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Da crítica à defesa da mnemotécnica: Nietzsche e a escrita

From critic to defense of mnemotechnique: Nietzsche and the writing

Resumo

A partir do momento em que a recordação dos fatos deixa de estar vinculada a elementos internos a estes para se associar a signos externos, o esquecimento passa a se instalar. Eis o nascimento da escrita. Com isso, as técnicas de memória são ameaçadas. Nietzsche vê nesta ameaça à mnemotécnica um ganho significativo, pois permite um alívio e higienização mental de toda aquela carga moral que não permite esquecer. Ao perseguirmos este objetivo de desobstruir a mente das suas técnicas de memorização, Nietzsche inaugura uma forma de escrita não centrada no conteúdo, e sim na estilística. Em que medida o expediente estilístico nietzschiano é capaz de superar a mnemotécnica?

Palavras-chave:
Nietzsche; Mnemotécnica; Escrita; Moral; Estilística

Abstract

From the moment in which the memory of the facts ceases to be bound to internal elements to them to associate with external signs, forgetfulness begins to install. This is the birth of writing. With this, memory techniques are threatened. Nietzsche sees in this threat to mnemotechnique a significant gain since it allows a relief and mental sanitation of all that moral burden that does not allow to forget. In pursuing this goal of clearing the mind of his techniques of memorization, Nietzsche inaugurates a form of writing that is not center in content but in stylistic. To what extent is the Nietzschean style expedient able to overcome mnemotechnique?

Keywords:
Nietzsche; Mnemotechnique; Writing; Moral; Stylistic

1. Introdução

A invenção da escrita possui implicações que atuam diretamente sobre as técnicas de memória, no sentido de desvalorizá-las, pois a confiança que se atribuíam aos signos externos já não possuem mais a sua razão de ser. A escrita age como substituição aos mecanismos utilizados pelas diferentes técnicas de memória. Como a memória já passa a ser inutilizada, por consequência, a sua própria estrutura mnemônica sofre um processo de acefalia e degenerescência. Assim, qualquer órgão do organismo humano quando não utilizado passa por um processo de atrofia. Com a escrita já não se consegue mais memorizar. Todos os signos criados pela escrita atuam no sentido de proporcionar uma nova cadeia de raciocínio.

Com a escrita, o esquecimento passa a ocupar o seu espaço. E, com isso, há uma corroboração ao projeto nietzschiano de combate às técnicas de memória, que, em última análise, ativam a má consciência. De uma consciência que em si é má se depreende toda a sorte de mecanismos responsáveis pela decadência não apenas do animal homem, mas, acima de tudo, da cultura. Por essa razão, toda a crítica à memória e suas técnicas tem proporcionado caminho para uma revisão da própria cultura, elevando-a para além de tudo aquilo que a tem conduzido à fraqueza e à impotência.

Se, por um lado, há todo um esforço nietzschiano de combate às diversas técnicas de memória para a promoção de um caminho de elevação cultural, por outro lado, o próprio filósofo se engaja em defendê-las, mediante a ênfase aos diferentes expedientes estilísticos que se depreendem da escrita. Neste sentido, como a própria escrita acaba sendo substitutiva da memória, ela mesma acaba realizando o próprio papel da memória ao, pela estilística, não fazer esquecer.Trata-se de uma escrita que se realiza com sangue, e o sangue marca de maneira indelével a informação que se quer à ferro e fogo.

Procederemos a tratar estas duas vias concernentes à mnemotécnica. Principiamos com uma reflexão inicial intitulada: “A escrita dentro da escrita, culpa e sedução”, em que refletimos sobre o conteúdo interno da escrita, o qual seduz-nos e suscita a lembrança de situações que nos levam à premente necessidade de nos sentirmos culpados. Seguimos nosso itinerário com o segundo capítulo, intitulado: “O sofrimento, o sangue, o medo... escritas que não se apagam”, refletimos sobre as diversas técnicas de memória que se utilizaram de expedientes que provocam medo e horror, como garantias de jamais esquecer. E, por fim, trazemos um terceiro capítulo, intitulado: “A memória escrita com a leveza e a flexibilidade da dança”, a fim de refletirmos sobre como a memória foi marcada não apenas com golpes de violência, mas com suavidade e leveza, típicas da flexibilidade da dança, mostrando assim que a mnemotécnica é em Nietzsche não apenas um obstáculo a ser ultrapassado, mas também vivido plenamente.

2. A escrita dentro da escrita, culpa e sedução

Nietzsche sente o impacto que sua escrita tem provocado entre os seus leitores. Este impacto foi, sobretudo, sentido ao que respeita a sua forma, um brilhantismo que impressiona e até enfeitiça. No entanto, tal impacto esconde a sua incompreensão. Ou seja, por traz da forma se esconde o conteúdo, tal como ele mesmo se expressa a respeito de seu Zaratustra “O perigoso livro de Zaratustra é uma resenha geral sobre meus livros pelo senhor Carl Spitteler, igualmente no Bund, são um ponto alto em minha vida - eu me guardarei de dizer do que...” (Cf. NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999., p. 299). E ainda segue se expressando sobre a influência do estilo sobre o conteúdo: “O último, por exemplo, tratou o meu Zaratustra como superior exercício de estilo, com os votos de que eu viesse a cuidar também do conteúdo.” (Cf. NIETZSCHE, 1999, p. 299). Ora, o conteúdo é exatamente o que Nietzsche quer esquecer, pois nele se situa o logos que impede a fluidez da criação estética, o que, por sua vez, só pode ser fruído pela mutabilidade da forma, do estilo. Com esta mutabilidade se “transvalora” todos os valores, se coloca a verdade de cabeça para baixo, de modo a se substituir a ilusão pela experiência. Eis, portanto, o rumo em direção ao qual Nietzsche quer conduzir a sua escrita: uma escrita situada na experiência vivida e não numa ilusão construída de raciocínios sistematicamente organizados.

A escrita proporciona um modelo de filosofar diferenciado, situado para além do modo pelo qual o vulgo o compreende, sua audácia e finura o conduz ao nível de se fazer surdo às vozes que ecoam ao seu redor. Nietzsche endereça os seus escritos àqueles que são inclinados à altura da vontade de modo a desfrutarem do prazer e do êxtase em aprender. Tal prazer se usufrui na medida em que se capta uma arte de estilo mediante uma tensão interna dada por meio de signos. O estilo em Nietzsche visa a comunicar estados interiores e não memorizar informações, já que tais estados são tão múltiplos que é impossível memorizá-los. Desse modo, quanto maiores os estados interiores que um determinado estilo comunica tanto melhor é ele, e não se concebe como bom um estilo em si mesmo. O idealismo do estilo em si se pulveriza na multiplicidade de estados interiores que se expressam em “(...) um imenso fluir e refluir de paixão sublime sobre humana” (Cf. NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999., p. 305).

O filósofo de Naumburg contrapõe os psicólogos aos moralistas. Enquanto estes últimos se detêm em distinguir altruísmo de egoísmo, aqueles primeiros captam com verdadeira maestria os embustes e enganos operados pelos moralistas em questões psicológicas. Entre estes psicólogos, capazes de realizar a leitura de estados interiores, Nietzsche identifica os seus leitores como, por exemplo, em Copenhagen, Georg Brandes (1842-1927). O que leva o próprio filósofo a se perguntar “Em qual universidade alemã seria hoje possível um curso sobre a minha filosofia, como foi dado na primavera passada pelo Dr. Georg Brandes de Copenhagen, que demonstrou assim, mais uma vez, ser psicólogo? (Cf. NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999., p. 363). O dito curso, dado por Brandes, sobre a filosofia de Nietzsche em Copenhagen foi decisivo para que o pensamento de Nietzsche fosse recepcionado na terra de Kierkegaard. E, na leitura de Nietzsche, Brandes o fez muito bem, sendo suficientemente psicólogo para compreender a sua escrita. Aquele capaz de vasculhar a genialidade sedutora e aliciadora do véu de sua aparência. Vale lembrar que Brandes não é propriamente um filósofo, mas um crítico literário que, pela influência de Nietzsche, tornou-se um aristocrata radical. Com sua finura de instinto e coragem foi capaz de despertar o nome de Nietzsche na Dinamarca. Em inúmeras passagens de seu epistolário, o filósofo alemão testemunha o seu apreço e admiração por Brandes, como nesta carta, de 13 de fevereiro de 1883, endereçada a Ernst Schmeitzner “Eu chamo a atenção sua sobre o senhor Brandes para a história cultural que está aqui em Berlim, o atual mais brilhante dinamarquês. Eu chego a me contrair por ele se ocupar de mim.” (Cf. NIETZSCHE, 1981, p. 330). O brilhantismo de Brandes, na compreensão de Nietzsche, se dá, sobretudo, pela sua crítica literária. Brandes é aquele que, na qualidade de crítico literário e da cultura, é capaz de perceber na escrita de Nietzsche uma riqueza capaz de superar os interditos interpostos pela moral na cultura pelo empenho individualista. Ernst Behler recorda que “No esforço de Nietzsche rumo ao individualismo, Brandes descobre uma correlação com Kierkegaard” (Cf. BEHLER, 2017BEHLER, E. Nietzsche no século XX. (1996). In: MAGNUS, B.; HIGGINS, K. M. (Org.). Nietzsche. 2 ed. São Paulo: Editora Ideias e letras, 2017. pp. 335-383., p. 346). Tal como no contexto da Alemanha, também o contexto da Dinamarca, o traço protestante é comum, bem como o moralismo que dele se depreende. Tema que o filósofo dinamarquês Kierkegaard toma como problema principal de seu filosofar. A moral cristã protestante tem feito da memória o grande trunfo de suas metas e objetivos. O conteúdo dessa memória não foi outro senão o “Deus na cruz’. O recordar desse fato ativa o mecanismo da culpa ante a qual não há redenção, já que as suas consequências são como uma mancha de pecado que alvejante algum pode limpar. O peso dessa culpa, impresso na memória, tem apenas uma meta: não fazer esquecer jamais. E foi justamente o protestantismo que, ao centrar sua mensagem em forma de conteúdo e não naqueles expedientes formais, típicos do catolicismo que tornam a sua moral uma escrita indelével, um dos grandes pivôs da mnemotécnica.

Àquele conteúdo apolíneo, ordenado, que remete à memória de Simônides de Ceos, ao identificar os mortos pela posição que ocupavam no interior do palácio dá espaço à pluralidade de formas e aparências dionisíacas que, em sua mutabilidade, atua como máscaras a encobrir a realidade. A escrita é uma maneira de ordenar o que por si mesmo é desordenado e caótico, com isso ela, a escrita, opera no sentido de deturpar a sua disposição natural, imprimindo uma ordem que, em suma, é fictícia, pois não corresponde ao real. Por essa razão, Nietzsche faz da escrita uma verdadeira anedota, ao concebê-la na forma de uma dança a desrespeitar as regras e simetrias tal como deveria obedecer. Ora, Nietzsche concebe a escrita o que ela é na verdade: um conjunto de metáforas, metonímias a escamotear a aquilo que se pretende chamar - verdade, tal como o filósofo alemão apresenta em Sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral. A insistência de Nietzsche em observar em seus escritos o desvirtuamento da ordem e simetria é, no fundo, para frisar o papel da escrita: o de ser um refrigério à vida pelo desfacelamento da memória. Esta última, em sua audácia pretende imprimir uma verdade que é aparência, uma eternidade que é mutável, uma certeza que é aparência. Pela sua forma escrita, Nietzsche enuncia suas imprecações ditirâmbicas a desmantelar o fardo enrijecido pela memória que aceita passivamente os mandatos interpostos pela moral. A escrita alivia, suaviza, dança e brinca sobre a moral, de modo a fazer do esquecimento o seu grande golpe de misericórdia, uma verdadeira obra de arte. Eis aqui a arte de um bom escritor, aquele que escreve para ser lido por aqueles que se desvencilharam do peso da moral. Somente estes terão condições de desfrutar esta escrita. Em Nietzsche, a assimilação de sua escrita não reside em sua memorização, mas em seu ruminar, em retornar infinitas vezes ao texto. Razão pela qual ele mesmo diz que é preciso ser vaca (Cf. NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999., p. 256) para poder lê-lo, ou seja, experienciá-lo, vivê-lo internamente.

3. O sofrimento, o sangue, o medo... escritas que não se apagam

A escrita a que Nietzsche se refere é feita não de tinta, mas de sangue. Pois o sangue marca, torna a sua memória indelével. Tal tem sido, de acordo com a leitura de Nietzsche, a tática de memorização cristã, ao propor o sangue não dos atletas, mas dos mártires, o ponto alto dos espetáculos nas antigas arenas. Desse modo, não eram mais os atletas, em suas várias modalidades desportivas que recebiam os troféus, e sim os mártires, ao derramarem voluntariamente o seu sangue. A escrita destes mártires passa a marcar profundamente a memória de todos aqueles que assistiram a estes espetáculos. E, ao marcar sua memória, ao mesmo tempo, provocava uma adesão a eles, ao seu projeto de vida. Em uma longa citação de uma passagem do De spetáculis de Tertuliano Cap. XXX feita por Nietzsche no aforismo 15 da Primeira dissertação de Para a genealogia da moral. O sangue dos mártires lá mencionado traz a memória de Cristo, mas também o seu retorno triunfante. Através do sangue de cada um dos mártires, Cristo está neles presente para eternizar a sua memória, a memória de um condenado injustamente à morte. Em nome dessa memória, Tertuliano apresenta o espetáculo de vingança pelos malefícios cometidos. Consiste num espetáculo de chamas intermináveis que não se apagam. Portanto, em tormento eterno, sem tréguas. As imagens do fogo, dos tormentos, dos gritos, da desgraça, do carro flamejante, acentuam a carga da memória que não se pode esquecer. Toda essa imagem brutal que foi recomendada à memória dos cristãos da mesma forma o foi pelo jugo imposto pelos líderes e nações opressoras aos subjugados e oprimidos, como os impérios assírio, babilônico e romano.

Outra influência importante é aquela de Tomás de Aquino, da Suma Teológica, Questão 04, Artigo 01, sobre a qual Nietzsche se refere neste aforismo 15. “Beati in regno coeleste videbunt poenas damnatorum ut beatitudo illis magis compleaceat.” Um convite a ser considerado santo, a fim de poder rir sobre o destino daqueles desprovidos da graça. Mais uma vez, desta referência a Tomás de Aquino se depreende uma técnica de memória: àquela de uma vida santa que usufrui a vantagem de poder ser considerada triunfante sobre aqueles desprovidos da graça. Outra referência também apresentada logo ao início deste aforismo é referente a Dante Alighieri. Sobre o qual o filósofo alemão denuncia o equívoco de apresentar a técnica de memória, que induz, diante do infortúnio, a se recordar do eterno amor (O inferno, canto III). Consiste num verdadeiro condicionamento impositivo, penal e leviano o que tais técnicas de memorização operam na consciência. Sobre isso Nietzsche se pronuncia: “(...) há também o golpe de uma recordação para a lição: a pena como agente mais forte da memória” (Cf. NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999., p. 284). Pelas penas o filósofo alemão via técnicas extremamente eficazes de memorização; quanto mais fortes as penas aplicadas, mais dificilmente se esquece; isso tanto no que diz respeito a penas físicas, mas, principalmente, psicológicas.

Ao apresentar as suas críticas às diversas técnicas de memorização, Nietzsche, por um lado, se mostra não apenas um crítico delas, mas também, por outro, um promotor delas. Mas em que medida Nietzsche estaria promovendo as técnicas da memória, quando estas são, em grande medida, responsáveis pela propagação da moral e seus diferentes mecanismos? A pergunta que se deveria fazer é a de como a preservação da memória poderia resultar em uma carga de boa consciência? Ou seja, em que medida trazer à consciência eventos marcantes não interferem em nossa capacidade de agir? Nietzsche se mostra, como já mencionado acima, como aquele que é devotado a escrever com sangue, como ele mesmo se expressa “De tudo escrito, amo apenas o que se escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue e verás que sangue é espírito” (Cf. NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999., p. 48). O sangue é algo que marca de maneira indelével a memória, de modo que já não é apenas uma escrita, mas espírito. Portanto é algo que permanece, está para além da enfermidade, de toda a pena. Esta técnica de memória que Nietzsche parece defender se coloca numa posição diametralmente oposta àquela dos que compreendem a escrita como um mecanismo de esquecimento. Mais adiante, neste mesmo aforismo, Nietzsche diz que “Quem escreve em sangue e em máximas não quer ser lido, quer aprendido de cor” (Cf. NIETZSCHE, 1999, p. 48). O sangue não é apenas aquilo que se vê, se admira, mas aquilo que se guarda, se retém. Ora, se Nietzsche apresenta, mediante a simbologia do sangue uma escrita que é aprendida de cor, é porque via a necessidade de não deixar com que fatos caíssem sem mais no esquecimento, mas que os memorizassem. Neste sentido, Nietzsche já não pode ser simplesmente considerado um propagador da arte do esquecimento, mas, pelo contrário, um propagador da arte da memória. Mas que memória Nietzsche estaria defendendo como fundamental a ser guardada? Ou talvez melhor, e que circunstâncias Nietzsche compreende como importante para se conservar a memória?

Como já dissemos antes, é impossível proceder ao abandono por completo da memória, já que graças a ela nos é possível avançar pela criação de sempre novas perspectivas. Pois, quando se fala em perspectivas, sempre se faz a partir de um ponto de vista, e este se constrói a partir de uma base mnemotécnica, o que torna impossível prescindir da memória e suas implicações vitais. Uma prova disto se depreende do próprio filosofar nietzschiano, quando debate-se contra a moral cristã. Vê-se todo o tempo conservando a sua memória, a memória daquele “Deus na cruz”, que lhe foi ensinada desde a sua infância, junto à casa pastoral. A teologia protestante do crucificado acompanha Nietzsche até os dias derradeiros, os últimos onze anos demenciais. Uma outra imagem que foi profundamente marcada na memória de Nietzsche durante a vida inteira, é aquela da última noite, quando aos cinco anos, após a morte de seu pai, se mudava da cidade natal para outra cidade. A fim de respirarmos esta atmosfera, emprestemos as palavras a um dos maiores biógrafos de Nietzsche, Curt Paul Janz: “Na última noite em Röcken, após sua despedida de seus colegas, o pequeno Friedrich de 05 anos e meio não conseguiu dormir. À meia noite, ele desceu para o pátio e viu como as carruagens de mudanças eram carregadas à luz opaca das lanternas” (Cf. JANZ, 2016JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche. Uma biografia. (1978). 1 ed. Petrópolis: Vozes, 2016., p. 47). A melancolia desta cena é ainda concluída por Janz: “Essa cena noturna melancólica o marcou profundamente” (Cf. JANZ, 2016, p. 47). A marca da melancolia noturna, solitária, própria da vida interiorana parece estar a tal ponto impressa na memória de Nietzsche, que ele acabará por ser considerado o eterno andarilho em busca da solidão melancólica. A memória nostálgica daquela primitiva casa paroquial, o dia em que dela se mudou atua na mente de Nietzsche como memória de perda, de ter que deixar. Situações estas que ele terá dificuldades em enfrentar, como é o caso de sua relação com Wagner e Lou Salomé.

As marcas destas situações relacionais na vida de Nietzsche imprimem um caráter que se traduz em pensamento, e este em escrita. Por essa mesma razão, o filósofo dedica um escrito, em especial, para relatar sua experiência de luta psicológica contra Wagner, mais precisamente, contra a música wagneriana. Na compreensão de Nietzsche, a música de Wagner é uma das razões responsáveis pela decadência da cultura. A música wagneriana é vista como despojamento de seu caráter afirmativo e transfigurador do mundo para assumir os ideais cristãos de amor à compaixão, elevando aqueles sentimentos morais de uma vida empobrecida, despojada, que nega a si mesma. É um estilo musical que substitui a flauta de Dioniso pelo órgão de Lutero, o qual ressoa com solenidade o heroísmo judaico-cristão na cruz. “Somente na música de Händel ressoou o melhor da alma de Lutero e dos que lhe eram aparentados, o traço judaico-heroico que deu à Reforma um traço de grandeza” (Cf. NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999., p. 423). Esta transformação ocasionada no estilo musical wagneriano é tão forte que Nietzsche ousa considerá-lo “(...) a má consciência de seu tempo” (Cf. NIETZSCHE, 1999, p. 420). Portanto, o próprio Nietzsche, ao acentuar tanto esta mudança no estilo musical de Wagner, considerando-a a doença e decadência da cultura, acaba por, de alguma forma, sofrer profundamente desta doença. Ou seja, por mais que Nietzsche tente superar este estilo de decadência, acaba por sucumbir pelo sentimento de rancor que lhe remorde o coração. Um remordimento tal que não lhe permite esquecer. A memória se imprime na alma como algo verdadeiramente indelével, deixando marcas que não se apagam. E isto, justamente, por ser uma memória que faz sofrer. Nietzsche, por mais que ensine a superar a memória, por ser a filha predileta da má consciência e do ressentimento, se torna vítima dela. Prova disso são seus escritos, como este que acabamos de referenciar. Por trás de seu jeito cândido, educado e aristocrata, as suas palavras deixam transparecer rancor, inconformismo e ódio. O trato de Nietzsche com as palavras em sua escrita, se revelam como técnicas de memória. O seu sentimento de rancor, que se depreende das suas palavras, constitui um esforço para não esquecer. Não esquecer Wagner, sua música, os ideais cristãos.

A memória, em Nietzsche, produz ambivalência, prova disto são seus escritos. A marca de maior de maior ambivalência se depreende da religião cristã luterana de sua infância (HAYMAN, 2000HAYMAN, R. Nietzsche. (1932). 1 ed. Trad. Scarlett Marton. São Paulo: Editora Unesp, 2000.). Esta ambivalência se faz sentir, de modo especial, através do jogo alternante de vozes no qual o filósofo se coloca ao emprestar sua palavra a seus personagens, como é o caso de Zaratustra. Há uma alternância e, ao mesmo tempo, um disfarce entre ambos, o que dá a impressão de o próprio Nietzsche falar através de Zaratustra. A linguagem de Nietzsche respira a linguagem do próprio tradutor da Bíblia ao alemão. Portanto, é uma memória que vai se perpetuando numa estilística marcada pela artificialidade do fraseado, para apontar para além dela; a chamada de atenção a uma súplica intermitente. Nas súplicas: amai, vivei, convertei-vos, de Zaratustra, Nietzsche dá eco à memória de sua educação religiosa. Neste sentido, uma memória que se produz pela escrita. “Na tenra infância, Nietzsche viu-se cercado por mulheres que passavam a vida tratando de pregadores, caminhando e cuidando da casa para eles” (Cf. HAYMAN, 2000, p. 09). Em seu comentário sobre a forte influência do pietismo moralizante pelo qual viveu Nietzsche, Hayman ainda segue dizendo que: “O estilo de conversa moralizante dessas mulheres segue o modelo da dos homens, e elas apreciavam o que acreditavam ser o dever-impor o Cristianismo às crianças” (Cf. HAYMAN, 2000, p. 09).

A imposição de gestos e palavras que compõe a crença cristã incide na memória do jovem Nietzsche de tal modo que não cairá no esquecimento. Prova disso são os seus próprios escritos: “Ao escrever Assim falava Zaratustra, aproximou-se do idioma, da sintaxe e das cadências do velho estilo reverencioso, em parte para parodiá-los e em parte para construir uma caixa de ressonância que daria maior repercussão às prédicas antigo-cristãs de seu profeta pagão” (Cf. HAYMAN, 2000HAYMAN, R. Nietzsche. (1932). 1 ed. Trad. Scarlett Marton. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 10). O estilo acompanha o pensamento do autor de Zaratustra do início ao fim de sua atividade filosófica. Um estilo que permite a alternância entre vozes diferentes. Daí as convenções linguísticas foram criadas para não enganarmos a nós mesmos e identificarmos, a partir delas, um pensamento e um ensinamento que se esconde por trás dele. Assim: “Escrever era amiúde como tomar nota de um ditado feito por uma voz interna” (Cf. HAYMAN, 2000, p. 12). Ao escrever essa voz passa a se perpetuar na memória. Eis aqui, portanto, um exemplo da mnemotécnica nietzschiana. Estamos, por isso, num impasse se afirmado ao início que pela escrita a memória é posta em cheque. Ora, a partir daqui é possível ir fazendo algumas conclusões. Uma delas é a de que com a escrita não se coloca em cheque a memória, mas sim um tipo de memória. Aquela técnica de memória visual, como foi o caso da posição dos membros da audiência dos quais fala a alegoria de Céus dá lugar a uma técnica que se baseia na lógica do pensamento escrito. Portanto, é uma técnica por analogia. Esta nova técnica, estabelecida entre fato, imagem e escrita de alguma forma empobrece aquela memória que outrora era obrigada a se exercitar muito mais, demandando um esforço muito maior, ao ter que associar a imagem diretamente ao fato, sem o recurso de uma mediação escrita. Neste sentido, entende-se o recurso da escrita, ao mesmo tempo em que é uma técnica de memória facilitadora, também é uma técnica enfraquecedora desta. A escrita, em Nietzsche, passa a ser o recurso fundamental a intercambiar o seu pensamento, e, mediante a estilística, torná-lo ainda mais memorizado. “Escrever era amiúde como tomar nota de um ditado feito por uma voz interna” (Cf. HAYMAN, 2000, p. 12). Portanto, a memória consiste numa transcrição daquilo que se experimenta na interioridade. E, como toda a transcrição, amiúde não se é capaz de apresentar um quadro fiel dos fatos, mas uma leitura, uma interpretação que deles se faz. No fundo, Nietzsche procura encarar com realismo as dificuldades envolvidas na correspondência entre os fatos e a sua respectiva transcrição escrita. Com a escrita a memória vai gradativamente enfraquecendo, já que muito mais que informar, a escrita pretende, mediante os seus diferentes estilos, enfatizar alguns aspectos e detrimento dos demais, fantasiar, transvalorar. Eis o golpe frontal que a mnemotécnica dispara contra a pretensão de ver na imagem da realidade a própria realidade, fazendo assim da mentira verdade. A grande pergunta de Nietzsche diz respeito a quais motivações movimentam as técnicas para não esquecer. Ora, não poderia ser outra senão a moral. É pela moral que não se permite desvencilhar-se dos fatos passados, mas a todo o tempo os traz à memória para que, memorizando-os se consiga superá-los, pela sua ressignificação, ou seja, transvalorando-os. A escrita teria para o filósofo alemão a intenção de proporcionar esquecimento, a fim de resultar em alívio moral. Por isso, Behler, parafraseando Heidegger, recorda que “(...) o caráter crítico e destrutivo da escrita de Nietzsche” (Cf. BEHLER, 2017BEHLER, E. Nietzsche no século XX. (1996). In: MAGNUS, B.; HIGGINS, K. M. (Org.). Nietzsche. 2 ed. São Paulo: Editora Ideias e letras, 2017. pp. 335-383., p. 375) atua no sentido de superar a moral niilista. A sedução da escrita atua como fator higienizante e transfigurador da realidade, permitindo redimir o mundo daquilo que foi tornado indiferente e hostil. Portanto, o ingrediente primordial neste processo de redenção é atribuído ao esquecimento. A linguagem nos permite esquecer daquela precisão técnica, daquele formalismo vazio e, ao mesmo tempo, taxativo e moralizador para abrir uma perspectiva nova arejada, em que a única expressão que se sobressai é a da relação estética. Esta relação aponta para uma esfera que faz a intermediação entre o real e o imaginário, de modo a poetizar e criar.

4. A memória escrita com a leveza e a flexibilidade da dança

A estilística nietzschiana apresenta-se como uma alternativa situada entre a correspondência dura de objetos e suas designações e da pura inventividade. Desse modo, na perspectiva dessa estilística, as palavras consistem em relações tênues entre as palavras e o que estas representam. Uma relação tênue, portanto, não se pretende afirmar como certeza absoluta, senão como mera representação, imagem, máscara, que a cada instante se dissolve para assumir novas imagens. Assim, ao invés de uma designação fria e acabada, as palavras produzem, mediante seus recursos estilísticos, uma dança suave e intermitente. Ao invés da estabilidade pétrea da designação das causas que se pretendem verdade, um movimento flexível que faz do espaço intermediário entre designação e objeto designado uma máscara, não uma, mas várias máscaras. E, por serem máscaras múltiplas e diferenciadas, cada uma configura um sentimento de plenitude. Mas que é apenas um instante que logo cai no esquecimento, para todo o instante, intermitentemente, configurar novas máscaras, que, no fundo, são novos sentimentos de plenitude que têm como meta apontar o instante como eterno. Porém uma eternidade não configurada pela taxação que se pretende absoluta e acabada, no sentido moral, mas tênue e fugaz como a água corrente, de modo que a sua memória não se baseia na técnica da precisão fria, uma causalidade formal que classifica e determina, e sim numa memória que tem apenas uma imagem tênue daquilo que se costumou designar como verdade. A revolução estilística, provocada no modo como se conhece a realidade, fez da memória não uma cópia fiel e exata, e sim um instante tênue e dançante dela.

O que se tem na memória são apenas imagens fugidias da realidade, que atuam com figuras de linguagem, metonímias, hipérboles, metáforas. Portanto, figurações da realidade, contudo não a realidade mesma como ela é, ou seja, a verdade. Ora, se através das palavras se atinge a concretização das figuras de linguagem, que é uma camuflagem da realidade, então, por estas mesmas palavras que se associa o esquecimento, pelos vários véus com os quais se envolve a realidade. Logo, desta realidade, gradativamente se é instado a esquecer. Portanto, com a estilística, Nietzsche inaugura uma técnica de memória que se presentifica como algo sempre novo ao plenificar no instante mesmo em que se manifesta. O que se plenifica, portanto, é a própria experiência, para além de argumentos e sistematizações. Como recorda Robert Solomon, “A filosofia, de acordo com Nietzsche, é antes de tudo um envolvimento pessoal, não argumentos e suas refutações” (Cf. SOLOMON, 2017SOLOMON, R. C. O argumento ad hominem de Nietzsche: perspectivismo, personalidade e ressentimento revisitados. (1996). In: MAGNUS, B. & HIGGINS, K. M. Nietzsche. São Paulo: Editora Ideias e letras, 2017. p. 217-266., p. 266). O filósofo alemão faz da linguagem uma experiência que se reflete numa experiência consigo mesmo, principalmente com a memória, mediante técnicas que se apresentam pela imitação de vozes a fim de sufocar ecos de vozes moralizantes, principalmente aquelas que dominaram a sua infância. “Nietzsche pretendeu que tanto a voz do narrador, quanto a voz de Zaratustra sufocassem ecos das vozes moralizantes que dominaram a sua infância” (Cf. HAYMAN, 2000HAYMAN, R. Nietzsche. (1932). 1 ed. Trad. Scarlett Marton. São Paulo: Editora Unesp, 2000., p. 22). É curioso que Nietzsche, para combater a mnemotécnica, cria outras técnicas de memória, técnicas estas que visam a uma desconstituição moral. Walter Kaufmann observa que o filósofo alemão tem, inclusive, respeito e admiração pelo historiador que faz memória de seu tempo para desconstruir preconceitos. “Nietzsche - e isto parece digno de nota - jamais renunciou sua veneração pelo historiador antigo que foi tão notavelmente livre da maioria dos preconceitos de seu tempo, tais como o limite do nacionalismo ou a fé simplista em um progresso implacável” (Cf. KAUFMANN, 2013KAUFMANN, W. Nietzsche. Philosopher, Psychologist, Antichrist. 8ª Ed. Princeton: Princeton University Press, 2013., p. 28).

Assim, mesmo sendo uma desconstrução da mnemotécnica, ainda permanece uma técnica da memória, que recorda inúmeros feitos e situações que, na visão do filósofo, engrandecem a cultura. Nietzsche cria uma nova técnica de memória assentada para além da moral. Mas em que consiste esta sua nova mnemotécnica? Em primeiro lugar, basicamente com os recursos próprios da estilística na linguagem, e que se expressa na escrita. Aquilo que se escreve, como se escreve, para que se escreve, em quais condições se escreve; fora questões que permearam o quotidiano da produção filosófica nietzschiana. Atento a tais questões, Nietzsche vê na escrita um excelente subsídio para o processo de desmantelamento de valores que acreditou serem responsáveis pelo sucumbir daquele que considera o valor dos valores: a vida. Portanto, uma memória da vontade, da força, e que compreende todas as suas condições de subsistência, tal como Jan Assmann pontua: “Nietzsche mostrou que as pessoas necessitam uma memória no sentido de serem aptas a formarem conexões” (Cf. ASSMANN, 2006ASSMANN, J. Religion and cultural memory: ten studies. California: Stanford University Press, 2006., p. 05). As conexões realizadas pela memória desencadeiam um querer sempre de novo o já querido. “Nietzsche postulou uma memória diferente, especial, que ele chama de memória da vontade. [...] A memória da vontade é baseada em resolver continuar, querer sempre de novo o que tem uma vez querido” (Cf. ASSMANN, 2006, p. 05).

É uma memória que ultrapassa a moral que pune e infringe culpa, para se constituir em memória que assume e quer sempre de novo, no sentido de uma continua superação de obstáculos da vontade. Ora, consiste, por isso, numa vontade como capacidade de criar o mundo conforme os próprios desejos humanos, assim como pela memória se é capaz de criar o passado. A esse respeito, Tracy Strong diz que “A vontade é a faculdade que os seres humanos têm de moldar o mundo à sua própria imagem (como a memória é o modo como moldamos o passado)” (Cf. STRONG, 2017STRONG, T. B. “A má apropriação política de Nietzsche.” (1996). In: MAGNUS, B.; HIGGINS K. M. (Org.). Nietzsche. 2 ed. São Paulo: Editora Ideias e letras, 2017. p. 147-180., p. 153).

Foi necessário, portanto, ultrapassar alguns daqueles obstáculos que povoam a vontade moderna - o niilismo e a memória -, a moral, daí a busca de superação no esquecimento. Esquecimento este que, no fundo, não é nada mais senão técnica de memória moral, para que aponte para uma nova técnica de memória não moral. Ora, o fenômeno do esquecimento consiste numa abreviação da memória, tal como é a própria linguagem, com lemos nesta passagem de Além do bem e do mal “[...] a história da linguagem é a de um processo de abreviação; com base nesse rápido entendimento as pessoas se unem” (Cf. NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999., p. 221). Ora, se pela linguagem se pretende conservar elementos da memória, o crescente processo de abreviação leva à sua atrofia. Contudo, esse processo de atrofia da memória não pode ser considerado, necessariamente, um caminho de interposição aos mecanismos da moral. Pois, há falta de memória sobre aspectos que estão diretamente ligados ao fenômeno da moral. Como seria, por exemplo, o fato de esquecer-se de encarar no fenômeno do niilismo. Isto resultaria na persistência de se enfatizar aspectos, valores que em si nada acrescentariam, ou ainda, na pior das hipóteses, contribuiria para acirrar ainda mais a carga niilista. Por essa razão, o próprio Nietzsche aponta para algumas técnicas de memória que resultam em antídotos contra a moral. As máscaras seriam uma destas modalidades mnemônicas, enfatizadas por Nietzsche como antídotos contra a moral: “Toda a filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara” (Cf. NIETZSCHE, 1999, p. 234). A máscara é para recordar que algo por trás dela se esconde. Portanto, isso deve despertar o desejo do desvendar o mistério escondido. O desvelamento desse mistério não equivale ao estabelecimento da verdade definitiva, mas a satisfação de uma resposta e “Mais uma máscara! Uma segunda máscara!” (Cf. NIETZSCHE, 1999, p. 229). A cada desmascaramento, novas máscaras se apresentam e assim por diante. O mais importante é perceber que o dar-se conta da existência de uma máscara é impulso para trazer à memória uma aparência, bem como o que se esconde por trás de uma aparência ao retirar a máscara. E retirar a máscara é superar a moral. Portanto, consiste em um processo de recordar, de memória, que é desconstrutivo da moral. Consiste num recordar de imagens da modernidade que, nas palavras de Robert Pippin, são imagens que evocam uma fisiologia decadente. “Por isso as imagens da modernidade de Nietzsche são imagens fisiológicas de uma exaustão e doença final ou decisiva” (Cf. PIPPIN, 2017PIPPIN, R. B. O suposto adeus de Nietzsche: o Nietzsche pré-moderno, moderno e pós-moderno. (1996). In: MAGNUS B. & HIGGINS K. M. (Org.). Nietzsche. 2 ed. São Paulo: Editora Ideias e letras, 2017. p. 301-332., p. 308). Assim percebe-se que o esquecimento não é necessariamente amoral, pode ser, inclusive, mantenedor da moral. Há inúmeras situações e fatos na vida de Nietzsche que estão a todo o tempo recordando, revivendo como ele se expressa no Caso Wagner. Um problema para músicos, quando ele, ao referir-se às diversas vezes que ouviu o Carmen de Bizet. “Ontem - vocês acreditarão? - ouvi pela vigésima vez a obra-prima de Bizet. Fiquei novamente até o fim, com suave devoção, novamente não pude fugir” (Cf. NIETZSCHE, 1999, p. 13). O filósofo compreende nesta repetição um exercício de aperfeiçoamento da atividade filosófica. Não é fundamentalmente ao conteúdo da peça musical de Bizet que Nietzsche se refere, mas sim à sua forma, à sua estilística, como ele mesmo remete, trata-se de uma orquestração original, suava, sutil, viva. Este é, pois, um aspecto interessante na mnemotécnica de Nietzsche, a memória que se faz não do conteúdo e sim da forma, do estilo, razão pela qual a escrita é o que melhor caracteriza as técnicas de memória.

5. Considerações finais

Nosso itinerário permitiu um sobrevoo por algumas reflexões atinentes ao papel das técnicas de memória via escrita. Se, por um lado, esta última foi concebida para fazer esquecer, por outro, foi para memorizar. Por essa razão, fomos levados a dois diferentes aspectos importantes na escrita: o conteúdo e a forma. Enquanto forma, a escrita é um expediente fundamental a proporcionar um não esquecimento que abre e plenifica. Enquanto conteúdo, tende a conduzir a um dogma, a um fechamento, a uma conclusão, a uma forma livre, provisória, flexível. Desse modo, quando a música, a escrita e outras expressões culturais assumem aquelas características próprias da forma, podemos gozar da plenitude do instante, a beleza da forma que se eterniza. São justamente estes tipos de memorização que Nietzsche, embora não se exprima abertamente, propaga através de diversas passagens de seus escritos publicados e não publicados. A fim de se fazer memória de algo tão sublime, como é o caso da música, da escrita, é preciso uma técnica de memória que permita crescer a todo o instante, as vastas expressões estéticas que expressam. Uma destas técnicas é claramente expressa a partir do aforismo, logo acima citado: a técnica da repetição. Nietzsche ouvia dezenas de vezes o Carmen de Bizet, a fim de que a harmonia de suas formas penetrasse em sua memória a ponto de sentir-se plenificado, elevado.

A despretensão ingênua e imoral da música distrai, dá prazer, redime. Ela cria uma memória eterna, constituída de formas sempre novas, formas estas que constituem um instante sempre pleno e dominante. Neste sentido, a música não pode ser um meio, mas já, desde o princípio, constitui o todo, pois cada um de seus fragmentos instaura instantes de plenitude. Portanto, são instantes que marcam, de forma indelével, a memória daqueles que a experimentam. A música ativa a memória no sentido de elevar o instante à plenitude, mediante a impressão de mensagens, o ritmo harmonia e o compasso da música. É importante frisar que, apesar deste papel importante que a música ocupa na fixação de uma mensagem, Nietzsche não reduz a música à meio, sendo esta, em si própria, um fim que redime e dá novo significado à vida. O filósofo alemão, por essa razão, em seu manifesto antiwagneriano diz “A música é apenas um meio: esta era a sua teoria, esta era sobretudo, a única prática para ele possível [...] - Wagner precisava de literatura para convencer todo o mundo a levar seriamente, levar profundamente a sua música” (Cf. NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999., p.36). Nietzsche tem como uma de suas razões para se afastar de Wagner o fato de que este encara a música como meio, ferramenta, instrumento, produzindo assim todo o seu potencial gerador de vida. No entanto, seja como meio, seja como fim, a música permanece atrelada à ideia de que, por ela, a memória é ativada. Na Idade Média. a instrumentalização da música para se reter o conteúdo a ela atrelado, ou seja, aquilo que se depreende de suas palavras, era promovido pelo canto gregoriano; de modo que o mais importante não é a música em si, mas a ênfase que esta atribui às palavras: mais uma técnica de memória.

De qualquer forma, Nietzsche reconhece na música o seu caráter enfeitiçador, ou seja, que prende a atenção, que embriaga, que não se apaga da memória. É a música, portanto, mais uma das técnicas de memória. Ora, se a música se destaca como uma das técnicas de memória, então a ela cabe uma posição de destaque com relação às artes. É isto o que Nietzsche afirma em seu Pós-escrito O caso Wagner, quando se insurge contra Wagner a respeito de uma suposta supremacia do teatro sobre as demais artes “[...] a teatrocracia - o desvario de uma fé na proeminência do teatro, num direito à supremacia do teatro sobre as artes, sobre a arte...” (Cf. NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999., p. 42). A música, na compreensão do filósofo alemão, ocupa o lugar de honra dentre as artes, por ela se é capaz de promover mudanças substanciais na cultura, tanto no sentido de uma promoção desta a fim de elevá-la aos mais altos níveis, como para a sua decadência. Nietzsche constata que Wagner tem instrumentalizado esta técnica de memória, a música para servir a “[...] um instinto niilista ( - budista), e o transveste em música, ele incensa todo o Cristianismo, toda forma de expressão religiosa da décadence” (Cf. NIETZSCHE, 1999, p. 43). Uma técnica de memória como a música, quando utilizada a favor da promoção de formas niilistas de expressões culturais, como é o caso da cristandade, converte esta, a música, no grande algoz da cultura. Pois, pela música se estaria promovendo o não esquecimento daqueles eventos culposos, a fim de que a má consciência seja ativada e, com esta, o ressentimento. Com isso, se faz com que eventos sangrentos sejam eternizados na memória, perpetuando assim aquele sentimento de que se é culpado. Um exemplo destes, em música, temos na Paixão de Cristo, descrita por Bach. Este é um grande expoente da música sacra da tradição luterana, a tradição cristã da teologia da cruz. Portanto, da teologia que obriga a memória cristalizar uma verdade, a de que somos culpados.

Referências

  • ASSMANN, J. Religion and cultural memory: ten studies. California: Stanford University Press, 2006.
  • BEHLER, E. Nietzsche no século XX. (1996). In: MAGNUS, B.; HIGGINS, K. M. (Org.). Nietzsche. 2 ed. São Paulo: Editora Ideias e letras, 2017. pp. 335-383.
  • HAYMAN, R. Nietzsche. (1932). 1 ed. Trad. Scarlett Marton. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
  • JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche. Uma biografia. (1978). 1 ed. Petrópolis: Vozes, 2016.
  • KAUFMANN, W. Nietzsche. Philosopher, Psychologist, Antichrist. 8ª Ed. Princeton: Princeton University Press, 2013.
  • NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. In 15 Banden. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999.
  • NIETZSCHE, F. W. Briefwechsel: Kritische Gesamtausgabe Briefwechsel. KGB. Herausgegeben von Georgio Colli und Mazzino Montinari. (1886). Bd III1 und 1975. Bd I2. Berlin: Walter de Gruyter, 1981.
  • NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • NIETZSCHE, F. W. Genealogia da Moral. Uma polêmica. (1887). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • PIPPIN, R. B. O suposto adeus de Nietzsche: o Nietzsche pré-moderno, moderno e pós-moderno. (1996). In: MAGNUS B. & HIGGINS K. M. (Org.). Nietzsche. 2 ed. São Paulo: Editora Ideias e letras, 2017. p. 301-332.
  • SOLOMON, R. C. O argumento ad hominem de Nietzsche: perspectivismo, personalidade e ressentimento revisitados. (1996). In: MAGNUS, B. & HIGGINS, K. M. Nietzsche. São Paulo: Editora Ideias e letras, 2017. p. 217-266.
  • STRONG, T. B. “A má apropriação política de Nietzsche.” (1996). In: MAGNUS, B.; HIGGINS K. M. (Org.). Nietzsche. 2 ed. São Paulo: Editora Ideias e letras, 2017. p. 147-180.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2019
  • Aceito
    15 Fev 2022
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