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A COR DO SOM: CONSTRUÇÃO DE ALTERIDADE E RACIALIDADE NA FONOGRAFIA BRASILEIRA EM 78 ROTAÇÕES NA PRIMEIRA METADE DO SÉC. XX1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografias utilizadas são referenciadas no artigo. Este artigo é resultado de pesquisa realizada no âmbito do projeto LiberSound: Práticas inovadoras de arquivamento para a libertação da memória sonora (PTDC/ART-PER/4405/2020), desenvolvido no Instituto de Etnomusicologia do Centro de Estudos em Música e Dança na Universidade de Aveiro. O projeto é financiado pela Fundação para Ciência e Tecnologia (Portugal) através de fundos nacionais. Os autores agradecem ainda à FCT/MCTES pelo apoio financeiro do INET-md (UIDB/00472/2020). A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ financiou parcialmente a participação de Maya Suemi Lemos no projeto, por meio de diárias de pesquisador (processo 210.734/2019). Todos os autores participaram das diversas fases da pesquisa e da preparação do artigo, a saber: levantamento de dados, pesquisa bibliográfica, pesquisa teórica, redação. Todos os registros de áudio mencionados no texto estão disponíveis para audição no endereço: http://www.memoriadamusica.com.br/site/index.php/texto-e-audio/29-texto-e-audio/dossie-historia-e-culturas-sonoras/501-a-cor-do-som-construcao-de-alteridade-e-racialidade-na-fonografia-brasileira-em-78-rotacoes-na-primeira-metade-do-sec-xx

Resumo

Partindo do problema central da produção de alteridades como elemento-chave na constituição do mundo moderno, e seguindo a perspectiva aberta por Jennifer Stoever e seu conceito de “linha de cor sonora”, o artigo tem foco na indústria fonográfica brasileira em seus primeiros estágios de desenvolvimento. Busca-se problematizá-la como um lugar de fixação e reverberação de representações sonoras raciais e étnicas, materializadas em fonogramas de 78 rotações gravados nas primeiras quatro décadas do século XX por cantores, músicos e compositores negros. Argumenta-se que a dinâmica de incorporação desses músicos no sistema de entretenimento alimentado pelas indústrias fonográficas do período passava necessariamente pela exploração de estereótipos em que elementos como etnicidade, comicidade, sensualidade, primitivismo e exotismo exerciam papel central, elaborados precedentemente em registros literários e musicais.

Palavras-chave
Fonografia brasileira; Racialidade; Alteridade; 78 rotações; Indústria fonográfica

Abstract

This article analyzes the selection of 18 phonograms found on CD 1 of the publication “500 years of Brazilian popular music”, a book with two CDs published by the Museu da Imagem e do Som in Rio de Janeiro, 2001. Referenced in the historiography of sound, listening and music, the article proposes to think about professional listening in history and recording technique among different social groups. A research was carried out on the production dates of the 18 phonograms of CD 1 (1908-2001). The use of sound reproduction machines and artifacts, from mechanical recordings to the digital CD era, background the analysis of the selection pointing out some cultural choices to which the technique of recording and sound reproduction is submitted when the museum writes the history of popular music in Brazil at the turn of the 21st century.

Keywords
History writing; Records from Brazil; Sound technology; Museum; Popular music

Um dos traços característicos da modernidade, representativo de suas estratégias de operação no campo simbólico, é o processo permanente de criação de distinções e alteridades. Para se constituir e se autoidentificar, a civilização moderna ocidental dependeu, desde o seu albor, da produção de Outros que lhe serviram e continuam a servir de recorte em negativo, de contraparte ou de contrapeso ético. Verifica-se, de fato, que a dicotomização entre formas de vida reais ou imaginárias foi uma constante em sua gênese e sua manutenção, seja nas dinâmicas de fricção entre o velho e o novo mundo e nas relações coloniais, seja no interior do mundo ocidental, quando se constituíram as sociedades de corte e os estados modernos, e permanece ativa nos embates geopolíticos mais contemporâneos. Assim, no imaginário ocidental dos últimos cinco séculos, opôs-se e vem se opondo ao civilizado e moderno um vasto elenco de figuras de alteridade que, sob máscaras as mais variadas, foram conotadas como rústicas, exóticas, selvagens, pulsionais, primitivas e irracionais, como avesso da civilidade e da urbanidade que definiriam o ethos ocidental e hegemônico.4 4 This is not a purely ethical problem, of course, but the dichotomization between forms of life as a symbolic condition for the processes of primitive accumulation that allowed the modern West to constitute and remain as a hegemonic force. Witches, peasants, satyrs, cannibals, cynocephali and cyclops, inhabitants of the most different tropical longitudes and the most varied eastern latitudes, are just a few examples mobilized in the constitutive phases of the Early Modern period. And if in different periods and cultural and historical circumstances the savage/primitive came to be positively evoked as a moral critique of the civilized world (already in Montaigne and Léry; in pastoral literature at times, passing through Rousseau to the romantics), it is only a matter of a logical inversion that confirms the constitutive dichotomous dynamic of modern rationality. It is important to consider that we are not saying here that the device of ethical otherness is an invention of modernity. Narratives and figurations of otherness constituted since Antiquity are even reused and re-signified in the context of the encounter with the other in the Early Modern period. What we support here is the preponderant role of this device in the constitution of self-representation and in modern practices.

A caracterização das figuras de alteridade foi cuidadosamente elaborada por meio de dispositivos visuais, verbais, coreográficos e sonoros, em representações fortemente operativas que circularam – a depender da época e do contexto – por meio de modalidades artísticas como pintura, escultura, teatro, dança, música, pela mídia impressa literária, informativa e panfletária, amplificadas posteriormente pelas formas mecânicas e digitais de difusão informacional das eras industrial e pós-industrial.5 5 Just to evoke some examples, we point out: the iconography about witches (FEDERICI, 2019; CLARK, 2006; SOUZA, 1993); the iconography that accompanied the reports of the trips to America, representing Amerindians from the updating of icons of otherness from Antiquity (LESTRINGANT, 1994; BARTRA, 1994, 2011); the iconography that accompanied the reports about Antarctic France in Brazilian territory, as well as the representations of Protestants in Catholic pamphlets and of Catholics in Protestant pamphlets in the context of religious wars in the 16th century (BERBARA; MENEZES; HUE, 2020); visual and scenic, but also sound-musical representations of peasants and satyrs language in the literary and musical culture of the pastoral in the 16th and 17th centuries (LAVOCAT, 2005; PIERI, 2020; SCANNAPIECO, 2017; ARCANGELI, 2018; GERBINO, 2004); musical and choreographic representations of turqueries (such as the Marche pour la cérémonie des Turcs, from Jean-Baptiste Lully’s Le Bourgeois Gentilhomme, or Le Turc généreux, in Jean-Philippe Rameau’s Les Indes galantes); and Orientalism as a whole, as described by Edward Said (1978). O estudo das estratégias de representação da alteridade é, assim, um vetor importante da crítica à modernidade e de seus mecanismos de dominação.

Se as representações visuais da alteridade foram e vêm sendo amplamente estudadas tanto no campo da história da arte quanto no campo mais vasto dos estudos culturais, historicamente o estudo das representações sonoro-musicais da alteridade parece ter recebido menos atenção por parte da crítica. Como afirmam Born & Hesmondagh (2000, p. 8)BORN, Georgina; HESMONDAGH, David. Western music and its others: difference, representation and appropriation in music. [S. l.]: University of California Press, 2000., o aparente status da música como meio “não representacional” e a contínua relutância em se considerar as dimensões políticas e ideológicas da música no núcleo das disciplinas dos modelos conservatoriais de ensino fizeram com que os estudos sobre alteridade no campo da musicologia tivessem permanecido mínimos até o início do século XXI.

Os campos da etnomusicologia e dos estudos da música popular, entretanto, parecem ser uma exceção, principalmente em função do aporte, nas últimas décadas, dos estudos pós e decoloniais.6 6 A review of these approaches so fruitful in recent decades would not fit in this article. Roughly speaking, it can be said that, starting with the development of postcolonial theories in the 1970s (SAID, 1978) and culminating with the so-called “decolonial turn” (MALDONADO-TORRES, 2008) at the beginning of the 21st century, this large body of studies, which encompasses different objectives and methods, includes the analysis of Western cultural influence and the power exercised by the colonizing countries, the analysis of oppression and violence applied to colonial contexts, the use of the arts in the processes of cultural domination applied to the Third World, among many others. Verifica-se um crescente interesse em estudos com ênfase na questão racial associada aos aspectos sonoros e musicais da vida social. Recentemente, autoras estadunidenses, como Jennifer Lynn Stoever e Nina Eidsheim, e a historiadora brasileira Martha Abreu dedicaram trabalhos à questão da construção de “racialidades” sonoras, fomentadas principalmente pelas indústrias do rádio e do disco na primeira metade do século XX.

Alinhando-se a recentes correntes da antropologia que apontam a questão sonora como elemento-chave para o entendimento das relações de poder entre diferentes classes sociais, Stoever (2016)STOEVER, Jennifer. The sonic color line: race and the cultural politics of listening. New York: New York University Press, 2016. propõe o conceito de sonic colour line para designar o conjunto de estratégias sonoras ligadas à demarcação ideológica entre brancos e negros no contexto estadunidense. Para a autora, o conceito estaria ligado tanto a uma proposta de hermenêutica racial quanto a índices sonoros ligados a demarcadores que permitiriam aos ouvintes construir e discernir identidades raciais com base em vozes, sons e paisagens sonoras específicas, habilitando-os a mobilizar recursos racialmente codificados de sons com fins discriminatórios.

A linha de cor sônica produz, codifica e policia a diferença racial por meio da escuta, permitindo-nos “ouvir” e “ver” a raça. É uma fronteira construída socialmente que codifica racialmente fenômenos sonoros, como timbre vocal, sotaques e sons musicais. Por meio de vários processos simultâneos de representação dominante, sons particulares são identificados, exagerados e “combinados” com corpos racializados

(STOEVER, 2016STOEVER, Jennifer. The sonic color line: race and the cultural politics of listening. New York: New York University Press, 2016., p. 11, nossa tradução).

Ainda que criado a partir do contexto estadunidense, o conceito de sonic color line parece ter validade no estudo da indústria fonográfica no Brasil, estabelecida a partir de 1902 com o início das gravações comerciais pela Casa Edison do Rio de Janeiro (VICENTE & MARCHI, 2014VICENTE, Eduardo; MARCHI, Leonardo. Por uma história da indústria fonográfica no Brasil 1900-2010: uma contribuição desde a comunicação social. Música Popular em Revista, Campinas, ano 3, v. 1, p. 7-36, jul.-dez. 2014., p. 3-4). Fundada pelo tcheco Frederico Figner no ano de 1900, a Casa Edison foi a principal gravadora brasileira nas duas primeiras décadas do século XX, responsável pelos primeiros registros sonoros com músicos populares cariocas, comercializados por todo o país. Como afirma Franceschi (2002, p. 88-98)FRANCESCHI, Humberto. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro, Sarapuí, 2002., Figner foi também o responsável pela criação, em 1913, de uma fábrica de discos 78 rpm no Rio de Janeiro, a primeira na América Latina. Construída a partir de uma parceria com o grupo sueco Lindström, a fábrica teria, segundo Franceschi (2002, p. 198)FRANCESCHI, Humberto. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro, Sarapuí, 2002., capacidade de produção de 125.000 discos por mês, ou 1.500.000 discos ao ano, o que a posicionava como uma das principais produtoras das Américas. A partir do ano de 1927, a chegada ao Brasil da tecnologia de gravação elétrica e de outros grupos internacionais, como a RCA Victor, a Brunswick e a Columbia, deu um alento ainda maior às vendagens. Elas viriam a ser alavancadas igualmente pelo desenvolvimento da rádio, a partir da década de 1930, e pelo surgimento de um star system que levaria cantores e cantoras como Francisco Alves, Carmen Miranda e Orlando Silva ao auge da popularidade e da venda de exemplares (VICENTE & MARCHI, 2014VICENTE, Eduardo; MARCHI, Leonardo. Por uma história da indústria fonográfica no Brasil 1900-2010: uma contribuição desde a comunicação social. Música Popular em Revista, Campinas, ano 3, v. 1, p. 7-36, jul.-dez. 2014., p. 7-10). Como a parcela mais significativa dessa vendagem estava associada aos discos de música popular urbana de matrizes afro-brasileiras, causa realmente espanto que estudos acadêmicos que proponham um enfoque racial associado à indústria fonográfica brasileira sejam historicamente recentes.

Partindo do problema central da construção da alteridade, e seguindo a perspectiva aberta por Stoever, o presente artigo foca na indústria fonográfica brasileira em seus primeiros estágios. Buscaremos problematizá-la como um lugar de fixação e reverberação de representações sonoras raciais e étnicas, tendo como cerne fonogramas em 78 rotações gravados nas primeiras quatro décadas do século XX por cantores, músicos e compositores negros. Argumentamos que a dinâmica de incorporação desses músicos no sistema de entretenimento alimentado pelas indústrias fonográficas do período passava necessariamente pela exploração de estereótipos em que elementos como etnicidade, comicidade, sensualidade, primitivismo e exotismo exerciam papel central – elaborados precedentemente em registros literários e musicais, como é o caso do lundu.

De xarapins e nhanhás o lundu e a linha de cor sonora

A crítica musicológica se debruça, há muito, sobre os vínculos de sentido histórica e simbolicamente constituídos entre o lundu e os descendentes de africanos escravizados no Brasil. Seguindo a trilha de José Ramos Tinhorão e Mário de Andrade, Carlos Sandroni apontou para o “sentido atribuído desde fins do século XVIII ao lundu-dança e transmitido no século XIX ao lundu-canção” como “representação direta ou velada do universo afro-brasileiro” (SANDRONI, 2001SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001., p. 33). De fato, já a pena setecentista do poeta e músico diletante Domingos Caldas Barbosa (1740-1800),7 7 Poet, priest and Afro-Brazilian musician who, in the last third of the 18th century, emerged not only as an important figure in shaping Brazilian popular music, but also as a musical transit between Brazil and Portugal. por exemplo, parece delinear uma demarcação lexical e sonora distintiva entre os personagens que povoam seus poemas. Ao longo da sucessão de poemas de Barbosa publicados postumamente no segundo volume da coletânea Viola de Lereno,8 8 The first volume of the collection was published in 1798. The second was published posthumously, in 1826 (TINHORÃO, 1986, p. 47). alternam-se dicotomicamente repertórios vocabulares distintos, que permitem diferenciar das demais as composições que recebem o designativo de gênero lundu. O falar do negro escravizado – eu lírico desses poemas destinados a serem cantados – é fortemente denotado por termos como xarapim, arenga, moenga, angu, dengue, quingombó, quindim, moleque, que remetem às línguas africanas do grupo bantu,9 9 On the presence of Bantu languages in Brazilian Portuguese, see Lopes (2003), Queiroz (2018) and Lucchesi, Baxter and Ribeiro (2009). On the Bantu presence in Brazilian music, see, among others, Mukuna (2000) and Lara and Pacheco (2007). mas também a uma vocalidade atribuída aos escravizados, como é o caso de corruptelas dos termos senhora e senhor, nas formas nhanhá, iaiá e nhonhô.10 10 For example, the “Lundum de Cantigas Vagas” (BARBOSA, 1826, p. 15-17): “Xarapim eu bem estava / Alegre nesta aleluia, Mas para fazer-me triste / Veio Amor dar-me na cuia. // Não sabe meu Xarapim / O que Amor me faz passar, / Anda por dentro de mim, / De noite, e dia a ralar. // Meu Xarapim já não posso / Aturar mais tanta arenga / O meu gênio deu à casca / Metido nesta moenga. // Amor comigo é tirano / Mostra-me um modo bem cru, / Tem-me mexido as entranhas / Qu’estou todo feito angu. // Se visse o meu coração / Por força havia ter dó, / Porque o Amor o tem posto / Mais mole que quingombó. // Tem nhanhá certo nhonhô, / Não temo que me desbanque, / Porque eu sou calda de açúcar / E ele apenas mel de tanque. // Nhanhá cheia de chulices / Que tantos quindins afeta, / Queima tanto a quem a adora / Como queima a malagueta. // Xarapim tome o exemplo / Dos casos que vê em mim, / Que se amar há de lembrar-se / Do quer diz seu Xarapim. // [Estribilho:] Tenha compaixão / Tenha dó de mim, / Porqu’eu lho mereço / Sou seu Xarapim”.

A caracterização das personagens envolvidas na cena poética das canções se desenha a partir da sonoridade e da vocalidade associadas a esse léxico, mas também pela forma como são descritos os vínculos amorosos e eróticos – reais ou desejados – entre o moleque negro escravizado e sua nhanhá branca. A descrição é marcada pelas ideias de escravidão, compra, possessão, designando ao mesmo tempo a escravização real do corpo negro e a sujeição amorosa, ou, ainda, pela evocação ao castigo corporal, convertido metaforicamente em jogo erótico.11 11 See page 9 infra and footnotes 16, 17 and 18, on the use of this device in other cultural and geographical environments.

O tom jocoso, debochado e licencioso das cenas protagonizadas por moleques, xarapins e suas nhanhás contrasta com o lirismo pudico predominante no restante da coletânea, povoado de lugares comuns da tradição literária bucólica, no qual as amadas são referidas sob a máscara de ninfas ou pastoras de nome Anarda, Marília, Lília, Nerina, Tirce, Ulina, Márcia, frequentes na poética do arcadismo português e brasileiro.12 12 E.g., “[...] Vir a gente rebolindo / Ao chamado imperioso / Ouvir-lhe apre inda não chega! / He bem bom he bem gostoso. // [chorus] // Chegar aos pés de nhanhá / Ouvir chamar preguiçoso, / Levar um bofetãosinho / He bem bom he bem gostoso” (BARBOSA, 1826, p. 7-10). Although this poem is not specifically designated a lundu in the collection, it is similar in theme and lexical usage. Conversely, as Sandroni (2001) rightly pointed out, the poem “Gentes de bem pegou nele” is designated as lundu in the collection, although it does not present the characteristics pointed out here. Nesses poemas/canções, o poeta Lereno – conforme o pseudônimo pastoral de Caldas Barbosa na Nova Arcádia de Lisboa e na Arcádia de Roma, Lereno Selinuntino (SAWAYA, 2011SAWAYA, Luiza. Domingos Caldas Barbosa – para além da Viola de Lereno. Dissertação de Mestrado em Letras, Estudos Românicos, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de Estudos Românicos, 2011.) – narra as doçuras e agruras de suas experiências amorosas, cantando a delicadeza e a beleza dos traços e dos modos da amada, espelhados numa natureza igualmente dócil.13 13 E.g., in Antonio Diniz da Cruz e Silva (1731-1799), Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), Filinto Elísio (1734 -1819), Leonor de Almeida Portugal, Marquesa de Alorna (1750-1839), Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), Luís António Verney (1713-1792), Tomás António Gonzaga (1744-1810), among others.

A publicação do segundo volume da Viola de Lereno, em que constam as peças designadas lundus é, como se disse, póstuma, e essa designação provavelmente não era utilizada por Caldas Barbosa, vindo somente a ser empregada a partir do século XIX (SANDRONI, 2001SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.). De toda forma, como se vê, a distinção entre uma poética erotizada e jocosa, conformadora de um estereótipo comportamental e sonoro aplicado ao homem negro e escravizado, e uma poética lírica e idílica remissiva ao ethos do branco europeu era uma realidade antes do século XIX.

Como mostra Sandroni a partir de Béhague, em fins do século XVIII, o elemento diferenciador entre as modinhas ditas brasileiras e portuguesas parece ter sido justamente essa distinção poética, acompanhada da distinção entre uma escrita musical mais ou menos sincopada (do que deriva, evidentemente, uma distinção coreográfica na música dançada). O que separava modinhas brasileiras e portuguesas, assim, era uma linha de cor sonora (vocal, vocabular, rítmica, musical enfim) e corporal (gestual, coreográfica), perfazendo um estereótipo da alteridade racial e cultural14 14 E.g., in “Retrato de Anarda”: “Pastores acompanhai-me / Cada hum sua flauta tome, / E de Anarda o doce nome / Vinde todos festejar. // Anarda gentil Anarda / Vem nossos hymnos honrar. // Aquellas formosas tranças / De finíssimos cabellos, / A luz viva de olhos bellos / São dignas de se louvar. // Anarda &c. // O rosto que a Natureza / Engraçadamente córa, / As faces da côr d’aurora / Tem muito que celebrar. // Anarda &c. // Engraçada boca, e linda, / Que só voz discreta solta, / N’um divino aroma envolta / Que perfuma a todo o ar. // Anarda &c. // A lindissima garganta / O corpo gentil, e airoso, / O engraçado pé mimoso / Tudo he raro, he singular. // Anarda &c. // Mas desta pastora illustre / Não se louve só belleza, / Tens mais dons da Natureza / Digno assumpto de cantar. // Anarda &c. // Ostentou o Ceu mostrar-se / Sempre liberal com ella, / Deo-lhe em bello corpo, a bella / Alma illustre, e singular. // Anarda &c.” (BARBOSA, 1826, p. 16-18). que prefigurou a maneira pela qual muitos músicos negros viriam a se inserir e afirmar na indústria fonográfica brasileira em seus primeiros estágios de desenvolvimento, nas primeiras décadas do século XX.

Antes disso, porém, entre os exemplos literários e musicais setecentistas e os registros fonográficos, a distinção sonora racializada encontrou no lundu burguês de salão e no lundu encenado e cantado nos entremeses teatrais, amplamente cultivados no século XIX (ou seja, da indústria cultural brasileira nascente), um veículo de continuidade. Como apontam Mário de Andrade (1999 [1944])ANDRADE, Mário de. Cândido Inácio da Silva e o Lundu. Latin American Music Review / Revista de Música Latinoamericana, v. 20, n. 2, p. 215-233, Autumn-Winter, 1999 [1944]., Tinhorão (1971) e Sandroni (2001)SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001., as marcas de alteridade elaboradas no terreno poético-musical do lundu já constituíam, no século XIX, uma máscara suficientemente estabilizada e fixada, que doravante podia recobrir, indistintamente, rostos (e corpos) negros ou brancos.

Já os lundus que nos chegaram do Império e dos primeiros anos da República são música perfeitamente burguesa, isto é, composta por profissionais (cuja formação técnica se fez em moldes europeus, e cuja função se distingue dos letristas), sustentada financeiramente através da venda de partituras, interpretada nas casas das famílias que possuíam piano e nos teatros de variedade a ingresso pago. Esses compositores empregavam síncopes à maneira dos atores brancos que se pintavam de preto: o dialeto musical do lundu burguês é “marcado” como um sotaque caipira. Arvellos, Sá Noronha, Coelho Machado etc., todos empregavam nas suas composições para orquestra ou corais, nas suas polcas ou modinhas, o estilo “clássico-romântico” internacionalmente dominante, no qual as síncopes, se entram, é com toda discrição. Na hora de compor o lundu, ao contrário, elas entravam espalhafatosamente, como ingrediente da caracterização, como imitação do que seria, para os ouvidos brancos de então, a “negritude” musical (não é à toa que a figura semicolcheia-colcheia-semicolcheia é chamada por Mário de Andrade e outros de “síncope característica”)

(SANDRONI, 2001SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001., p. 47).

Rostos e corpos, ora negros ora brancos, por meio da “nova variante da aculturação branco-negra no campo das danças batucadas” (TINHORÃO, 1971TINHORÃO, José Ramos. Música popular de negros, índios e mestiços. Petrópolis: Vozes, 1972., p. 54), performatizavam um repertório musicalmente conotado de “negritude”, que poderia até mesmo prescindir da temática negra.15 15 It should be noted that this form of fixation of otherness based on vocal, sound, rhythmic and musical elements occurred within the very interior of the pastoral culture in the First Modern Period, which confirms, in a way, a modus operandi of Western culture, with perceptible geopolitical implications, also in this case. We refer to the established ethical distinction, in poetry, music and pastoral theater, between the elevated ethos of shepherds and nymphs and the characterization of peasants and satyrs as the opposite of the natural civility of the inhabitants of mythical Arcadia (LEMOS; VIEGAS, 2021).

Mário de Andrade (1999, p. 225)ANDRADE, Mário de. Cândido Inácio da Silva e o Lundu. Latin American Music Review / Revista de Música Latinoamericana, v. 20, n. 2, p. 215-233, Autumn-Winter, 1999 [1944]. descreve a forma pela qual o lundu “vence o fingido desinteresse das classes dominantes e invade a festa do branco”, ora em uma versão instrumental na qual era “alimpado primeiro”, “perfumado a cravo de tecla” e “descascado de sua cor”, ora na forma de uma canção cujo registro cômico permitia contrabandear outras formas de vida no ambiente das classes dominantes.

A comicidade, a caçoada, o sorriso, era o disfarce psicossocial que lhe permitia a difusão nas classes dominantes. Caçoavam, ou pelo menos sorriam condescendentemente com os amores da terra. A mulata principiava, e a negra e o negro, sendo literariamente consentidos nas classes de alta e pequena burguesia, como objeto de vazão sexual. Mas, ao contrário de um poeta de combate, como Castro Alves, o lundu retirava deles qualquer dor e qualquer drama. Deles. O homenzinho alvíssimo é que sofria por causa delas, das mulatinhas do caroço, um sofrer risonho. E também a repudiavam com “amor”, com a dignidade dos seus sentimentos acompanhantes, e como força social constitutiva da família. Pura evasão sexual.

É um fenômeno idêntico ao aparecimento itálico da ópera buffa, em que o personagem do povo foi consentido dentro da aristocracia da ópera, com seus heróis míticos e históricos da Grécia e de Roma, mas consentido pela comicidade. É também a criação da farsa medieval, dentro da aristocracia religiosa das paixões e dos mistérios. E da mesma forma que com as farsas e a ópera buffa, se as pretas, pretaranas e moleques eram convidados a frequentar o texto dos lundus, também entravam com eles a sua linguagem e a sua música. Com o lundu entravam os erros de gramática conscientes os “meu bem está mal com eu”, os “mecê já não me gosta”

(ANDRADE, 1999ANDRADE, Mário de. Cândido Inácio da Silva e o Lundu. Latin American Music Review / Revista de Música Latinoamericana, v. 20, n. 2, p. 215-233, Autumn-Winter, 1999 [1944]. [1944], p. 226-227).

O registro cômico era a fresta que permitia a entrada na cena de formas de vida subalternizadas, ao preço, no entanto, de um esvaziamento de subjetividade, como observa Andrade, e da obliteração da violência física e simbólica às quais estavam sujeitadas, “mostrando não o duro cotidiano do trabalho escravo, mas o negro que dança e que sobretudo faz rir seus senhores brancos” (SANDRONI, 2001SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001., p. 45).

É importante atentar, nos trechos de Andrade e Sandroni transcritos acima, para a analogia, respectivamente, à personagem popular (no contexto da ópera e da comédia farsesca) e ao sotaque caipira. Efetivamente, a elaboração poético-musical de uma forma de alteridade centrada no negro escravizado no contexto colonial brasileiro parece ter reiterado e reatualizado formas de constituição de alteridade presentes na literatura e na música já na Primeira Época Moderna. Referimo-nos particularmente à caracterização de camponeses e rústicos cuja comicidade revestia, igualmente, tensões sociais e geopolíticas mais ou menos recalcadas, segundo o caso. Assim como no caso do descendente de africano no Brasil, o falar popular, camponês e/ou dialetal, havia sido caricaturizado e estilizado, por exemplo, na poesia e na música italiana desde ao menos o século XVI,16 16 As is the case of the lundu by Cândido Inácio da Silva on lyrics by Manoel de Araújo Porto Alegre, “Lá no Largo da Sé”, which Mário de Andrade referred to as significant in the constitution of a Brazilian music, ethnically and socially miscegenated: “It’s not about class anymore. It’s not about race anymore. It’s not about white, but it’s also not about black. It is national” (ANDRADE, 1999, p. 228): “Lá no largo da Sé Velha / Está vivo um grande tutu / Numa gaiola de ferro / Chamado surucucu // Cobra feroz / Que tudo ataca / ‘Té da algibeira / Tira pataca // Bravo à especulação / São progressos da nação // Elefantes berrões / Cavalos em rodopios / Num curro perto da Ajuda / Com macacos e bugios // Tudo se vê / Misericórdia / Só por dinheiro / A tal mixórdia // Bravo à especulação / São progressos da nação // Os estrangeiros dão bailes / Pra regalar o Brasil / Mas a Rua do Ouvidor / É de dinheiro um funil // Lindas modinhas / Vindas de França / Nossos vinténs / Levam na dança // Bravo à especulação / São progressos da nação // Água em pedra vem do norte / Pra sorvetes fabricar / Que nos sorvem os cobrinhos / Sem a gente refrescar // A pitanguinha / Caju, cajá / Na goela fazem / Taratatá Bravo à especulação / São progressos da nação”. seja por meio de uma distinção fonética e lexical, seja pela fixação de métricas poéticas (ou seja, por meio de elementos sonoros, rítmicos, musicais) que foram assumidas como índices estilizados de um falar popular rústico e rugoso.17 17 Translator’s note: The original word is a neologism, based on the word “clean”, invented by the author to denote a popular way of speech.

No caso brasileiro, chamamos a atenção, no que tange a essas práticas de caracterização sonora, para o uso explícito da expressão “língua de negro”, referida por exemplo por Manuel Antônio de Almeida em suas Memórias de um Sargento de Milícias (1854). Empregada em Portugal desde o século XVI, a expressão referia não somente a forma de falar o português dos africanos escravizados, mas também a estilização literária desse falar na dramaturgia cômica e farsesca portuguesa.18 18 Translator’s note: In Portuguese, this is a play on words, since the Portuguese word for “harpsichord” is the same for “carnation”. Como inferiu Mário de Andrade, a menção a ela na prosa de Manuel Antônio de Almeida é um indício de que “cantar em língua de negro era então ainda [em meados do século XIX] uma coisa exótica e pagável” (ANDRADE, 1999ANDRADE, Mário de. Cândido Inácio da Silva e o Lundu. Latin American Music Review / Revista de Música Latinoamericana, v. 20, n. 2, p. 215-233, Autumn-Winter, 1999 [1944]. [1944], p. 224).

Gozava reputação de homem muito divertido, e não havia festa de qualquer gênero para a qual não fosse convidado. (...) A fama que tinha de homem divertido, e que lhe proporcionava tão belos meios de passar o tempo, devia-a a certas habilidades, e principalmente a uma na qual não tinha rival. Tocava viola e cantava muito bem modinhas, dançava o fado com grande perfeição, falava língua de negro, e nela cantava admiravelmente, fingia-se aleijado de qualquer parte do corpo com muita naturalidade, arremedava perfeitamente a fala dos meninos da roça, sabia milhares de adivinhações, e finalmente, – eis aqui o seu mais raro talento, – sabia com rara perfeição fazer uma variedade infinita de caretas que ninguém era capaz de imitar

(ALMEIDA, 1854ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. 1854., capítulo XVIII, grifos nossos).

A alteridade do negro e a do camponês convergem também no rol das qualidades histriônicas de Teotônio, o personagem das Memórias, capaz de mimetizar não somente a “língua de negro”, mas também a de “meninos da roça” e “aleijados”: outros outcasts no teatro da normatividade civilizada, cuja exotização e espetacularização, seja no registro cômico ou monstruoso, costumou se conjugar à subalternização e exclusão.19 19 Sandroni (2001, p. 46) perceptively summarizes Mário de Andrade’s reading of the comic nature of the lundu, suggesting that “Andrade sees in the comic nature of the lundu what psychoanalysis would call a ‘symptom’, a manifestation that distortedly expresses a repressed conflict, in this case the latent social conflict between masters and slaves”. The notion of a comic that reveals a conflict situation that is more or less repressed would justly apply to the case of the rustic comedy that was established in Padua and Siena in the Italian Renaissance. The actor Angelo Beolco (1496-1542) and his famous character Ruzante, in Padua, or the rustic and anti-academic scene of the Congrega dei Rozzi in Siena, symptomatically asserted themselves at a time when the two cities “lose political and cultural autonomy and feel their linguistic identity threatened by the regional metropolises of Venice and Florence” (FOLENA, 1991, p. 132-133).

“Com o lundu”, diz Andrade (1999, p. 227)ANDRADE, Mário de. Cândido Inácio da Silva e o Lundu. Latin American Music Review / Revista de Música Latinoamericana, v. 20, n. 2, p. 215-233, Autumn-Winter, 1999 [1944]., “entravam os erros de gramática conscientes, os meu bem está mal com eu, os mecê já não me gosta” que, visando criar um efeito cômico, exploravam, como sugeriu Tinhorão (1986, p. 55)TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. São Paulo: Art Editora, 1986., “a graça da posição social especial dos escravos na sociedade patriarcal”.20 20 Musicological studies have identified, for example, the use of the proparoxytone verse called sdrucciolo in Italian as a mark of ethical characterization (GERBINO, 2004). The constitution of a modality of otherness centered on popular and dialectal speech took place on a terrain of tensions and political disputes in the Italian Peninsula, in which literature and art were of great importance as an instance of symbolic elaboration and transmission (DIONISOTTI, 1999, p. 158-159). Mas relatos como o expresso sob anonimato nos Sketches of Portuguese Life, manners, costume, and character, publicados em Londres em 1826, dão mostra de como a alteridade representada no ou pelo lundu pôde ser fixada não somente num registro de comicidade, mas também na chave do grotesco ou monstruoso. O autor estabelece uma distinção radical entre o lundu performatizado por portuguesas brancas dos altos círculos sociais e o lundu praticado por negros e pobres. O primeiro é uma dança teatralizada agradável e digna de aplausos, feita de cadências graciosas, elegância e atitudes expressivas dos membros e do corpo, pois depurada de seu caráter original lascivo e frenético por meio de “modificações decentes”. O segundo, no entanto, não é objeto senão de nojo e espanto.

(...) Quando isso é bem dançado, nunca deixa de suscitar os aplausos mais estrondosos. O que acabei de tentar descrever é o landum das melhores classes. Mas quando dançado pela canalha está longe de ser gracioso ou decente. As pessoas comuns em Portugal gostam tanto do landum, que mesmo em idade avançada experimentam uma forte sensação de prazer ao ouvir seu ritmo tocado na guitarra. Nunca me esquecerei de ter visto uma vez uma mulher de oitenta anos velha como uma múmia levantar-se do chão que esfregava ao ouvir um barbeiro tocar a melodia, e começar a acompanhar o ar com contorções às quais a idade conferia nenhuma outra impressão senão o puro desgosto. (...) Foi-me assegurado que tanto os negros como os portugueses são conhecidos por dançarem até o estado de frenesi e mesmo até a convulsão. (...) Deixamos, no entanto, de nos espantar que os filhos da África gostem tanto deste exercício, quando nos é assegurado por um viajante digno de crédito que, a partir do momento em que o sol se põe, a totalidade daquele vasto continente é uma só cena de dança.21 21 The process of stereotyping and burlesque spectacularization of black otherness in literature and music is not exclusive to the Portuguese/Brazilian case. Analogously to the case of the “black language”, already stylized in the 16th century Portuguese-speaking comic dramaturgy as a characterizing element of the enslaved African, a habla de los pretos, also called bozal español, or simply bozal, frequently appeared in the comic literature of the Spanish Golden Age and, equally, in the poetic-musical repertoire of villancicos de negroes, also called villancicos guineos or negrillas, strongly popular in the Hispanic environment, notably in the colonial territory of New Spain. See, in this regard, Subirá (1992), Lipski (1995), Swiadon (2002), Santamaría (2006), Ludlow (2008), Abril (2013), Porras (2013), Lopes (2017), Krutitskaya (2018), Singer (2019), Uribe (2020), among others. It should be noted that the villancico de negros is just one modality among many others that, within the vast subgenre of villancicos called by critics as villancicos de remedo (Abril, 2013), satirically represents “algún grupo sociocultural distinto al hegemónico” (ABRIL, 2013, p. 19) (Abril mentions different designations used by other authors: villancicos jocosos, villancicos plurilingües, villancicos diglósicos or heteroglósicos). The vast cast of othernesses (characterized in these villancicos de remedo mainly by their supposed form of verbal/dialectal expression) includes peasants, shepherds, indigenous people, foreign communities of Portuguese, French, Tuscan, Guinean, Galician, Asturian and Basque, among others (ABRIL, 2013). This confirms the coherence (already pointed out here) between the multiple examples of representation of otherness that historically contributed to the conformation of the modern West in mentalities, and that largely share both the operative characteristics and the social and geopolitical effects and implications.

(A. P. D. G., 1826A. P. D. G. Sketches of Portuguese Life, manners, costume, and character. London: printed for Geo. B. Whittaker: printed by R. Gilbert, 1826. Disponível em: https://purl.pt/14638/1/index.html#/1/html. Acesso em: 29 jul. 2022.
https://purl.pt/14638/1/index.html#/1/ht...
, p. 288-290).

Frenesi, lascividade, contorções convulsivas e feiura compõem a imagética associada pelo autor anônimo ao lundu popular e negro.22 22 This register is equally similar to that of certain characterizations of otherness already present in the First Modern Period: characters from commedia dell’arte and opera who ended up perpetuating themselves as maids, wet nurses or pages, whose comic nature constituted a gap even for the social criticism (COSTA, 2008). Their special position – of belonging to a subaltern social class but enjoying access to the most intimate life of characters from the higher classes – allowed for the dramaturgical exploration of the erotic dimension and social tension, in addition to making these characters key elements for tying together the intrigue. E, o que é crucial, a imagética opera metonimicamente e por degraus, vinculando as qualidades do lundu a seus praticantes primeiros e, em seguida, a todo o “vasto continente” do qual são oriundos, que, a partir do exemplo pontual do lundu-dança, é conotado de primitivismo, devassidão e irracionalidade.

César Nunes, Geraldo Magalhães a linha de cor sonora e a indústria fonográfica

Exemplo primeiro de brasilidade musical segundo Mário de Andrade, o lundu parece ter ao mesmo tempo desenhado e desafiado a linha de cor sonora que ajudou a constituir, atravessando barreiras sociais, étnicas e éticas. Foi, também, um dos primeiros gêneros musicais gravados em terras brasileiras, em 1902, na voz do cantor Manuel Pedro dos Santos, o Bahiano: Isto é bom, do ator, compositor e cantor Xisto Bahia (Disco Zon-o-phone 10001).23 23 Translator’s note: “Bahiano” was the singer’s nickname. The Portuguese word refers to a person born in Bahia, a state in Brazil’s Northeast region. A fonografia, de fato, soube se valer da atratividade exercida pela música popular de matriz afro-brasileira, explorando comercialmente e em escala industrial a chave da comicidade e do exotismo, já então comprovadamente incorporada no gosto do público dos teatros e da imprensa musical.

Como mostrou a historiadora Martha Abreu, a construção dessa linha de cor é observável tanto em periódicos como em capas de partituras publicadas ao longo do século XIX e inícios do século XX. Em seu livro Da senzala aos palcos: canções escravas e racismo nas Américas (2017), a autora destaca o modo estereotipado pelo qual músicos negros eram representados em caricaturas que salientavam aspectos “primitivos” ou “cômicos”, associando essas qualidades ao universo afro-americano.

Um exemplo dentre muitos é uma charge publicada na revista O Malho em 1908, figurando “Um choro nos cafundórios dos subúrbios”. Prática musical nascida no final do século XIX, o choro – assim como outros gêneros musicais como o maxixe e o próprio samba – será frequentemente referido na imprensa do início do século XX em associação ao ambiente afro-brasileiro e a bairros situados para além das fronteiras “civilizadas” da cidade do Rio de Janeiro, como a Cidade Nova e os subúrbios.

Utilizado para designar a festa, o baile e ao mesmo tempo o encontro musical em torno de instrumentos populares como o cavaquinho e o violão, o termo “choro” foi fortemente conotado, constituindo uma marca de alteridade. Como se nota na charge, os integrantes do choro são retratados a partir da caricatura de seus traços fenotípicos: lábios grossos acentuados, cabelos crespos, num aglutinamento desordenado de pessoas cuja coreografia (figura central do cartoon) guarda ares de primitivismo. A cena é apresentada sob uma legenda que realça a fronteira física com a urbe civilizada, e acompanhada da transcrição de um diálogo com erros gramaticais (“Ah quem deras que eu sesse!”; “Nunca deixará de o for...”) atribuindo aos frequentadores desses bailes ignorância e falta de cultura.

Figura 1
Charge retratando “Um choro nos cafundórios do subúrbio”. Revista O Malho, 15 de fevereiro de 1908, ano VII, n. 28, p. 24

Uma escuta crítica de alguns dos primeiros registros fonográficos brasileiros permite identificar, transpostas para os sulcos dos discos, essas mesmas caricaturas racializadas tão frequentes nos jornais da época e que, como vimos, já vinham se constituindo desde os tempos de colônia. Um exemplo significativo é “Imitação d’um batuque africano”,24 24 All phonograms mentioned in this paper, unless otherwise specified, are available for listening on the website Discografia Brasileira, from Instituto Moreira Salles. Listening 1: Isto é bom, by the actor, composer and singer Xisto Bahia, Zon-o-phone 10001, available at: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/571/isto-e-bom (accessed on: May 26, 2023). fonograma lançado em 1907 (disco Victor R 98702) com interpretação do cantor branco César Nunes. Ator, cantor e imitador de grande prestígio no Brasil nas primeiras décadas do século XX, Nunes se apresentava frequentemente como “o homem fonógrafo” em virtude de sua habilidade de imitar o som dessa novidade tecnológica da época. Performatizava, ainda, “imitações de tipos populares portugueses” e esquetes cômicos em teatros de revista e vaudevilles por todo o Brasil.

Figura 2
Anúncio de apresentação de César Nunes em palcos cariocas. Correio da Manhã, 27 de outubro de 1907, p. 12

Tal como o exemplo literário das Memórias de um Sargento de Milícias, a “Imitação d’um batuque africano” é um exemplo notável da fixação de uma linha de cor sonora no contexto brasileiro e dá continuidade a marcas estabelecidas nos séculos anteriores, de forma fortemente caricaturizada: interjeições que pretendem remeter ao que era entendido pelos agentes da época como um universo primitivo e rural, mimetização de idiomatismos e vocalidades de africanos escravizados, tudo em um registro de comicidade. A despeito da audibilidade precária desse fonograma que data do início do século XX, uma análise de seu conteúdo musical nos permite identificar recursos sonoros utilizados na construção da linha de cor sonora, tal como proposta por Stoever.

César Nunes é acompanhado por uma guitarra portuguesa que articula basicamente dois acordes em função V-I da harmonia tradicional, em um acompanhamento rítmico-harmônico baseado no esquema 3-1-2-2 (colcheia pontuada, semicolcheia, colcheia, colcheia), um dos padrões rítmicos apontados por Sandroni para caracterizar a habanera, próximo da figuração típica do maxixe (3-3-2). Esse padrão rítmico harmônico é mantido em toda a duração do fonograma. Sobre ele o cantor vocaliza interjeições no contratempo (“ih ih ih”), evocando o que seria um “típico” ambiente “ritual” e/ou “primitivo” (Fig. 3).

Figura 3
Excerto de “Imitação d’um atuque africano” gravado por César Nunes (disco Victor R 98702)

Segue-se uma frase musical em semicolcheias sobre texto onomatopaico, simulando um pretenso dialeto africano seguido de vocalizações (“ah ah”).

Figura 4
Excerto de “Imitação d’um batuque africano” gravado por César Nunes (disco Victor R 98702)

A busca de efeitos sonoros remissivos a um ambiente primitivo, rústico e estranho é reforçada no trecho seguinte, no qual César Nunes se utiliza de um objeto percussivo, num efeito de gravação que realça a estranheza timbrística com a qual se quer descrever o ambiente sonoro do “batuque”.

Figura 5
Excerto de “Imitação d’um batuque africano” gravado por César Nunes (disco Victor R 98702)

No trecho seguinte, Nunes descreve um “cabinda” na porta do rio – o termo refere uma localidade em Angola e era utilizado para identificar a população escravizada oriunda dessa região. O texto (“O cabinda na porta do rio/O cabinda na porta do rio/Ficou pasmado ao ver o navio”) é seguido de vocalizações, interjeições, comentários falados e risadas, imitando de forma estereotipada a fala e a figura do “preto velho”, comum nas caricaturas do período.

Figura 6
Excerto de “Imitação d’um batuque africano” gravado por César Nunes (disco Victor R 98702)

Além de desenhar sonoramente uma caricatura vocal, a gravação inclui um dos elementos-chave de caracterização da linha de cor sonora, tal como proposta por Stoever (2016, p. 39)STOEVER, Jennifer. The sonic color line: race and the cultural politics of listening. New York: New York University Press, 2016.: o comportamento essencialmente sensual e libidinoso atribuído aos negros. É o caso do trecho que refere o ato sexual em ambiente rústico (“O preto com mais a preta/Foi abaixo de u´bananeira/O preto que diz para a preta/Vamos fazer brincadeira?”), e igualmente a fala do “preto velho” intercalada ao canto, que faz referência à sensualidade do corpo feminino negro (“Anda aí filha, rebolando sempre menina”).

Figura 7
Excerto de “Imitação d’um batuque africano” gravado por César Nunes (disco Victor R 98702)

Tal como argumenta Lisa Gitelman (1999)GITELMAN, Lisa. Scripts, grooves, and writing machines: representing technology in the Edison Era. Stanford, CA: Stanford University Press, 1999., as primeiras tecnologias de gravação deram início a uma nova geração de menestréis blackface no contexto norte-americano, em que o “soar negro” se tornou mais importante para os artistas brancos do que o “aparentar negro” tingindo o rosto com cortiça queimada. No Brasil, gravações como a de César Nunes são exemplos de como a fonografia participou da construção de alteridade racial por meio de dispositivos sonoros específicos, constituindo um análogo audível das caricaturas que acentuavam traços fenotípicos e das imagens de primitivismo associadas aos modos de vida da população afro-brasileira. Esses dispositivos que, como vimos, incluíam vocalidades, sotaques, imitação de dialetos, gírias, vocalizações e expressões extraverbais, contribuíram para estabelecer uma distinção entre o mundo sonoro “afro-brasileiro” e o mundo sonoro branco-ocidental.

Se historicamente uma cadeia de mediadores, em sua maior parte constituída por agentes brancos ligados à indústria do entretenimento (tais como César Nunes), colaborou ativamente na elaboração de estereótipos racistas, por outro, diversos músicos negros estiveram ativos na construção de pontes, espaços e significados para as práticas musicais de matriz afro-brasileira no início da fonografia no Brasil. É o caso do cantor Geraldo Magalhães, o primeiro cantor negro brasileiro a gozar de uma carreira internacional.

Nascido em 1878 na cidade de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, Magalhães iniciou sua trajetória como cantor e cançonetista no Rio de Janeiro nos últimos anos do século XIX. Já em 1900 se apresentava no Alcazar Parque, no bairro da Lapa, em duo com a espanhola Margarita Quintano, como comprova anúncio publicado na Revista da Semana, em 6 de outubro daquele ano. Segundo Vasconcelos (1977)VASCONCELOS, Ary. Panorama da música popular brasileira na Belle Époque. Rio de Janeiro: Livraria Santanna, 1977. , naquele período Magalhães começava a se tornar conhecido como cantor de chopps e cafés-dançantes da cidade, atraindo a atenção da intelectualidade carioca da época. João do Rio, um dos mais reconhecidos cronistas da cidade, retratou Magalhães nos seguintes termos:

Com a influência dos cafés-dançantes, Geraldo deixou as serestas para vestir “smocking” e usar monóculo num “chopp” da Rua da Assembléia. O seu repertório é quase todo escrito por poetas de renome que lá iam passar a hora verlaineana. Há tangos repinicados falando de caruru, escritos por simbolistas que, quando assinam poemas, só falam de messes loiras e de crisântemos (...)

(citado por VASCONCELOS, 1977VASCONCELOS, Ary. Panorama da música popular brasileira na Belle Époque. Rio de Janeiro: Livraria Santanna, 1977. , p. 302).

A narrativa de João do Rio nos indica uma continuidade histórica da linha de cor fixada nos séculos anteriores, evidenciando um aspecto que remete ao fenômeno apontado por Andrade (1999)ANDRADE, Mário de. Cândido Inácio da Silva e o Lundu. Latin American Music Review / Revista de Música Latinoamericana, v. 20, n. 2, p. 215-233, Autumn-Winter, 1999 [1944]., Tinhorão (1972TINHORÃO, José Ramos. Música popular de negros, índios e mestiços. Petrópolis: Vozes, 1972.; 1986)TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. São Paulo: Art Editora, 1986. e Sandroni (2001)SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001. e já citado aqui: o uso intencional, mais ou menos exagerado e estereotipado das marcas lexicais e musicais atribuídas ao lundu, por parte dos compositores brancos burgueses de peças de salão e de entremeses teatrais no século XIX. Nesse início de século XX, assim como dantes, os “tangos repinicados falando de caruru” de que nos fala João do Rio, ou seja, sincopados e escritos com léxico culturalmente conotado como negro, distinguem-se da poesia composta pelos mesmos autores – “poetas simbolistas” – sobre temas e termos mais civilizados, verlainianos, ocidentais: a natureza dócil e domesticada de “messes loiras” e “crisântemos”.

Sua narrativa nos indica também, por outro lado, o desafio ou a subversão da linha de cor por parte de músicos negros que, como Geraldo Magalhães, “deixaram a seresta para vestir ‘smocking’ e usar monóculo”. Em paralelo à carreira nos palcos, Geraldo Magalhães desenvolveu uma intensa carreira como cantor em disco a partir de 1902, o que o coloca como um dos pioneiros da discografia brasileira, ao lado de outros cantores como Cadete e Bahiano. Conforme anúncio publicado em 24 de agosto de 1902 no Correio da Manhã, Geraldo Magalhães lançou naquele mesmo ano a canção Pela janela, disco aparentemente hoje perdido e que não consta na Discografia Brasileira em 78 rpm do Instituto Moreira Salles. Em 1906, gravou a canção A Mulata de Gonçalves Crespo e Nicolino Milano, inaugurando assim uma temática que viria a ser recorrente em sua discografia, já fortemente explorada no teatro musicado: a remissão a tipos raciais brasileiros (com ênfase em figuras femininas, como “a mulata” e “a negrinha”).

Em 1904, criou o duo Os Geraldos, em parceria com a cantora gaúcha Nina Teixeira, com quem realizou diversas turnês internacionais nos anos seguintes, e lançou o primeiro disco do duo pela Casa Edison, com o célebre maxixe Corta Jaca, de Chiquinha Gonzaga. Em 1908 os dois integrantes partiram para a Europa, onde se apresentaram aparentemente com muito sucesso em Paris e em Lisboa, conforme indica a imprensa e referências de época. Uma delas é uma carta do escritor Xavier de Carvalho publicada na imprensa carioca em 1908, citada por Vasconcelos (1977, p. 302)VASCONCELOS, Ary. Panorama da música popular brasileira na Belle Époque. Rio de Janeiro: Livraria Santanna, 1977. , em que afirma que o duo Os Geraldos havia “conquistado Montmartre e eram, naqueles dias, o clou festivo dos noturnos festivais do cabaré Abbaye de Thélème”. Da mesma forma, a Revista Brasil-Portugal, de 1º de agosto de 1908, publicou uma foto do duo, afirmando que o teatro Coliseu dos Recreios “se enchia para ver Os Geraldos em seu inimitável dueto brasileiro”. Conforme afirma Aragão (2016)ARAGÃO, Pedro. Diálogos luso-brasileiros no Acervo José Moças da Universidade de Aveiro: um estudo exploratório das gravações mecânicas (1902-1927). Opus, v. 22, n. 2, p. 83-114, dez. 2016., o sucesso na Europa ecoou no Brasil de modo dúbio: enquanto parte da imprensa festejava a “consagração do artista patrício”, o cronista Jota Depê, no periódico brasileiro O Degas, classificava o duo como “dueto beiçudo”, que proclamava em países estrangeiros “o baixo nível financeiro e estético de nossa arte” (revista O Degas, 9 maio 1908).

Figura 8
Duo Os Geraldos, com Geraldo Magalhães e Nina Teixeira

Em 1910, Geraldo Magalhães iniciou sua carreira discográfica em Lisboa, gravando sob o selo Zonophone as canções Uma lição de machina de mão (Gramophone Company 262109), A partida do Geraldo (Zonophone 52005), A avelha e a flor (Zonophone Z-052010), além dos maxixes O Vatapá (Gramophone Company 1156) e Maxixe Aristocrático (Victor 98447), em parceria com a cantora portuguesa Medina de Sousa.

Em 1913, Nina Teixeira foi substituída no duo pela cantora portuguesa Alda Soares, com quem o cantor brasileiro se casaria no ano de 1915, conforme noticia o jornal brasileiro O Imparcial em 29 de junho daquele ano. Em parceria com Alda Soares, Geraldo Magalhães cruzou diversas vezes o Atlântico, realizando turnês não apenas no Brasil e em Portugal, mas em países como México, Nicarágua, Espanha e Suécia.

Embora pouco citado pela historiografia da música popular brasileira (com raras exceções como Efegê, 1974EFEGÊ, Jota. Maxixe, a dança excomungada. Rio de Janeiro: Conquista, 1974.), Geraldo Magalhães pode ser considerado um dos principais pioneiros no processo de internacionalização de gêneros musicais afro-brasileiros – muito antes do grupo Os Oito Batutas, tradicionalmente identificado pela historiografia como o primeiro grupo de músicos negros a obter reconhecimento na Europa. Sua ação não se limitou aos palcos de alguns dos principais teatros e cabarés europeus: ele teve papel ativo também na gravação de discos em contexto europeu, principalmente em Portugal. Uma análise de sua discografia revela a existência de 82 discos em que Magalhães atuou como solista: 21 destes foram gravados em Portugal – hoje arquivados na coleção José Moças da Universidade de Aveiro – e 61 foram gravados no Brasil e hoje integram a Discografia Brasileira em 78 rpm no Instituto Moreira Salles.

Parece-nos fundamental analisar o papel desempenhado por cantores e compositores negros como agentes ativos no processo de inserção e legitimação de maxixes, sambas, cateretês e lundus no contexto da fonografia. Esse processo envolvia uma via de mão dupla: por um lado, exigia a conformação a uma estratégia utilizada por agentes brancos na caracterização das músicas afro-brasileiras. Por outro, a conformação a essas mesmas estratégias representava uma via de acesso desses intérpretes e músicos ao mundo profissional do entretenimento, contribuindo para legitimar práticas musicais afro-brasileiras não apenas em âmbito nacional como também na rede internacional da indústria do entretenimento.

A indústria lançou mão de determinados dispositivos para caracterizar músicas afro-brasileiras, apropriadas e incorporadas por intérpretes negros. Um deles é a reiterada remissão a tipos raciais brasileiros, com ênfase em figuras femininas como “a mulata” ou a “negrinha”, muito referida nas canções gravadas por Magalhães. Um exemplo é o “Maxixe Aristocrático” (Gramophone 64332), gravado por Geraldo Magalhães e pela cantora portuguesa Medina de Sousa,25 25 Listening 2. Imitação d’um batuque africano, performed by César Nunes, Victor R 98702, 1907, available at: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/12506/imitacao-d-um-batuque-africano (accessed on: May 26, 2023). em que comparecem repetidamente locuções interjetivas como “Quebra mulata, bate nas cadeiras”, “Aí minha negra, quebra com gosto!”. Elas remetem ao conceito de sonic color line tal como proposto por Stoever (2016, p. 11)STOEVER, Jennifer. The sonic color line: race and the cultural politics of listening. New York: New York University Press, 2016. em que “sons particulares são identificados, exagerados e “combinados” com corpos racializados”. A constante menção aos corpos e à sensualidade da mulher negra ou mulata revela-se sem dúvida parte fundamental nesse processo de construção de alteridade.26 26 Translator’s note: “Teatros de revista” are a specific type of popular comic drama, very common in Brazil at the time. Um segundo dispositivo é o recurso a textos de duplo sentido, que mesclam de forma ambígua itens ou gestos culinários e referências sexuais – recurso que aliás foi utilizado em diversas culturas populares muito antes do advento do disco, e que teve grande expressão no teatro de revista no contexto luso-brasileiro. Tal recurso, apontado por Sandroni (2001, p. 44)SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001., que elenca alguns exemplos do uso de alimentos como metáfora sexual em lundus e sambas de fins do século XIX até gravações da década de 1940, é bastante frequente nas gravações de Magalhães e pode ser considerado como mais uma das estratégias de caracterização das músicas afro-brasileiras, que foram de alguma forma apropriadas por cantores negros nos primórdios da fonografia. É o caso do maxixe “O Vatapá”27 27 “The Cabinda at the gate of the river / The Cabinda at the gate of the river / Was stunned to see the ship”. gravado em Lisboa em 1910 por Geraldo Magalhães e Medina de Sousa (Gramophone Co. 64336) – canção originalmente composta para a revista Fado e maxixe do brasileiro João Phoca e do português André Brun. Seguindo uma tradição do lundu brasileiro do século XIX, que posteriormente se consolidou com compositores como Dorival Caymmi e Ary Barroso, o texto mistura a receita culinária recitada pela personagem “Bahia” (Medina de Sousa), com a picardia da fala sempre ambígua do personagem “Maxixe” (Magalhães), de cunho sexual.

Bahia: “O vatapá, comida rara, é assim yoyô. Você limpa a panela bem limpa; quando o peixe lá dentro já está, bota o leite de coco, gengibre, a pimenta da Costa e o fubá; o camarão torradinho se ajunta ao depois da cabeça tirada.” Maxixe: “Mas então a cabeça não entra?” Bahia: “Qual cabeça seu moço, que nada.” Ambos: “Mexe direito pra não queimar; mexe com jeito o vatapá.”

Se é inegável que os dispositivos constituintes de linhas de cor sonora, anteriormente ativos no teatro, foram incorporados por muitos dos cantores e cantoras negros do início da fonografia no Brasil, por outro é inegável o papel que esses e essas cantoras desempenharam na legitimação e difusão tanto de gêneros musicais afro-brasileiros quanto de suas carreiras, reconhecidas em jornais e círculos artísticos no Brasil e na Europa.

Gravando gêneros musicais associados ao universo afro-brasileiro, como maxixes, lundus e sambas, Geraldo Magalhães foi um porta-voz ativo na disseminação internacional de práticas musicais que eram então alvo de perseguição, silenciamento e de preconceito por parte da historiografia musical brasileira, nascente naquele período. Em uma das primeiras narrativas historiográfico-musicais do país, A música no Brasil, de Guilherme de Melo, publicada em 1908, o ano em que o duo Os Geraldos faz sua estreia na Europa, Melo descrevia as músicas das etnias africanas e indígenas como “impregnadas de sentimentos bárbaros e selvagens e superstição cabalística”, ponderando que isso não deveria causar espanto, uma vez que “ainda hoje mesmo se encontram vestígios de um canibalismo hediondo e crenças supersticiosas entre o populacho crioulo que ainda não se depurou e em cujas veias corre ainda o sangue inculto do africano” (MELLO, 1908MELLO, Guilherme de: A música no Brasil desde os tempos coloniais até o primeiro decênio da República. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947 [1908]., p. 15).

Em contraste com esse discurso, a aparição progressiva de intérpretes negros como Geraldo Magalhães e Nina Teixeira em jornais e revistas do período, bem como a sua atuação tanto em palcos europeus quanto na indústria fonográfica em Portugal, representa um enorme avanço para a incorporação de práticas musicais que pareciam confinadas a bairros periféricos ou marginalizados do Rio de Janeiro, como a Cidade Nova e os subúrbios. Esse processo de inserção se acentuará nas décadas seguintes por meio da atuação de uma série de outros artistas negros no âmbito da indústria fonográfica.

O Nêgo de pé espaiado, de J. B. de Carvalho carnavalização e subversão da racialidade sonora

A exploração comercial da racialidade pela indústria fonográfica em sua fase de 78 rotações tem também em J. B. de Carvalho e seu Conjunto Tupy um exemplo significativo que evidencia a complexidade que permeou, desde o seu início, a constituição estereotipada da alteridade negra.

O Conjunto Tupy foi um grupo musical atuante no mercado fonográfico, nas emissões radiofônicas e nos ambientes de espetáculo musical do Rio de Janeiro entre os anos 1931 e 1943. Celebrizou-se pela interpretação de composições referidas na época com designativos generalizantes como “batuques” e “macumbas”, relacionadas às religiões de matriz africana. Era liderado pelo compositor e cantor João Paulo Baptista de Carvalho (1901-1979), ou J. B. de Carvalho, como preferia ser chamado, que fora levado ao meio fonográfico por Getúlio Marinho, criador e membro do Conjunto Africano. Fizeram parte do conjunto, além do próprio J. B. de Carvalho, o flautista da editora Victor e compositor Attílio Grany (ou Attilio Verlani Gieri), o cantor e compositor Francisco Sena (ou Francisco Silva), que viria a ser parceiro de Herivelto Martins na dupla Preto e Branco, Pedro Gomes, Daniel Ferreira, Euclydes José Jesus (ou Euclydes José Moreira), Lucio, Herivelto Martins, a cantora nomeada sob o pseudônimo “Índia do Brasil” (ARAÚJO, 2015ARAÚJO, Anderson Leon Almeida de. “Sou da macumba e no feitiço não tenho rival” – A música negra de J. B. de Carvalho e do Conjunto Tupy (1931-1941). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2015., p. 67-69), os cantores Francisco Sena e Olívio Carvalho, os violonistas Henrique Caetano e José Corrêa da Silva, o instrumentista Euclydes José Moreira (banjo), o percussionista Pedro Nascimento (“cabaça” ou xequerê), o cantor e tocador de omelê Alberto Rodrigues, o saxofonista e compositor Abelardo Neves (Correio da Manhã, 16 set. 1932; Correio da Manhã, 14 jun. 1931; ARAÚJO, 2015ARAÚJO, Anderson Leon Almeida de. “Sou da macumba e no feitiço não tenho rival” – A música negra de J. B. de Carvalho e do Conjunto Tupy (1931-1941). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2015., p. 61-75).

O grupo estreou no mercado fonográfico em 1931 com a gravação de dois “batuques de macumba” intitulados E vem o sol e Na minha Terrera (Victor 33420). Mas é com Cadê Viramundo (Victor 33459), gravado no mesmo ano, que o Conjunto Tupy se notabilizou.28 28 Translator’s note: “preto velho” is a specific black Brazilian stereotype. A música foi um sucesso do Carnaval de 1932, alavancando a carreira do conjunto, que passou a se apresentar com grande frequência em espetáculos cênico-musicais nos cineteatros, salões de baile, clubes, cassinos da então capital do Brasil.

Cadê Viramundo faz referência às festas de Caboclo – cerimônias religiosas realizadas em terreiros de umbanda e candomblé, nas quais são invocadas, incorporadas e homenageadas entidades espirituais indígenas ou mestiças de indígenas com brancos e negros. As performances cênico-musicais do conjunto mimetizavam visual e coreograficamente cerimônias de terreiro, sobretudo da tradição de Caboclo, com figurinos que evocavam a indumentária indígena e cabocla. O faziam, porém, num registro assumidamente irreverente, em que os elementos rituais e suas práticas correlatas eram representados em tom de comicidade, fossem elas cânticos, invocações, transes, gestuais, danças ou oferendas.

Peças publicitárias da época permitem perceber que foi justamente aceitando e colocando em seu proveito um imaginário fortemente estereotipado e racializado que J. B. de Carvalho e o Conjunto Tupy souberam promover sua carreira de sucesso no mercado musical. Meses depois de o conjunto estourar no Carnaval de 1932, o jornal Correio da Manhã anunciava “uma macumba autêntica no palco do Eldorado”, propagandeando sua performance cênico-musical:

Toda a gente ouve falar em “macumba”, mas muito poucos já viram a realização dessa cerimônia, de rito pagão, em que se evocam espíritos de além-túmulo. Para que toda gente saiba em que consiste uma “macumba” é que o conjunto Tupy, que ora trabalha no palco do Eldorado, apresenta em cena uma autêntica, com todos os seus característicos, os seus cantos, a sua música bárbara, a sua encenação típica. É um número originalíssimo, que o conjunto Tupy completa com outras criações de grande sucesso. No mesmo programa, Alda Garrido e Augusto Annibal criam um dueto magnífico; “The two Genaro” executam estupendas acrobacias excêntricas; e Maria Lisbôa e Dagoberto cantam e dançam coisas alegres, em vestuários típicos. Para segunda-feira, o Eldorado anuncia, no palco, “Trio Richard” trapezistas assombrosos, “Lennette Ger” cantante francesa, Ada de Bogoslowa, autêntica princesa russa, em maravilhosos bailados clássicos”

(Correio da Manhã, 10 ago. 1932).

Justaposta a outros “números” variados e espetaculosos, a performance do Conjunto Tupy era oferecida, como se vê, como uma extravagância excitante, exótica e original. Fortemente conotadas como expressões de primitivismo, as personificações que os integrantes do grupo faziam de “macumbeiros”, “feiticeiros”, pais de santo, entidades como Caboclos, Pretos-velhos e Orixás representavam mais uma vez, no ambiente do entretenimento comercial, o avesso da civilidade moderna e, como tal, passíveis ao mesmo tempo de riso, curiosidade e fascínio.

Assim como em suas aparições cênicas, nas quais performances rituais eram encenadas de forma a se adequarem às necessidades comerciais do entretenimento, verifica-se nas gravações de “macumbas” do Conjunto Tupy uma marcada estilização. Elementos textuais, melódicos, rítmicos e vocais identificáveis à música executada nas rodas e festas da umbanda e do candomblé eram acomodados a instrumentações exógenas (que incluíam tanto instrumentos melódicos, como saxofone ou flauta, quanto violões, cavaquinho, bandolim, banjo) e a quadraturas e harmonizações próprias à canção ocidental. Nesse sentido, a abordagem musical de J. B. de Carvalho e seu Conjunto Tupy diferia sensivelmente da busca de uma mimetização mais estrita da realidade sonora dos rituais, que caracterizava gravações de “macumbas” feitas naquele início da década de 1930 por outros grupos, tais como o Conjunto Africano de Getúlio Marinho e Mano Elói,29 29 “The black man with the black woman / Went underneath a banana tree / The black man says to the black woman / Let’s play?”. mas sobretudo os Filhos de Nagô, de Filipe Néry Conceição30 30 “Go on, my dear / Twerking aways little girl”. ou o Grupo do Pai Alufá, de Zé Espinguela.

A carreira do conjunto foi relativamente breve, mas a de J. B. de Carvalho se estendeu por várias décadas após o desaparecimento do Tupy do mercado da música, sempre marcada pelo vínculo ao imaginário da “macumba”, seja em suas gravações, na recepção pela imprensa ou em sua atuação como cantor e radialista. Comandou e apresentou emissões radiofônicas que exploravam o tema, como o programa diário “A voz de outro mundo”, com a participação do Conjunto Tupy, lançado em 1938 na Rádio Cruzeiro do Sul e depois migrado para outras emissoras; ou, já na década de 1970, o programa “A Carioca nos Terreiros” da Rádio Carioca, no qual o “capitão da mata” J. B. de Carvalho “profundo conhecedor da umbanda e do espiritismo em geral”, oferecia aos ouvintes resolução de problemas pessoais e mediúnicos.

A complexa persona pública desse personagem eminente da história da fonografia brasileira é representativa das táticas que, valendo-se da indústria cultural nascente do Brasil pós-abolição e de mecanismos ao mesmo tempo de exacerbação e subversão de estereótipos, soube abrir brechas para manifestações culturais e subjetividades fortemente oprimidas pela lógica excludente colonial e moderna.

Como mostra Anderson Araújo (2015)ARAÚJO, Anderson Leon Almeida de. “Sou da macumba e no feitiço não tenho rival” – A música negra de J. B. de Carvalho e do Conjunto Tupy (1931-1941). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2015., J. B. de Carvalho personificava em sua performance artística o “macumbeiro”, o “batuqueiro”, o “feiticeiro”, sem dúvida atendendo às expectativas do mercado do exotismo e do primitivismo, mas afirmando, mesmo que sob máscara caricata e cômica, sua identidade de negro, sambista e praticante de religiões de terreiro. Por exemplo, na canção em diálogo lançada em 1931, na qual ele próprio interpreta o Nêgo de pé espaiado:31 31 Translator’s note: the original term used here is “negrinha”, which roughly translates to little black girl, but could be used for older black woman in an endearing way.

- Êba, dá licença de eu dizer um pisilone? - Ó crioulo, não força! - Esse nêgo do pé espaiado Esse nêgo já quer ser delegado. - Esse nêgo é bom? Não senhor! Não sabe ler e já quer ser doutor! - Esse nêgo da cara larga Bota colarinho e não quer fazer mais nada. - Esse nêgo é bom na batucada Quando ela é mesmo enfezada! - Esse nêgo só anda amufiado E os olhos dele logo pega a lumiar. - Esse nêgo é bom no candomblé Com santo no corpo ele faz o que quer. - Esse nêgo só gosta de comê Da galinha preta que parece urubu. - Esse nêgo é bom mas anda jururu Com meia de cachaça só recebe Exu!

Estereótipos relacionados à magia e a espíritos noturnos são também elencados de forma burlesca e assumidos de forma franca e descomplexada como elementos característicos das práticas religiosas de terreiro, carnavalizando o vínculo entre negritude e feitiçaria, como no jongo Quando o sol sair 32 32 Translator’s note: “gaúcha” refers to a person born in Rio Grande do Sul, a state in the far South of Brazil. (Victor 33784), lançado em 1934:

É de mariê quando o sol sair! Um galo preto à meia noite em ponto É emissário que o diabo mandou; Galinha preta na encruzilhada A gunissaia se manifestou. Coruja cantou, mortalha acordou É mau quebranto que ela deixou. (...) O negro preto que parece o cão É assombração de só dá amolação. A gente chama Saci Pererê Ele se espanta e começa a correr. Nêgo danado da venta larga Cala essa boca, não diz mais nada. É de mariê quando o sol sair! (...)33 33 “Twirk, mulata, shake your bottom”, “Oh, my black woman, twirk with gusto!”.

Mas, numa ambiguidade significativa, uma vez notabilizado como artista de sucesso, J. B. de Carvalho se dava a ver nas páginas dos jornais de forma radicalmente distinta de sua persona artística: vestido de terno, gravata e chapéu elegantes, cingido de todos os signos da modernidade e da civilidade urbana.34 34 Listening 3. O Vatapá, by Paulino Sacramento, performed by Medina de Sousa and Geraldo Magalhães, Victor R 98453, 1910, available at: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/20733/o-vatapa (accessed on: May 26, 2023).

Figura 9
Fotografia de J. B. de Carvalho

O jogo de ambiguidades não termina aí, porém. A imagem garbosa de J. B. de Carvalho, trajado com cuidadosa elegância e urbanidade, não deixa de remeter à caracterização tanto da figura do “malandro” carioca quanto à da entidade a ele relacionada e cultuada na umbanda – o Zé Pelintra (ou Pilintra).35 35 Listening 4. Cadê vira mundo, by J. B. de Carvalho, performed by Conjunto Tupi, Victor 33459, 1931, available at: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/40889/cade-vira-mundo (accessed on: May 26, 2023). Possivelmente originária do Catimbó (ou Jurema) do Nordeste (LOPES, 2011LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2011 [2004]., p. 1499-1500), uma vez aclimatada em solo carioca, a figura do Zé Pilintra incorporou as qualidades éticas e estéticas do “malandro” local.

Nos termos do antropólogo Luiz Assunção (2010, p. 176)ASSUNÇÃO, Luiz. A transgressão no religioso: Exus e mestres nos rituais da Umbanda. Revista Anthropológicas, ano 14, v. 21, n. 1, p. 157-183, 2010., Zé Pelintra representa “a astúcia, o livre trânsito pela brecha e pelo proibido, o uso dos meios não-sancionados pelas normas morais”. No Sudeste, ele é frequentemente relacionado a Exu (ASSUNÇÃO, 2010ASSUNÇÃO, Luiz. A transgressão no religioso: Exus e mestres nos rituais da Umbanda. Revista Anthropológicas, ano 14, v. 21, n. 1, p. 157-183, 2010., p. 176), tendo em comum com ele predicados de quebrador de regras, trapaceiro, intrigueiro, traquina, zombeteiro, produtor de mudança (GARBANI; SERBENA, 2015GABANI, Michelle Suzana de Almeida; SERBENA, Carlos Augusto. Exu: um trickster solto no “terreiro” psíquico. Relegens Thréskeia – estudos e pesquisa em religião, v. 4, n. 2, p. 52-70, 2015., p. 62). Sua indumentária típica é “terno branco, chapéu-panamá caído sobre a testa, gravata e lenço vermelhos, sapatos de duas cores” (LOPES, 2011LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2011 [2004]., p. 1500). Sobrevive e dribla as dificuldades, a pobreza e a discriminação social com sua esperteza e argúcia, vestido de “doutor”, de “gente fina”.

Monique Augras chama a atenção para as acepções do termo “Pelintra”, que dão pistas sobre as duplicidades características da entidade:

A alcunha de “Pelintra” merece também investigação. Os dicionários consultados propõem definições que apontam novamente para a duplicidade. De acordo com o Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, pelintra significa “pessoa pobre ou mal trajada, mas com pretensões a figurar; pessoa sem dinheiro; pobre, mas pretencioso; (Bras.) bem trajado; peralta; adamado”. Logo de início, portanto, Seu Zé é descrito como mal e bem trajado. É pobre metido a elegante. (...) A Enciclopédia Brasileira Mérito resume a ridícula ousadia do pelintra, própria “de quem não tem nada e pretende mostrar ser dono de alguma coisa”. Zé Pelintra por conseguinte assume claras feições de pobre que não conhece o seu lugar. Veste-se com esmero, mas sua elegância é por demais chamativa. Foge ao bon ton. É roupa de pobre metido a rico, de marginal que se promove, de dominado que sonha igualar-se ao dominador e, pelo espalhafato, acaba proclamado, em vez de ascensão social, a irremediável sina da ralé

(AUGRAS, 1997AUGRAS, Monique. Zé Pelintra, patrono da malandragem. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 25, p. 43-50, 1997., p. 48).

O “nêgo do pé espaiado” da canção de J. B. de Carvalho parece se encaixar com justeza à caracterização do Zé Pelintra, buscando falar “difícil” (“dá licença de eu dizer um pisilone?”), aspirando à ascensão social (“esse nêgo já quer ser delegado”; “não sabe ler e já quer ser doutor!”), malandreando sob trajes elegantes (“bota colarinho e não quer fazer mais nada”) e assimilado a Exu (“com meia de cachaça só recebe Exu!”). O cântico de Zé Pelintra transcrito por José Ribeiro (1974)RIBEIRO, José. Catimbó de Zé Pilintra: mistério, magia, feitiço. [S. l.]: Editora Espiritualista, 1974., assim como a variante citada por Assunção (2010)ASSUNÇÃO, Luiz. A transgressão no religioso: Exus e mestres nos rituais da Umbanda. Revista Anthropológicas, ano 14, v. 21, n. 1, p. 157-183, 2010.,36 36 For example, the album Macumba, performed by Eloy Antero Dias, Getúlio Marinho Amor and Conjunto Africano, 1930 (Odeon 10690). Listening 5. Canto de Exu (Lado A), performed by Eloy Antero Dias, Getúlio Marinho Amor and Conjunto Africano, available at: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/30489/macumba-canto-de-exu. (accessed on: May 26, 2023). Listening 6. Canto de Ogum (Lado B), performed by Eloy Antero Dias, Getúlio Marinho Amor and Conjunto Africano, available at: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/30492/macumba-canto-de-ogum. (accessed on: May 26, 2023). parece ser mais um indício de que a canção de Carvalho fazia referência ao Zé Pelintra pela equivalência entre os designativos “nego do pé espaiado” e “nego do pé derramado”.37 37 For example, the album Candomblé, by Felipe Nery Conceição, performed by Filhos de Nagô (Parlophon 13254). Listening 7. Candomblé (Lado A): a) Oduré; b) Eriuá, available at: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/46114/candomble-a-odure-b-eriua. (accessed on: May 26, 2023). Listening 8. Candomblé (Lado B): c) Canto de Exú; d) Canto de Ogum, available at: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/46119/candomble-c-canto-de-exu-d-canto-de-ogum (accessed on: May 26, 2023).

Sou caboclo Zé Pilintra Negro do pé derramado Quem mexer com Zé Pilintra Está doido ou está danado Seu doutor, seu doutor, Bravo senhor Zé Pilintra chegou (...) (RIBEIRO, 1974RIBEIRO, José. Catimbó de Zé Pilintra: mistério, magia, feitiço. [S. l.]: Editora Espiritualista, 1974., p. 47, citado por AUGRAS, 1997AUGRAS, Monique. Zé Pelintra, patrono da malandragem. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 25, p. 43-50, 1997., p. 45, grifo nosso).

O “nêgo do pé espaiado” da canção e, por que não, o próprio J. B. de Carvalho, bem poderia ser tomado como uma figuração do Zé Pelintra; aquele que, nas palavras do babalorixá Pai Rodney de Oxóssi,38 38 Listening 9. Nêgo de pé espaiado, by J. B. de Carvalho, performed by Conjunto Tupi, Victor 33482, 1931, available at: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/40949/nego-de-pe-espaiado (accessed on: May 26, 2023).

Traduz, a seu modo, os desafios dos desvalidos de toda sorte, sobretudo os homens negros, que para sobreviver sem dinheiro nem oportunidades tiveram que dar seu “jeito”, que se virar e usar toda sua malandragem e esperteza.

O Preto Zé Pilintra, mestre da jurema e malandro do morro, tem status de doutor. Formou-se na escola da vida, na ciência das leis da sobrevivência, a lei do silêncio, a lei do cão, no mister dos enjeitados...

(EUGENIO, 2018EUGENIO, Rodney William. Saravá Seu Zé. Carta Capital, [s. l.], 5 out. 2018, seção “Diálogos da fé”, n.p. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/sarava-seu-ze/. Acesso em: 20 jan. 2023.
https://www.cartacapital.com.br/blogs/di...
, n. p.).

Ou, ainda, aquele que é “adaptável, como bom malandro tem que ser”, que “brinca com o contraditório”, que “ora é sagrado, ora é profano”, que “confunde os menos avisados e surpreende os acomodados” (PEREIRA, s.d.PEREIRA, Julia. Do Catimbó aos Terreiros. Como Zé Pelintra chega na Umbanda. Blog Umbanda EAD, Instituto Cultural Aruanda. [S. d.]. Disponível em: https://umbandaead.blog.br/2016/11/30/e-malandro-e-exu-e-baiano-quem-e-ze-pelintra-na-umbanda/. Acesso em: 20 jan. 2023.
https://umbandaead.blog.br/2016/11/30/e-...
, n. p.).

J. B. de Carvalho, em sua trajetória, encarna em boa medida o arquétipo desse trickster.39 39 Listening 10. Quando o sol sair, by J. B. de Carvalho, performed by Conjunto Tupi, Victor 33784, 1934, available at: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/42237/quando-o-sol-sair (accessed on: May 26, 2023). Sua irreverência e sua caricaturização profana dos ritos de terreiro nos confundem; as ambiguidades, duplicidades e ambivalências que permeiam suas formas de aparição pública embaralham as cartas, nos despistam. Pois, se por um lado o processo de estilização, adaptação e carnavalização de cânticos ligados à religiosidade de matriz africana confinava o repertório do Conjunto Tupy no registro do exótico, do primitivo e do cômico, objetificando elementos culturais e reforçando estereótipos raciais, ele viabilizava, no entanto, sua ampla e livre circulação, dando visibilidade e notoriedade a seus músicos.

Num zigue-zague ludibriante de signos, J. B. de Carvalho ostentava espalhafatosamente sua persona de macumbeiro e feiticeiro nos palcos e nas rádios, exibia-se na imprensa como um janota moderno, ao mesmo tempo ocultando e revelando um referente clandestino: o malandro/Zé Pelintra/Exu, amálgama representativo de quem, justamente, maneja taticamente a duplicidade, a ambiguidade, a ambivalência. Os poucos estudos existentes sobre sua biografia parecem mostrar que Carvalho deslizava de maneira hábil entre mundos apartados, circulando com naturalidade tanto no ambiente periférico e marginalizado do samba e da umbanda quanto nos círculos hegemônicos da sociabilidade.40 40 From the transcription made by Araújo (2015, p. 117-118).

Sua visível destreza em transitar entre barreiras discriminatórias fez dele uma figura mediadora: convertidos em produto da indústria cultural, os cânticos de terreiro estilizados pelo Conjunto Tupy penetravam ambientes das mais diversas camadas e setores da sociedade, se faziam presentes na imprensa, em discos, rádios, palcos musicais e de teatro, bailes de carnaval e clubes privados. Numa época em que as religiões de terreiro eram criminalizadas e alvo de violentas e reiteradas perseguições policiais, J. B. de Carvalho e o Conjunto Tupy fizeram circular suas sonoridades, suas performances, propagando aberta e sonoramente: “Sou da Macumba, / no feitiço não tenho rival. (...) Não tenha medo / e vem mesmo com fé, / Que o nosso grupo / pertence ao candomblé. / E a nossa vida / é mesmo um pagode / Não é para quem quer / e sim para quem pode”41 41 This ambivalence was very well observed by Araújo (2015, p. 178-179). (Fica no mocó, Victor 33516).

A malandragem de J. B. de Carvalho/Zé Pelintra/Exu – mescla ambígua de submissão e transgressão – parece não ter sido eficiente na subversão de sua condição: a despeito de seu sucesso na indústria cultural e de sua visibilidade na imprensa, de seu trânsito entre gente fina, elegante e poderosa, permaneceu pobre, precisando continuar a exercer sua atividade como chauffeur de praça para sua subsistência (ARAÚJO, 2015ARAÚJO, Anderson Leon Almeida de. “Sou da macumba e no feitiço não tenho rival” – A música negra de J. B. de Carvalho e do Conjunto Tupy (1931-1941). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2015.). Ela tampouco logrou converter em emancipação definitiva a opressão simbólica à qual estavam submetidas as expressões musicais e religiosas que o Conjunto Tupy veiculou. Mas, como observou com agudeza Monique Augras (1997)AUGRAS, Monique. Zé Pelintra, patrono da malandragem. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 25, p. 43-50, 1997., escrevendo sobre o Zé Pelintra, cultos periféricos sabem penetrar insidiosamente os interstícios do tecido social. “Afinal, entre os policiais que sobem o morro, quantos não serão devotos de Zé Pelintra?”, pergunta ela. “O imaginário dos despossuídos não agride francamente o sistema hegemônico”, exprimiu Augras de forma lapidar. “Come por baixo” (AUGRAS, 1997AUGRAS, Monique. Zé Pelintra, patrono da malandragem. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 25, p. 43-50, 1997., p. 49).

* * * * *

Os exemplos que buscamos destacar marcam diferentes estágios da fixação de estereótipos sonoros e linguísticos de alteridade negra. Situados em momentos históricos distintos que correspondem a modos igualmente distintos de circulação e consumo da música, eles parecem, no entanto, convergentes em aspectos fundamentais no que tange ao problema da constituição de alteridades.

O modo de representação caricatural e/ou cômico, comum aos exemplos apresentados, opera em dois sentidos divergentes e paradoxais. Primeiramente, hiperexpondo os traços do Outro, ele invisibiliza ou dota de uma transparência de cunho universalizante o ethos hegemônico – estratégia pela qual este ocupa o lugar de um marco zero, em torno do qual se inscrevem todos os Outros que o definem em negativo. Mas, inversamente, a hiperexposição cômica da alteridade permite o contrabando de formas culturais e de vida subalternizadas por efeito da dinâmica de dicotomizações.42 42 Translator’s note: a “malandro” is a traditional character in carioca culture, a very charming conman. Assim, se as indústrias fonográficas no Brasil reforçaram dinâmicas de dominação constitutivas da modernidade ocidental, fixando uma linha de cor sonora anteriormente constituída e reverberando em escala industrial seus estereótipos, artistas como Geraldo Magalhães e J. B. de Carvalho, antecedidos por poetas, músicos dos séculos XVIII e XIX, tiveram papel fundamental nos processos de subversão dessas representações sonoras raciais, criando espaços de veiculação e legitimação de práticas musicais afro-brasileiras.

Organizers of the Journal of History and Sound Cultures

  • Virgínia de Almeida Bessa
    Juliana Pérez González
    Cacá Machado
    José Geraldo Vinci de Moraes
  • 1
    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografias utilizadas são referenciadas no artigo. Este artigo é resultado de pesquisa realizada no âmbito do projeto LiberSound: Práticas inovadoras de arquivamento para a libertação da memória sonora (PTDC/ART-PER/4405/2020), desenvolvido no Instituto de Etnomusicologia do Centro de Estudos em Música e Dança na Universidade de Aveiro. O projeto é financiado pela Fundação para Ciência e Tecnologia (Portugal) através de fundos nacionais. Os autores agradecem ainda à FCT/MCTES pelo apoio financeiro do INET-md (UIDB/00472/2020). A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ financiou parcialmente a participação de Maya Suemi Lemos no projeto, por meio de diárias de pesquisador (processo 210.734/2019). Todos os autores participaram das diversas fases da pesquisa e da preparação do artigo, a saber: levantamento de dados, pesquisa bibliográfica, pesquisa teórica, redação. Todos os registros de áudio mencionados no texto estão disponíveis para audição no endereço: http://www.memoriadamusica.com.br/site/index.php/texto-e-audio/29-texto-e-audio/dossie-historia-e-culturas-sonoras/501-a-cor-do-som-construcao-de-alteridade-e-racialidade-na-fonografia-brasileira-em-78-rotacoes-na-primeira-metade-do-sec-xx
  • 4
    Não se trata de um problema puramente ético, bem entendido, mas sim da dicotomização entre formas de vida como condição simbólica para os processos de acumulação primitiva que permitiram ao Ocidente moderno se constituir e permanecer como força hegemônica. Bruxas, camponeses, sátiros, canibais, cinocéfalos e ciclopes, habitantes das mais distintas longitudes tropicais e das mais variadas latitudes orientais são somente alguns exemplos mobilizados nas fases constitutivas da Primeira Época Moderna. E se, em diferentes períodos e circunstâncias culturais e históricas, o selvagem/primitivo veio a ser evocado positivamente como crítica moral ao mundo civilizado (já em Montaigne e Léry; na literatura pastoral por vezes, passando por Rousseau até os românticos), não se trata senão de uma inversão lógica que confirma a dinâmica dicotômica constitutiva da racionalidade moderna. É importante ponderar que não afirmamos aqui que o dispositivo da alteridade ética seja uma invenção da modernidade. Narrativas e figurações de alteridade constituídas desde a Antiguidade são, inclusive, reaproveitadas e ressignificadas no contexto do encontro com o outro na modernidade. O que sustentamos aqui é o papel preponderante desse dispositivo na constituição da autorrepresentação e nas práticas modernas.
  • 5
    Somente para evocar alguns exemplos, apontamos a iconografia sobre as bruxas (FEDERICI, 2019FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2019.; CLARK, 2006CLARK, Stuart. Pensando com demônios: a ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. São Paulo: EDUSP, 2006.; SOUZA, 1993SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.); a iconografia que acompanhou os relatos das viagens à América, representando ameríndios a partir da atualização de ícones de alteridade da Antiguidade (LESTRINGANT, 1997LESTRINGANT, Frank. Le Cannibale, grandeur et décadence. Paris: Perrin, 1994.; BARTRA, 1994BARTRA. Roger. Wild men in the looking glass: the mythic origins of European otherness. S. l.: The University of Michigan Press, 1994., 2011BARTRA, Roger. El mito del salvaje. México: Fondo de Cultura Económica, 2011.); a iconografia que acompanhou os relatos em torno da França Antártica no território brasileiro, assim como as representações de protestantes em panfletos católicos e de católicos em panfletos protestantes no contexto das guerras de religião no século XVI (BERBARA; MENEZES; HUE, 2020BERBARA, Maria; MENEZES, Renato; HUE, Sheila (org.). França Antártica – ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp, 2020.); as representações visuais e cênicas, mas também sonoro-musicais da linguagem dos camponeses e sátiros na cultura literária e musical da pastoral nos séculos XVI e XVII (LAVOCAT, 2005LAVOCAT, Françoise. La syrinx au bûcher. Pan et les satyres à la Renaissance et à l’âge baroque. Genève: Droz, 2005.; PIERI, 2020PIERI, Marzia. La scena boschereccia nel Rinascimento italiano. [S. l.]: Cue Press, 2020.; SCANNAPIECO, 2017SCANNAPIECO, Ana. Così lontani, così vicini. Villani a teatro da Ruzante a Fumoso (primi appunti). Quaderni Veneti, v. 6, n. 1, Giugno 2017. Disponível em: https://edizionicafoscari.unive.it/it/edizioni/riviste/quaderni-veneti/2017/1numero-monografico/cosi-lontani-cosi-vicini/. Acesso em: 29 jul. 2022.
    https://edizionicafoscari.unive.it/it/ed...
    ; ARCANGELI, 2018ARCANGELI, Alessandro. L’altro che danza. Il villano, il selvaggio, la strega nell’immaginario della prima età moderna. Milão: Unicopli, 2018.; GERBINO, 2004GERBINO, Giuseppe. The madrigal and its outcasts: Marenzio, Giovannelli, and the Revival of Sannazaro’s Arcadia. The Journal of Musicology, v. 21, n. 1, p. 3-45, 2004. Disponível em: https://online.ucpress.edu/jm/article-abstract/21/1/3/63373/The-Madrigal-and-its-Outcasts-Marenzio-Giovannelli?redirectedFrom=fulltext. Acesso em: 29 jul. 2022.
    https://online.ucpress.edu/jm/article-ab...
    ); as representações musicais e coreográficas de turqueries (por exemplo a Marche pour la cérémonie des Turcs do Bourgeois Gentilhomme de Jean-Baptiste Lully ou Le Turc généreux, nas Indes galantes de Jean-Philippe Rameau) e o orientalismo como um todo, tal como descrito por Edward Said (1978)SAID, Edward. Orientalism. New York: Pantheon, 1978..
  • 6
    Não caberia neste artigo uma revisão dessas abordagens tão profícuas nas últimas décadas. Grosso modo, pode-se dizer que, tendo início com o desenvolvimento das teorias pós-coloniais na década de 1970 (SAID, 1978SAID, Edward. Orientalism. New York: Pantheon, 1978.) e culminando com a chamada “virada decolonial” (MALDONADO TORRES, 2008MALDONADO TORRES, Nelson. La descolonización y el giro des-colonial. Tabula Rasa, v. 9, p. 61-72. Disponível em https://revistas.unicolmayor.edu.co/index.php/tabularasa/article/view/1502. Acesso em: 29 jul. 2022.
    https://revistas.unicolmayor.edu.co/inde...
    ) no início do século XXI, esse grande corpus de estudos, que abarca objetivos e métodos distintos, inclui a análise da influência cultural ocidental e do poder exercido pelos países colonizadores, a análise da opressão e da violência aplicada aos contextos coloniais, do uso das artes nos processos de dominação cultural aplicada ao Terceiro Mundo, entre muitos outros.
  • 7
    Poeta, padre e músico afro-brasileiro que, no último terço do século XVIII, emerge não apenas como uma figura importante da conformação da música popular brasileira como também de trânsito musical entre Brasil e Portugal.
  • 8
    O primeiro volume da coletânea foi publicado em 1798. O segundo foi publicado postumamente, em 1826 (TINHORÃO, 1986TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. São Paulo: Art Editora, 1986., p. 47).
  • 9
    Sobre a presença das línguas bantu no português brasileiro, ver Lopes (2003)LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil: contendo mais de 250 propostas etimológicas acolhidas pelo Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro: Pallas, 2003., Queiroz (2018)QUEIROZ, Sônia. Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga. Belo Horizonte: UFMG, 2018., Lucchese; Baxter; Ribeiro (2009)LUCCHESI, Dante; BAXTER, Alan; RIBEIRO, Ilza (org.). O português afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA, 2009.. Sobre a presença banta na música brasileira, ver, entre outros, Mukuna (2000)MUKUNA, Kazadi Wa. Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomuseológicas. São Paulo: Terceira Margem, 2000., Lara; Pacheco (2007)LARA, Silvia Hunold; PACHECO, Gustavo (org.). Memória do Jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein, Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas: CECULT, 2007..
  • 10
    Por exemplo, o “Lundum de Cantigas Vagas” (BARBOSA, 1826BARBOSA, Domingos Caldas. Viola de Lereno. Volume segundo. Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1826. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4341. Acesso em: 29 jul. 2022.
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    , Volume segundo, p. 15-17): Xarapim eu bem estava / Alegre nesta aleluia, Mas para fazer-me triste / Veio Amor dar-me na cuia. // Não sabe meu Xarapim / O que Amor me faz passar, / Anda por dentro de mim, / De noite, e dia a ralar. // Meu Xarapim já não posso / Aturar mais tanta arenga / O meu gênio deu à casca / Metido nesta moenga. // Amor comigo é tirano / Mostra-me um modo bem cru, / Tem-me mexido as entranhas / Qu’estou todo feito angu. // Se visse o meu coração / Por força havia ter dó, / Porque o Amor o tem posto / Mais mole que quingombó. // Tem nhanhá certo nhonhô, / Não temo que me desbanque, / Porque eu sou calda de açúcar / E ele apenas mel de tanque. // Nhanhá cheia de chulices / Que tantos quindins afeta, / Queima tanto a quem a adora / Como queima a malagueta. // Xarapim tome o exemplo / Dos casos que vê em mim, / Que se amar há de lembrar-se / Do quer diz seu Xarapim. // [Estribilho:] Tenha compaixão / Tenha dó de mim, / Porqu’eu lho mereço / Sou seu Xarapim.
  • 11
    Por exemplo: [...] Vir a gente rebolindo / Ao chamado imperioso / Ouvir-lhe apre inda não chega! / He bem bom he bem gostoso. // [estribilho] // Chegar aos pés de nhanhá / Ouvir chamar preguiçoso, / Levar um bofetãosinho / He bem bom he bem gostoso (BARBOSA, 1826BARBOSA, Domingos Caldas. Viola de Lereno. Volume segundo. Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1826. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4341. Acesso em: 29 jul. 2022.
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    , Volume segundo, p. 7-10). Embora esse poema especificamente não seja designado como lundu na coletânea, aparenta-se em tema e em uso lexical. Inversamente, como bem apontou Sandroni (2001)SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001., o poema “Gentes de bem pegou nele” é designado como lundu na coletânea, ainda que não apresente as características apontadas aqui.
  • 12
    Por exemplo, em Antonio Diniz da Cruz e Silva (1731-1799), Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), Filinto Elísio (1734-1819), Leonor de Almeida Portugal, Marquesa de Alorna (1750-1839), Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), Luís António Vernei (1713-1792), Tomás António Gonzaga (1744-1810), entre outros.
  • 13
    Como, por exemplo, em “Retrato de Anarda”: Pastores acompanhai-me / Cada hum sua flauta tome, / E de Anarda o doce nome / Vinde todos festejar. // Anarda gentil Anarda / Vem nossos hymnos honrar. // Aquellas formosas tranças / De finíssimos cabellos, / A luz viva de olhos bellos / São dignas de se louvar. // Anarda &c. // O rosto que a Natureza / Engraçadamente córa, / As faces da côr d’aurora / Tem muito que celebrar. // Anarda &c. // Engraçada boca, e linda, / Que só voz discreta solta, / N’um divino aroma envolta / Que perfuma a todo o ar. // Anarda &c. // A lindissima garganta / O corpo gentil, e airoso, / O engraçado pé mimoso / Tudo he raro, he singular. // Anarda &c. // Mas desta pastora illustre / Não se louve só belleza, / Tens mais dons da Natureza / Digno assumpto de cantar. // Anarda &c. // Ostentou o Ceu mostrar-se / Sempre liberal com ella, / Deo-lhe em bello corpo, a bella / Alma illustre, e singular. // Anarda &c. (BARBOSA, 1826BARBOSA, Domingos Caldas. Viola de Lereno. Volume segundo. Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1826. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4341. Acesso em: 29 jul. 2022.
    https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/43...
    , Volume segundo, p. 16-18.)
  • 14
    Cabe notar que essa forma de fixação de alteridade baseada em elementos vocabulares, sonoros, rítmicos e musicais ocorreu no interior da cultura da pastoral na Primeira Época Moderna, o que confirma, de certa forma, um modus operandi da cultura ocidental, com implicações geopolíticas perceptíveis também nesse caso. Nos referimos à distinção ética estabelecida, na poesia, na música e no teatro pastoral, entre o ethos elevado de pastores e ninfas e a caracterização de camponeses e sátiros como avesso da civilidade natural dos habitantes da Arcádia mítica (LEMOS; VIEGAS, 2021LEMOS, Maya Suemi; Viegas, Rafael. A Flauta do Pastor: retórica do natural, cultivo do artifício. Figura: Studies on the Classical Tradition, Campinas/SP, v. 9, n. 2, 2021, p. 28-68. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/figura/article/view/15809. Acesso em: 29 jul. 2022.
    https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/in...
    ).
  • 15
    Como é o caso do lundu de Cândido Inácio da Silva sobre letra de Manoel de Araújo Porto Alegre, Lá no Largo da Sé, ao qual Mário de Andrade se referiu como significativo da constituição de uma música brasileira, étnica e socialmente miscigenada: “Não é mais de classe. Não é mais de raça. Não é branco, mas já não é negro mais. É nacional” (ANDRADE, 1999ANDRADE, Mário de. Cândido Inácio da Silva e o Lundu. Latin American Music Review / Revista de Música Latinoamericana, v. 20, n. 2, p. 215-233, Autumn-Winter, 1999 [1944]. [1944], p. 228). Lá no largo da Sé Velha / Está vivo um grande tutu / Numa gaiola de ferro / Chamado surucucu // Cobra feroz / Que tudo ataca / ‘Té da algibeira / Tira pataca // Bravo à especulação / São progressos da nação // Elefantes berrões / Cavalos em rodopios / Num curro perto da Ajuda / Com macacos e bugios // Tudo se vê / Misericórdia / Só por dinheiro / A tal mixórdia // Bravo à especulação / São progressos da nação // Os estrangeiros dão bailes / Pra regalar o Brasil / Mas a Rua do Ouvidor / É de dinheiro um funil // Lindas modinhas / Vindas de França / Nossos vinténs / Levam na dança // Bravo à especulação / São progressos da nação // Água em pedra vem do norte / Pra sorvetes fabricar / Que nos sorvem os cobrinhos / Sem a gente refrescar // A pitanguinha / Caju, cajá / Na goela fazem / Taratatá Bravo à especulação / São progressos da nação.
  • 16
    Sandroni sintetiza de maneira perspicaz a leitura de Mário de Andrade acerca da comicidade presente no lundu, sugerindo que “Andrade vê na comicidade do lundu o que a psicanálise chamaria de um ‘sintoma’, manifestação que expressa de maneira distorcida um conflito recalcado, no caso o conflito social latente entre senhores e escravos” (SANDRONI, 2001SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001., p. 46). A noção de uma comicidade reveladora de uma situação de conflito mais ou menos recalcada se aplicaria de maneira justa ao caso da comédia rústica que se afirmou em Pádua e Siena no Renascimento italiano. O ator Angelo Beolco (1496-1542) e seu célebre personagem Ruzante, em Pádua, ou a cena rústica e antiacadêmica da Congrega dei Rozzi em Siena se afirmaram, sintomaticamente, num momento em que as duas cidades “perdem autonomia política e cultura e sentem sua identidade linguística ameaçada pelas metrópoles regionais Veneza e Florença” (FOLENA, 1991FOLENA, Gianfranco. Il linguaggio del caos. Studi sul plurilinguismo rinascimentale. Torino: Bollati Boringhieri, 1991., p. 132-133).
  • 17
    Estudos musicológicos identificaram, por exemplo, no uso do verso proparoxítono denominado em italiano sdrucciolo, uma marca de caracterização ética (GERBINO, 2004GERBINO, Giuseppe. The madrigal and its outcasts: Marenzio, Giovannelli, and the Revival of Sannazaro’s Arcadia. The Journal of Musicology, v. 21, n. 1, p. 3-45, 2004. Disponível em: https://online.ucpress.edu/jm/article-abstract/21/1/3/63373/The-Madrigal-and-its-Outcasts-Marenzio-Giovannelli?redirectedFrom=fulltext. Acesso em: 29 jul. 2022.
    https://online.ucpress.edu/jm/article-ab...
    ). A constituição de uma modalidade de alteridade centrada na fala popular e dialetal se deu sobre um terreno de tensões e disputas políticas na Península Itálica, no qual a literatura e a arte tiveram grande importância como instância de elaboração e veiculação simbólica (DIONISOTTI, 1999DIONISOTTI, Carlo. Geografia e storia della letteratura italiana. Torino: Einaudi, 1999., p. 158-159).
  • 18
    Cf. Margarida Maria Taddoni Peter: “Como consequência da expansão portuguesa, afluíram a Lisboa, desde 1441, numerosos negros africanos, que serviam como escravos. A presença africana foi maior nos séculos XVI e XVII, quando 10.000 escravos negros, aprendendo e falando português de um modo particular, não deixou de ser notada, a ponto de esta fala ser designada, na época, como ‘língua de preto’. Dessa variedade linguística só temos registros literários, em peças de teatro cômicas: Cancioneiro de Resende (século XV), O pranto do Clérigo (1516) de Henrique Mota, O Clérigo da Beira, Frágoa d’Amor (1524) e Nau d’Amores de Gil Vicente. Pode-se afirmar que estas obras constituem os primeiros registros sobre o preconceito linguístico contra a fala do negro, considerado, na época, incapaz de aprender corretamente o português” (PETER, s. d.PETER, Margarida Maria Taddoni. Intolerância linguística e resistência: a questão do negro. Diversitas, Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos (FFLCH/USP). Disponível em: https://diversitas.fflch.usp.br/intolerancia-linguistica-e-resistencia-questao-do-negro. Acesso em: 29 jul. 2022.
    https://diversitas.fflch.usp.br/intolera...
    ).
  • 19
    O processo de estereotipagem e espetacularização burlesca da alteridade do negro na literatura e na música não é uma exclusividade do caso português/brasileiro. De maneira análoga ao caso da “língua de negro”, estilizada já na dramaturgia cômica lusófona quinhentista (cf. nota 18 supra) como elemento caracterizante do africano escravizado, uma habla de los negros, designada também español bozal, ou simplesmente bozal, compareceu com frequência na literatura cômica do Século de Ouro espanhol e, igualmente, no repertório poético-musical dos villancicos de negros, também chamados villancicos guineos ou negrillas, fortemente popular no ambiente hispânico, notadamente no território colonial da Nova Espanha. Ver, a este respeito, Subirá (1992)SUBIRÁ, José. El villancico literario-musical: bosquejos históricos. Revista de Literatura, v. 22, n. 43-44, p. 5-27, dic. 1992., Lipski (1995)LIPSKI, John M. Literary ‘africanized’ spanish as a research tool: dating consonant reduction. Romance Philology, v. 49, n. 2, nov. 1995., Swiadon (2002)SWIADON, Martínez, Glenn. África en los villancicos de negro, seis ejemplos del siglo XVII. In: MASERA, Mariana (coord.). La otra nueva España: la palabra marginada en la Colonia. Barcelona: Azul-Universidad Nacional Autónoma de México, 2002., Santamaría (2006)SANTAMARÍA, Carolina. Negrillas, negros y guineos y la representación musical de lo africano. Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, Bogotá, D.C. (Colombia), v. 2, n. 1, p. 4-20, oct. 2005-mar. 2006., Ludlow (2008)LUDLOW, Úrsula Camba. Imaginarios ambiguos, realidades contradictorias. Conducta y representaciones de los negros y mulatos novohispanos. Siglos XVI y XVII. México: El Colegio de México, 2008., Abril (2013)ABRIL, Omar Morales. Villancicos de remedo en la Nueva España. In: TELLO, Aurelio (org.). Humor, pericia y devoción: villancicos en la Nueva España. México: CIESAS, 2013, p. 11-38., Porras (2013)PORRAS, Jorge E. Mexican bozal spanish in sor Juana Inés de la Cruz’s Villancicos: a linguistic and sociolinguistic account. The Journal of Pan African Studies, v. 6, n. 1, Jul 2013., Lopes (2017)LOPES, Rui Cabral. Ensaya a dança y prosigue: ethnicity and exoticism in the villancicos de negros of the Portuguese Royal Chapel during the seventeenth century. Revista Brasileira de Música, Programa de Pós-graduação em Música, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, p. 73-95, jan./jun. 2017., Krutitskaya (2018)KRUTITSKAYA, Anastasia. Villancicos que se cantaron en la catedral de México (1693-1729). México: Universidad Nacional Autónoma de México-Instituto de Investigaciones Filológicas, 2018., Singer (2019)SINGER, Deborah. Políticas de inclusión/prácticas de subalternización: la construcción de etnicidad en los villancicos de negros de la Catedral de Santiago de Guatemala (siglos XVI-XVIII). Revista de Historia, n. 80, Jul.-Dic. 2019, p. 11-32., Uribe (2020)URIBE, Claudio Ramírez. “Villancicos guineos, miradas imaginarias”. Expresiones afrodescendientes en el México novohispano. Música oral del Sur, n. 17, Año 2020, p. 323-358., entre outros. A observar que o villancico de negros é uma modalidade apenas entre outras muitas que, dentro do vasto subgênero de villancicos denominado pela crítica como villancicos de remedo (ABRIL, 2013ABRIL, Omar Morales. Villancicos de remedo en la Nueva España. In: TELLO, Aurelio (org.). Humor, pericia y devoción: villancicos en la Nueva España. México: CIESAS, 2013, p. 11-38.), representa de forma satírica algún grupo sociocultural distinto al hegemónico (ABRIL, 2013ABRIL, Omar Morales. Villancicos de remedo en la Nueva España. In: TELLO, Aurelio (org.). Humor, pericia y devoción: villancicos en la Nueva España. México: CIESAS, 2013, p. 11-38., p. 19; Abril menciona designações diferentes utilizadas por outros autores: villancicos jocosos, villancicos plurilingües, villancicos diglósicos ou heteroglósicos). O vasto elenco de alteridades (caracterizado nesses villancicos de remedo sobretudo por meio de sua suposta forma de expressão verbal/dialetal) inclui camponeses, pastores, indígenas, comunidades estrangeiras de portugueses, franceses, toscanos, guinéus, galegos, asturianos, bascos, entre outros (ABRIL, idem). Isto confirma a coerência (já apontada aqui) entre os múltiplos exemplos de representação de alteridade que contribuíram historicamente para a conformação do Ocidente moderno nas mentalidades, e que compartilham em larga medida tanto as características operativas quanto os efeitos e implicações socio e geopolíticas.
  • 20
    Esse registro é igualmente assimilável ao de determinadas caracterizações de alteridade já presentes na Primeira Época Moderna: personagens da commedia dell’arte e da ópera que terminaram por se perpetuar tais como criadas, amas de leite ou pajens, cuja comicidade constituía uma brecha inclusive para a crítica social (COSTA, 2008COSTA, Ligiana. “Non per tutto l’età m’aggrinza”: le vecchie comiche nell’opera veneziana del Seicento. Tese de doutorado em Musicologia, Université de Tours (Université Francois Rabelais), 2008.). Sua posição especial – de pertencimento a uma classe social subalternizada, porém gozando de acesso à vida mais íntima de personagens das classes mais altas – permitia a exploração dramatúrgica da dimensão erótica, da tensão social, além de fazer dessas personagens elementos chave para a amarração da intriga.
  • 21
    When this is well danced, it never fails to elicit the most thundering applauses. What I have just endeavored to describe is the landum of the better orders. But when danced by the canaille it is far from being either graceful or decent. The common people in Portugal are so fond of the landum, that even at an advanced age they experience a strong sensation of delight on hearing the measure played on the guitar. I shall never forget having once seen a mummy-like old woman of eighty years of age rise from the floor which she was scrubbling, on hearing a barber strike up the tune, and begin to accompany the air with contorsions, to which age had left no other character than unmingled disgust. (...) I have been assured that both negroes and portuguese have been known to dance themselves into a state of phrenzy and even into convulsions. (...) We cease however to be astonished that the sons of Africa should be so fond of this exercise, when we are assured by a creditable traveler that, from the moment the sun has set, the whole of that vast continent is one scene of dancing.
  • 22
    O campo imagético aí esboçado se aproxima de forma notável à imagética elaborada para caracterizar a “bruxa” no outono da Idade Média cuja agência foi fundamental para a invalidação da sabedoria e do conhecimento feminino, popular e camponês e, consequentemente, para a instituição das práticas modernas como modalidade exclusiva de conhecimento válido (FEDERICI, 2019FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2019.).
  • 23
    Todos os fonogramas citados neste artigo, salvo quando houver menção em contrário, estão disponíveis para escuta online no website Discografia Brasileira, Instituto Moreira Salles. Escuta 1Escuta 1. Isto é bom. Xisto Bahia. Intérprete: Bahiano. Zon-o-phone 10001. 1902. https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/571/isto-e-bom
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . Isto é bom, do ator, compositor e cantor Xisto Bahia. Zon-o-phone 10001. Disponíveis em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/571/isto-e-bom. Acesso em: 26 maio 2023.
  • 24
    Escuta 2Escuta 2. Imitação d’um batuque africano. Intérprete: César Nunes. Victor R 98702. 1907. https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/12506/imitacao-d-um-batuque-africano
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . Imitação d’um batuque africano, interpretado por César Nunes, Victor R 98702, 1907. Disponível em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/12506/imitacao-d-um-batuque-africano. Acesso em: 26 maio 2023.
  • 25
    Cantora portuguesa nascida a 2 de dezembro de 1877, Medina de Sousa teve destacado papel como atriz e cantora em diversas companhias teatrais portuguesas e brasileiras de finais do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Veio ao Brasil pela primeira vez no ano de 1896 com a Companhia Taveira e a partir daí faria parte das companhias dos teatros Recreio, Apolo, Carlos Gomes, São José e Lucinda, no Rio de Janeiro, e Trindade, Edhen-Teatro e Avenida, em Lisboa. Foi também uma pioneira da era das gravações mecânicas em Portugal e no Brasil. A coleção José Moças da Universidade de Aveiro registra 18 fonogramas com a participação da atriz, enquanto a Discografia Brasileira em 78 rpm do Instituto Moreira Salles registra 51 fonogramas como cantora.
  • 26
    Para uma discussão acerca da objetificação e hipersexualização da mulher negra no contexto estadunidense, ver a noção das “imagens de controle” de tipo jezebel e hoochie em Patricia Hill Collins (2019)COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019..
  • 27
    Escuta 3Escuta 3. O Vatapá. Paulino Sacramento. Intérpretes: Medina de Sousa e Geraldo Magalhães. Victor R 98453. 1910. https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/20733/o-vatapa
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . O Vatapá, Paulino Sacramento, interpretado por Medina de Sousa e Geraldo Magalhães, Victor R 98453. 1910. Disponível em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/20733/o-vatapa. Acesso em: 26 maio 2023.
  • 28
    Escuta 4Escuta 4. Cadê vira mundo. J.B.Carvalho. Intérprete: Conjunto Tupi. Victor 33459. 1931. In: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/40889/cade-vira-mundo
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . Cadê vira mundo, J. B. de Carvalho, interpretado por Conjunto Tupi, Victor 33459, 1931. Disponível em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/40889/cade-vira-mundo. Acesso em: 26 maio 2023.
  • 29
    Por exemplo, o disco intitulado Macumba, gravado pelo Conjunto Africano em 1930 (Odeon 10690). Escuta 5Escuta 5. Canto de Exu. (Lado A). Intérprete: Eloy Antero Dias e Getúlio Marinho Amor e Conjunto Atlântico. Odeon 10690. 1930. In: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/30489/macumba-canto-de-exu .
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . Canto de Exu (Lado A), interpretado por Eloy Antero Dias, Getúlio Marinho Amor e Conjunto Africano. Disponível em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/30489/macumba-canto-de-exu. Acesso em: 26 maio 2023.
    Escuta 6Escuta 6. Canto de Ogum. (Lado B) Intérprete: Eloy Antero Dias e Getúlio Marinho Amor e Conjunto Atlântico. Odeon 10690. 1930. In: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/30489/macumba-canto-de-exu .
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . Canto de Ogum (Lado B), interpretado por Eloy Antero Dias, Getúlio Marinho Amor e Conjunto Africano. Disponível em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/30492/macumba-canto-de-ogum. Acesso em: 26 maio 2023.
  • 30
    Por exemplo, o disco intitulado Candomblé, de Felipe Nery Conceição, gravado pelo conjunto Filhos de Nagô em 1931 (Parlophon 13254). Escuta 7Escuta 7. Candomblé. (Lado A) A) Oduré – B) Eriuá. (Parlophon 13254). Felipe Nery Conceição. Intérprete: Filhos de Nagô. 1931. In: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/46114/candomble-a-odure-b-eriua.
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . Candomblé (Lado A): a) Oduré; b) Eriuá. Disponível em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/46114/candomble-a-odure-b-eriua. Acesso em: 26 maio 2023. Escuta 8Escuta 8. Candomblé. (Lado A) C) canto de Exú – D) Canto de Ogum. Felipe Nery Conceição. Intérprete: Filhos de Nagô. Parlophon 13254. 1931. In: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/46119/candomble-c-canto-de-exu-d-canto-de-ogum (lado B - Canto de Exu; Canto de Ogum).
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . Candomblé (Lado B: c) Canto de Exu; d) Canto de Ogum. Disponível em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/46119/candomble-c-canto-de-exu-d-canto-de-ogum. Acesso em: 26 maio 2023.
  • 31
    Escuta 9Escuta 9. Nêgo de pé espaiado. J.B. Carvalho. Intérprete. Conjunto Tupi.Victor 33482. 1931. In: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/40949/nego-de-pe-espaiado
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . Nêgo de pé espaiado, J. B. de Carvalho, interpretado por Conjunto Tupi, Victor 33482, 1931. Disponível em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/40949/nego-de-pe-espaiado. Acesso em: 26 maio 2023.
  • 32
    Escuta 10Escuta 10. Quando o sol sair. J.B.Carvalho. Intérprete: Conjunto Tupi. Victor 33784. 1934. In: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/42237/quando-o-sol-sair
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . Quando o sol sair. J. B. de Carvalho, interpretado por Conjunto Tupi, Victor 33784, 1934. Disponível em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/42237/quando-o-sol-sair. Acesso em: 26 maio 2023.
  • 33
    A partir da transcrição feita por Araújo (2015, p. 117-118)ARAÚJO, Anderson Leon Almeida de. “Sou da macumba e no feitiço não tenho rival” – A música negra de J. B. de Carvalho e do Conjunto Tupy (1931-1941). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2015..
  • 34
    A ambivalência foi muito bem observada por Araújo (2015, p. 178-179)ARAÚJO, Anderson Leon Almeida de. “Sou da macumba e no feitiço não tenho rival” – A música negra de J. B. de Carvalho e do Conjunto Tupy (1931-1941). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2015..
  • 35
    Agradecemos a Elizete Bernabé Loureiro pelo reconhecimento da imagética do Zé Pelintra na fotografia.
  • 36
    Eu sou o preto José Pelintra /Nego do pé derramado/ Na direita eu sou amigo / Na esquerda eu sou errado / Quem mexer com o que é dele / Ou tá doido ou tá danado (ASSUNÇÃO, 2010, p. 175, grifo nosso).
  • 37
    Outras variantes podem ser encontradas, como por exemplo: Sou eu José Pilintra / Nego do pé arranhado, / Na direita eu sou bonzinho / Na esquerda eu sou danado. / Seu doutor, seu doutor / Zé Pilintra chegou (grifo nosso). Disponível em: https://gritelaroye.tumblr.com/post/54465947561/sou-eu-jos%C3%A9-pilintra-nego-do-p%C3%A9-arranhado-na. Acesso em: 19 jan. 2023.
  • 38
    Rodney William Eugenio é antropólogo, escritor e babalorixá. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, realiza pesquisa sobre relações raciais, racismo e religiões de matriz africana. É sacerdote da Associação Cultural e Religiosa Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá, em São Paulo.
  • 39
    Sobre Exu e Zé Pelintra como expressões do arquétipo do trickster, ver Garbani e Serbena (2015)GABANI, Michelle Suzana de Almeida; SERBENA, Carlos Augusto. Exu: um trickster solto no “terreiro” psíquico. Relegens Thréskeia – estudos e pesquisa em religião, v. 4, n. 2, p. 52-70, 2015..
  • 40
    Ver, a esse respeito, sobretudo, Araújo (2015)ARAÚJO, Anderson Leon Almeida de. “Sou da macumba e no feitiço não tenho rival” – A música negra de J. B. de Carvalho e do Conjunto Tupy (1931-1941). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2015., notadamente o capítulo VII, “’Estivador, Chauffeur, Pugilista’, Radialista, Piloto, Sambista e Macumbeiro – o Moderno Negro J. B. de Carvalho” (p. 160-181). Araújo cita o verbete dedicado a J. B. de Carvalho na Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular, que dá uma amostra da complexidade do trânsito social do compositor: “O Conjunto Tupi foi um dos primeiros a ter programa de umbanda em rádio, durante muitos anos, além de realizar inúmeras gravações da Odeon. O grupo apresentou-se na maior parte das emissoras cariocas, sendo frequentemente interrompido pela polícia, que invadia os auditórios de seus programas, quando as pessoas entravam em transe ao ouvir os pontos de macumba e orações. Foi preso inúmeras vezes, sempre dizendo que saía livre graças à sua amizade com Getúlio Vargas” (citado em ARAÚJO, 2015ARAÚJO, Anderson Leon Almeida de. “Sou da macumba e no feitiço não tenho rival” – A música negra de J. B. de Carvalho e do Conjunto Tupy (1931-1941). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2015., p. 171).
  • 41
    Escuta 11Escuta 11. Fica no mocó. J.B.Carvalho. Intérprete: Conjunto Tupi. Victor 33516. 1932. In: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/34833/fica-no-moco
    https://discografiabrasileira.com.br/fon...
    . Fica no mocó, J. B. de Carvalho, interpretado por Conjunto Tupi, Victor 33516, 1932. Disponível em: https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/34833/fica-no-moco. Acesso em: 26 maio 2023.
  • 42
    Utilizamos o termo subalterno na acepção afirmada por Gayatri Chakravorty Spivak no contexto dos Subaltern Studies Collective: como aquilo que designa “as camadas inferiores da sociedade constituídas por modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política-legal, e da possibilidade de pertencimento pleno em estratos sociais dominantes” (SPIVAK, 2005SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Foreword: Upon Reading the Companion to Postcolonial Studies. In: SCHWARTZ, Henry; RAY, Sangeeta (ed.). A companion to postcolonial studies. Oxford: Blackwell Publishing, 2005 [2000]., p. xx, nossa tradução): “(...) the bottom layers of society constituted by specific modes of exclusion from markets, political-legal representation, and the possibility of full membership in dominant social strata”.

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Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2022
  • Aceito
    23 Fev 2023
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História Av. Prof. Lineu Prestes, 338, 01305-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3091-3701 - São Paulo - SP - Brazil
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