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A pobreza a partir da perspectiva utilitarista de Singer e da ética kantiana em O’Neill

Poverty from Singer's utilitarian perspective and O'Neill’s Kantian ethics

Resumo

O presente artigo analisa as concepções desenvolvidas por Peter Singer e Onora O’Neill sobre o alívio da pobreza. Para atingir esse objetivo, são apresentadas possíveis formas de entender a pobreza, seguidas de uma comparação das visões dos autores. As proposições de Singer são examinadas à luz do utilitarismo de preferências, visando compreender o desenvolvimento da teoria do autor até a elaboração do altruísmo eficaz. A revisão da teoria de O’Neill, por sua vez, é feita a partir da ética kantiana, tradição na qual a autora se filia, e a partir de sua proposição sobre necessidade do estabelecimento de deveres para o alívio da pobreza. Nas considerações finais, o artigo faz uma comparação crítica entre as duas concepções examinadas.

Palavras-chave:
Éticas deontológicas; Utilitarismo; Pobreza; Beneficência.

Abstract

This article analyzes Peter Singer and Onora O’Neill’s conceptions of poverty relief. To achieve this purpose, possible ways of understanding poverty are presented, followed by a comparation of the authors’ views. Singer’s arguments are examined in the light of his preference utilitarianism aiming to understand the development of his theory and the elaboration of effective altruism. The review of O’Neill’s theory, in turn, is based on Kantian ethics, an approach the author is affiliated, and based on the need to establish duties for the alleviation of poverty. In the final considerations, the article makes a critical comparison between the two conceptions examined.

Keywords:
Deontological ethics; Utilitarianism; Poverty; Beneficence.

Introdução

O presente artigo visa analisar as principais questões abordadas pelo utilitarismo e pela ética kantiana a respeito da pobreza e da fome, não oferecendo uma distinção entre estes dois fenômenos considerando-se que ambos se caracterizam, sucintamente, pela falta de meios para a sobrevivência. Para examinar as questões centrais referentes a esses fenômenos, utilizaremos Peter Singer como referencial do utilitarismo e Onora O’Neill como referencial para a ética kantiana. As concepções dos dois autores acerca da pobreza são marcadas pelas tendências éticas a que são adeptos, permitindo uma visualização das principais diferenças entre uma ética consequencialista e uma ética deontológica no que concerne à pobreza.

Embora possa ser interpretada a partir de diversas perspectivas, a pobreza é um fenômeno recorrente tanto em países desenvolvidos quanto subdesenvolvidos. No caso do Brasil, por exemplo, a FGV Social, com base em dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADS) estimou que no primeiro trimestre de 2021 cerca de 12,8% da população brasileira encontrava-se abaixo da linha da pobreza1 1 A medida indicada pelo estudo (NERI, 2021) estabelece o valor de cerca de 261 reais por pessoa, ou um salário-mínimo por família, considerando-se as famílias pobres com cerca de 4,6 pessoas. Famílias que viveriam abaixo deste valor seriam, portanto, consideradas pobres. Nesta direção, um dos níveis mais utilizados para medir o nível de pobreza de um país é o estabelecido pelo Banco Mundial, que adota o valor de 1,90 dólares por dia por pessoa para medir a pobreza a nível internacional. Para níveis nacionais, existe a proposição de que em países de renda média-baixa a medida pode ser de 3,20 dólares e países de renda média-alta 5,50 dólares. Para aprofundamentos, consultar: Jolliffe e Prydz, 2016. . O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil, conduzido pela rede PENSSAN, indica que, em 2020, cerca de 44% dos domicílios brasileiros estavam em situação de segurança alimentar, enquanto 9% dos domicílios encontrava-se em situação de insegurança alimentar grave2 2 O estudo abordou 4 classificações: segurança alimentar; insegurança alimentar leve; insegurança alimentar moderada; insegurança alimentar grave. A classificação das famílias nestes parâmetros esteve condicionada a respostas diretas (sim ou não) oferecidas a oito perguntas sobre a situação alimentar da família nos três meses que antecederam a entrevista. As oito perguntas advêm da EBIA (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar) (REDE PENSAN, 2021). . Na região Sul do Brasil, por exemplo, 6% dos domicílios estavam em situação de insegurança alimentar grave, enquanto 53% em segurança alimentar.

Na segunda metade de 2021, pôde-se acompanhar diariamente as notícias a respeito da fome que assola parte da população brasileira. Manchetes ocuparam os jornais do país revelando a busca por restos de alimentos pelas pessoas pobres e comercialização de produtos, como ossos, até então geralmente não comercializados por parte dos supermercados. Em novembro de 2021, uma matéria do site BBC News Brasil expôs a situação de uma aluna da educação pública do Rio de Janeiro que chegou a desmaiar de fome.

Entretanto, a pobreza não é um fenômeno recorrente apenas no Brasil. Segundo o Banco Mundial, a pobreza extrema, que vinha declinando nos últimos 25 anos, não exibiu diminuições animadoras em 2020. Ao contrário, apresentou um revés em seu combate. Isto se deu em decorrência da pandemia da COVID-19, que agravou as forças de conflito, e por conta das mudanças climáticas, que antes da pandemia já demonstravam ser um retrocesso no combate à pobreza. As perspectivas apontam, ainda, que até 2030 as mudanças climáticas podem levar de 68 a 132 milhões de pessoas à pobreza (WORLD BANK, 2021WORLD BANK. Poverty - Overview. Disponível em https://www.worldbank.org/en/topic/poverty/overview#1. Acesso em: 06 dez. 2021.
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).

Este artigo justifica sua importância, portanto, na necessidade de apresentar possíveis perspectivas analíticas à luz do utilitarismo e da ética kantiana. A filosofia, a partir de sua abordagem conceitual dos fenômenos que permeiam a existência, é convocada aqui a auxiliar em uma reflexão do tempo presente e das possibilidades de ação desenvolvidas por diferentes pensadores.

Possíveis interpretações da pobreza

A pobreza como fenômeno que assola a sociedade moderna pode ser interpretada de diferentes formas e analisada a partir de diferentes perspectivas, embora seja comumente representada como a falta de algo (bens, oportunidades, condições de sobrevivência). De acordo com alguns comentadores (PINZANI, 2017PINZANI, A. Pobreza: sobre a dificuldade de definir um fenômeno social. In: CONSANI, C. F.; GUIMARÃES, P. B. V.; ROSÁRIO, J. O. R.; XAVIER, Y. M. A. (org.). O estado de direito e a proteção das liberdades. 1. edição. Curitiba: Editora Prismas, 2017. p. 285-319.), diferentes abordagens se propuseram, com maior ou menor sucesso, a analisar como a pobreza pode ser definida. A abordagem quantitativa, por exemplo, buscaria um modo de classificar os pobres, identificando-os por meio de diferentes métodos, seja a renda per capita diária, seja a renda per capita em relação ao poder de compra, o que poderia reduzir a pobreza à simples questão monetária. Já as abordagens contextualistas, por exemplo “[...] tentam definir a pobreza com base no contexto histórico, socioeconômico e político específico da sociedade em questão” (PINZANI, 2017PINZANI, A. Pobreza: sobre a dificuldade de definir um fenômeno social. In: CONSANI, C. F.; GUIMARÃES, P. B. V.; ROSÁRIO, J. O. R.; XAVIER, Y. M. A. (org.). O estado de direito e a proteção das liberdades. 1. edição. Curitiba: Editora Prismas, 2017. p. 285-319., p. 311-312).

É possível mencionar também interpretações da pobreza que a classifiquem em nível relativo e absoluto e nível extremo e moderado (DIETERLEN, 2005DIETERLEN, P. Poverty: a philosophical approach. Amsterdam/New York: Rodopi, 2005.). De modo resumido, pode-se afirmar que as pessoas que vivem em situação de extrema pobreza “[...] são os membros menos favorecidos das classes menos favorecidas” (DIETERLEN, 2005DIETERLEN, P. Poverty: a philosophical approach. Amsterdam/New York: Rodopi, 2005., p. 19, tradução nossa). Por outro lado, a pobreza moderada diz respeito, segundo Vélez (VELEZ, s/d, apudDIETERLEN, 2005DIETERLEN, P. Poverty: a philosophical approach. Amsterdam/New York: Rodopi, 2005.) à incapacidade momentânea de sustento próprio. Em relação à distinção pobreza relativa-absoluta, desenvolvida sobretudo por Robert McNamara, ex-presidente do Banco Mundial, ela diz respeito a uma subdivisão da pobreza. Considerando-se as pessoas pobres, há aquelas que vivem em pobreza relativa, isto é, são pobres se comparadas aos padrões do país em que habitam, mas não são pobres se comparadas aos padrões de países menos desenvolvidos. As pessoas que vivem em pobreza absoluta, entretanto, seriam pobres em qualquer situação comparativa, seja em relação a países ou métodos de avaliação e estariam vivendo, se poderia dizer, em situações miseráveis3 3 Esta divisão, embora auxilie numa classificação conceitual da pobreza, a nível prático parece não conseguir demonstrar uma diferença que justifique a relativização dos prejuízos causados pela pobreza relativa, visto que uma pessoa que mora no Brasil, recebe seu salário e o gasta em reais, não em pesos argentinos. De tal modo que não parece haver diferença prática se um brasileiro tem mais ou menos dinheiro que um argentino se toda sua vivência se dá no Brasil e não na Argentina. Poderíamos inclusive argumentar que esta divisão poderia gerar uma relativização da pobreza em países desenvolvidos ou emergentes, uma vez que poderia propor o argumento de que existem pessoas em situações piores em outros países e, deste modo, a pessoa pobre no país desenvolvido ou emergente não seria tão pobre assim. Se uma pessoa vive no Brasil e passa fome, não parece existir alguma relevância prática no fato de que ela conseguiria comprar alimentos em algum outro país. .

Pode-se ressaltar que a pobreza também é interpretada por diferentes organismos internacionais, tais como, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e, como já visto, o Banco Mundial. De acordo com Ugá (2011)UGÁ, V. D. A questão social como “pobreza”: crítica à conceituação neoliberal. 1. edição. Curitiba: Appris, 2011., a análise do Banco Mundial, a partir de relatórios dos anos 1990 e 2000, tende a tratar a pobreza como um combinado de falta de recursos financeiros para suprir necessidades, falta de voz ativa perante a sociedade e vulnerabilidade a certas situações para as quais o pobre não estaria preparado para lidar. Algumas dessas condições surgiriam da incapacidade estatal de lidar com a pobreza, enquanto outras seriam resultantes da própria condição de pobreza, que não permitiria, por exemplo, o desenvolvimento de capacidades importantes ao desenvolvimento.

Outros organismos, por exemplo, o PNUD, escolhem abordar a pobreza a partir da noção de “desenvolvimento humano”. Com influência da abordagem das capabilities de Amartya Sen, a pobreza se caracterizaria pela ausência de meios, ou ativos, que permitam escolhas que levem a um melhor nível de vida, ou ao desenvolvimento de capacidades para uma vida com mais qualidade. Em relação à OIT, por sua vez, Ugá destaca a noção de “trabalho decente” enfatizada pela organização como uma possível via de tratamento da pobreza. Tornar o trabalhador mais produtivo, ou ainda, mais empregável (e consequentemente mais remunerado) e incentivar a própria dinâmica da criação de empregos por meio da produtividade seriam meios para lidar com a pobreza.

Do mesmo modo que apresentam concepções próprias sobre a pobreza, os organismos mencionados oferecem possíveis tratamentos ao fenômeno. Não abordaremos estes aspectos aqui, pois visamos contrapor Singer e O’Neill. O que deve ser mencionado, de todo modo, é a crítica que Ugá faz aos órgãos apresentados por conta de uma tendência neoliberal nos diagnósticos e caminhos apontados. A crítica se dá por serem tendências que buscam reduzir a questão social à pobreza, na medida em que encontram no indivíduo ou nas instituições estatais e sociais algumas das causas para a pobreza. Este diagnóstico, para Ugá, além de isentar o sistema social de suas responsabilidades, reduz à esfera individual os insucessos de milhões de pessoas mundo afora.

Aqui, também pode-se mencionar Thomas Pogge no debate a respeito da pobreza. O autor considera a possibilidade da pobreza ser uma violação dos direitos humanos em sentido moral4 4 Embora existam direitos humanos legais e morais, Pogge (2007) defende que a pobreza é uma violação dos direitos humanos morais. Enquanto os direitos humanos legais dependem dos sistemas judiciários para serem legitimados, um direito humano moral não necessita da legitimação governamental, embora possam tornar-se legítimos perante a lei. , uma vez que as dinâmicas econômicas mundiais, deliberadamente conformadas, afetam (bem como afetaram, no passado) a economia e desenvolvimento dos países pobres. Assim como uma série de autores, Pogge concorda que devemos ajudar no alívio da pobreza. Ele utiliza as noções de deveres positivos e negativos para apresentar parte de suas posições. Os deveres negativos estão relacionados à ausência de dano, isto é, não se deve agir de tal modo que cause danos às pessoas. Os deveres positivos estão ligados ao cumprimento de uma ação: deve-se agir de modo a prover, a beneficiar etc., as outras pessoas.

Nesta direção, admitir que os países afluentes possuem deveres, sobretudo positivos, para com os pobres, pode camuflar a emergência de um dever negativo: o de não causar danos aos pobres. Isto porque, dado que as dinâmicas socioeconômicas mundiais favorecem as elites globais, admitir que os países afluentes possuem o dever negativo de não causarem dano aos países pobres implicaria na necessidade de rever tais dinâmicas para que deixassem de causar danos. Para Pogge, portanto, o alívio da pobreza não pode ser reduzido ao envio de ajuda aos países pobres, algo que representaria os deveres positivos de ajuda, mas deve contar com o cumprimento do dever de não perpetuação de uma ordem global que impõe danos a esses países. Este último representaria o dever negativo de não causar danos e o primeiro a ação positiva de buscar reformas.

A pobreza e sua resolução a partir de Peter Singer

A análise de Peter Singer (1946 - ) sobre o problema da pobreza se dá a partir da perspectiva do utilitarismo. O utilitarismo, na sua versão clássica, surgiu a partir de Jeremy Bentham e, posteriormente, foi desenvolvido por John Stuart Mill. O utilitarismo defende que a obrigatoriedade moral de uma ação depende da utilidade (o valor) que ela produz quando comparada com outras alternativas. Para exemplificar, pode-se citar o dilema do trem: sabendo que um trem irá, inevitavelmente, passar por cima ou de 5 pessoas ou de 1 pessoa, a depender do caminho que o observador escolher, qual caminho deve ser escolhido? Para os utilitaristas, a resposta é simples: o caminho com uma pessoa, já que este infortúnio gerará o mal para o menor número de pessoas possível. Há, entretanto, diferenças significativas na formulação do utilitarismo por parte de Bentham, Mill e Singer.

Bentham defende o utilitarismo hedonista, isto é, designa ao prazer o posto de maior valor na vida humana sendo a única coisa portadora de valor intrínseco. Neste sentido, as atitudes podem ser analisadas a partir do contraste entre prazer e dor, de modo que as ações que geram mais prazer devem ser preferidas em lugar das que produzem mais dor, ou, se o prazer sequer é alcançado, então as ações devem ser tomadas de acordo com a menor dor que podem gerar. Já o utilitarismo de Mill é pensado de modo a responder objeções ao utilitarismo de Bentham e não reduz a felicidade a ser alcançada ao prazer a ser sentido com alguma ação. Isto é, a felicidade pode ser alcançada por meio de outros agentes, deixando de reduzir a moralidade das ações ao aspecto do prazer que podem gerar e atribuindo valor à satisfação por meios intelectuais e não apenas sensíveis.

O utilitarismo de Singer, também chamado de “utilitarismo de preferências”, diferencia-se de Bentham e Mill na medida em que considera a preferência dos indivíduos, e não a mera felicidade ou prazer. Para ele, não se trata simplesmente de julgar as ações de acordo com a dor ou o prazer que produzem, como faria Bentham, mas observar o impacto destas ações nas preferências dos seres envolvidos na ação. Neste sentido, é necessário considerar que todos os seres sencientes possuem interesses, como o interesse de não sofrer, por exemplo, de modo que o utilitarismo de Singer não permite que ações que afetem negativamente tais interesses sejam moralmente aceitas. A partir deste panorama oferecido, será possível identificar adiante traços do utilitarismo de preferências no que diz respeito ao tratamento da pobreza.

Em sua obra Practical Ethics, cuja terceira edição foi publicada em 2011, Singer analisa as questões da fome e afluência a partir das noções de pobreza e riqueza absolutas. Este segundo conceito diz respeito à capacidade de suprir as necessidades básicas de uma família, eventualmente com sobras no orçamento. Pessoas em situação de riqueza absoluta conseguem prover à família boas condições de vida, não apenas condições de sobrevivência. Este termo surge a partir da identificação de que pessoas que vivem em países em situação de pobreza absoluta não conseguem sequer prover meios para a sua subsistência, por exemplo por meio da plantação de alimentos.

Partindo da noção de que as pessoas e os países que possuem condições não doam significativas quantias para ajudar no combate à pobreza absoluta, seria possível questionar se matar ou deixar morrer seriam a mesma coisa, e se não contribuir com a pobreza absoluta quando se possui condições para tal seria o equivalente moral do homicídio. Para Singer, não há diferença intrínseca entre matar e deixar morrer (SINGER, 2011SINGER, P. Practical Ethics. 3. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2011., 194-195). Ele destaca algumas razões para se compreender porque matar deliberadamente e não doar são a mesma coisa.

A primeira razão apresenta-se a partir das diferentes motivações no ato de matar alguém e no ato de gastar dinheiro com algo desnecessário, apenas por prazer próprio. Embora sejam motivações diferentes, Singer busca chamar atenção para a obrigação moral das pessoas em países afluentes doarem mais do que fazem atualmente nas ajudas internacionais ao alívio da fome e desastres. O nível de consumo deveria, portanto, ser diminuído a fim de possibilitar a ajuda aos mais pobres. A segunda razão apresenta-se a partir das noções de proibição e obrigação. Segundo Singer, é mais fácil obedecer à proibição de matar alguém do que à obrigação de ajudar alguém; esta última exigiria mais de nossos esforços do que a primeira. A terceira razão diz respeito ao resultado das ações de matar e não ajudar. Se atiramos com uma arma, diz Singer, é esperado que acertemos alguém. Mas se ajudamos, pode acontecer que o dinheiro que enviamos não seja bem utilizado. A quarta razão diz respeito à proximidade, ou conhecimento. Enquanto alguém sabe em quem está atirando, alguém que não ajuda não sabe quem poderia ter salvado com o dinheiro que gastou em supérfluos. A quinta razão diz respeito à responsabilidade individual, uma vez que alguém pode alegar que não é responsável pela fome mundial, mas é responsável por matar alguém.

A questão que Singer coloca é se essas diferenças justificariam que não se julgasse moralmente alguém que não ajuda (deixa morrer) do mesmo modo que se julga alguém que mata. A resposta oferecida por ele não parece conclusiva. Embora não devamos igualar as punições para as duas atitudes, ambas apresentam gravidade. A saída encontrada por Singer é a de considerar isoladamente o caso da ajuda aos pobres, não mais em contraste com o ato de matar. A pergunta que ele se faz agora apresenta um desafio mais modesto que o anterior: devemos ajudar? Segundo Singer, a resposta é positiva e ele inicia esclarecendo com o exemplo da criança no lago. Questiona se, ao caminharmos em direção a um compromisso, uma reunião, por exemplo, e avistarmos uma criança se afogando em um lago, é nosso dever ajudar a criança. A consequência deste ato será nos atrasarmos para o compromisso e molharmos nossa roupa, e isso não significa algo moralmente equivalente à vida da criança. A resposta, então, parece simples. Devemos ajudar. É importante notar a comparação de valores feita: de um lado, a vida da criança; de outro lado, a pontualidade em um compromisso. Este balanço entre valores deriva do argumento estabelecido por Singer para defender a ajuda aos pobres: o argumento, de modo formal, apresenta-se do seguinte modo:

Primeira premissa: Se podemos evitar algo ruim sem sacrificar nada de significância moral comparável, nós estamos obrigados a fazê-lo.

Segunda premissa: Pobreza extrema é ruim.

Terceira premissa: Existem casos de pobreza extrema que podemos evitar sem sacrificar nada de significância moral comparável.

Conclusão:

Nós estamos obrigados a evitar a pobreza extrema (SINGER, 2011SINGER, P. Practical Ethics. 3. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2011., p. 200, tradução nossa).

Singer defende que o argumento seria aceito por qualquer consequencialista e, talvez, até mesmo pelos não consequencialistas a depender do valor moral que atribuem a bens materiais. Uma possível objeção que ele mesmo apresenta, entretanto, diz respeito à necessidade de ajudar os mais próximos antes de pensar na pobreza de outro país ou continente. Nesse sentido, ele destaca que a ajuda não deve ser analisada em termos de cidadania, pertencimento ou proximidade, mas sim em termos de necessidade. O fato de existirem pobres na Europa não descarta a emergência da ajuda aos que vivem em pobreza absoluta na África, por exemplo.

Outra objeção apontada por Singer diz respeito ao direito da propriedade, defendida sobretudo por Robert Nozick no sentido de que, se a propriedade foi adquirida por meios justos, não há porque contestá-la. Seria o caso de que o argumento de Singer entraria em confronto com o direito à propriedade? Não necessariamente, pois mesmo Nozick (1974NOZICK, R. Anarchy, State, and Utopia. Oxford/UK & Cambridge/USA: Blackwell, 1974., p. 265; p. 282), embora contra a taxação para redistribuição, poderia vir a concordar com a prática de caridade voluntária, segundo Singer. O acúmulo da riqueza usada na filantropia privada é justificado filosoficamente por Nozick.

Uma terceira objeção ao argumento de Singer diz respeito à triagem das pessoas a serem ajudadas para otimização dos recursos. Considerando-se a taxa da natalidade crescente de alguns países e o consequente aumento da população em situação de pobreza absoluta, a proposta seria dividir em 3 categorias os países a serem ajudados: 1) aqueles que conseguem se manter razoavelmente sem a ajuda externa; 2) aqueles que com a ajuda externa conseguem melhorar os quadros de fome e controlar o crescimento da população, tornando-se autossustentáveis; 3) aqueles que mesmo com ajuda externa não conseguiriam controlar o crescimento da população fazendo com que a ajuda fosse insuficiente. A ajuda deveria, portanto, ser direcionada ao segundo grupo, já que o primeiro consegue manter-se e o terceiro acabaria por enfrentar doenças e condições adversas que reduzissem o número da população até que ela fosse de algum modo sustentável. Um dos defensores dessa espécie de neomalthusianismo social é Garrett Hardin, que discutiremos adiante.

A resposta a esta objeção considera que existe no mundo uma quantidade de alimentos mais do que suficientes para alimentar a todos, o que faria com que o número de habitantes de qualquer país não fosse um problema, além de reconhecer a má distribuição de terras para produção de alimentos. Índia e Bangladesh, para Singer, seriam dois exemplos de países anteriormente pobres que viram suas populações crescerem ao passo que a capacidade de alimentar os habitantes também cresceu. Entretanto, Singer alertava desde então que o crescimento populacional de alguns países não poderia ser simplesmente ignorado, visto que a capacidade produtiva destes deveria aumentar significativamente para corresponder ao número de habitantes que as estimativas estipulavam. A alternativa da triagem pareceria, portanto, ser questão de tempo: ou alguns países são abandonados à própria sorte no presente ou futuramente o número das suas populações aumentará de modo que qualquer ajuda será insignificante, e acompanharemos mais pessoas a morrer de fome.

Singer, entretanto, responde à tal objeção e, consequentemente, à política de triagem, defendendo que apostar em meios de controle populacional no presente se apresenta como uma possibilidade de evitar o sofrimento previsto pelos defensores da triagem. Se países subdesenvolvidos apostarem em meios para a emancipação das mulheres, retirando suas responsabilidades unicamente reprodutivas, oferecerem melhores condições de vida a seus cidadãos e tornarem disponíveis métodos contraceptivos, pode existir a tendência de controle da população. A existência desta possibilidade, portanto, tornaria obsoletos os argumentos em favor da triagem.

O debate em torno da questão da triagem parece longo em Singer, inclusive pela possibilidade de casos em que a ajuda é necessária ao mesmo tempo em que o uso de contraceptivos ou o desenvolvimento econômico sejam impossíveis por diversos motivos, o que poderia concretizar as previsões dos defensores da triagem. De todo modo, existem ainda outras duas objeções apresentadas por Singer. Uma contesta o lugar das responsabilidades dos governos em uma ética que defende a caridade privada. Basicamente, trata-se de questionar se a ajuda privada não eximiria os governos de suas responsabilidades. Singer defende que a ajuda privada pode demonstrar que a população apoia a ajuda aos necessitados, enquanto a não ajuda poderia ser interpretada pelos governos como se a caridade não fosse apoiada, e esta situação representaria novamente trocar uma ação que evita um mal (a ajuda aos pobres salva vidas) por uma ação de fim incerto (não se sabe qual será a reação do governo à não ajuda privada). Singer, portanto, não vê mal algum na caridade privada, ao passo que reconhece a necessidade de maior engajamento na reivindicação de revisão das dinâmicas econômicas e de ajuda em relação aos países que demandam.

Outra objeção contesta os valores a serem doados. O artigo Fome, Afluência e Moralidade, publicado em 1972, apresenta duas formas do princípio de Singer. Uma forte, “(...) que exige de nós que evitemos que coisas ruins aconteçam a menos que, fazendo assim, estejamos sacrificando algo de comparável importância moral” e uma moderada em “(...) que devemos evitar ocorrências ruins a menos que, ao fazer assim, sacrifiquemos algo de moralmente importante” (SINGER, 2010SINGER, P. Fome, afluência e moralidade. In: BAKER, A.; BONJOUR, L. Filosofia: textos fundamentais comentados. 2. edição. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 424-429., p. 428-429, itálico nosso). Singer parece optar pela versão forte do princípio, admitindo inclusive que talvez a sociedade de consumo diminuísse caso todos optassem até mesmo pela versão moderada.

Desta forma, a objeção mencionada por ele em Practical Ethics contesta, a partir de três versões diferentes, os valores que deveriam ser doados, apontando a dificuldade de seres humanos conseguirem doar o que seria estabelecido pelo princípio. Singer responde a tais objeções reconhecendo uma dificuldade de quantificar o dever da doação, e propõe:

Eu sugeri uma escala progressiva, como uma escala de impostos. Começa com apenas 1 por cento da renda; e para 90 por cento dos pagadores de impostos, isso não requer dar mais que 5 por cento. Esta é portanto uma quantidade totalmente realista, e que pessoas podem tranquilamente dar sem sacrifício (...) (SINGER, 2011SINGER, P. Practical Ethics. 3. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2011., p. 214, tradução nossa).

O autor também menciona casos reais de ajuda, como o caso da família Salwen, que vendeu a própria casa e doou metade do dinheiro para aldeões rurais em Gana, além do caso de Zell Kravinsky, trabalhador do mercado financeiro que doou quase 40 milhões de dólares para a ajuda aos pobres e um rim para um desconhecido. Como visto, é possível questionar esses deveres na medida em que parecem ser exigentes demais para que qualquer pessoa no mundo, com condições financeiras para tal, diminuísse pela metade os gastos com um nível de vida contemplado por recursos além dos necessários. Do mesmo modo, em relação ao trabalhador do mercado financeiro, seria possível questionar os pesos e contrapesos existentes nas ações de doar milhões e trabalhar para o mercado financeiro. Por um lado, a doação é extremamente bem-vinda. Por outro, o doador trabalha em um segmento que atua diretamente com a especulação financeira, que pode contribuir para a manutenção de desigualdades sociais. Neste caso, é necessário considerar se a contribuição do trabalhador para a manutenção deste regime é compensada pelo bem que ele causou doando grandes quantias de dinheiro5 5 As consequências de aceitarmos que trabalhar para o mercado financeiro e doar é melhor do que buscar outro modo de diminuição da pobreza, podem ser evidenciadas caso levemos este tipo de argumento ao seu extremo. Logo concluiremos que os fins podem justificar os meios. .

Em A Vida que Podemos Salvar, Singer utiliza o termo “altruísmo eficaz” (OLIVEIRA, 2016OLIVEIRA, J. Viver para os outros? Crítica na rede, 2016. Disponível em: https://criticanarede.com/eti_futnathumana.html. Acesso em: 24 mar. 2022.
https://criticanarede.com/eti_futnathuma...
, s/p) como representante do movimento proposto de buscar meios pelos quais se pode fazer “o maior bem”, minimizando o sofrimento das pessoas necessitadas. Menciona Matt Wage, que abandonou os estudos em Princeton para trabalhar no mercado financeiro e, assim, contribuir com maiores valores. Holden Karnofsky e Elie Hassenfeld também trabalhavam no âmbito do mercado financeiro e abandonaram-no para fundar a GiveWell. Os estudantes Toby Ord e William MacAskill fundaram a Give What We Can, com fins de congregar pessoas dispostas a doar 10% de seus rendimentos (OLIVEIRA, 2016OLIVEIRA, J. Viver para os outros? Crítica na rede, 2016. Disponível em: https://criticanarede.com/eti_futnathumana.html. Acesso em: 24 mar. 2022.
https://criticanarede.com/eti_futnathuma...
). Vários são os nomes mencionados. O que destacamos, por fim, é a relação entre teoria e prática que Singer estabelece, primeiro a partir da formulação de seu princípio de ajuda e, mais recentemente, pela criação de sites informativos, como o www.thelifeyoucansave.com, e difusão de iniciativas pautadas no altruísmo eficaz.

Na próxima seção serão analisadas a crítica de Onora O’Neill ao argumento de Singer e as propostas da autora baseadas na ética kantiana.

A crítica de O’Neill ao utilitarismo

A filósofa britânica Onora O’Neill (1941 -) apresenta objeções à perspectiva utilitarista sobre a ajuda aos pobres e parte de uma abordagem kantiana para defender a ajuda como um dever e não mera caridade. A seguir, apresentaremos as suas críticas ao utilitarismo de Singer e Hardin e, posteriormente, os principais pontos da concepção ética sobre o alívio da fome.

O’Neill critica a posição utilitarista de diversos modos. Ela reconhece que promover a maior felicidade por vezes pode custar algumas vidas, visto que o utilitarismo não concebe os seres humanos como fins em si mesmos, mas sim como meios para o alcance da felicidade (O’NEILL, 2010O’NEILL, O. As perplexidades morais do alívio da fome. In: BAKER, A.; BONJOUR, L. Filosofia: textos fundamentais comentados. 2. edição. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 442-455.). Uma segunda possível ressalva deriva da noção de direitos no sentido de que “para O’Neill é um problema que - em última instância - aqueles que obtêm seus direitos recebem “algo” daqueles que têm o dever de dar-lhes” (DIETERLEN, 2005DIETERLEN, P. Poverty: a philosophical approach. Amsterdam/New York: Rodopi, 2005., p. 94, tradução nossa). Neste sentido, a noção de direitos colocaria as pessoas pobres em situação de passividade em relação aos deveres de ajuda, uma vez que dependeriam da vontade alheia de ajudar-lhes e não as posicionaria como reivindicantes, mas apenas recebedoras de ajuda. Não faria sentido, deste modo, dizer que as pessoas possuem o direito de serem ajudadas.

Tratando-se de críticas direcionadas aos autores, abordaremos as críticas a Hardin e Singer. Garrett Hardin (1915-2003) defendia a não ajuda aos países pobres, apresentando uma analogia para explicar sua posição. Supondo-se um bote salva-vidas com pessoas dentro e outras pessoas na água, à deriva, pedindo um espaço no bote, se os que estão na água não forem salvos, apenas aqueles que estão no bote sobrevivem. Mas se ganham um espaço no bote, pode ser que todos morram, já que o bote não comporta um grande número de pessoas. A mesma coisa ocorreria caso países ricos ajudassem países pobres. Enquanto não ajudam, as pessoas dos primeiros países vivem em relativa segurança econômica. Se ajudarem, entretanto, além da segurança ser reduzida, as populações dos países pobres podem se sentir seguras de tal modo que passem a se reproduzir até que o número de pessoas a serem ajudadas fique tão alto que a ajuda externa não será suficiente. Ajudando-se os países pobres, então, promove-se um sofrimento futuro maior do que um sofrimento atual. Mais pessoas sofrerão no futuro, em contraste com menos pessoas sofrendo no presente. Do ponto de vista utilitarista de Hardin, é melhor optar pelo menor sofrimento: não ajudar os países pobres e, assim, não permitir que a população destes cresça para que sofra futuramente6 6 É necessário comentar que este posicionamento de Hardin remonta um malthusianismo social na medida em que os dois parecem convergir na proposição de que se as pessoas não possuem condições básicas de sobrevivência, não se reproduzirão e, consequentemente, existirão menos pessoas pobres. Aqui, parece visível a preferência à aniquilação do pobre em vez da ajuda à sobrevivência e do incentivo da promoção, por exemplo, de políticas públicas direcionadas a informações sobre a contracepção. Ignorar esta possível dimensão do papel dos governos parece também um recurso à individualização da miséria, direcionando a responsabilidade pela reprodução da pobreza apenas ao nível individual. .

A crítica de O’Neill a esta posição apresenta-se a partir dos seguintes pontos: 1) a riqueza dos países desenvolvidos pode não advir simplesmente de mérito próprio, mas da exploração de países pobres, e isto advogaria contra a noção de que países ricos possuem o direito de todas as suas propriedades, visto que mesmo relações comerciais legais tendem a fortalecer os já fortes; 2) “não é muito claro que as tentativas de aliviar a fome apresentem riscos sérios aos afluentes”7 7 Este argumento parece convergir, inclusive, com a resposta de Singer à proposta da triagem. (O’NEILL, 2010O’NEILL, O. As perplexidades morais do alívio da fome. In: BAKER, A.; BONJOUR, L. Filosofia: textos fundamentais comentados. 2. edição. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 442-455., p. 444); 3) os interesses dos pobres e dos ricos são os mesmos (a preservação da paz por exemplo), enquanto os interesses dos que estão no bote e os que estão na água são diferentes.

Já conhecemos as proposições de Singer a respeito do alívio da fome. A crítica de O’Neill desenvolve-se no sentido de reconhecer que os problemas a serem resolvidos nunca acabam e, por isso, não é possível ao utilitarista realmente cumprir seu dever, uma vez que, a partir do pressuposto de que se está em nosso poder fazer algo que reduza o sofrimento sem sacrificar algo da mesma relevância, então devemos fazê-lo, sempre encontraremos algo a mais pelo qual podemos fazer algo.

É também relevante mencionar os discrepantes resultados a que chegam os utilitaristas partindo do alcance da maior felicidade para o maior número de pessoas. Enquanto Hardin encontra uma posição contrária à ajuda, Singer defende a ajuda, até os limites do possível, como necessária. O que difere nos dois não é, portanto, o pressuposto, mas a solução que propõem para alcançar o objetivo utilitarista.

A ética kantiana e o alívio da pobreza em Onora O’Neill

O Imperativo Categórico de Kant é formulado de diversos modos e o primeiro a ser apresentado, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, é o seguinte: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2005KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2005., p. 59, destaques do autor). Diz-se do imperativo que é categórico, ou da moralidade, pois determina um tipo de comportamento observando o cumprimento de um dever de acordo com a lei moral8 8 Em contraposição ao imperativo hipotético, que considera uma ação necessária se for meio para um fim desejado. .

Para explorar a questão da obrigação moral para com os que passam fome, O’Neill analisa a Fórmula do Fim em Si Mesmo estabelecida por Kant, a saber: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (KANT, 2005KANT, I. A metafísica dos costumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005., p. 69, grifos do autor). Com base na ética de Kant, portanto, as outras pessoas devem ser encaradas como fins em si mesmas, pois suas vidas possuem valor intrínseco e não valor meramente instrumental que permitiria que as usássemos como simples meios para alcançarmos o desejado.

O’Neill aponta que, segundo Kant, todas as nossas ações podem ser descritas por máximas que expressam nosso modo de conduta, ou mesmo nossos interesses por trás de cada ação. Nesta direção, o critério de análise da ação não é, como no utilitarismo, o maior bem ou menor mal que ela causa, mas sim a máxima na qual se fundamenta. Isto implica que observemos de que modo as pessoas são interpretadas em nossas ações: se como meios ou fins em si mesmas. A autora explica o que é agir desses dois modos, de forma que encarar alguém como mero9 9 Aqui é necessário destacar a diferença entre usar alguém como meio e mero meio. Usar alguém como meio é por vezes necessário e não consiste num ato imoral caso a pessoa consinta. O problema encontra-se em usar alguém como mero meio. meio “é envolvê-lo em um esquema de ação ao qual ele não pode em princípio consentir” (O’NEILL, 2010O’NEILL, O. As perplexidades morais do alívio da fome. In: BAKER, A.; BONJOUR, L. Filosofia: textos fundamentais comentados. 2. edição. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 442-455., p. 448). Seria o caso das falsas promessas quando alguém as aceita com base numa falsidade prometida e, por não saber desta condição, não possui meios suficientes para fazer sua opção. Seriam também erradas as ações baseadas em enganos ou coerções. Tratar alguém como um fim, por sua vez, significa respeitá-lo em sua liberdade de escolha e este é, segundo O’Neill10 10 Lembremos que O’Neill critica a passividade em que a noção de “direitos” coloca as pessoas pobres. Ela propõe, portanto, encarar a beneficência e a justiça, noções kantianas, como sendo deveres. , um dever de justiça. Ele se diferencia também de um requerimento de beneficência, uma vez que segundo este último, devemos, quando possível, além de não usar alguém como meio, agir em prol de seus fins, reconhecendo e apoiando a busca alheia pela felicidade.

Os deveres de justiça, portanto, em situações de fome, são baseados no imperativo prático. Não devemos usar outras pessoas como meros meios, nem enganá-las ou coagi-las. O’Neill reconhece, entretanto, uma série de condições em que o engano ou a coerção estariam presentes, subvertendo os deveres de justiça. É o caso, por exemplo, de guardar comida que ainda não foi distribuída ou mesmo desviar recursos para a sobrevivência. Poderíamos ainda citar a impossibilidade do cumprimento do dever perante os outros. Enquanto a ética kantiana postula a necessidade do cumprimento do dever, o/a provedor/a de uma família nem sempre consegue tal feito, de modo que esta incapacidade não seria eticamente condenável se as tentativas de prover mantimentos foram esgotadas. Sobre os deveres de beneficência, segundo O’Neill, eles não são suficientes para defender a ajuda aos pobres, uma vez que colaborar para os fins de alguém se dá de diversas formas e existe um nível de importância entre, por exemplo, ajudar alguém que está passando fome e caminhar com alguém que gostaria de uma companhia.

Neste sentido, O’Neill afirma a tendência da ética kantiana de olhar mais para as intenções presentes no ato do que para o resultado do ato. Isto porque, salvo exceções, não é o caso de que uma ação realizada a partir de alguma intenção cause um resultado oposto ao intencionado:

Os kantianos conscienciosos podem descobrir se agirão errado por algum ato, mesmo sabendo que sua capacidade de previsão é limitada e que podem causar algum dano ou falhar em causar algum benefício. Porém, eles não causarão danos que podem prever sem que isso esteja presente em suas intenções (O’NEILL, 2010O’NEILL, O. As perplexidades morais do alívio da fome. In: BAKER, A.; BONJOUR, L. Filosofia: textos fundamentais comentados. 2. edição. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 442-455., p. 453).

O’Neill também defende uma concepção de valor da vida diferente daquela utilitarista. Enquanto estes últimos encaram as vidas humanas como meros meios para a satisfação do maior número de pessoas, a ética kantiana encontra valor na vida por seu aspecto racional, que os permite planejar e escolher. Embora o respeito à vida e aos deveres de justiça possa não promover a maior felicidade possível, a autora defende que, ao menos, ao contrário do utilitarismo, nenhuma vida é usada como meio.

Em relação à crítica de O’Neill à linguagem de direitos, apresentaremos agora a alternativa proposta. É necessário substituir a noção de direito que incide sobre os pobres e introduzir a noção de obrigação que atua sobre os ricos. Uma teoria da obrigação, neste sentido, deveria contar com orientações tanto sobre situações abstratas quanto situações concretas nos diferentes contextos em que os indivíduos devem atuar. Sendo assim, O’Neill também reconhece a diferenciação entre deveres perfeitos e imperfeitos11 11 Deveres perfeitos, na filosofia kantiana, seriam aqueles em que o agente da ação moral está diretamente ligado ao recebedor da ação (especificado ou não). Um exemplo seria a obrigação de não matar. Os deveres imperfeitos são aqueles em que a ação que deve ser realizada não se destina a algum recebedor definido, por exemplo respeitar as outras pessoas. Os deveres perfeitos e imperfeitos são também divididos em especiais e universais. De todo modo: “O que motiva obrigações perfeitas é o direito dos outros; por outro lado, o que motiva o cumprimento de obrigações imperfeitas é a existência de virtudes” (DIETERLEN, 2005, p. 98, tradução nossa). , que uma teoria da obrigação deve levar em conta. Dieterlen (2005)DIETERLEN, P. Poverty: a philosophical approach. Amsterdam/New York: Rodopi, 2005. afirma que a tese de O’Neill sobre a pobreza parte dos deveres perfeitos para com os vulneráveis e que uma obrigação universal perfeita seria a de não coagir ninguém. Nesta direção, pessoas em situação de vulnerabilidade estariam mais sujeitas à coerção e para que tal realidade não se efetivasse seria necessário prover às pessoas oportunidades que não sejam carregadas de condições, ou seja, que podem ser aceitas ou rejeitadas.

Apresentaremos a seguir dois conceitos que podem corroborar tanto a tese kantiana de interpretar as pessoas como fins em si mesmas e não meros meios quanto as proposições de O’Neill sobre o dever da ajuda.

Dignidade e autonomia em favor da ética kantiana de O’Neill

A noção de autonomia é desenvolvida por Dieterlen (2005)DIETERLEN, P. Poverty: a philosophical approach. Amsterdam/New York: Rodopi, 2005. em conjunto com a noção de fim em si mesmo para corroborar a tese de respeito aos seres humanos. Já conhecemos a noção de fim em si mesmo. A autonomia, neste sentido, apresenta-se estreitamente ligada à liberdade, uma vez que pode ser definida como a capacidade “de estabelecer leis que eles mesmos obedecem” (DIETERLEN, 2005DIETERLEN, P. Poverty: a philosophical approach. Amsterdam/New York: Rodopi, 2005., p. 34, tradução nossa). A autonomia é, portanto, a capacidade de deliberação e ação, que tornaria um ser humano valioso em si mesmo e não um sujeito das vontades de outros seres humanos. A autonomia, portanto, corrobora a necessidade de tratar os outros como fins em si mesmos e, consequentemente, confirma as obrigações perfeitas para com os pobres, uma vez que tais obrigações visam a não coerção dos seres humanos e a coerção seria uma violação da autonomia na medida em que não permite uma real escolha.

Necessariamente ligado à noção de autonomia está o conceito de dignidade. Ele dirige-se às coisas que não podem ser substituídas por algo equivalente, pois não possuem qualquer preço, e esta seria a premissa para alguém ser tratado como fim em si mesmo (TONETTO, 2012TONETTO, M. C. A dignidade da humanidade e os deveres em Kant. Rev. Filos. Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 265-285, jan./jun. 2012.). Nesta direção, a própria autonomia se apresenta como um dos elementos pertencentes à humanidade e que fundamenta a dignidade desta. De modo a compreendermos a relação da dignidade com a ajuda aos pobres, Tonetto (2012)TONETTO, M. C. A dignidade da humanidade e os deveres em Kant. Rev. Filos. Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 265-285, jan./jun. 2012., aponta para a Fórmula do Fim em Si Mesmo, relembrando a necessidade de não apenas não usarmos os outros ou a nós mesmos como meros meios, mas também de considerarmos os fins das pessoas, respeitando a dignidade de cada um. Disso depreende-se que

se a dignidade está relacionada com o reconhecer e com o tratar o ser humano como fim em si e isto implica não apenas não ferir a sua liberdade, algo puramente negativo, mas levar positivamente os seus fins em consideração, talvez seja possível justificar kantianamente uma série de direitos sociais e econômicos (TONETTO, 2012TONETTO, M. C. A dignidade da humanidade e os deveres em Kant. Rev. Filos. Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 265-285, jan./jun. 2012., p. 278).

E, assim, pode-se afirmar que, além de direitos sociais e econômicos, as pessoas teriam um dever de beneficência e de ajudar a fomentar o bem-estar dos outros, quais sejam, alcançar os direitos e a felicidade a partir da garantia de condições básicas de sobrevivência.

Um balanço entre Singer e O’Neill

Depois de apresentar as posições de Singer e O’Neill em relação ao alívio da fome e ao tratamento da pobreza, é possível estabelecer alguns comentários advindos destas duas teorias.

Em relação a Singer, é notável, por um lado, o esforço do autor em fundamentar uma ajuda aos pobres absolutos a partir de seu argumento utilitarista da ajuda: “se podemos evitar algo ruim sem sacrificar nada de significância moral comparável, nós estamos obrigados a fazê-lo” (SINGER, 2011SINGER, P. Practical Ethics. 3. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2011., p. 200, tradução nossa). Por outro lado, na medida em que o altruísmo eficaz implica deveres positivos e não é suprarrogatório, é necessário considerar que poderia exigir demais dos agentes morais. Uma vez que os agentes doassem o possível para que não lhes faltasse nada moralmente comparável, poderia levá-los, eles mesmos, a uma condição de pobreza. Além disso, como aponta O’Neill: “assim que cada miséria for subjugada, haverá outra aguardando pela administração de alguém” (O’NEILL, 2010O’NEILL, O. As perplexidades morais do alívio da fome. In: BAKER, A.; BONJOUR, L. Filosofia: textos fundamentais comentados. 2. edição. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 442-455., p. 447).

Entretanto, numa situação hipotética em que a maioria das pessoas do mundo que vivesse uma vida sem grandes luxos, como pessoas de classe média, decidissem doar o que lhes fosse possível para o estabelecimento de maior qualidade de vida nos países pobres, enquanto os bilionários do mundo não doassem nada, qual seria a situação da distribuição de riqueza no mundo, que já é desigual? A maioria das pessoas viveria de forma modesta enquanto uma pequena parte deteria grandes quantias? Não poderia esta situação contribuir para o aumento do poder de decisão dos super ricos sobre os não ricos?

Neste sentido, considerando que mesmo com o argumento contundente de Singer, existem pessoas ricas que sequer doam quaisquer valores, seria possível questionar qual o valor de uma lei moral. Dado que a partir de Singer se considera dever moral ajudar os pobres, e quem não doa estaria deixando de atuar de acordo com a moralidade, qual o resultado prático de este dever não ser cumprido pelas pessoas ricas, por exemplo? O julgamento alheio? Nem sempre é o caso que esta possibilidade de pena surta efeitos, pois compreende-se que racionalidades baseadas na aporofobia12 12Aporofobia é um termo desenvolvido pela filósofa espanhola Adela Cortina e significa, sucintamente, aversão ao pobre (CORTINA, 2020). para as quais, por vezes, a pobreza pode inclusive ser passível de criminalização - não exercerão qualquer julgamento moral sobre si mesmas ou os que não doam. Poderiam inclusive interpretar a garantia de direitos humanos básicos como assuntos triviais e desconectados da esfera individual.

Nesta direção, retornamos a O’Neill (2005)O’NEILL, O. The dark side of human rights. International Affairs, v. 81, n. 2, p. 427-439, 2005.. A simples afirmação de um direito pode gerar incertezas sobre sua efetivação e não garante que todas as pessoas os tenham assegurados. Estabelecer obrigações e delimitar os sujeitos das obrigações correspondentes aos direitos é uma alternativa para que tais direitos sejam cumpridos no cotidiano dos cidadãos, e não apenas afirmados em constituições e declarações. Como vimos, os argumentos de O’Neill auxiliam a afirmar a necessidade de um dever positivo de ajudar aos pobres, tal como Singer, ou mesmo Pogge, mas, diferente de Singer, O’Neill parece exigir algo a mais do que o simples dever moral de ajuda, sendo a ajuda, antes, um dever de justiça.

Como vimos, a defesa de O’Neill de nossa obrigação para com os pobres do mundo não se baseia apenas13 13 Ela defende ao menos um dever negativo de não coagir os necessitados. em deveres negativos de não produzir a pobreza, mas também em uma obrigação positiva de ajudá-los. De acordo com a autora, a defesa de deveres negativos para com os pobres se limitaria a impedir o agravamento da pobreza ou evitar causar danos aos outros. Além disso, poderia nos permitir ignorar ou piorar a pobreza que não foi causada por nós. Ao formular os deveres a partir da teoria de Kant, O’Neill os considera em termos de princípios universais, a saber, princípios que todos nós poderíamos racionalmente adotar. Com isso, ela afirma que estamos positivamente obrigados a garantir que todos tenham o suficiente para comer e não apenas que devemos evitar prejudicá-los.

Neste sentido, é necessário refletir sobre as responsabilidades dos afluentes, pois a dinâmica das sociedades capitalistas contemporâneas, baseadas na dualidade produção-consumo, não necessariamente forma sujeitos emancipados e autônomos que estão em posição de reivindicar seus direitos14 14 Não apenas para reivindicarem seus direitos, mas para agir de forma crítica em relação à sociedade. Esta temática será objeto de investigação da Teoria Crítica, surgida após a humanidade testemunhar o horror que pode advir de uma sociedade que possui dificuldades em reconhecer e analisar a si mesma. . Neste sentido, é necessário reconhecer os esforços de O’Neill em considerar a posição em que as pessoas pobres se encontram para, assim, não as tornar as únicas responsáveis pelas dinâmicas de alívio da pobreza.

Também neste sentido, abordando a questão sob uma ótica contextualista da pobreza, considerando que parte da riqueza de inúmeros países desenvolvidos advém da exploração passada de países hoje pobres, cujos habitantes descendem de famílias que viveram sob a dominação estrangeira, qual a responsabilidade histórica dos países que exploraram? Eles não deveriam, a nível governamental, esforçarem-se tal qual ou mais do que os cidadãos no plano individual para garantirem condições dignas de sobrevivência aos cidadãos dos países que tanto exploraram? Não se trata de responsabilizar unicamente os governos, mas considerar que os cidadãos que vivem nos países desenvolvidos nem sempre possuem condições de atuarem na esfera individual e gerarem o mesmo impacto positivo do que a atuação governamental na restituição de parte das riquezas tomadas de outros países. Neste sentido, compreende-se que a questão da ajuda também não poderia resumir-se a mera transferência de dinheiro para os países pobres, mas deveria contar com um esforço compreensivo na busca pelas origens da pobreza local.

Seria possível questionar também o modo como Singer parece ignorar as responsabilidades dos Estados para com seus cidadãos. É compreensível que em países em situação de pobreza absoluta o Estado não terá grandes meios de prover auxílios à população. Mas o que se poderia dizer sobre países desenvolvidos em que existem pessoas em situação de pobreza relativa (que ainda é pobreza)? Deveriam essas pessoas contarem apenas com a caridade privada? O que é necessário enfatizar aqui é que ignorar a responsabilidade institucional na promoção da sobrevivência significa relegar ao plano privado as responsabilidades pela ajuda aos pobres, demonstrando, além de demasiada confiança na caridade privada15 15 E esta situação não seria inédita. Milton Friedman (1912 - 2006) apostava no Estado como simples garantidor dos contratos e da propriedade, considerando que qualquer ajuda às classes desfavorecidas deveria vir da inclinação individual dos cidadãos. O papel de políticas de distribuição de renda ou auxílio seria, portanto, ignorado. , uma interpretação da pobreza como responsabilidade individual e não como um fenômeno coletivo e desafio a ser gerido pelos governos. Como Singer parece abordar sobretudo a pobreza absoluta, nossa crítica pode, inclusive, não ser adequada às proposições do autor em relação ao alívio da fome, embora sejam questionamentos pertinentes a qualquer teoria da ajuda.

De todo modo, é necessário admitir que, em relação à O’Neill, a proposta de Singer parece ter mais facilidade em encontrar praticantes, o que poderia demonstrar maior eficiência prática de uma teoria sobre a outra. Este fator torna-se mais relevante ainda se considerarmos que no momento em que escrevemos e lemos, pessoas estão sofrendo pela fome e pela pobreza. Se o método de avaliação é analisar qual das duas teorias pode ter mais sucesso na prática, parece que as propostas de Singer podem apresentar maior aderência, não apenas pelos diversos meios pelos quais o altruísmo eficaz pode ser praticado, mas também pelo maior escopo do utilitarismo em relação à ética kantiana, fator afirmado pela própria O’Neill.

Considerações finais

A partir do apresentado, considerando-se o papel teórico-conceitual da filosofia, se faz necessária e urgente a atenção a uma ética direcionada à pobreza, que considere aspectos práticos da resolução ou tratamento da pobreza e da fome. Além disso, que esteja comprometida com uma compreensão da pobreza a partir de suas causas. Seguindo uma abordagem contextualista, elas podem ser várias: desde razões históricas a razões geográficas. Pode ser o caso que tamanha tarefa não esteja no escopo da filosofia, o que demonstra a necessidade de interlocução com outras áreas do conhecimento, para que nossas compreensões acerca do fenômeno da pobreza e suas implicações morais possam auxiliar na construção de políticas públicas e, quiçá, novos paradigmas morais em relação à ajuda aos pobres.

O que é certo, de todo modo, é que nas sociedades contemporâneas, marcadas pela rapidez da produção e do consumo e, consequentemente, do desperdício, a desigualdade de modos de vida parece ser cada vez mais acentuada entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, ou entre pessoas pobres e ricas. Se comprar uma calça é cada vez mais acessível para as pessoas em riqueza relativa, seja unicamente pelas condições financeiras ou pela grande oferta, essa acessibilidade não atinge as pessoas em pobreza absoluta, que continuam buscando sobretudo meios para a própria sobrevivência. Por um lado, portanto, encontra-se o problema do consumo exagerado e rápido, que nem sempre acompanha as capacidades regenerativas do planeta Terra. Por outro lado, entretanto, encontra-se o problema da ausência de condições de sobrevivência. Esta desigualdade de consumo poderia, inclusive, ser um dos meios pelos quais se questionaria as responsabilidades dos países desenvolvidos e dos subdesenvolvidos na exploração dos recursos naturais em favor da produção de bens de consumo.

O enfoque deste artigo, entretanto, restringia-se às contribuições éticas em relação ao alívio da pobreza e da fome, a partir de duas concepções que há séculos esforçam-se em compreender as mais variadas temáticas e formas de conduta: o utilitarismo e a ética kantiana. A partir do demonstrado, reforçamos a necessidade e urgência de uma ética para a pobreza articulada com demais áreas do conhecimento, uma das possíveis, dentre as inúmeras, contribuições da filosofia na compreensão da realidade que nos cerca e por vezes incomoda.

  • 1 A medida indicada pelo estudo (NERI, 2021NERI, M. Desigualdade de Impactos Trabalhistas na Pandemia. Rio de Janeiro: FGV Social, 2021. Disponível em: https://cps.fgv.br/DesigualdadePandemia. Acesso em: 06 dez. 2021.
    https://cps.fgv.br/DesigualdadePandemia...
    ) estabelece o valor de cerca de 261 reais por pessoa, ou um salário-mínimo por família, considerando-se as famílias pobres com cerca de 4,6 pessoas. Famílias que viveriam abaixo deste valor seriam, portanto, consideradas pobres. Nesta direção, um dos níveis mais utilizados para medir o nível de pobreza de um país é o estabelecido pelo Banco Mundial, que adota o valor de 1,90 dólares por dia por pessoa para medir a pobreza a nível internacional. Para níveis nacionais, existe a proposição de que em países de renda média-baixa a medida pode ser de 3,20 dólares e países de renda média-alta 5,50 dólares. Para aprofundamentos, consultar: Jolliffe e Prydz, 2016JOLLIFFE, Dean; PRYDZ, Espen Beer. Estimating International Poverty Lines from Comparable National Thresholds. Policy Research Working Paper, n. 7606. Washington: World Bank, 2016..
  • 2 O estudo abordou 4 classificações: segurança alimentar; insegurança alimentar leve; insegurança alimentar moderada; insegurança alimentar grave. A classificação das famílias nestes parâmetros esteve condicionada a respostas diretas (sim ou não) oferecidas a oito perguntas sobre a situação alimentar da família nos três meses que antecederam a entrevista. As oito perguntas advêm da EBIA (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar) (REDE PENSAN, 2021REDE PENSSAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. 2021.).
  • 3 Esta divisão, embora auxilie numa classificação conceitual da pobreza, a nível prático parece não conseguir demonstrar uma diferença que justifique a relativização dos prejuízos causados pela pobreza relativa, visto que uma pessoa que mora no Brasil, recebe seu salário e o gasta em reais, não em pesos argentinos. De tal modo que não parece haver diferença prática se um brasileiro tem mais ou menos dinheiro que um argentino se toda sua vivência se dá no Brasil e não na Argentina. Poderíamos inclusive argumentar que esta divisão poderia gerar uma relativização da pobreza em países desenvolvidos ou emergentes, uma vez que poderia propor o argumento de que existem pessoas em situações piores em outros países e, deste modo, a pessoa pobre no país desenvolvido ou emergente não seria tão pobre assim. Se uma pessoa vive no Brasil e passa fome, não parece existir alguma relevância prática no fato de que ela conseguiria comprar alimentos em algum outro país.
  • 4 Embora existam direitos humanos legais e morais, Pogge (2007)POGGE, T. W. (org.). Freedom from Poverty as a Human Right: Who Owes What to the Very Poor? New York: Oxford University Press, 2007. defende que a pobreza é uma violação dos direitos humanos morais. Enquanto os direitos humanos legais dependem dos sistemas judiciários para serem legitimados, um direito humano moral não necessita da legitimação governamental, embora possam tornar-se legítimos perante a lei.
  • 5 As consequências de aceitarmos que trabalhar para o mercado financeiro e doar é melhor do que buscar outro modo de diminuição da pobreza, podem ser evidenciadas caso levemos este tipo de argumento ao seu extremo. Logo concluiremos que os fins podem justificar os meios.
  • 6 É necessário comentar que este posicionamento de Hardin remonta um malthusianismo social na medida em que os dois parecem convergir na proposição de que se as pessoas não possuem condições básicas de sobrevivência, não se reproduzirão e, consequentemente, existirão menos pessoas pobres. Aqui, parece visível a preferência à aniquilação do pobre em vez da ajuda à sobrevivência e do incentivo da promoção, por exemplo, de políticas públicas direcionadas a informações sobre a contracepção. Ignorar esta possível dimensão do papel dos governos parece também um recurso à individualização da miséria, direcionando a responsabilidade pela reprodução da pobreza apenas ao nível individual.
  • 7 Este argumento parece convergir, inclusive, com a resposta de Singer à proposta da triagem.
  • 8 Em contraposição ao imperativo hipotético, que considera uma ação necessária se for meio para um fim desejado.
  • 9 Aqui é necessário destacar a diferença entre usar alguém como meio e mero meio. Usar alguém como meio é por vezes necessário e não consiste num ato imoral caso a pessoa consinta. O problema encontra-se em usar alguém como mero meio.
  • 10 Lembremos que O’Neill critica a passividade em que a noção de “direitos” coloca as pessoas pobres. Ela propõe, portanto, encarar a beneficência e a justiça, noções kantianas, como sendo deveres.
  • 11 Deveres perfeitos, na filosofia kantiana, seriam aqueles em que o agente da ação moral está diretamente ligado ao recebedor da ação (especificado ou não). Um exemplo seria a obrigação de não matar. Os deveres imperfeitos são aqueles em que a ação que deve ser realizada não se destina a algum recebedor definido, por exemplo respeitar as outras pessoas. Os deveres perfeitos e imperfeitos são também divididos em especiais e universais. De todo modo: “O que motiva obrigações perfeitas é o direito dos outros; por outro lado, o que motiva o cumprimento de obrigações imperfeitas é a existência de virtudes” (DIETERLEN, 2005DIETERLEN, P. Poverty: a philosophical approach. Amsterdam/New York: Rodopi, 2005., p. 98, tradução nossa).
  • 12Aporofobia é um termo desenvolvido pela filósofa espanhola Adela Cortina e significa, sucintamente, aversão ao pobre (CORTINA, 2020CORTINA, A. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.).
  • 13 Ela defende ao menos um dever negativo de não coagir os necessitados.
  • 14 Não apenas para reivindicarem seus direitos, mas para agir de forma crítica em relação à sociedade. Esta temática será objeto de investigação da Teoria Crítica, surgida após a humanidade testemunhar o horror que pode advir de uma sociedade que possui dificuldades em reconhecer e analisar a si mesma.
  • 15 E esta situação não seria inédita. Milton Friedman (1912 - 2006) apostava no Estado como simples garantidor dos contratos e da propriedade, considerando que qualquer ajuda às classes desfavorecidas deveria vir da inclinação individual dos cidadãos. O papel de políticas de distribuição de renda ou auxílio seria, portanto, ignorado.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2022
  • Aceito
    05 Maio 2022
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