Acessibilidade / Reportar erro

Melhoramento humano, áreas negligenciadas, soluções para problemas reais e diversidade temática: uma entrevista com Allen Buchanan1 1 Como agradecimento, informamos que Murilo Mariano Vilaça é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Número da Subvenção: 201.377/2021.

Human enhancement, neglect areas, solutions to real problems, and thematic diversity: an interview with Allen Buchanan

Mejora humana, zonas desatendidas, soluciones a problemas reales y diversidad temática: entrevista con Allen Buchanan

Resumo

Nesta entrevista, o filósofo Allen Buchanan discute sua entrada no tema do melhoramento humano e sua frustração com os pontos de vista demasiado simplistas defendidos por Michael Sandel, Leon Kass e outros. Buchanan também relata o seu envolvimento em comissões de bioética, a sua convicção de que certas visões conservadoras da natureza humana precisam ser combatidas, bem como as possibilidades em torno de um Instituto Global para Justiça e Inovação, definindo-se, ao final, após reiterar a importância da filosofia aplicada, como um pensador inquieto e nômade em relação aos problemas reais do mundo contemporâneo.

Palavras-chave:
Melhoramento humano; Melhoramento moral; Problemas reais; Áreas negligenciadas

Abstract

In this interview, philosopher Allen Buchanan discusses his entry into the topic of human enhancement and his frustration with the overly simplistic views espoused by Michael Sandel, Leon Kass, and others. Buchanan also recounts his involvement in bioethics commissions, his conviction that certain conservative views of human nature need to be resisted, and the possibilities surrounding a Global Institute for Justice and Innovation, ultimately defining himself, after reiterating the importance of applied philosophy, as a restless and nomadic thinker in relation to the real problems of the contemporary world.

Keywords:
Human enhancement; Moral enhancement; Real problems; Neglected areas

Resumen

En esta entrevista, el filósofo Allen Buchanan habla de su entrada en el tema de la mejora humana y de su frustración ante los puntos de vista excesivamente simplistas defendidos por Michael Sandel, Leon Kass y otros. Buchanan también relata su participación en comisiones de bioética, su convicción de que hay que resistirse a ciertas visiones conservadoras de la naturaleza humana, y las posibilidades en torno a un Instituto Global para la Justicia y la Innovación, definiéndose en última instancia, tras reiterar la importancia de la filosofía aplicada, como un pensador inquieto y nómada en relación con los problemas reales del mundo contemporáneo.

Palabras clave:
Mejora humana; Mejora moral; Problemas reales; Áreas olvidadas

Introdução

Allen E. Buchanan é um importante filósofo estadunidense. Ele obteve seu doutorado em 1975, pela University of North Carolina at Chapel Hill. Atuou como filósofo da President’s Commission on Medical Ethics (1983) e no Advisory Council for the National Human Genome Research Institute (1996-2000). É Honorary Fellow do internacionalmente renomado The Oxford Uehiro Centre for Practical Ethics (University of Oxford). Foi professor em diversas universidades norte-americanas. É James B. Duke Distinguished Professor Emeritus of Philosophy, Professor Emeritus of Philosophy e Affiliate of the Duke Initiative for Science & Society (Trinity College of Arts & Sciences, Duke University). Atualmente, é Laureate Professor of Philosophy da The University of Arizona. Ao longo da sua carreira extremamente produtiva, recebeu vários prêmios e financiamentos de pesquisa de renomadas instituições, tanto norte-americanas quanto de outros países.

Allen é autor/coautor de mais vinte livros e de dezenas de artigos publicados em vários importantes periódicos internacionais. Ainda que não revele toda a influência do seu pensamento, o expressivo número de citações aos seus trabalhos1 1 Numa busca simples no Google Scholar, Allen recebeu, até agora, cerca de 25 mil citações. é digno de nota. Recobrindo uma incrível variedade de temas2 2 Focalizando apenas seus livros, ele abordou temas como marxismo e justiça; ética em medicina de emergência (Emergency Medicine); ética, eficiência e mercado; tomada de decisão pelo outro / tomada de decisão substituta (Surrogate Decision Making); secessão; conflito de interesses na prática e na pesquisa clínicas; genética e justiça; direitos liberais, direitos humanos, direito internacional; justiça e assistência à saúde; progresso moral; melhoramento humano; guerra justa, entre outros. , suas abordagens o tornaram uma referência mundial em ética e filosofia aplicadas.

Esse é só um incompleto, quase singelo, resumo do impressionante currículo do nosso entrevistado. Mas já nos parece suficiente para afirmar que Allen é, sem dúvida, um pensador fundamental do nosso tempo, de modo que a entrevista concedida por ele, que compartilhamos com o público, é, para nós, uma preciosa oportunidade de acessar parte da magnitude da sua relevância.

Ainda a título introdutório e, também, de contextualização da entrevista, nosso contato inicial com Allen ocorreu pela via academicamente mais tradicional: leitura dos seus textos. Mais especificamente, seus artigos e livros sobre o tema do melhoramento humano ou tópicos relacionados a ele foram lidos com grande interesse, tornando-se referências para as nossas pesquisas.

Conforme ficará claro na entrevista transcrita a seguir, Allen destoa da tendência que predominou no debate sobre o tema e que prejudicou seu avanço. Posicionamentos polarizados/radicais - expressos por retóricas frequentemente marcadas por alegações exacerbadas e, no limite, falaciosas - emperraram parcialmente o debate num estágio de oposição binária de tipo ‘pró versus contra’, que restringiu o espaço disponível para análises mais ponderadas. Assim, ferozes ataques ao melhoramento humano (e aos transumanistas, tidos incorretamente como intransigentes defensores dele) e defesas açodadas retroalimentam-se, instigaram-se mutuamente.

Em meio a esse contexto problemático, Allen trouxe contribuições inestimáveis, identificando problemas e distorções fundamentais, esclarecendo aspectos que estavam mal compreendidos, oferecendo saídas plausíveis a alguns impasses, ajudando, portanto, a desembaraçar um emaranhado de afirmações, projeções, medos e promessas impermeáveis entre si. Nesse sentido, dois livros publicados em 2011 parecem ter sido determinantes, como que estabelecendo uma espécie de divisor d’águas: Beyond Humanity? The Ethics of Biomedical Enhancement e Better Than Human. The Promise and Perils of Enhancing Ourselves, ambos pela renomada editora Oxford University Press.

O valor acadêmico das contribuições de Allen nesses livros despertaram nosso interesse em ampliar o contato com ele. Intermediados pela Prof.ª Dra. Maria Clara Dias (UFRJ), a quem agradecemos publicamente, iniciou-se uma conversa que, dentre outros frutos, gerou a entrevista que transcrevemos na próxima seção. Num esforço de oferecer o conjunto mais completo de informações aos/às leitores/as, complementaremos os pontos abordados na entrevista com uma série de notas de rodapé.

Encerrando a introdução à entrevista com Allen e concluindo sua contextualização, esta é a terceira de uma série de entrevistas realizadas pelo Grupo de Investigações Filosóficas sobre Transumanismo e Biomelhoramento Humano - GIFT-H+ (Fiocruz/CNPq) com expoentes do debate sobre o tema do melhoramento humano e tópicos afins a ele.

A primeira entrevista foi realizada com o Dr. Anders Sandberg3 3 VILAÇA, M. M.; KARASINSKI, M. On Human Enhancement, Optimism, Risk, Existential Risk, and How to Manage and Regulate It: An Interview with Anders Sandberg. Filosofia Unisinos, v. 24, n. 1, p. 1-10, 2023. , renomado transumanista, signatário da The Transhumanist Declaration, membro da Humanity Plus (maior associação transumanista do mundo), pesquisador do Future of Humanity Institute da University of Oxford.

A segunda entrevista foi realizada com o Dr. John Danaher4 4 VILAÇA, M. M.; KARASINSKI, M. Interview with John Danaher on Axiological Futurism: In Pursuit of a Better Understanding of the Relationship Between New Technologies, Risks, and Ethics Considering Value Changes. Trans/Form/Ação, in press. , proeminente pesquisador da National University of Ireland - NUI Galway, que tem se notabilizado pela publicação de uma série de artigos sobre tópicos afeitos ao grande tema do futuro da humanidade e, sobretudo, pela proposta de criação de um novo campo de estudos, que ele denomina de Axiological Futurism. Além de publicações em periódicos internacionalmente renomados, Danaher tem promovido/participado do debate por meio do seu blog5 5 Disponível em: https://philosophicaldisquisitions.blogspot.com/ , de podcasts6 6 Disponível em: https://philosophicaldisquisitions.blogspot.com/p/podcast.html e de palestras em eventos no formato TED.

Enfim, feita a introdução e contextualização da entrevista, passemos a ela. Esperamos que sua leitura seja produtiva tanto quanto foi para nós fazê-la.

Entrevista

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: Prof. Allen Buchanan, inicialmente, gostaríamos de agradecer a você por toda a generosidade de conceder esta entrevista. Suas publicações sobre o tema do melhoramento humano têm sido muitíssimas bem recebidas no Brasil. Não podemos falar por todos os brasileiros, mas, nos grupos em que temos circulado, há um entendimento compartilhado de que as suas publicações representam, talvez, um ‘ponto fora da curva’ num debate tão polarizado. Você identificou e abordou isso muito precisamente em algumas das suas publicações7 7 Nesse sentido, indicamos especialmente o capítulo 1 (The Landscape of the Enhancement Debate) do livro Beyond Humanity? (Beyond Humanity? The Ethics of Biomedical Enhancement. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 1-34). , que, aliás, são muito ponderadas. Elas representam, para nós, um significativo avanço para o debate. Então, gostaríamos de iniciar nossa entrevista falando sobre isso.

E não são somente suas publicações sobre melhoramento humano que nos interessam, mas também sobre outros tantos temas que têm sido abordados por você ao longo da sua carreira acadêmica, as quais têm sido muito influentes no Brasil. Antes de começar a entrevista, uma busca rápida no Google Acadêmico revelou uma quantidade significativa de trabalhos publicados no Brasil, sobre diversos temas, que citam as suas obras. Isso explica a expectativa pelas suas conferências de novembro8 8 1stInternational Symposium on Applied Philosophy (ISoAP): Allen Buchanan’s Lectures, que ocorreu entre 14 e 18 de novembro de 2022, com organização do Grupo de Investigações Filosóficas sobre Transumanismo e Biomelhoramento Humano - GIFT-H+ (Fiocruz/ENSP/CNPq) e do GT Teorias da Justiça da ANPOF, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), via bolsa JOVEM CIENTISTA DO NOSSO ESTADO. . Nos ambientes em que o evento tem sido divulgado, é bem interessante ver a reação das pessoas de “uau, Buchanan vai estar com a gente debatendo sobre os temas que ele estuda”. Essa expectativa do público brasileiro reforça isso que eu acabei de dizer sobre a recepção das suas publicações. Então, muitíssimo obrigado. Nós não sabemos se você gostaria de comentar alguma coisa antes de fazermos a primeira pergunta. Sinta-se à vontade. Caso não queira, podemos fazer a primeira pergunta, que já está compartilhada no chat.

Allen Buchanan: OK!

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: Para iniciar essa entrevista, Allen, gostaríamos de pedi-lo para recuperar como ocorreu a sua entrada no tema do melhoramento humano. Não sabemos se o seu livro em coautoria com os professores Brock, Daniels e Wilker, From Chance to Choice: Genetics and Justice9 9 Publicado no ano 2000, como resultado da colaboração entre Allen Buchanan, Dan W. Brock, Norman Daniels e Daniel Wikler, o livro From Chance to Choice: Genetics and Justice, publicado pela Cambridge University Press, foi uma das primeiras obras a tratar de forma sistemática as questões éticas fundamentais subjacentes à aplicação das tecnologias genéticas aos seres humanos. Os autores perguntaram como tais tecnologias poderiam afetar nossa compreensão da justiça distributiva, igualdade de oportunidades, os direitos e obrigações como pais, o significado da deficiência e o papel do conceito de natureza humana na teoria e na prática ética. Além disso, os apêndices buscaram explicar a natureza da causa genética, a interação gene-ambiente e os conceitos errôneos generalizados do determinismo genético. , foi a sua primeira publicação sobre o assunto. Mas como, sem dúvida, ela é uma obra seminal do debate contemporâneo sobre tecnologias que podem ser aplicadas ao melhoramento humano, talvez sirva como uma espécie de eixo para rememorar como surgiu o seu interesse pelo tema e sua inserção formal no debate. Mas sinta-se à vontade para fazer o recorte que você achar mais adequado.

Allen Buchanan: Obrigado. Bem, eu acho que a sugestão está correta. Foi trabalhando nesse livro, From Chance to Choice, que surgiu meu interesse pelo melhoramento humano. Ele não é exatamente o principal tema do livro, mas acaba surgindo nele. Reconheço que o que dissemos nele estava inadequado, foi um início, pois muito mais precisava ser dito. Comecei a ler alguns dos trabalhos contemporâneos a respeito de melhoramento humano, principalmente do Michael Sandel10 10 Buchanan não indicou um texto específico. Além disso, no livro From Chance to Choice, Sandel não é citado. Assim, não foi possível identificar a que trabalho(s) ele se referia. De todo modo, Sandel é um autor enquadrado como bioconservador ou, nos termos propostos por Buchanan no livro Beyond Humanity?, um pensador que assume uma posição antimelhoramento. A perspectiva antimelhoramento/bioconservadora de Sandel é apresentada, em detalhes, no livro publicado originalmente em 2007, intitulado The Case Against Perfection: Ethics in the Age of Genetic Engineering. Há tradução do livro em português: Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. Para uma abordagem crítica dos argumentos de Sandel, ver VILAÇA, M. M. Contra a perfeição, o melhoramento humano ou pela dádiva? Uma análise dos argumentos de Michael Sandel sobre a engenharia genética. Síntese: Revista de Filosofia, v. 48, n. 152, p. 779-805, set./dez. 2021. , e eu tenho que dizer, para ser franco, que fiquei com uma certa raiva do trabalho que estava sendo feito, porque estava super simplificado, só com um ponto de vista. E, aí, o Presidente Bush criou um Conselho de Bioética11 11 The President’s Council on Bioethics foi criado em 2001, durante o primeiro governo de George W. Bush. Além de Michael Sandel, outros dois destacados pensadores bioconservadores/antimelhoramento compunham o conselho, a saber, Francis Fukuyama e Leon Kass. Kass foi o primeiro presidente do conselho, exercendo o cargo entre 2001 e 2005. Informações disponíveis em: https://bioethicsarchive.georgetown.edu/pcbe/. , que acabou começando a falar sobre o tema também. O Leon Kass e o Michael Sandel tinham visões muito conservadoras. Visões que estavam enraizadas em uma certa teologia medieval, segundo a qual a natureza é boa, de modo que o melhoramento humano seria algo antinatural. Para mim, isso era muito retrógrado e eu achei importante tentar combater esse entendimento. Na época, eu estava nessas comissões de bioética. Para mim, o Conselho de Bioética instituído pelo Bush era uma combinação estranha de pretensões. Tinha uma profundidade filosófica incrível, de um lado, e, do outro, uma análise muito superficial. Então, eu fiquei estimulado a responder a isso, devido a uma certa indignação, eu diria.

Murilo Vilaça: Sua franqueza é elogiável e, particularmente, compartilho dessa sensação. Quando li alguns dos relatórios produzidos pelo Conselho de Bioética criado pelo George Bush, mas, sobretudo, as alegações antimelhoramento do Sandel, do Francis Fukuyama12 12 FUKUYAMA, F. Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2002. Há tradução do livro em português: Nosso futuro pós-humano: consequências da revolução biotecnológica. Rio de Janeiro: Rocco, 2003 e do Jürgen Habermas13 13 HABERMAS, J. Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einerliberalen Eugenik? Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2001. Há tradução do livro em português: O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes, 2004. , fiquei negativamente impactado com a qualidade das críticas apresentadas, o que gerou um certo sentimento de indignação com o modo, falacioso até mesmo, como abordavam o tema. Embora exista uma diferença significativa entre a argumentação desenvolvida por eles14 14 Para uma síntese das diferenças entre os autores, ver Vilaça (2021). , há o compartilhamento de uma concepção pré-científica, de uma ideia, como você disse, medieval de natureza humana, que me parece representar bastante, talvez, uma certa tentativa de proteção de algo fixo, que seria a natureza humana, e a partir do qual nós poderíamos derivar as coisas mais preciosas que deveríamos sustentar ao longo do tempo. Então, esse seu diagnóstico me parece muitíssimo pertinente.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: A partir daí, podemos seguir para a segunda questão, que diz respeito justamente aos pontos problemáticos do debate apontados por você no primeiro capítulo do seu livro Beyond Humanity? (BUCHANAN, 2011BUCHANAN, A. The Landscape of the Enhancement Debate. In: Beyond Humanity? Beyond Humanity? The Ethics of Biomedical Enhancement. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 1-34.), livro que seria ‘leitura obrigatória’ para quem se interessa pelo tema. Embora, obviamente, a leitura de todo livro seja indicada, a leitura do primeiro capítulo já serve como uma espécie de bússola para quem vai entrar nesse debate. Falamos isso inclusive a partir da experiência de um grupo de estudos que foi formado numa parceria entre o Grupo de Investigações sobre Transumanismo e Biomelhoramento Humano - GIFT-H+ e os coordenadores15 15 Professores Doutores Charles Feldhaus (Universidade Estadual de Londrina) e Julia Sichieri Moura (UFPR). do GT Teorias da Justiça da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). No grupo de estudos, abordamos alguns capítulos de três livros seus (From Chance to Choice, Beyond Humanity? e Better Than Human)16 16 From Chance to Choice. Genetics and Justice (2000), Beyond Humanity? The Ethics of Biomedical Enhancement (2011) e Better Than Human. The Promise and Perils of Enhancing Ourselves (2011). . E foi bem interessante ver a reação das pessoas ao mapeamento que você fez dos problemas do debate. Aí vem a pergunta: na sua opinião, os cinco pontos frustrantes17 17 No livro Beyond Humanity?, Buchanan lista cinco itens que tornariam frustrante o debate sobre melhoramento biomédico: 1) Retórica obscura mascarada de argumento: no âmbito da literatura da Ética Prática, o melhoramento seria o local em que escritores acadêmicos continuariam a empregar ‘frases de efeito’ e slogans, geralmente ambíguos, sem se dar ao trabalho de traduzi-los em argumentos sólidos; 2) Ignorância da biologia evolucionária: o debate sobre a natureza humana se reduziria à dicotomia simplista entre nature e nurture, desconsiderando as relações complexas entre genes e ambiente, ou entre genótipo e fenótipo, além de menosprezar as recentes descobertas de campos como neurociência, antropologia, psicologia, genômica e ética; 3) Utilização de reivindicações empíricas abrangentes, sem provas: de um ponto de vista metodológico, a discussão sobre o melhoramento contemplaria perspectivas ingênuas e que não perceberiam a falta de evidências empíricas em suas afirmações, reproduzindo, por exemplo perspectivas do século XVIII, quando se acreditava que seria possível fazer generalizações teóricas e controversas do comportamento humano ou do funcionamento da sociedade; 4) Falta de clareza: não seria possível sequer entender quais argumentos estariam sendo defendidos ou criticados, no âmbito do melhoramento, incorrendo os principais autores antimelhoramento na chamada “falácia do espantalho”, especialmente quando estes alegam que o melhoramento implicaria os ‘problemas’ da total maestria da vida, perfeição humana e imortalidade; 5) Debate ‘emperrado’ no estágio polarizado pró versus contra: enquadramento problemático do debate, segundo o qual somente seria possível ser ou totalmente a favor ou absolutamente contra o melhoramento, de modo que a tarefa de compreensão profunda do fenômeno, em toda sua complexidade, resistindo à tentação de condená-lo ou louvá-lo, seria cada vez mais difícil, posto que a discussão em torno dele estaria marcado por posições mutuamente excludentes. foram superados ao longo do tempo? Ou eles permanecem ou, até mesmo, agravaram-se? Qual é a sua percepção? Sabemos que essa resposta pode variar muito de contexto para contexto, mas a partir do contexto que você tem frequentado, vamos dizer assim, qual é a sua percepção sobre o avanço do debate?

Allen Buchanan: Essa é uma ótima pergunta. Não tenho muita certeza de como vou respondê-la, mas tenho a sensação de que alguns desses pontos frustrantes já não estão presentes no debate. Por exemplo, o Leon Kass e o Michal Sandel pararam de escrever sobre o tema. O Fukuyama também. Esses eram os principais alvos da minha frustração. Acho que outros, como Erik Parens, que eu também critico [no livro Beyond Humanity?18 18 Bioeticista, Senior Research Scholar at The Hastings Center e Director of the Center's Initiative in Bioethics and the Humanities. No livro, Buchanan menciona Erik Parens em três momentos: no primeiro, assemelha-o a Sandel, afirmando que ambos criticam o melhoramento humano, em razão de acreditarem que há bens insubstituíveis (irreplaceable goods) que dependem de possuirmos certas limitações, bens que estariam em risco porque o melhoramento removeria tais limitações; no segundo, assemelha-o a Kass e Fukuyama, pois os três estariam preocupados com a criação de seres com status moral mais elevado (os seres melhorados seriam superiores aos não-melhorados); no terceiro, Buchanan o associa a Fukuyama e Annas, que compartilhariam a previsão ansiosa e errada, nos termos de Buchanan, de que o melhoramento tornaria o conceito de direitos humanos obsoleto. ], também passou a abordar outros temas. É meio estranho. Não tenho muita certeza para onde está indo o tema, o tópico atualmente. Acho que a invenção da tecnologia CRISPR, essa nova tecnologia de edição de genes, fez ressurgir o interesse, devido à possibilidade de ter uma bioengenharia feita com seres humanos e com os embriões. Mas aí, não muito tempo depois disso, depois dessa nova tecnologia, a gente teve a COVID, a pandemia, e muita energia na bioética, muito atenção das pessoas na bioética foram direcionadas para as questões éticas em relação à COVID. Então, eu não fiz uma pesquisa sistemática nos periódicos de bioética recentemente para determinar como esse tema do melhoramento tem sido abordado. Mas o que eu acho interessante é que as pessoas acabam não indo para a questão liberal [no sentido de pró-melhoramento] versus conversador. Muitos conservadores, previsivelmente, estão receosos em relação ao melhoramento, mas também há pessoas da parte liberal que se preocupam bastante com isso. Então, uma fonte de preocupação - uma das questões que eu acho que ainda importa - é que se poderosas tecnologias de melhoramento se tornarem disponíveis, elas vão simplesmente reforçar as desigualdades que já existem. Eles acham que as pessoas que são ricas e poderosas vão ser capazes de utilizar essas tecnologias e aumentar as suas vantagens em relação a outras pessoas. Eu acho que essa é uma preocupação séria, mas eu acho que tudo depende de como o Estado responde a essas tecnologias. Se o Estado pensar em relação a uma tecnologia de melhoramento cognitivo como algo que dá um benefício para o país como todo, se enxergá-la como uma educação, por exemplo, algo educacional do qual nasceria um melhoramento cognitivo que tenha um efeito em rede, mais pessoas vão ser educadas e, então, vai ter um maior valor para a educação, porque essas pessoas vão acabar melhorando. E é a mesma coisa com o computador. Se eu tiver somente um computador no mundo, talvez possa ser valioso se a gente estiver brincando aqui de solitaire, jogando, aqui, um joguinho. Agora, se outras milhões de pessoas tiverem, elas podem interagir. Então, de maneira semelhante, digamos que o seu governo, o meu governo, ele decidisse que seria importante desenvolver algumas tecnologias de melhoramento cognitivo para garantir que muitos cidadãos pudessem ter acesso a elas - de repente os chineses estão fazendo, sei lá, então acaba tendo uma situação de competição, em que a gente se preocupa que alguns de nossos rivais geopolíticos, como a China, estejam já avançando nisso, com esse tipo de tecnologia - aí, de repente, o seu governo ou o meu governo subsidiaria o acesso a essas tecnologias e não teríamos tanto problema em relação à distribuição desigual, que poderíamos ter se fosse simplesmente um bem de mercado. Então, eu acho que quando as pessoas se preocupam com a desigualdade, com esse efeito da tecnologia de aumentar a desigualdade, elas precisam fazer uma pergunta específica: o que a instituição está fazendo? Em alguns ambientes institucionais, se isso for visto como um bem público para o governo, o qual vai subsidiar o acesso, aí, de repente, a desigualdade não vai ser um problema. Agora, em outros ambientes, se isso for visto como um bem de consumo privado, só para ser comprado e vendido no mercado, aí, talvez, seja uma maneira terrível de aumentar as desigualdades e injustiças. Esse é o tema geral do livro. Não devemos fazer perguntas em abstrato, perguntas genéricas. Devemos realmente fazer as perguntas em relação às premissas que estão na base do problema, principalmente em relação às instituições, e não questões genéricas. E, de repente, você pode acabar chegando à conclusão de que “tá, então tem uma resposta geral para essa pergunta”. Você tem respostas específicas relacionadas a um contexto social específico. Então, esse seria uma mensagem do livro. Eu acho meio frustrante e, com frequência, as pessoas acabam escrevendo sobre isso, mas também sobre outras questões de bioética, sem o cuidado de especificar o cenário institucional, e fazer perguntas se ele pode mudar. E, se o cenário institucional mudar, aí talvez isso afete as respostas que elas possam dar para as perguntas que estão fazendo.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: Perfeito, Allen. Sim, são tantos pontos interessantes, que estamos tentando resumir mentalmente quais deles focalizar mais. A gente tem a ponte perfeita para a próxima questão, que é justamente sobre a sua proposta de um instituto global de justiça e inovação. Se não me falha a memória, no último capítulo do Beyond Humanity, você propõe um Global Institute for Justice and Innovation (GIJI)19 19 Buchanan, junto a Robert Keohane e Anthony Cole, propuseram a ideia do Global Institute for Justice and Innovation (GIJI), que seria um instituto internacional com a função de promover a justiça na inovação tecnológica de modo geral, não apenas aquelas usadas para o melhoramento biomédico, e que, integrado às leis internacionais, fosse capaz de propor e estabelecer propostas políticas para lidar com os desafios de uma forma prática. Não se tratava, portanto, de um instituto exclusivo para gerar uma reflexão teórica infinita sobre as inovações tecnológicas, sobre os prós e contras, por exemplo, de suas aplicações para fins de melhoramento. . Nós gostaríamos de focalizar dois pontos. Você afirma que as críticas à sua proposta deveriam vir acompanhadas de uma alternativa melhor. Essa sua afirmação é muito bem-humorada e pertinente, porque muitas críticas vêm acompanhadas de um vazio propositivo: “Ok, essa opção não é a melhor, mas por que não é a melhor e, além disso, qual seria a melhor?”. Aí, vem a nossa a pergunta: na sua opinião, algum crítico cumpriu essa exigência? Esse seria o primeiro ponto: algum crítico à sua proposta de criação de um instituto global voltado à promoção da justiça por meio da inovação tecnológica apresentou uma alternativa mais interessante?

Allen Buchanan: Perdão, pode continuar. Desculpa ter interrompido.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: Não, por favor, é melhor você responder ao primeiro ponto.

Allen Buchanan: Quando o Robert Keohane, o Tony Cole e eu escrevemos um artigo20 20 BUCHANAN, A.; COLE, T.; KEOHANE, R. O. Justice in the Diffusion of Innovation. Journal of Political Philosophy, v. 19, issue, 3, p. 306-332, July 2011. , fazendo essa proposta, a gente teve o cuidado para dizer que a gente não estava oferecendo o rascunho de algo que seria tão específico que pudesse já ser implementado de cara. E a gente não estava presumindo que seria um instituto político, físico. Não! O propósito era estimular a discussão, fomentar a discussão, para fazer com que as pessoas ou modificassem a nossa proposta para torná-la melhor, ou dessem uma alternativa. E eu tenho que dizer que nós fracassamos, porque, até onde eu sei, as pessoas não fizeram isso. E a principal proposta rival que nós contrastamos seria essa visão [POCUS view] a respeito da ideia de impacto à saúde. [...] você mencionou anteriormente que eu escrevi sobre vários temas diferentes. Isso é bom de certa maneira, mas também é ruim, porque eu trabalho um tópico durante um tempo e acabo colocando minha atenção em outra coisa depois. Assim, de repente, acabo não ficando ciente do que aconteceu na literatura que evoluiu a respeito do tópico. Então, é possível que haja alguma coisa lá, que as pessoas tenham proposto algo que seja uma alternativa à nossa proposta. Mas eu não vi, eu acho que provavelmente eu teria ouvido falar, se tivesse. Minha abordagem em relação à filosofia nos últimos cinquenta, sei lá, quantos anos nos quais eu tenho trabalhado nisso é tentar trabalhar em uma área que esteja sendo negligenciada e, no entanto, não pensando que “nossa, vou dar minha visão final sobre isso, ou a verdade sobre isso”. Mas espero que estimule, que as pessoas pensem mais a respeito daquilo, e que de uma maneira melhor do que eu fiz. E eu fiz isso em relação a vários temas. Eu escrevi o que eu acho que foi a primeira abordagem, em formato de livro, sobre a ética da secessão [BUCHANAN, 1991BUCHANAN, A. Secession: The Morality of Political Divorce from Fort Sumter to Lithuania and Quebec. Westview Press, 1991.]21 21 BUCHANAN, A.Secession: The Morality of Political Divorce from Fort Sumter to Lithuania and Quebec. Westview Press, 1991. . Na época em que eu escrevi isso, eu sabia que, provavelmente, seis meses depois da publicação eu estaria olhando e pensando: “Meus Deus, como assim? Não! Está errado! Está simplificando demais!”, sei lá, enfim. Mas eu simplesmente pensei que naquele momento era um tópico totalmente diferenciado dos filósofos analíticos. Por exemplo, na teoria da justiça do Rawls, não se faz menção a isso. Eu pensei, então, em colocar alguma coisa ali que fosse razoavelmente boa, esperando que pessoas mais inteligentes do que eu pudessem pegar aquilo e levar adiante. No caso desse livro sobre a secessão, muitas literaturas sobre o tema foram estimuladas. E essa literatura, por sua vez, estimulou a literatura sobre direitos territoriais, porque é uma questão fundamental em relação à secessão, isto é, quem tem direito ao território, a reter o território total, se é algum grupo, se é legítimo pegar aquele território e criar uma nova entidade política, etc. Então, funcionou naquele caso. Eu acho que o livro sobre a secessão é muito bom.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: Esse tema da secessão parece ter saído do foco filosófico nos últimos anos, embora tenha sido muito relevante no debate político algumas décadas atrás.

Allen Buchanan: Secessão é quando algum grupo dentro do Estado quer pegar uma porção, parte do território do Estado e criar um novo: secessão, separação, separar o território, criar um novo Estado. E, no caso americano, em 1861, a parte sulista do país fez a secessão da União e tentou criar um Estado independente. E há muitos casos assim. E normalmente a secessão acaba resultando em conflitos violentos, terríveis, porque os Estados geralmente não querem desistir de seus territórios. E é interessante que, pelo menos na filosofia política anglófona, antes de eu escrever esse livro, houve quase nenhuma atenção prestada ao problema da secessão. E pessoas como John Rawls, talvez o maior filósofo político do século XX, presumiram que o Estado era uma entidade estável. Assim, não se levantava a questão de “tá, o que acontece se as pessoas estão tentando dividir os Estados?”. E houve alguns casos em que a secessão foi pacífica, por exemplo, na Noruega e na Suécia, em 1905. Ela foi absolutamente pacífica. Mas, na maior parte dos casos, o Estado resiste a qualquer tentativa de pegar parte desse território e você acaba tendo conflitos. No Direito Internacional, não há muita orientação em relação a essas questões de secessão. Com isso, acaba não tendo muitas instituições também tentando ajudar a levar alguma solução pacífica em relação a esses tipos de crise. Então, eu fiquei muito interessado nesse tipo de coisa, principalmente porque a gente teve a guerra civil americana, teve essa secessão, e foi um conflito muito sangrento e destrutivo. Foi um desastre. E também porque na década de 1980, de repente vocês não se lembram disso porque eram muito jovens, mas houve um grande debate a respeito do comunitarismo. Os liberais comunitaristas. E uma das questões era: e se você tiver algum grupo dentro de uma sociedade liberal que tem valores muito iliberais, não liberais, o que você faz com isso? E uma solução foi: a gente vai dar direito especial de grupo para eles, para que eles possam ter as próprias comunidades, que sejam muito iliberais dentro de uma sociedade liberal. E eu disse: “tá, mas como assim?”. Na verdade, isso não é uma alternativa. Porque a gente não deixa essa galera simplesmente ir embora, “tá, tchau, sai do Estado, vai embora”. Agora, tem problemas em relação a isso também, é claro. Mas pelo menos eles podem começar a pensar com relação a secessão. Terceira coisa que a gente pode pensar além desse debate liberal. Eu visitei a África do Sul em alguns períodos durante o apartheid, depois do apartheid, e as pessoas continuavam a dizer a “nova África do Sul” vai ser tal coisa, estavam presumindo que seria um país só. Mas não era tão óbvio assim, porque [...] eles estavam tendo uma guerra civil. E ele [grupo zulu] estava ameaçando, dizendo que se o governo do apartheid caísse, ele tomaria aquela parte da África do Sul e estabeleceria um Estado novo, independente. Então, todas essas coisas meio que convergiriam para mim, eu fiquei pensando sobre secessão bastante, pensando “não, deve ter um trabalho bom em relação a isso”. Então, eu decidi escrever esse livro e eu tive sorte porque o livro foi publicado quando a União Soviética estava acabando. Houve uma certa secessão, incluindo a Ucrânia, etc. Então, as pessoas pensaram, “uau, o Buchanan, ele deve ter uma bola de cristal, alguma coisa. Ele previu isso”. Eu não tinha ideia de que isso ia acontecer. Foi só um timing interessante. Porque os únicos casos de guerra mundial nos quais eu me foquei, o principal foi a possível secessão do Quebec do Canadá. Eu fiz uma certa consultoria em relação ao governo canadense com alguns grupos indígenas do Quebec a respeito dessa secessão possível do Quebec. Mas eu não estava pensando sobre a União Soviética, ou depois a Iugoslávia também, que acabaram fazendo essa secessão da Federação da Iugoslávia. Mas, enfim, eu tive sorte no meu timing. Mas o principal é que isso estimulou outras pessoas a refletirem sobre o tema. Enfim.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: Retomando um ponto, sua proposta do GIJI poderia influenciar o debate sobre a gestão global do avanço científico e tecnológico, tanto quanto sua abordagem da secessão?

Allen Buchanan: Não posso dizer isso em relação à proposta do GIJI, porque eu acho que o que é mais relevante agora, se você olhar o fracasso internacional em relação à resposta à pandemia do COVID, você tinha alguns dos países mais ricos dizendo “a gente tem que fazer alguma coisa em relação às vacinas para os países pobres”. Mas quase nada foi feito e os países mais poderosos, como o meu, agiram de uma maneira absurdamente covarde. Eles fizeram contratos em relação a empresas farmacêuticas para ter um número de doses muito maior do que eles precisariam e isso foi uma condição que estava no contrato imposto pelos países, ou seja, que elas não poderiam doar os excessos para ninguém, nem vendê-los. Então, milhares, milhões de doses até venceram ali nesses locais e não foram utilizadas. Então, no geral, a resposta internacional foi muito ruim, eu acho, especialmente pelos países que estavam na melhor posição de ajudar. Eles não fizeram muito em relação a isso. E houve uma falta absurda de coordenação. Eu acho que o que era necessário seria algum tipo de instituição que pudesse estabelecer um pré-compromisso, especificando as obrigações dos Estados. Não é suficiente dizer que “a gente tem que fazer alguma coisa em relação a isso” para deixar ali no nível do que os filósofos chamam de obrigação imperfeita, dever imperfeito, porque nesse tipo de dever imperfeito você tem que fazer alguma coisa para ajudar alguns povos de alguma maneira, de algum jeito. Mas se você deixar assim, dessa maneira super vaga, é quase que inevitável que você vai ter uma baixa performance, uma descoordenação, lacunas, redundâncias. Mas se você tivesse uma instituição que pudesse especificar os deveres e as pessoas que responsáveis por eles, os direitos, se tivesse também uma distribuição mais justa do custo para poder dar essa ajuda, digamos, para vacinas, aí tivesse algum tipo de mecanismo para garantir o cumprimento. Aí, seria uma situação totalmente diferente daquela em que nos encontramos. Então, eu acho que a proposta [GIJI] ainda é relevante. E uma coisa que eu gostei sobre essa proposta era que ela reconhecia que o problema da justiça na inovação não é só um problema da distribuição. É um problema de produção também. E eu acho que se nós tivéssemos uma situação na qual os chamados ‘menos desenvolvidos’ tivessem a capacidade de produzir vacinas - alguns deles têm, mas enfim - se tivessem mais capacidade de produzir as vacinas ou outras inovações importantes, aí, o problema da distribuição não seria tão severo, porque não seria uma questão de “ah, os países ricos têm todos os bens e produtos e, com isso, vão decidir se eles vão ser tão generosos e poder dar um pouquinho desses produtos para os países”. Os países pobres teriam um papel mais ativo no processo de decidir que tipo de tecnologia vão desenvolver, se tiverem a capacidade produtiva, inovadora. Do jeito que tudo foi feito, em alguns dos países mais desenvolvidos, a agenda, a pauta para pesquisa reflete a necessidade das pessoas influentes desses países mais desenvolvidos. Então, é um erro pensar que você pode ter essa distribuição mais ampla, sem mudar o modo de produção. Isso, aliás, também é um ponto do Marx. O Marx estava constantemente dizendo que você não pode separar a distribuição do meio de produção. Então, a maneira como as coisas funcionam, quem tem o poder de produzir isso, desempenha um grande papel em quais seriam as possibilidades para distribuição e quais seriam os limites. E, aliás, enfim, só tenho que dizer aqui, fazer uma digressão rapidinho, isso me preocupa em relação a muitos economistas. Muitos economistas dizem “olhem, deixa para a gente aqui, os economistas, dizer para vocês como aumentar a produtividade e, aí, deixa para o processo político solucionar a questão da distribuição”. Bem, o processo político não é exógeno, certo, à economia. E é quem detém o poder, que Marx chamava dos meios de produção, desempenha um grande papel para poder ver alternativas viáveis para fazer a distribuição ex post. Então isso me parece também ser um idealismo meio estranho por parte dos economistas que dizem que são muito realistas e não idealistas, e separam a distribuição e a produção dessa maneira. Mas, enfim. Só um tipo de coisa que eu estava pensando aqui, só uma digressão minha que ficou. De repente, uma digressão em relação ao que você perguntou.

Murilo Vilaça: Sem problema, Allen. Na verdade, gostaria de ouvir mais sobre esse ponto. Pode, se quiser, alongar a digressão.

Allen Buchanan: Sim, seria criar novas tecnologias que eram valiosas. Tenho duas perguntas: uma vez que elas tenham sido criadas, como que elas podem ser distribuídas de uma maneira justa? Mas também tem a questão de como elas são produzidas e quem tem o poder de poder determinar o que é produzido. Uma coisa que eu acho em relação à falha da resposta internacional em relação a isso é que a gente precisa trabalhar para construir capacidade em países menos influentes para desenvolver as vacinas, para desenvolver a tecnologia, para solucionar questões mundiais de saúde. E, aí, se isso acontecer, você não vai ter a situação que nós tivemos agora, em que você tem uma questão, que você tem os países ricos e a questão é: “será que eles vão ser tão generosos para distribuir os bens para os países mais pobres?”. É uma situação de dependência, de grande dependência dos países pobres em relação aos países mais ricos, porque os países mais pobres não têm a capacidade de produzir os bens que são mais necessários. Então, eu acho que você teria uma distribuição melhor em relação à agenda da pesquisa e quais coisas são produzidas, caso houvesse uma distribuição mais equitativa de capacidade produtiva entre os países. Novamente, eu acho que se ignorarmos isso e dissermos “ah, vamos ter todas as coisas que os países ricos produziram, de alguma maneira a gente vai convencê-los a distribuir para os países mais pobres as coisas boas que estão produzindo”, isso seria um tipo inocente, uma visão inocente, porque tudo isso reflete relações de poder e interesses. Essas relações vão continuar a desempenhar um papel em limitar as opções mais viáveis para a distribuição do produto, seja qual for o produto. E como eu disse, esse é um ponto antigo que o Marx falou.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: É interessante notar essa postura de se dedicar a temas que não estavam sob foco filosófico. Com isso, você acaba como que abrindo novos campos temáticos de pesquisa, reconhecendo - e essa é uma virtude interessante - que as primeiras abordagens de um tema serão, em certa medida, incipientes, tendo que passar por um processo ‘natural’ de desenvolvimento. Você migrou muito de temas ao longo da sua carreira, o que lhe torna uma referência acerca de uma diversidade impressionante deles. Por exemplo, muito antes da tomada de decisão substituta (Surrogate Decision Making) de ter se tornado um tema ético/bioético em destaque, algo quase que incontornável, você, ao lado do professor Dan W. Brock22 22 Filósofo e bioeticista estadunidense, Professor Emérito da Universidade de Harvard, falecido em 2020, Brock é coautor de uma série de publicação com Buchanan, entre artigos e livros. , abordou-o no livro Deciding for Others: The Ethics of Surrogate Decision Making (1989), livro que, embora possa ser considerado ‘antigo’, segue sendo referência para o debate.

Allen Buchanan: Eu tenho muita sorte. O livro ainda está sendo citado. E eu acho que está sendo citado mais do que qualquer coisa que escrevi. E, novamente, esse foi um dos casos nos quais houve uma lacuna na literatura bioética, da ética do consentimento informado. Mas o consentimento informado só se aplica se o paciente tem competência para isso. Eu trabalhei como bioeticista clínico e, em muitos casos, o paciente não tinha essa competência. Então, não havia uma doutrina do consentimento informado e, portanto, havia uma confusão em relação a qual era essa competência. Dan Brock, meu coautor no livro, teve o mesmo tipo de experiência. Então, pensamos: “bem, vamos focar, aqui, em algo que esteja negligenciado”. Você tem razão. O livro tem sido bem influente. Um ponto importante: eu não tento responder aos problemas da literatura. Eu tento responder aos problemas do mundo, e aí ver se a literatura está me dizendo alguma coisa em relação a esse problema. Se eu ficasse preso à literatura, eu nunca teria escrito esse livro, porque não tinha muita coisa sobre o tema. Às vezes, eu fico pensando que os filósofos acabam ficando presos à literatura, e a literatura depende do caminho traçado por alguém. Ou seja, começou com alguém que encontrou um problema no mundo real e aí os problemas acabam se tornando os problemas da literatura, em que há diferentes posições, umas respondem às outras, etc., e acabam não olhando mais para o mundo real, que é a origem daquilo tudo. Eu tento evitar fazer isso. E geralmente até funciona bem.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: Isso é interessante. Parece haver uma tendência, ou melhor, uma demanda acadêmica por revisão da literatura. É óbvio que nunca devemos desconsiderar a literatura, mas a busca por soluções filosóficas aplicadas para problemas práticos parece ser uma lacuna na filosofia. Mas acho que estamos avançando, talvez não com a velocidade necessária, haja vista as demandas do mundo, mas parece que estamos avançando no desenvolvimento de filosofias aplicadas. Você chamou a atenção para outro aspecto, que nos faz reposicionar a segunda parte da pergunta sobre quão viável você acha que seria, atualmente, a implementação do Instituto Global para Justiça em Inovação. Considerando que você já contemplou o caso da COVID-19 e do que podemos chamar de fracasso quanto à distribuição justa das vacinas, gostaríamos de incluir o caso da guerra na Ucrânia, que também parece representar o fracasso do papel dos organismos supranacionais ou multilaterais, como a ONU, que, neste caso, mostrou-se incapaz de gerir conflitos e, especificamente, impedir que um país, isoladamente, tomasse a decisão de invadir outro. E, acima, você tocou num ponto interessante, fazendo menção a Marx e à posse dos meios de produção, o que confere poder a certos países. Nesse sentido, você imagina uma possibilidade de que as grandes potencias, como é o caso dos Estados Unidos, não sejam exatamente generosas em relação à distribuição dos recursos, mas assumam outra postura em relação aos meios de produção, não abrindo mão do monopólio ou do poder que a posse dos meios de produção dá a elas?

Allen Buchanan: Acho que vocês indicaram algo muito importante. Há muitas áreas nas quais houve um fracasso da resposta internacional. O meio ambiente é um exemplo, a guerra na Ucrânia é outro, a COVID-19 é outro. Então, se você fizer a pergunta “será que o contexto atual é o ideal para iniciar algo como o GIJI?”, eu acho que não. Para mim, atualmente, há menos compromisso com uma ideia de ordem internacional do que houve durante muito tempo. E eu acho que alguns dos países-chave que poderiam ser importantes para restaurar o compromisso estão tão preocupados com suas próprias questões internas, como os Estados Unidos...os Estados Unidos estão tão divididos agora...eu nunca vi nada do gênero, tem muita polarização. Temos tanta polarização, que não acho que a nossa democracia esteja funcionando mais. Isso se aplica a muitos outros países também. Ou você precisa ter condições muito favoráveis para ter uma cooperação internacional ou você precisa ter atingido um ponto tão baixo, como no final da Segunda Guerra Mundial, em que as pessoas dissessem “meu Deus, precisamos fazer alguma coisa radicalmente diferente agora”. Porque, no final da Segunda Guerra Mundial, a Europa estava devastada, revelações acerca do holocausto surgiram e as pessoas estavam dizendo “a gente precisa fazer alguma coisa diferente”. E instituíram um novo tipo de ordem internacional que desse ênfase aos direitos humanos de uma maneira que nunca tinha feito antes. É imperfeito, mas foi uma grande mudança. Então, ou você teria que chegar no fundo do poço, ou você teria que estar em condições muito favoráveis. E eu acho que não estamos em nenhum desses dois casos agora. Então, eu não tenho muita esperança em relação a isso. E também tem esses líderes populistas, como na Hungria e na Polônia, que são extremamente nacionalistas e xenófobos, nem um pouco comprometidos com qualquer tipo de visão cosmopolita que permitiria um progresso na ordem internacional. Acho, então, que é um momento muito ruim agora para qualquer esperança em relação a esse tipo de mudança. Eu tenho ouvido as pessoas nos Estados Unidos dizendo coisas, como “mas o que é a Ucrânia para a gente? Por que que a gente tem que importar com a Ucrânia? Não é do nosso interesse”. Teve uma declaração famosa de Chamberlain [Arthur Neville Chamberlain, primeiro-ministro inglês entre 1937-1940], que disse “quem são os tchecos para nós?”, quando Hitler invadiu [a então Tchecoslováquia]. Parece que os tchecos eram muito importantes, porque isso foi só o início. E é uma coisa semelhante ao que estamos vendo aqui. O Putin quer restaurar a União Soviética, envolvendo uma expansão territorial. Se ele conseguir vencer na Ucrânia, então, enfim, Lituânia, Estônia, todo mundo vai depois. Então, é o nosso interesse. E é nosso interesse moral, também, de parar o Putin, que está destruindo uma ordem mundial em que há uma proibição contra guerra agressiva. Essa norma levou muito tempo para ser estabelecida. E eu acho que ela foi violada pelos Estados Unidos no caso da guerra contra o Iraque...foi uma guerra de agressão. Mas, geralmente, a gente estava indo numa direção certa. Então, a gente tem que interromper esse comportamento retrógrado do Putin. Acho que é uma tendência de regressão na arena internacional, o que é muito perigoso. Acho que muito vai depender do que acontece na Índia. Daqui a dez anos, haverá mais indianos do que chineses. E a Índia tem o potencial de ser um contrapeso relativamente liberal ao esforço da China de reformular a ordem mundial em sua imagem não liberal. Mas, agora, nós temos um líder nacionalista não liberal na Índia. Espero que seja temporário. O Modi é uma aberração temporária [Narendra Damodardas Modi, atual presidente indiano]. As pessoas tendem a pensar sobre qual será a posição dos Estados Unidos, e olham para a Índia como apenas um terceiro ator na luta geopolítica pela ‘alma’ da ordem internacional...se haverá uma ordem liberal, cosmopolita, ou um mundo dividido em esferas de influência autárquicas, com a maior parte delas não sendo liberal, em algum grau. Não sei bem, mas acho não é um momento para muito otimismo, infelizmente, eu acho. Só um acréscimo sobre o que tenho feito. Nos últimos dez anos, eu tenho trabalho com o que pode ser chamado de moralidade de mudanças sociais em larga escala. Vocês me perguntaram em relação ao progresso moral e quais as condições em que pode ocorrer. Isso me levou a dois livros: um, com Russell Powell, intitulado The Evolution of Moral Progress: A Biocultural Theory [2018]; o segundo é o Our. Moral Fate: Evolution and the Escape from Tribalism23 23 Para uma síntese dos argumentos, sugerimos VILAÇA, M. M. Book Review: Allen Buchanan. Our Moral Fate: Evolution and the Escape from Tribalism. Journal Of Moral Philosophy; in press. [2020]; e, agora, estou trabalhando na teoria da revolução, como uma mudança social bem dramática e violenta. E eu acho que os filósofos políticos desse século negligenciaram esses problemas de larga escala, relativos às mudanças sociais. Eles tendem a pensar que isso é algo muito mais fixo do que realmente é. E é claro que progresso moral é um nome ruim, devido ao colonialismo. Muitos filósofos nem tocam nessa ideia de progresso moral, porque eles pensam que ela está contaminada, já que foi utilizada, como uma ferramenta, arma ou justificativa para práticas coloniais. E, de fato, foi. Mas eu tenho tentado recuperar a noção de progresso moral, deixando-a de um modo mais respeitável ou plausível, pensando em que condições ela pode acontecer, bem como que condições geram uma regressão moral.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: Com esse seu último comentário, Allen, você ingressou na última pergunta que quereremos te fazer, antecipando alguns pontos, mencionando, inclusive, dois livros sobre progresso moral que têm nos interessado muito, aliás. Não retomaremos os pontos já indicados, mas gostaríamos de dar continuidade à abordagem, acrescentando alguns elementos. O Steven Pinker, por exemplo, tem um livro interessante24 24 PINKER, S. Os anjos bons da nossa natureza. Por que a violência diminuiu. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. , em que ele apresenta dados, com base nos quais tenta mostrar que as sociedades humanas vêm evoluindo de alguma forma, mais especificamente em relação à violência. Nesse sentido, gostaríamos que você comentasse sobre uma parte do debate sobre melhoramento humano, parte que tem sido muito enfatizada ultimamente, que é o melhoramento moral. Gostaríamos de saber o que você pensa sobre as possibilidades tecnocientíficas para acelerar o progresso moral, que já estaria, em certo sentido, inscrito na nossa natureza evolucionária. Essa seria a primeira parte da última pergunta.

Allen Buchanan: Que bom que vocês tocaram nesse ponto. As pessoas têm falado sobre o uso de medicamentos, drogas para melhoramento moral, que talvez aumentem a nossa, por exemplo, empatia, de tratar melhor as pessoas, de ser moralmente empático com elas, e há algumas evidências de que hormônios naturalmente presentes em nós podem ser ministrados em doses mais elevadas, o que aumentaria a empatia das pessoas em determinadas situações. Mas há problemas com isso. O efeito é, por assim dizer, totalmente indiscriminado, ou seja, não envolve um julgamento moral a respeito de que você tem que, você deve tratar uma pessoa melhor. Você pode ser colocado numa sala com Hitler e, se ingerir esse tipo de substância química, de repente você passa a ficar muito amigável com ele, o que não seria uma boa ideia. A gente está no estágio inicial disso. De repente, podemos focalizar aspectos da nossa psicologia moral que limitem a nossa capacidade de agir de uma maneira moral e, aí, talvez a gente possa expandir esses limites de certa maneira. Enfim...há um livro bem pequeno25 25 PERSSON, I.; SAVULESCU, J. Unfit for the Future: The Need for Moral Enhancement. Oxford: Oxford University Press, 2012. do meu amigo Savulescu [Julian Savulescu, professor da Universidade de Oxford] com Ingmar Persson [professor da Universidade de Gothenburg e da Universidade de Oxford]. E ele defendeu intervenções biomédicas para solucionar alguns dos grandes problemas do mundo, como terrorismo, problemas ambientais, e coisas afins. Mas eu acho que é muito mais complicado do que ele disse. Em primeiro lugar, você não vai fazer com que as pessoas más concordem com o melhoramento moral, de acordo com sua perspectiva. Então, parece que, para ter um impacto mundial sobre a psicologia humana, numa direção boa, você teria que ter uma organização muito maior, estruturas de autoridade muita mais robustas e um consenso muito mais amplo sobre os valores do que o que teremos um dia provavelmente. Mas se você tivesse isso tudo, você nem precisaria de um medicamento para melhorar a moralidade. Então, é uma espécie de paradoxo. Para que a utilização das tecnologias de melhoramento humano fosse viável, para que houvesse uma mudança realmente global, o mundo teria que ser muito diferente do que é agora. Todos estaríamos que estar na ‘mesma página’. Ou todos teríamos que ter um acordo sobre a pauta para o progresso; ou alguma ditadura mundial que imporia essas tecnologias às pessoas. E nenhuma dessas coisas é muito atraente. A primeira parece utópica, porque é difícil que as pessoas concordem sobre quais são as mudanças progressistas e quais as medidas seriam aceitáveis para promovê-las. Por outro lado, certamente ninguém vai querer que haja uma pessoa com tamanho poder coercitivo, ao ponto de impor essas medidas, na ausência de um consenso global. Então, eu gosto da ideia de que os limites da nossa psicologia moral não são fixos e, se há problemas, deveríamos poder pensar em formas de remediar isso, mas eu avalio que as propostas que têm sido feitas até agora não são viáveis. Talvez, haja obstáculos ao progresso moral na nossa natureza, que está evoluindo, e eu acho que há. Essa é a questão. Não acho que sejam tipos de problema totalmente insolúveis. Mas não estou convencido de que as soluções serão via tecnologias, em vez de por meio mudanças no ambiente social. Algumas das razões que produziram progresso moral em algumas áreas nos últimos trezentos anos em termos de direitos das mulheres, abolição da escravidão, do trabalho infantil, melhor tratamento dos animais até certo ponto...não é que nossa psicologia moral básica mudou, mas nós criamos novos ambientes em que ela pode ser expressa de uma maneira mais progressista e inclusiva. E aí que está o ponto: entender qual é a combinação de ambientes sociais e políticos nos quais podemos extrair mais dessas capacidades morais que temos. Foi isso que tentei fazer nesses últimos dois livros que mencionei.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: Perfeito...

Allen Buchanan: Acho que desviei um pouco do plano de falar principalmente sobre o melhoramento humano durante essa entrevista. Espero que isso não cause muito problema. É como você está dizendo: eu sou promíscuo intelectualmente. Meus interesses se espalham por muitos temas diferentes. Eu não sou fiel a uma área de pesquisa por muito tempo. Por isso que utilizei essa metáfora da promiscuidade. Sei lá, é mais interessante. Eu me entedio muito facilmente, sabe!? Quando eu estava em Cleveland, estava trabalhando com conflito. Se eu estivesse trabalhando com conflito durante cinquenta anos, estaria muito entediado, embora eu ache que o tema do conflito é algo muito importante, enfim.

Murilo Vilaça: Não há por que se desculpar, Allen. Aliás, eu compartilho dessa ‘promiscuidade’ intelectual, não me filiando a um pensador, por exemplo. Sempre me pareceu muito assustador ser um kantiano, um habermasiano, um rawlsiano ou coisa desse tipo. Não sei se essa é uma tendência frequente em toda comunidade filosófica. Mas parece ser algo bem comum no Brasil. Em relação aos temas, ocorre algo semelhante comigo. Ainda que não com rapidez, mas eles se exaurem, o que me leva a mudar de tema com certa frequência. Atualmente, dedico-me intensamente ao estudo do melhoramento humano, mas eu devo migrar para uma outra questão futuramente.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: E, na realidade, gostaríamos de lhe agradecer muito. Para uma pessoa tão experiente e com tanto conhecimento, não deve ser simples se concentrar num único ponto. A entrevista tinha um roteiro, que era simplesmente o apontamento de um caminho. Mas achamos que, além de ter focalizado o tema do melhoramento humano, identificando e abordando questões centrais, de um modo muito claro e direto, você nos brindou com uma série de outras abordagens que você desenvolveu ao longo do tempo, reconhecendo alguns dos seus limites, expressando uma humildade genuína que é digna de nota. Com isso, a entrevista se tornou mais dinâmica, que parece ser o melhor modo mesmo.

Allen Buchanan: Muito obrigado pela generosidade de vocês, por serem flexíveis. Eu gostei da entrevista! E espero que, mesmo tendo desviado do roteiro, tenha sido legal para vocês também. Gostei muito da oportunidade de interagir com vocês, pessoas de outro país. Eu gosto muito disso, mas a pandemia prejudicou um pouco, por causa das restrições a viagens. E eu tinha bem pouca experiência com filósofos brasileiros. E isso é bom para mim. E eu quero ouvir vocês e seus colegas, saber o que vocês têm pensado, o que estão fazendo. Qual a ênfase, a pesquisa, o que acham empolgante, enfim, eu não quero só falar sobre o que eu estou fazendo. Quero saber o que vocês estão fazendo. Vamos ter isso em mente para novembro26 26 Buchanan se referia ao 1 st International Symposium on Applied Philosophy (ISoAP): Allen Buchanan’s Lectures. Ver nota de rodapé 8. . Eu apresentarei algumas palestras sobre alguns Papers, mas gostaria, também, de construir um processo em que eu tenha contato com o que vocês têm feito. Isso seria bom para mim. Vamos incluir isso no programa.

Murilo Vilaça/Murilo Karasinski: Perfeito, Allen. Faremos isso, criando diálogo, enriquecendo a interação entre nós. E encerramos essa entrevista, agradecendo novamente pela entrevista tão interessante, reiterando o prazer e honra de estar em contato com você, que tem sido uma referência para as nossas pesquisas. Até breve!

Referências

  • BUCHANAN, A.; BROCK, D. W.; DANIELS, N.; WIKLER, D. From Chance to Choice: Genetics and Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
  • BUCHANAN, A.; COLE, T.; KEOHANE, R. O. Justice in the Diffusion of Innovation. Journal of Political Philosophy, v. 19, issue, 3, p. 306-332, July 2011.
  • BUCHANAN, A. The Landscape of the Enhancement Debate. In: Beyond Humanity? Beyond Humanity? The Ethics of Biomedical Enhancement. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 1-34.
  • BUCHANAN, A. Secession: The Morality of Political Divorce from Fort Sumter to Lithuania and Quebec. Westview Press, 1991.
  • FUKUYAMA, F. Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2002.
  • HABERMAS, J. Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einerliberalen Eugenik? Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2001.
  • PERSSON, I.; SAVULESCU, J. Unfit for the Future: The Need for Moral Enhancement. Oxford: Oxford University Press, 2012
  • PINKER, S. Os anjos bons da nossa natureza. Por que a violência diminuiu. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • VILAÇA, M. M.; KARASINSKI, M. Interview with John Danaher on Axiological Futurism: In Pursuit of a Better Understanding of the Relationship Between New Technologies, Risks, and Ethics Considering Value Changes. Trans/Form/Ação, in press.
  • VILAÇA, M. M.; KARASINSKI, M. On Human Enhancement, Optimism, Risk, Existential Risk, and How to Manage and Regulate It: An Interview with Anders Sandberg. Filosofia Unisinos, v. 24, n. 1, p. 1-10, 2023.
  • VILAÇA, M. M. Book Review: Allen Buchanan. Our Moral Fate: Evolution and the Escape from Tribalism. Journal Of Moral Philosophy; in press.
  • 1
    Como agradecimento, informamos que Murilo Mariano Vilaça é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Número da Subvenção: 201.377/2021.
  • 1
    Numa busca simples no Google Scholar, Allen recebeu, até agora, cerca de 25 mil citações.
  • 2
    Focalizando apenas seus livros, ele abordou temas como marxismo e justiça; ética em medicina de emergência (Emergency Medicine); ética, eficiência e mercado; tomada de decisão pelo outro / tomada de decisão substituta (Surrogate Decision Making); secessão; conflito de interesses na prática e na pesquisa clínicas; genética e justiça; direitos liberais, direitos humanos, direito internacional; justiça e assistência à saúde; progresso moral; melhoramento humano; guerra justa, entre outros.
  • 3
    VILAÇA, M. M.; KARASINSKI, M. On Human Enhancement, Optimism, Risk, Existential Risk, and How to Manage and Regulate It: An Interview with Anders Sandberg. Filosofia Unisinos, v. 24, n. 1, p. 1-10, 2023.
  • 4
    VILAÇA, M. M.; KARASINSKI, M. Interview with John Danaher on Axiological Futurism: In Pursuit of a Better Understanding of the Relationship Between New Technologies, Risks, and Ethics Considering Value Changes. Trans/Form/Ação, in press.
  • 5
    Disponível em: https://philosophicaldisquisitions.blogspot.com/
  • 6
    Disponível em: https://philosophicaldisquisitions.blogspot.com/p/podcast.html
  • 7
    Nesse sentido, indicamos especialmente o capítulo 1 (The Landscape of the Enhancement Debate) do livro Beyond Humanity? (Beyond Humanity? The Ethics of Biomedical Enhancement. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 1-34).
  • 8
    1stInternational Symposium on Applied Philosophy (ISoAP): Allen Buchanan’s Lectures, que ocorreu entre 14 e 18 de novembro de 2022, com organização do Grupo de Investigações Filosóficas sobre Transumanismo e Biomelhoramento Humano - GIFT-H+ (Fiocruz/ENSP/CNPq) e do GT Teorias da Justiça da ANPOF, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), via bolsa JOVEM CIENTISTA DO NOSSO ESTADO.
  • 9
    Publicado no ano 2000, como resultado da colaboração entre Allen Buchanan, Dan W. Brock, Norman Daniels e Daniel Wikler, o livro From Chance to Choice: Genetics and Justice, publicado pela Cambridge University Press, foi uma das primeiras obras a tratar de forma sistemática as questões éticas fundamentais subjacentes à aplicação das tecnologias genéticas aos seres humanos. Os autores perguntaram como tais tecnologias poderiam afetar nossa compreensão da justiça distributiva, igualdade de oportunidades, os direitos e obrigações como pais, o significado da deficiência e o papel do conceito de natureza humana na teoria e na prática ética. Além disso, os apêndices buscaram explicar a natureza da causa genética, a interação gene-ambiente e os conceitos errôneos generalizados do determinismo genético.
  • 10
    Buchanan não indicou um texto específico. Além disso, no livro From Chance to Choice, Sandel não é citado. Assim, não foi possível identificar a que trabalho(s) ele se referia. De todo modo, Sandel é um autor enquadrado como bioconservador ou, nos termos propostos por Buchanan no livro Beyond Humanity?, um pensador que assume uma posição antimelhoramento. A perspectiva antimelhoramento/bioconservadora de Sandel é apresentada, em detalhes, no livro publicado originalmente em 2007, intitulado The Case Against Perfection: Ethics in the Age of Genetic Engineering. Há tradução do livro em português: Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. Para uma abordagem crítica dos argumentos de Sandel, ver VILAÇA, M. M. Contra a perfeição, o melhoramento humano ou pela dádiva? Uma análise dos argumentos de Michael Sandel sobre a engenharia genética. Síntese: Revista de Filosofia, v. 48, n. 152, p. 779-805, set./dez. 2021.
  • 11
    The President’s Council on Bioethics foi criado em 2001, durante o primeiro governo de George W. Bush. Além de Michael Sandel, outros dois destacados pensadores bioconservadores/antimelhoramento compunham o conselho, a saber, Francis Fukuyama e Leon Kass. Kass foi o primeiro presidente do conselho, exercendo o cargo entre 2001 e 2005. Informações disponíveis em: https://bioethicsarchive.georgetown.edu/pcbe/.
  • 12
    FUKUYAMA, F. Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2002. Há tradução do livro em português: Nosso futuro pós-humano: consequências da revolução biotecnológica. Rio de Janeiro: Rocco, 2003
  • 13
    HABERMAS, J. Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einerliberalen Eugenik? Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2001. Há tradução do livro em português: O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • 14
    Para uma síntese das diferenças entre os autores, ver Vilaça (2021).
  • 15
    Professores Doutores Charles Feldhaus (Universidade Estadual de Londrina) e Julia Sichieri Moura (UFPR).
  • 16
    From Chance to Choice. Genetics and Justice (2000), Beyond Humanity? The Ethics of Biomedical Enhancement (2011) e Better Than Human. The Promise and Perils of Enhancing Ourselves (2011).
  • 17
    No livro Beyond Humanity?, Buchanan lista cinco itens que tornariam frustrante o debate sobre melhoramento biomédico: 1) Retórica obscura mascarada de argumento: no âmbito da literatura da Ética Prática, o melhoramento seria o local em que escritores acadêmicos continuariam a empregar ‘frases de efeito’ e slogans, geralmente ambíguos, sem se dar ao trabalho de traduzi-los em argumentos sólidos; 2) Ignorância da biologia evolucionária: o debate sobre a natureza humana se reduziria à dicotomia simplista entre nature e nurture, desconsiderando as relações complexas entre genes e ambiente, ou entre genótipo e fenótipo, além de menosprezar as recentes descobertas de campos como neurociência, antropologia, psicologia, genômica e ética; 3) Utilização de reivindicações empíricas abrangentes, sem provas: de um ponto de vista metodológico, a discussão sobre o melhoramento contemplaria perspectivas ingênuas e que não perceberiam a falta de evidências empíricas em suas afirmações, reproduzindo, por exemplo perspectivas do século XVIII, quando se acreditava que seria possível fazer generalizações teóricas e controversas do comportamento humano ou do funcionamento da sociedade; 4) Falta de clareza: não seria possível sequer entender quais argumentos estariam sendo defendidos ou criticados, no âmbito do melhoramento, incorrendo os principais autores antimelhoramento na chamada “falácia do espantalho”, especialmente quando estes alegam que o melhoramento implicaria os ‘problemas’ da total maestria da vida, perfeição humana e imortalidade; 5) Debate ‘emperrado’ no estágio polarizado pró versus contra: enquadramento problemático do debate, segundo o qual somente seria possível ser ou totalmente a favor ou absolutamente contra o melhoramento, de modo que a tarefa de compreensão profunda do fenômeno, em toda sua complexidade, resistindo à tentação de condená-lo ou louvá-lo, seria cada vez mais difícil, posto que a discussão em torno dele estaria marcado por posições mutuamente excludentes.
  • 18
    Bioeticista, Senior Research Scholar at The Hastings Center e Director of the Center's Initiative in Bioethics and the Humanities. No livro, Buchanan menciona Erik Parens em três momentos: no primeiro, assemelha-o a Sandel, afirmando que ambos criticam o melhoramento humano, em razão de acreditarem que há bens insubstituíveis (irreplaceable goods) que dependem de possuirmos certas limitações, bens que estariam em risco porque o melhoramento removeria tais limitações; no segundo, assemelha-o a Kass e Fukuyama, pois os três estariam preocupados com a criação de seres com status moral mais elevado (os seres melhorados seriam superiores aos não-melhorados); no terceiro, Buchanan o associa a Fukuyama e Annas, que compartilhariam a previsão ansiosa e errada, nos termos de Buchanan, de que o melhoramento tornaria o conceito de direitos humanos obsoleto.
  • 19
    Buchanan, junto a Robert Keohane e Anthony Cole, propuseram a ideia do Global Institute for Justice and Innovation (GIJI), que seria um instituto internacional com a função de promover a justiça na inovação tecnológica de modo geral, não apenas aquelas usadas para o melhoramento biomédico, e que, integrado às leis internacionais, fosse capaz de propor e estabelecer propostas políticas para lidar com os desafios de uma forma prática. Não se tratava, portanto, de um instituto exclusivo para gerar uma reflexão teórica infinita sobre as inovações tecnológicas, sobre os prós e contras, por exemplo, de suas aplicações para fins de melhoramento.
  • 20
    BUCHANAN, A.; COLE, T.; KEOHANE, R. O. Justice in the Diffusion of Innovation. Journal of Political Philosophy, v. 19, issue, 3, p. 306-332, July 2011.
  • 21
    BUCHANAN, A.Secession: The Morality of Political Divorce from Fort Sumter to Lithuania and Quebec. Westview Press, 1991.
  • 22
    Filósofo e bioeticista estadunidense, Professor Emérito da Universidade de Harvard, falecido em 2020, Brock é coautor de uma série de publicação com Buchanan, entre artigos e livros.
  • 23
    Para uma síntese dos argumentos, sugerimos VILAÇA, M. M. Book Review: Allen Buchanan. Our Moral Fate: Evolution and the Escape from Tribalism. Journal Of Moral Philosophy; in press.
  • 24
    PINKER, S. Os anjos bons da nossa natureza. Por que a violência diminuiu. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • 25
    PERSSON, I.; SAVULESCU, J. Unfit for the Future: The Need for Moral Enhancement. Oxford: Oxford University Press, 2012.
  • 26
    Buchanan se referia ao 1 st International Symposium on Applied Philosophy (ISoAP): Allen Buchanan’s Lectures. Ver nota de rodapé 8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2023
  • Aceito
    07 Abr 2023
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Editora PUCPRESS - Programa de Pós-Graduação em Filosofia Rua Imaculada Conceição, nº 1155, Bairro Prado Velho., CEP: 80215-901 , Tel: +55 (41) 3271-1701 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: revistas.pucpress@pucpr.br