidade moral (full moral status) não implica que não humanos não possam receber algum tipo de consideração moral. . A cultura, neste sentido, sublinha a exclusividade da participação do homem na comunidade moral, tornando-o paradigmaticamente um sujeito, um agente moral, uma pessoa, um alguém, e não algo4 4 Platão, Aristóteles, Hume, Kant e Mill são exemplos de filósofos que, com variações, subscrevem versões desse argumento com base em conceitos como autonomia, racionalidade e consciência. Em princípio, tomam como paradigma seres humanos adultos em plena posse de suas capacidades mentais e cognitivas. . Será um ente que possui dignidade existencial própria, imanente, fato que lhe concede imediato acesso a uma vasta gama de direitos fundamentais. A animalidade, por sua vez, ficará tradicionalmente conectada apenas e tão somente ao mundo instrumental. Normalmente essa posição que confere status moral próprio ao homem e, paralelamente, nega esta atribuição aos animais, está relacionada ao fenômeno do antropocentrismo, que representa justamente afirmar que o mundo não humano possui valor somente na medida em que atenda, direta ou indiretamente, a interesses, preferências, necessidades, utilidades ou conveniências humanas (mundo não humano atrelado a valor unicamente relacional) 5 5 A negação do antropocentrismo não passa necessariamente pela atribuição de valor intrínseco à natureza ou aos entes naturais não humanos. Explicando melhor, poderíamos nos opor ao antropocentrismo sustentando que o valor de cada organismo é medido em função da sua contribuição para o equilíbrio ou a estabilidade do ecossistema; ou, ainda, que não existe a própria categoria “valor intrínseco”. A única coisa certa é que, para contrapormos a posição antropocêntrica, precisamos negar que o centro da preocupação moral sejam os interesses humanos. No entanto, este centro pode ser ocupado por outra coisa ou propriedade ou mesmo partir-se da noção de que não exista centro algum. (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2020LOURENÇO, D. B.; OLIVEIRA, F. C. S. de. Mercados de animais: quando os não-humanos tornam-se ameaças globais. Revista Estudos Institucionais, v. 6, n. 3, p. 953-974, set./dez. 2020., p. 967)

Os reflexos dessa cosmovisão são facilmente perceptíveis no campo do Direito. Animais tradicionalmente são identificados como possuindo natureza jurídica de coisa, de itens de propriedade. Embora hoje exista uma tendência incipiente de revisão dessa posição a partir do debate relativo a situações envolvendo animais de estimação (inclusive a partir do debate acerca da possibilidade de aplicar aos animais o instituto da guarda compartilhada no caso de rompimento do vínculo matrimonial), o fato é que o Direito ainda é refém dessa dualidade, seja no campo doutrinário, seja na jurisprudência de nossos tribunais. Animais ainda são considerados meros objetos de direito.

Antropocentrismo moral e o fenômeno do especismo

A defesa tradicional da posição do antropocentrismo moral6 6 O antropocentrismo moral não se confunde com o antropocentrismo epistêmico (inafastabilidade de que os seres humanos avaliam sempre a partir de uma perspectiva humana). O antropocentrismo epistêmico (ou antropocentrismo perspectivo) está associado à origem dos juízos valorativos e dos próprios valores (antropogenia), enquanto o antropocentrismo moral está relacionado à atribuição desses valores (âmbito de abrangência dos valores). O antropocentrismo epistêmico não conduz necessariamente ao antropocentrismo moral (NACONECY, 2006). é normalmente associada a dois tipos de proposições que conduzem: (a) ao reconhecimento de que somente humanos são moralmente consideráveis e possuem status moral próprio pelo mero fato de serem humanos (especismo na forma simples); ou (b) ao reconhecimento de que somente humanos são moralmente consideráveis em razão de possuírem atributos, capacidades, relações ou propriedades que os tornam moralmente distintos das demais criaturas (tese qualificada do especismo, baseada na tese da excepcionalidade humana).

Embora existam diversas propostas de formulação de um conceito para o especismo na literatura dos estudos interespécies (TRINDADE, 2014TRINDADE, G. G. da. Animais como pessoas: a abordagem abolicionista de Gary L. Francione. Jundiaí: Paço Editorial, 2014., p. 44), pode-se partir de seu núcleo essencial que envolve a prática de condutas que implicam em tratamento discriminatório prejudicial injustificado daqueles que não pertencem a uma determinada espécie. É sempre importante estabelecer que antropocentrismo e especismo não são conceitos necessariamente coincidentes, pois ao menos em tese poderíamos ser ‘especistas’ sem sermos antropocêntricos7 7 As posições especistas normalmente não implicam em hostilidade ao não humano. Jim Mason propõe o termo misoteria, combinação de dois radicais em grego (misos + theríon), para designar a posição de discriminação associada ao repúdio, desprezo ou ódio aos animais (MASON, 1998, p. 245). No sentido oposto, a posição de contrariedade ao antropocentrismo não implica em zoofilia, compreendida como uma postura de vinculação afetiva com os animais. . Este seria o caso, por exemplo, do favorecimento injustificado a uma determinada espécie de animal (e.g. aos cães). Tal postura poderia ser classificada como ‘especista’ em relação às demais criaturas, incluindo o homem, mas não, evidentemente, antropocêntrica (que pressupõe, por coerência, uma posição favorável aos humanos)8 8 A posição do especismo eletivo denota justamente essa predileção por determinadas espécies em detrimento de outras. É usual, por exemplo, que no Ocidente cães e gatos gozem de um status moral privilegiado quando comparados com porcos e vacas. .

O termo especismo (speciecism) foi originariamente cunhado por Richard Ryder, no artigo intitulado “Experiments on Animals”, datado de 1970, e posteriormente publicado como parte do livro Animals Men and Morals (GODLOVITCH, 1971GODLOVITCH, S.; HARRIS, J. Animals, Men and Morals: An Inquiry into the Maltreatment of Non-Humans. London: Grove Press, 1971.). O neologismo foi criado para designar uma forma de injustiça que significa tratamento diferenciado e prejudicial para aqueles que não integram a mesma espécie. Peter Singer adota uma versão similar do argumento de Ryder utilizando o termo para descrever "o preconceito ou a atitude tendenciosa de alguém a favor dos interesses dos membros da própria espécie, contra o de outras" (SINGER, 2010SINGER, P. Libertação Animal. São Paulo: Martins Fontes, 2010 (1975)., p. 11). O especismo, tomado em sentido estrito, ocorreria, portanto, quando a discriminação ou a exploração fosse defendida com base exclusivamente no apelo ao pertencimento de espécie (tese do especismo simples, letra "a", supra).

A posição, de cunho marcadamente biologista, que associa a existência de um status moral próprio exclusivo aos seres humanos com apelo ao critério de espécie, estaria vulnerável à crítica geral de que esse mero pertencimento a uma determinada espécie, assim como o pertencimento a uma etnia/“raça”, ou mesmo a um gênero específico, não consiste, em princípio, em uma propriedade moralmente relevante. Uma regra geral de raciocínio moral fundamental demandaria que quando dois indivíduos forem tratados de forma distinta, devermos apontar uma diferença entre eles que justifique a diferença de tratamento em questão.

A posição mais qualificada do especismo (letra "b", supra) procura tentar superar esse problema estabelecendo uma relação entre moralidade e espécie com base na correlação entre o pertencimento à espécie e outras diferenças ou propriedades que seriam moralmente relevantes. Usualmente, a defesa desse argumento toma a forma segundo a qual os seres humanos estariam em uma categoria moral especial porque possuiriam naturalmente atributos supostamente especiais.

Pretende-se, nesse sentido, por oposição, justificar a exclusão da animalidade da comunidade moral a partir do reconhecimento da sua privação de acesso a esses mesmos atributos. Em outras palavras, os defensores dessa proposição buscarão identificar qualidades ou propriedades vinculadas unicamente à espécie humana como forma de demarcar e legitimar uma fronteira moral em relação aos animais não humanos (e.g. razão, linguagem articulada, consciência, produção de cultura, entre outras). A experiência humana de mundo seria, portanto, ontologicamente distinta das demais criaturas9 9 Defensor dessa tese, Kant, por exemplo, afirmava de maneira clara que não acreditava que animais fossem autônomos ou autoconscientes e, por essa razão, não poderiam ser alvo de obrigações morais diretas. Nossos deveres para com eles seria apenas deveres indiretos para com a própria humanidade. Os atos cruéis afetariam negativamente os seres humanos tornando-os potencialmente insensíveis para com os próprios seres humanos (1997 p. 212). .

A proposição clássica do antropocentrismo está, portanto, associada à proposição de que determinados indivíduos poderiam ser privados de certos benefícios pelo fato de não possuírem essas qualidades que estariam vinculadas, com exclusividade, à espécie humana. A mesma ideia implicaria, por derivação, na exclusão moral dos não pertencentes à categoria do humano, configurando, neste caso, uma espécie de discriminação (YOUNG, 1990YOUNG, I. M. Justice and the Politics of Difference. Princeton: Princeton University Press, 1990., p. 196) relacionada à injustificada consideração desigual de interesses semelhantes (HORTA, 2010aHORTA, O. What is Speciecism? Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 23, n. 3, pp. 243-266, 2010a., p. 248). Isso assume particular relevo pois se está considerando que animais, notadamente animais sencientes, por serem capazes de experimentar e se importar com o seu próprio bem-estar, possuem interesses vinculados a essa condição (suas vidas podem ir para melhor ou pior a depender do atendimento desses seus interesses fundamentais). Nesse sentido, a igualdade, na vertente da igual consideração de interesses, não requer que os interesses sopesados sejam necessariamente idênticos, nem que o tratamento dispensado seja exatamente o mesmo10 10 A noção de "igual consideração de interesses" está normalmente associada ao trabalho de Peter Singer (1975), embora vários outros autores a endossem. As diferentes necessidades de cada indivíduo podem conduzir à ideia de que a isonomia represente tratamento diferenciado, mas nunca, nesse sentido, desigual. Existem, no entanto, aqueles que, apesar de entenderem que algumas categorias de animais não humanos possuam interesses, seus interesses nunca poderiam ser tratados em pé de igualdade com interesses similares titularizados por seres humanos. Da mesma forma, há outros que propõem que animais não humanos sequer possuem interesses (FREY, 1980). .

A linguagem e o argumento da sobreposição das espécies

Como se verificou, a exclusividade da inclusão moral dos homens na comunidade moral pode se dar a partir do critério de discriminação com base no mero pertencimento de espécie (especismo na forma simples), ou a partir do critério da excepcionalidade humana frente às demais criaturas (especismo na forma qualificada). Em relação à última categoria, normalmente são elencados determinados atributos ou capacidades que supostamente demarcariam a singularidade da experiência humana de mundo frente à das demais criaturas.

A linguagem é apontada como um desses atributos determinantes para a consideração moral. De acordo com essa tese, seres dotados de competência linguística integrariam automaticamente a comunidade moral, enquanto criaturas privadas de linguagem estariam, por outro lado, excluídas da possibilidade de ingresso nessa mesma comunidade moral.

Os pontos centrais relacionados ao enfrentamento dessa questão normalmente consistem em determinar:

  1. o que é linguagem ou de que tipo de linguagem se está tratando quando afirma-se que seres humanos são, via de regra, entes tipicamente competentes do ponto de vista linguístico;

  2. as correlações eventuais existentes entre linguagem e cognição ou entre linguagem e consciência, intencionalidade ou outros estados mentais;

  3. se animais não humanos (ou algumas espécies de animais não humanos) possuem o atributo da linguagem de acordo com o sentido definitório a ela atribuído no item 1, supra; e

  4. se a posse da competência linguística seria condição necessária para o ingresso na comunidade moral [relação entre linguagem e status moral].

Todas essas indagações são especialmente complexas, relevantes e sofisticadas. O objeto de investigação deste trabalho consiste no exame da quarta pergunta (item 4, supra). Trata-se de uma questão autônoma, independente das demais. Embora controversa e bastante questionável, será assumida, hipoteticamente, para os fins do argumento a ser desenvolvido, a posição segundo a qual os animais não humanos seriam, via de regra, incapazes de linguagem (resposta seria negativa ao item 3, supra)11 11 A questão da presença de linguagem em animais não humanos depende, é claro, da própria definição do que se compreende por linguagem (item 1, supra). Existem autores que assumem um conceito mais abrangente de linguagem para debater esse ponto e concluir pela possibilidade da inclusão de determinadas espécies não humanas como competentes linguisticamente (MEIJER, 2020). Há, inclusive, os conhecidos estudos de linguagem de sinais com primatas que são interpretados de maneira bastante diversa. Alguns autores reconhecem a habilidade para comunicação, mas não necessariamente a implicação de, a partir daí, presença de agência ou autonomia (COCHRANE, 2012). .

O pressuposto, portanto, para os fins da presente exposição é o de que, independentemente do conceito de linguagem a ser adotado (item 1, supra); ou de existirem eventuais correlações entre linguagem e cognição [estados mentais] (item 2, supra); e mesmo de que animais não humanos sejam incompetentes linguisticamente (item 3, supra); a posse da competência linguística será irrelevante para a definição do status moral de indivíduos sencientes12 12 Existe um debate sobre a extensão e o próprio conceito de senciência. Todavia, para os fins deste trabalho, por senciência se compreenderá a posse de estados mentais (intencionais ou não intencionais; conscientes ou não conscientes) relacionados a sensações primárias (e.g. prazer e dor). Para uma visão mais detalhada sobre o fenômeno da senciência sugere-se a leitura de Mary Anne Warren, Moral Status (2000) e de Terrence Deacon, Incomplete Nature: How Mind Emerged from Matter (2013). (item 4, supra).

Conforme se verificou, o especismo (discriminação prejudicial injustificada em relação a outras espécies) pode estar atrelado ao fato biológico de se pertencer a uma determinada espécie . Nesse sentido, “animais podem ser tratados de maneira adversa pelo mero fato de não participarem da espécie humana) ou pode estar associado à defesa de que determinadas espécies possuem alguns atributos ou capacidades que justificariam esse tratamento privilegiado” (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2020LOURENÇO, D. B.; OLIVEIRA, F. C. S. de. Mercados de animais: quando os não-humanos tornam-se ameaças globais. Revista Estudos Institucionais, v. 6, n. 3, p. 953-974, set./dez. 2020., p. 968) No caso do presente trabalho se está pressupondo, para fins de argumentação, que a linguagem seria um critério demarcador da singularidade humana).

No caso humano, a tese do antropocentrismo moral consubstancia o suposto excepcionalismo humano, traduzindo um argumento com caráter comparativo mediante o qual seria "justificável tratar desfavoravelmente aqueles que não possuem um atributo X em relação aos que possuem este mesmo atributo X, onde a posse de X é satisfeita somente por seres humanos e por todos os seres humanos" (HORTA, 2014HORTA, O. The Scope of the Argument from Species Overlap, Journal of Applied Philosophy, v. 31, n. 2, pp. 142-154, 2014., p. 142).

Portanto, para que a proposição da excepcionalidade humana funcione adequadamente, ela deveria cumprir rigorosamente três requisitos gerais:

(a) as características apontadas como justificadoras da especialidade humana frente às demais criaturas (e.g. linguagem) deveriam estar presentes em todos os seres humanos; (b) somente os seres humanos deveriam possuí-las; e, (c) tais atributos deveriam ser moralmente relevantes. O primeiro requisito, (a), supra, segundo o qual características apontadas como justificadoras da especialidade humana frente às demais criaturas deveriam estar presentes em todos os seres humanos, pode ser combatido por meio do denominado argumento da sobreposição das espécies (species overlap), mais comumente conhecido como argumento dos "casos marginais" (marginal cases)13 13 Embora o conceito de “marginal” queira designar indivíduos que não possuem as capacidades usualmente tidas como relevantes para a concessão de status moral, evoca um sentido pejorativo (de estar às margens da própria humanidade), pois pressupõe a existência de um conceito de um humano padrão. A ideia de sobreposição parece mais interessante para os fins do argumento, pois denota que o conjunto de seres que não possuem os critérios apontados como relevantes para o ingresso na comunidade moral se superpõem entre humanos e não humanos. Há seres humanos não linguísticos bem como animais não humanos privados de linguagem. . Em resumo, este argumento sustenta que a atribuição de valor moral com base em capacidades supostamente caracterizadoras de um padrão humano é uma estratégia equivocada pois, por diversas razões, sempre existirão indivíduos humanos que não possuirão esses mesmos atributos14 14 O argumento da sobreposição das espécies não é teoricamente destinado exclusivamente ao combate da excepcionalidade moral humana. Ele poderia ser usado para combater qualquer tipo de argumento em favor da tese da excepcionalidade de natureza similar. (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2020LOURENÇO, D. B.; OLIVEIRA, F. C. S. de. Mercados de animais: quando os não-humanos tornam-se ameaças globais. Revista Estudos Institucionais, v. 6, n. 3, p. 953-974, set./dez. 2020., p. 968).

O argumento da sobreposição das espécies não é propriamente novo. Já foi apresentado sob diversas roupagens em diversos períodos. Na antiguidade clássica, Porfírio o apresentou na sua obra Sobre a Abstinência. No século XVIII, pensadores como Hume, no Tratado da Natureza Humana (2009HUME, D. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução Débora Danowski, 2 ed. rev. e ampliada. São Paulo: Editora UNESP, 2009., § 176), assim como Jeremy Benhtam, na Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação, também o utilizaram:

Entretanto, haverá algum motivo para se tolerar que os atormentemos? Sim, vários [...], houve um tempo - lamento dizer que em muitos lugares ele ainda não passou - no qual a maior parte da nossa espécie, sob a denominação de escravos, foram tratados pela lei exatamente no mesmo pé que, por exemplo na Inglaterra, as raças animais inferiores ainda são tratadas hoje. Pode vir o dia em que o resto da criação 'animal adquira aqueles direitos que nunca lhes deveriam ter sido tirados, se não fosse por tirania. Os franceses já́ descobriram que a cor preta da pele não constitui motivo algum pelo qual um ser humano possa ser entregue, sem recuperação, ao capricho do verdugo (Ver o Código Negro de Luís XIV.). Pode chegar o dia em que se reconhecerá que o número de pernas, a pele peluda, ou a extremidade do os sacrum constituem razões igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível à mesma sorte. Que outro fator poderia demarcar a linha divisória que distingue os homens dos outros animais? Seria a faculdade de raciocinar, ou talvez a de falar? Todavia, um cavalo ou um cão adulto é incomparavelmente mais racional e mais social e educado que um bebê de um dia, ou de uma semana, ou mesmo de um mês. Entretanto, suponhamos que o caso fosse outro: mesmo nesta hipótese, que se demonstraria com isso? O problema não consiste em saber se os animais podem raciocinar; tampouco interessa se falam ou não; o verdadeiro problema é este: podem eles sofrer? (1974, p. 69)

No século XX foi a vez de Leonard Nelson, no System of Ethics (1956, p. 142-143). Mais modernamente, Peter Singer, em Libertação Animal (1975), e Tom Regan, no artigo An Examination and Defense of one Argument concerning Animal Rights (1979), assim como por uma série de outros pensadores e filósofos.

Conforme se enunciou, o núcleo duro do argumento da sobreposição das espécies consiste em apontar para o fato de que se os seres humanos não paradigmáticos (desprovidos das capacidades tipicamente atribuídas à humanidade) são protegidos e integram a comunidade moral, então animais não humanos também deveriam, por consistência, merecer tratamento semelhante.

No caso específico, mesmo que se admita que a linguagem não seja acessível aos animais não humanos, sempre haverá seres humanos que também não satisfazem esse critério, ou seja, nem todos os seres humanos são competentes linguisticamente (e.g. pessoas com impedimentos cognitivos relevantes, recém-nascidos, comatosos, senis, dentre outros casos em que restará configurada incapacidade temporária ou permanente). Disso decorre a inconsistência da exclusão dos animais da esfera de consideração moral:

  • (i) o interlocutor que é favorável à utilização de animais por parte dos humanos é convidado a dar uma justificativa para isso;

  • (ii) a razão dada será a de que os animais não têm determinada aptidão;

  • (iii) para qualquer aptidão citada, haverá alguns seres humanos que estão privados dela (os casos “marginais”: pessoas com retardo mental grave, crianças recém-nascidas, idosos com demência senil avançada, bebês anencefálicos, doentes de Alzheimer, etc.);

  • (iv) portanto, o interlocutor deveria também ser favorável à utilização desses humanos pela mesma razão por ele apresentada;

  • (v) mas o interlocutor não concordaria com isso - o que mostra que ele é incoerente e preconceituoso (NACONECY, 2006NACONECY, C. M. Ética & Animais: Um Guia de Argumentação Filosófica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006., p. 262).

O argumento da sobreposição das espécies explicita a razão pela qual o processo de exclusão de determinadas espécies da comunidade moral com base na posse de capacidades supostamente especiais seria inconsistente: “se não deixamos de proteger e tutelar seres humanos que carecem justamente dessas mesmas capacidades, não deveríamos deixar de proteger indivíduos pertencentes a outras espécies” (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2000, p. 969).

A consideração moral não deve, pois, ser fundada nessa lógica de inclusão a partir da posse de atributos ou capacidades específicas, pois ela fragiliza a própria proteção de seres humanos que eventualmente estiverem em condição de vulnerabilidade (sempre, por variadas razões, haverá seres humanos que não possuirão essas características).

Se o preenchimento de uma dada capacidade (e.g. linguagem) é necessária para a consideração moral, animais e seres humanos que não a possuírem não integrarão a comunidade moral. Todavia, os seres humanos desprovidos dessa capacidade contam moralmente, pelo que não é o fato de possuírem ou não essa capacidade que deve pesar para a consideração moral15 15 O reconhecimento desse argumento não indica, de outro lado, a necessária inclusão de todos os seres vivos na comunidade moral como que em uma "ladeira escorregadia". Como se mencionou, no âmbito do presente trabalho, estão sendo tratadas as hipóteses relacionadas à inclusão moral de criaturas sencientes, o que exclui cogitações sobre micro-organismos, vegetais e boa parte dos animais invertebrados. . O argumento pode ser demonstrado em duas etapas, uma relativa aos animais não humanos sencientes, outra aplicável aos seres humanos sencientes:

Forma 1 [animais não humanos sencientes]

[PA] é justificável desconsiderar moralmente quem não satisfaça o critério de competência linguística;

[PB] os animais não humanos sencientes não possuem competência linguística;

[C1] logo, é justificável desconsiderar moralmente animais não humanos sencientes.

Forma 2 [seres humanos sencientes]

[PA] é justificável desconsiderar moralmente quem não satisfaça o critério de competência linguística;

[PC] alguns seres humanos sencientes não possuem competência linguística;

[C2] logo, é justificável desconsiderar moralmente os seres humanos sencientes que não satisfaçam o critério de competência linguística.

Diante das formulações acima apontadas resta claro que sua coerência depende da assunção de que se P1 e P2 são verdadeiras, segue-se que não somente os animais não humanos, como também seres humanos eventualmente privados de linguagem podem ser desconsiderados moralmente. Tal afirmação contraria, evidentemente, o senso comum em relação aos seres humanos16 16 Há uma intuição moral compartilhada, com reflexos inclusive jurídicos, no sentido da inclusão de todos os seres humanos na esfera de consideração moral. Como não poderia deixar de ser, nosso ordenamento jurídico garante uma gama bastante ampla e clara de direitos fundamentais às pessoas com deficiência. O Brasil é signatário, por exemplo, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada pela Presidência da República em 25 de agosto de 2009, por meio do Decreto n.º 6.949 que passou a ter o status de Emenda Constitucional em razão do art. 5º, § 3º da Constituição Federal de 1988. . Para superar esse problema teríamos que ou negar P1 ou P2 ou os dois conjuntamente, concluindo-se que os interesses de todos os seres humanos sencientes devem ser considerados de forma equitativa, assim como o dos animais não humanos sencientes.

Utilizando a categoria de direitos morais17 17 A categoria de direitos faz sentido para a teoria proposta por Regan, mas poderíamos substituir, sem prejuízo para o argumento a ser desenvolvido, direitos por consideração moral direta. , Tom Regan alerta para o fato de que o argumento da sobreposição das espécies poderia ser apresentado de duas formas similares, mas ligeiramente distintas: "(1) certos animais possuem alguns direitos porque seres humanos marginais possuem esses direitos (versão categórica do argumento); ou (2) se esses seres humanos marginais possuem certos direitos, então alguns animais deveriam também possuí-los (versão condicional do argumento)" (1982, p. 116). Pluhar (1995PLUHAR, E. Beyond Prejudice: The Moral Significance of Human and Nonhuman Animals, London, Duke University Press, 1995., p. 65-66, tradução livre) reapresenta essas duas versões de Regan da seguinte maneira:

Primeira versão (categórica):

[P1] seres que são similares em todos os aspectos moralmente relevantes são igualmente moralmente importantes;

[P2] existem seres não humanos que são similares em todos os aspectos moralmente relevantes a seres humanos marginais;

[P3] seres humanos marginais são moralmente importantes;

[C] logo, os seres não humanos que são similares em todos os aspectos moralmente relevantes aos seres humanos marginais são também moralmente importantes.

Segunda versão (bicondicional):

[P1] seres que são similares em todos os aspectos moralmente relevantes são igualmente moralmente importantes;

[P2] existem seres não humanos que são similares em todos os aspectos moralmente relevantes a seres humanos marginais;

[C] logo, aqueles seres não humanos que são similares em todos os aspectos moralmente relevantes aos seres humanos marginais são moralmente importantes se e somente se seres humanos marginais forem moralmente importantes.

A segunda versão, bicondicional, é claramente mais desconfortável, pois ou seres não humanos e seres humanos marginais são importantes moralmente ou ambos não são importantes moralmente. É relevante destacar que, nas suas duas versões (categórica e bicondicional), o argumento da sobreposição das espécies não tem por objetivo provar que animais possuem direitos ou status moral próprio. Seu escopo é fazer um claro apelo à consistência argumentativa. Nesse sentido, se somente seres competentes linguisticamente importam moralmente, seria falacioso e inconsistente incluir na esfera de consideração moral seres humanos em situação marginal e, simultaneamente, excluir os animais não humanos. Se, no entanto, incluímos na comunidade moral os indivíduos marginais humanos, então isso demonstraria que a linguagem não pode representar uma condição necessária para a consideração moral.

Principais tentativas de refutação do argumento da sobreposição das espécies

Ao longo do tempo houve diversas tentativas teóricas que visaram negar a validade do argumento da sobreposição das espécies. Uma primeira linha de refutação consiste em acusar o referido argumento de, potencialmente, rebaixar o status moral dos seres humanos marginais. Trataríamos esses seres humanos da mesma forma como tratamos os animais não humanos e isto representaria um problema (POSNER, 2004POSNER, R. A. Animal Rights: Legal, Philosophical and Pragmatical Perspectives. In: SUSTEIN, C.; NUSSBAUM, M. (eds.). Animal Rights, Current Debates and New Directions. Oxford: University Press, 2004. p. 51-77., p. 61).

Essa oposição, no entanto, só seria possível de ser construída em relação à versão bicondicional do argumento. Ainda assim, tal como já se alertou anteriormente, é importante lembrar que, mesmo nessa versão, o argumento não pretende dizer mais do que afirma, ou seja, ele não pretende construir uma proposição material acerca da consideração moral de animais não humanos ou mesmo de seres humanos em condição marginal. A consequência da aceitação do argumento da sobreposição das espécies não implica, portanto, que devamos tratar humanos e não humanos necessariamente da mesma maneira em todas as situações.

Nesse mesmo campo de oposição, uma outra linha crítica chama atenção para a suposta indevida equiparação entre animais não humanos e seres humanos em condição marginal presente na estrutura do argumento dos casos marginais. Essa equiparação seria imprópria por subestimar os seres humanos marginais18 18 Como se demonstrou, de fato a segunda premissa do argumento, tanto na sua forma categórica como bicondicional, propõe a existência de seres não humanos similares em todos os aspectos moralmente relevantes a seres humanos marginais. . Para alguns, seres humanos "marginais" ainda assim serão sempre humanos e isso indicaria que deveriam ser alvo de atenção moral diferenciada. De acordo com essa vertente, a consideração moral não deveria depender da análise das capacidades fáticas individuais de alguém, mas na análise das capacidades típicas da espécie a que esse indivíduo pertence (SCANLON, 1998SCANLON, T. What We Owe to Each Other. Cambridge: Harvard University Press, 1998., p. 185-6). Assim é que, discriminarmos de forma prejudicial indivíduos humanos privados desses atributos representaria não somente uma crueldade para com esses indivíduos, mas também uma afronta à espécie humana e à própria forma típica humana (SCRUTON, 1996SCRUTON, R. Animal Rights and Wrongs. p. 54. London: Metro, 1996., p. 54).

Essa proposição claramente retira o exame das capacidades do indivíduo no caso concreto para fazer propor uma análise a partir de um padrão esperado para a espécie. Dessa forma, humanos que porventura não atinjam essas capacidades ainda assim seriam privilegiados e considerados moralmente pelo fato de pertencerem abstratamente a um “tipo” de ser que normalmente possui essa capacidade. Seria “natural” para os humanos serem, por exemplo, racionais e competentes linguisticamente (FREY, 1977FREY, R. G. Animal Rights. Analysis, n. 37, pp. 186-189, 1977., p. 188), portanto, o mero fato de ser humano deveria ser suficiente para garantir o acesso à consideração moral de forma independente da constatação individual da posse da capacidade de fato para linguagem.

Carl Cohen, aderente a essa tese do que denominarei de "tese do padrão humano", sustenta que haveria atributos ou capacidades típicas da espécie humana que fariam com que não fosse possível negar consideração aos seres humanos eventualmente privados dessas características:

A capacidade para julgamentos morais, que distinguem homens dos animais, não é um teste que deve ser administrado a seres humanos individualmente. Pessoas que são incapazes, em razão de algum impedimento, de executar as funções morais naturais dos seres humanos não são por essa razão excluídos da comunidade moral. A questão é de adequação a um padrão. Seres humanos são de um tipo para o qual se exige consentimento livre e informado para realização de qualquer procedimento experimental. Animais são de um tipo que é impossível para eles, em princípio, dar consentimento livre ou realizar escolhas morais. O que os humanos incapazes possuem, animais nunca tiveram (COHEN, 1986COHEN, C. The Case for the Use of Animals in Biomedical Research. The New England Journal of Medicine, n. 2, pp. 865-870, out. 1986., p. 866, tradução livre).

Não se tem por objetivo, evidentemente, abordar a complexa questão moral que envolve o uso de animais para fins experimentais. Todavia, uma primeira questão que parece evidente nesse tipo de contraposição sustentada por Cohen é a de que nem todos os seres humanos em condição marginal de fato possuem a capacidade para livremente consentir (haveria seres humanos que seriam absolutamente incapazes de consentimento), ao mesmo tempo em que se pode perceber a presença de consentimento ou a recusa dele por meio da análise comportamental de animais não humanos (haveria animais não humanos capazes de demonstrar consentimento).

Precisaríamos também definir no que consiste o denominado “tipo” natural e seu escopo. O uso mais corrente de "tipo" nesse tipo de argumento seria referente à espécie. Entretanto, o critério de pertencimento de espécie poderia ser um “tipo” natural? Embora intuitivo e familiar, o clássico critério tipológico de espécie pode ser questionado a partir da dificuldade de cada uma das alegadas espécies capturar de maneira satisfatória as similaridades e diferenças relevantes existentes entre grupos de organismos. David Hull (1976HULL, D. L. Are species really individuals? Syst. Zool., n. 25, pp. 174-191, 1976.), por exemplo, já na década de setenta, sustentava que, do ponto de vista ontológico, espécies representavam indivíduos, mas não classes ou universais, ou seja, seriam categorias históricas e não biológicas (o que existe no mundo real seriam indivíduos, e não espécies).

Ao que tudo indica, a "tese do padrão humano" recai na ideia de que o mero fato de pertencimento à espécie Homo sapiens necessariamente confere um tipo de status moral diferenciado, superior, em relação aos não humanos. No entanto, embora possamos assumir que possam existir diferenças no que se refere às capacidades cognitivas de seres humanos e animais não humanos, tomar como padrão a norma da espécie e o pertencimento à espécie, independente das capacidades individuais, como uma característica moralmente relevante para diferenciação de tratamento, representa, em princípio, uma instância clara do fenômeno do especismo (PLUHAR, 1995PLUHAR, E. Beyond Prejudice: The Moral Significance of Human and Nonhuman Animals, London, Duke University Press, 1995., p. 79)19 19 É curioso perceber que há autores que indicam que a comparação entre seres humanos marginais e animais não humanos pode ser prejudicial e injusta em relação aos animais não humanos. Steve Sapontzis, por exemplo, sustenta que em determinados casos "é igualmente insultante, e até mesmo paradoxal, tentar incrementar o status moral dos animais por meio da construção de analogias com seres humanos com impedimentos severos [...]" (1988, p. 98, tradução livre). .

A "tese padrão humano" pode ser abordada também por meio do argumento da potencialidade, ou seja, seres humanos em condição marginal seriam potencialmente seres humanos "plenos"20 20 Essa posição pode ser observada em McCloskey (1979) e em Jon Wetlesen (1999). . A capacidade para algo deveria ser entendida como a possibilidade de ter uma dada habilidade (estabelecimento da distinção entre capacidades e habilidades).

A primeira dificuldade relacionada ao argumento da potencialidade consiste no fato de que sempre haverá seres humanos sencientes privados de linguagem de maneira permanente (nunca poderão acessar a comunicação articulada, jamais poderão se tornar seres humanos do tipo "padrão"). Tudo indica que o argumento da potencialidade não se aplicaria a essas situações em que não há efetivamente possibilidade de a capacidade em questão vir a se manifestar.

Outra dificuldade é a de que a potencialidade de um ente vir a ser alguém com características e atributos distintos dos atuais não indica que, no presente, se aplicam os privilégios e benefícios que poderão vir a existir no futuro em virtude da efetivação desses atributos ou capacidades. É muito provável que boa parte das pessoas concordaria com o fato de que a mesma gama de direitos que são aplicáveis a um ser humano adulto não se aplicaria automaticamente a crianças em todas as situações. John Stuart Mill defendeu, na sua obra Da Liberdade, que os seres humanos adultos pudessem buscar sua própria felicidade desde que nessa busca não fossem violados interesses relevantes de terceiros. Existiria, portanto, um dever de respeito à liberdade que indica a vedação de interferências paternalistas. No entanto, em muitas situações, a mesma interferência paternalista seria justificável no caso de crianças (e.g. como no caso de salvá-las de um perigo iminente). Poderíamos sustentar até mesmo existir um dever no sentido de interferir para beneficiar crianças (GALVÃO, 2015GALVÃO, P. Ética com razões. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015., p. 21). A potencialidade de ser adulto não indica que sejam aplicáveis às crianças as mesmas garantias e direitos que um adulto possua. O modo como devemos tratar os indivíduos deve se basear nas suas qualidades atuais e não nas qualidades de outros indivíduos (NACONECY, 2006NACONECY, C. M. Ética & Animais: Um Guia de Argumentação Filosófica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006., p. 165).

Correlato ao argumento da potencialidade, está outra contraposição ao argumento da sobreposição das espécies que sustenta que, para os seres humanos, o fato de não possuir as capacidades que perfazem o núcleo das capacidades habituais de um indivíduo humano consistiria em uma espécie de infortúnio21 21 A palavra "infortúnio" no sentido empregado por Holland caracteriza o fato da privação de uma capacidade tida como padrão da espécie. Deve, no entanto, ser vista com alguma ressalva. Há indivíduos que são privados dessas capacidades e que podem ter vidas plenamente felizes. De outro lado, é também importante observar que não somente seres humanos podem deixar de possuir as capacidades tidas como padrão de sua espécie. , ao passo que, para os animais não humanos, isso não ocorreria porque o padrão de sua espécie é não possuir essas mesmas capacidades. A razão para considerarmos moralmente os seres humanos desprovidos dessas capacidades seria a de os compensarmos por esse infortúnio sofrido (HOLLAND, 1984HOLLAND, A. On Behalf of Moderate Speciesism. Journal of Applied Philosophy, n. 20, p. 281-91, 1984.).

Tal afirmação é contraposta por McMahan com o exemplo do superchimpanzé (McMAHAN, 2004McMAHAN, J. The Ethics of Killing: Problems at the Margins of Life. Oxford: Oxford University Press, 2004., p. 147). Imagine, tal como ocorre no filme Planeta dos Macacos: A Origem (2011), que alguns chimpanzés recebam uma medicação que os torne especialmente inteligentes. No entanto, a manutenção desse nível superior de inteligência depende da continuidade da ingestão do medicamento. Se o chimpanzé se torna um superchimpanzé e o fornecimento do medicamento é posteriormente cortado e ele retorna à condição de chimpanzé "normal", para Holland, não haveria essa hipótese de infortúnio, pois o infortúnio seria medido em função do que é considerado o "padrão" para a espécie. McMahan demonstra, com esse singelo exemplo, que a solução de Holland seria contraintuitiva e implausível. Se a perda ou a não posse de certas capacidades representa um infortúnio para um determinado ser, então o é independentemente da espécie a que pertence. Na verdade, a tese do infortúnio traduz um esforço para incluir seres que não gostaríamos de ver excluídos da comunidade moral. No entanto, mantida a argumentação original, se o critério é possuir ou não determinadas capacidades, ser infortunado significa ser excluído (HORTA, 2010bHORTA, O. El fracaso de las respuestas al argumento de la superposición de especies. Astrolabio, n. 10, p. 55-84, 2010b., p. 77).

Poder-se-ia, por fim, alegar que, em relação à pretendida equivalência entre humanos em situação marginal e animais não humanos, os seres humanos privados de determinadas capacidades consideradas relevantes para ingresso na comunidade moral deveriam, a despeito desse fato, ser considerados moralmente com base na piedade e na benevolência, o que não se aplicaria aos animais não humanos. Michael Allen Fox (1986FOX, M. A. The Case for Animal Experimentation. Los Angeles: California University Press, 1986., p. 63) afirma que mesmo que animais não humanos fossem dignos de comiseração, não deveriam ser admitidos na comunidade moral, enquanto seres humanos privados dessas capacidades deveriam ser beneficiados com a compaixão e, por conseguinte, ingressar, por essa via, na comunidade moral. Existe um evidente problema de inconsistência nesse raciocínio, pois em que medida é possível apelar para a piedade (ou, para alguns, a compaixão) em um caso e não no outro? Novamente, parece claro que se está diante do fenômeno do especismo nessa hipótese.

Considerações finais

A cosmovisão prevalente afirma que somente a espécie humana é dotada de competência linguística e, portanto, seríamos singulares em relação às demais criaturas (tese da excepcionalidade humana). No que se refere à linguagem como atributo especial que supostamente demarca de maneira exclusiva a experiência humana de mundo, temos variadas determinações e indagações que poderiam ser feitas, quais sejam:

  • [1] esclarecer o que é linguagem ou de que tipo de linguagem se está tratando quando afirma-se que seres humanos são, via de regra, entes tipicamente competentes do ponto de vista linguístico;

  • [2] definir as correlações eventualmente existentes entre linguagem e cognição ou entre linguagem e consciência, intencionalidade ou outros estados mentais;

  • [3] determinar se os animais não humanos (ou algumas espécies de animais não humanos) possuem o atributo da linguagem de acordo com o sentido definitório a ela atribuído no item 1, supra; e

  • [4] estabelecer se a posse da competência linguística seria condição necessária para o ingresso na comunidade moral [relação entre linguagem e status moral].

O trabalho procurou enfrentar unicamente o quarto argumento acima referido. O escopo era verificar a consistência da correlação entre competência linguística e status moral. É evidente que a linguagem importa para a Filosofia de maneiras diversas. Com base na literatura de área, a linguagem não parece ser condição necessária e suficiente para a inclusão de um ser na comunidade moral como alguns autores têm sugerido ao longo da história da Filosofia.

Isso porque, para que a tese da excepcionalidade humana com base na linguagem funcione adequadamente, “deveria cumprir necessariamente três grandes requisitos gerais: (a) as características apontadas como justificadoras da especialidade humana frente às demais criaturas deveriam estar presentes em todos os seres humanos; (b) somente os seres humanos deveriam possui-las; e (c) tais atributos deveriam ser moralmente relevantes” (LOURENÇO, OLIVEIRA, 2000, p. 970).

O primeiro requisito foi examinado sob a luz do argumento da sobreposição das espécies. Tal argumento sustenta que a atribuição de valor moral com base em capacidades, relações ou atributos supostamente caracterizadores de um padrão humano representa uma estratégia equivocada e inconsistente pois, por diversas razões, sempre existirão indivíduos humanos que não possuirão esses mesmos atributos. A consequência lógica dessa constatação é a de que se estamos dispostos a eleger a capacidade da linguagem como critério para inclusão na comunidade moral, parece não haver nenhum fundamento para não se aplicar a mesma justificativa aos seres humanos que por alguma razão não possuem competência linguística.

Eleger atributos ou capacidades que nem todos os seres humanos de fato possuam deixa-nos especialmente vulneráveis. Se não estamos dispostos a retirar os incapazes humanos da comunidade moral, e é isto que o senso comum indica, impedir o acesso de não humanos com base na privação dessas mesmas capacidades é logicamente injustificável.

As principais objeções levantadas a essa tese, que refutam a ideia de que determinados seres humanos privados de algumas capacidades estejam fora do âmbito de consideração moral são falhas. A inconsistência das refutações mantém, portanto, sólido o argumento central da sobreposição das espécies que aponta para a inconsistência da inclusão de humanos em condição marginal e simultânea exclusão de animais não humanos e que faz com que a linguagem, em si, seja irrelevante como critério atributivo de status moral a indivíduos sencientes.

Referências

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  • 1
    O presente trabalho parte do pressuposto de que a senciência, compreendida como a capacidade para as sensações de prazer e dor, deveria ser tomada como o critério mais plausível para atribuição de status moral. Normalmente assumimos que é um problema moral causar dor sem uma justificativa robusta para tanto. O próprio conceito de crueldade está normalmente associado à causação de dor ou sofrimento desnecessários a seres humanos ou quaisquer outras criaturas sencientes. Embora se possa debater o alcance das causas justificantes para a dor e o sofrimento, poucos sustentariam que sua causação é moralmente indiferente.
  • 2
    Para os fins do presente trabalho, a expressão "condição humana" está sendo empregada de maneira genérica, e não no sentido específico apresentado por Hannah Arendt.
  • 3
    É importante assinalar que ser moralmente considerável e ser parte da comunidade moral não são expressões necessariamente equivalentes. Negar a inclusão de não humanos na comunidade moral (full moral status) não implica que não humanos não possam receber algum tipo de consideração moral.
  • 4
    Platão, Aristóteles, Hume, Kant e Mill são exemplos de filósofos que, com variações, subscrevem versões desse argumento com base em conceitos como autonomia, racionalidade e consciência. Em princípio, tomam como paradigma seres humanos adultos em plena posse de suas capacidades mentais e cognitivas.
  • 5
    A negação do antropocentrismo não passa necessariamente pela atribuição de valor intrínseco à natureza ou aos entes naturais não humanos. Explicando melhor, poderíamos nos opor ao antropocentrismo sustentando que o valor de cada organismo é medido em função da sua contribuição para o equilíbrio ou a estabilidade do ecossistema; ou, ainda, que não existe a própria categoria “valor intrínseco”. A única coisa certa é que, para contrapormos a posição antropocêntrica, precisamos negar que o centro da preocupação moral sejam os interesses humanos. No entanto, este centro pode ser ocupado por outra coisa ou propriedade ou mesmo partir-se da noção de que não exista centro algum.
  • 6
    O antropocentrismo moral não se confunde com o antropocentrismo epistêmico (inafastabilidade de que os seres humanos avaliam sempre a partir de uma perspectiva humana). O antropocentrismo epistêmico (ou antropocentrismo perspectivo) está associado à origem dos juízos valorativos e dos próprios valores (antropogenia), enquanto o antropocentrismo moral está relacionado à atribuição desses valores (âmbito de abrangência dos valores). O antropocentrismo epistêmico não conduz necessariamente ao antropocentrismo moral (NACONECY, 2006).
  • 7
    As posições especistas normalmente não implicam em hostilidade ao não humano. Jim Mason propõe o termo misoteria, combinação de dois radicais em grego (misos + theríon), para designar a posição de discriminação associada ao repúdio, desprezo ou ódio aos animais (MASON, 1998, p. 245). No sentido oposto, a posição de contrariedade ao antropocentrismo não implica em zoofilia, compreendida como uma postura de vinculação afetiva com os animais.
  • 8
    A posição do especismo eletivo denota justamente essa predileção por determinadas espécies em detrimento de outras. É usual, por exemplo, que no Ocidente cães e gatos gozem de um status moral privilegiado quando comparados com porcos e vacas.
  • 9
    Defensor dessa tese, Kant, por exemplo, afirmava de maneira clara que não acreditava que animais fossem autônomos ou autoconscientes e, por essa razão, não poderiam ser alvo de obrigações morais diretas. Nossos deveres para com eles seria apenas deveres indiretos para com a própria humanidade. Os atos cruéis afetariam negativamente os seres humanos tornando-os potencialmente insensíveis para com os próprios seres humanos (1997 p. 212).
  • 10
    A noção de "igual consideração de interesses" está normalmente associada ao trabalho de Peter Singer (1975), embora vários outros autores a endossem. As diferentes necessidades de cada indivíduo podem conduzir à ideia de que a isonomia represente tratamento diferenciado, mas nunca, nesse sentido, desigual. Existem, no entanto, aqueles que, apesar de entenderem que algumas categorias de animais não humanos possuam interesses, seus interesses nunca poderiam ser tratados em pé de igualdade com interesses similares titularizados por seres humanos. Da mesma forma, há outros que propõem que animais não humanos sequer possuem interesses (FREY, 1980).
  • 11
    A questão da presença de linguagem em animais não humanos depende, é claro, da própria definição do que se compreende por linguagem (item 1, supra). Existem autores que assumem um conceito mais abrangente de linguagem para debater esse ponto e concluir pela possibilidade da inclusão de determinadas espécies não humanas como competentes linguisticamente (MEIJER, 2020). Há, inclusive, os conhecidos estudos de linguagem de sinais com primatas que são interpretados de maneira bastante diversa. Alguns autores reconhecem a habilidade para comunicação, mas não necessariamente a implicação de, a partir daí, presença de agência ou autonomia (COCHRANE, 2012).
  • 12
    Existe um debate sobre a extensão e o próprio conceito de senciência. Todavia, para os fins deste trabalho, por senciência se compreenderá a posse de estados mentais (intencionais ou não intencionais; conscientes ou não conscientes) relacionados a sensações primárias (e.g. prazer e dor). Para uma visão mais detalhada sobre o fenômeno da senciência sugere-se a leitura de Mary Anne Warren, Moral Status (2000) e de Terrence Deacon, Incomplete Nature: How Mind Emerged from Matter (2013).
  • 13
    Embora o conceito de “marginal” queira designar indivíduos que não possuem as capacidades usualmente tidas como relevantes para a concessão de status moral, evoca um sentido pejorativo (de estar às margens da própria humanidade), pois pressupõe a existência de um conceito de um humano padrão. A ideia de sobreposição parece mais interessante para os fins do argumento, pois denota que o conjunto de seres que não possuem os critérios apontados como relevantes para o ingresso na comunidade moral se superpõem entre humanos e não humanos. Há seres humanos não linguísticos bem como animais não humanos privados de linguagem.
  • 14
    O argumento da sobreposição das espécies não é teoricamente destinado exclusivamente ao combate da excepcionalidade moral humana. Ele poderia ser usado para combater qualquer tipo de argumento em favor da tese da excepcionalidade de natureza similar.
  • 15
    O reconhecimento desse argumento não indica, de outro lado, a necessária inclusão de todos os seres vivos na comunidade moral como que em uma "ladeira escorregadia". Como se mencionou, no âmbito do presente trabalho, estão sendo tratadas as hipóteses relacionadas à inclusão moral de criaturas sencientes, o que exclui cogitações sobre micro-organismos, vegetais e boa parte dos animais invertebrados.
  • 16
    Há uma intuição moral compartilhada, com reflexos inclusive jurídicos, no sentido da inclusão de todos os seres humanos na esfera de consideração moral. Como não poderia deixar de ser, nosso ordenamento jurídico garante uma gama bastante ampla e clara de direitos fundamentais às pessoas com deficiência. O Brasil é signatário, por exemplo, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada pela Presidência da República em 25 de agosto de 2009, por meio do Decreto n.º 6.949 que passou a ter o status de Emenda Constitucional em razão do art. 5º, § 3º da Constituição Federal de 1988.
  • 17
    A categoria de direitos faz sentido para a teoria proposta por Regan, mas poderíamos substituir, sem prejuízo para o argumento a ser desenvolvido, direitos por consideração moral direta.
  • 18
    Como se demonstrou, de fato a segunda premissa do argumento, tanto na sua forma categórica como bicondicional, propõe a existência de seres não humanos similares em todos os aspectos moralmente relevantes a seres humanos marginais.
  • 19
    É curioso perceber que há autores que indicam que a comparação entre seres humanos marginais e animais não humanos pode ser prejudicial e injusta em relação aos animais não humanos. Steve Sapontzis, por exemplo, sustenta que em determinados casos "é igualmente insultante, e até mesmo paradoxal, tentar incrementar o status moral dos animais por meio da construção de analogias com seres humanos com impedimentos severos [...]" (1988, p. 98, tradução livre).
  • 20
    Essa posição pode ser observada em McCloskey (1979) e em Jon Wetlesen (1999).
  • 21
    A palavra "infortúnio" no sentido empregado por Holland caracteriza o fato da privação de uma capacidade tida como padrão da espécie. Deve, no entanto, ser vista com alguma ressalva. Há indivíduos que são privados dessas capacidades e que podem ter vidas plenamente felizes. De outro lado, é também importante observar que não somente seres humanos podem deixar de possuir as capacidades tidas como padrão de sua espécie.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2021
  • Aceito
    21 Jul 2023
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