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UM CABO SUBMARINO NA MARÉ ABOLICIONISTA: INFRAESTRUTURA COMUNICACIONAL CONTRA A ESCRAVIDÃO NO CEARÁ (1873-1888)1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Desenvolvido a partir de capítulo da tese “Infraestrutura de cabos submarinos: uma pesquisa baseada em práticas artísticas situadas a partir da Praia do Futuro” (2022), defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com apoio de bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes (88887.480146/2020-00).

Resumo

Fortaleza é atualmente um hub de cabos submarinos do Atlântico, mas as memórias da presença dessa infraestrutura no imaginário da cidade ainda estão para ser salvaguardadas. Quando um cabo submarino ancorou pela primeira vez na costa da capital cearense, nos primeiros anos da década de 1880, narrativas eletroabolicionistas e fantasmagóricas vieram à superfície. Ao examinar os laços políticos e familiares do britânico William John Ayres, superintendente da Brazilian Submarine Telegraph Co., este artigo se fundamenta tanto nos estudos de infraestrutura quanto na arqueologia da rede para colaborar com estudos prévios do historiador Eduardo Silva que conectam o abolicionismo brasileiro com os efeitos sociais, culturais e políticos da chegada da tecnologia do cabo submarino. A principal colaboração do artigo é demonstrar que a apropriação política em torno dessa infraestrutura, constatada por Eduardo Silva no processo da abolição no Rio de Janeiro em 1888, foi previamente testada na abolição cearense de 1884.

Palavras-chave
abolição; cabo submarino; infraestrutura; telégrafo; Ceará

Abstract

Fortaleza is currently an Atlantic submarine cable hub, but the memories of this infrastructure’s presence in the city’s collective imaginary are yet to be safeguarded. When a submarine cable first landed on the shores of the capital of Ceará state in the early 1880s, electro-abolitionist and phantasmagorical narratives surfaced. By examining the political and familial ties of the British individual William John Ayres, superintendent of the Brazilian Submarine Telegraph Co., this article is grounded in both infrastructure studies and network archaeology to contribute to the previous research of historian Eduardo Silva. Silva’s work connects Brazilian abolitionism with the social, cultural, and political impacts of submarine cable technology’s arrival. The primary contribution of this article is to demonstrate that the political appropriation surrounding this infrastructure, as observed by Eduardo Silva in the context of the 1888 abolition process in Rio de Janeiro, was previously tested in the Ceará abolition of 1884.

Keywords
abolition; submarine cable; infrastructure; telegraph; Ceará

Introdução

O presente artigo fundamenta-se em uma corrente dos estudos sobre infraestruturas da comunicação, nomeada “arqueologia da rede” por Nicole Starosielski (2015)STAROSIELSKI, Nicole. The undersea network. Durham: Duke University Press, 2015.. Dedicando-se ao estudo dos cabos submarinos no Pacífico, ela defendeu que o “espectro de efeitos que as tecnologias de cabo submarino têm causado – dando apoio tanto para mudanças democráticas quanto para a construção de impérios – raramente vem à superfície, a não ser que esteja adequado à duas estruturas narrativas” (STAROSIELSKI, 2015STAROSIELSKI, Nicole. The undersea network. Durham: Duke University Press, 2015., p. 66; tradução nossa): as narrativas de conexão, que partem da concepção do cabo e se estendem através de sua instalação; e as narrativas de rompimento, que apresentam as falhas e as rupturas de cabos, geralmente evocando os medos culturais e a água como forças que podem dissolver a comunicação humana.

Essas duas estruturas narrativas predominam na esfera pública, reforçando uma percepção opaca dos sistemas de cabos e mediando o aparecimento deles de modo controlado e circunscrito a interesses corporativos. Ela propõe para acadêmicos, artistas e para o público, destarte, estruturas narrativas alternativas, nomeadamente narrativas de transmissão: acompanham a distribuição de sinais a partir de um determinado ponto da rede; e narrativas nodais: envolvem distintos nódulos da rede de cabos submarinos em um conjunto crítico de narrativas que englobam as três estruturas anteriores.

A arqueologia da rede fundamenta-se nessa estrutura para realizar uma punção no insulamento discursivo das narrativas de conexão e disrupção ao estender “a espacialidade e temporalidade do discurso sobre cabos para incluir locações tais como a manutenção da estação de cabo submarino e a manutenção do próprio cabo em si” (STAROSIELSKI, 2015STAROSIELSKI, Nicole. The undersea network. Durham: Duke University Press, 2015., p. 69), o que torna mais complexa a percepção política e cultural dos sistemas de cabos.

Para isso, a arqueologia da rede está interessada em identificar afetos e imaginários infraestruturais. Por afetos infraestruturais, entendemos experiências, sensações e estruturas de sentimentos geradas através dos encontros materiais entre pessoas e infraestruturas das mídias (não apenas interfaces, mas também locais físicos, instalações, dependências, trabalhadores e hardware). Por imaginários infraestruturais, entendemos os modos distintos de pensar e imaginar o que são as infraestruturas, onde elas estão localizadas, quem as controla e o que elas fazem (PARKS, 2014PARKS, Lisa. Stuff you can kick’: Conceptualizing media infrastructures. Humanities and the digital, p. 335, 2014.).

Considerando tal enquadramento, o presente artigo tem como objetivo salvaguardar narrativas envolvendo a operação do cabo submarino em Fortaleza no século XIX.

A importância de tal gesto de pesquisa que se volta ao passado e aos arquivos reverbera no presente: Fortaleza é o principal hub de cabos submarinos de fibra óptica no Atlântico Sul e, como colocado por Starosielski (2018)STAROSIELSKI, Nicole. Strangling the internet. Limn Issue 10: Chokepoint, 2018. Disponível em: https://limn.it/articles/strangling-the-internet/. Acesso em: 23 mar. 2023.
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, é um “ponto de estrangulamento topológico” (topological chokepoint) do sistema de cabos: isso significa que a cidade, por sua posição na topologia do Atlântico Sul, é a parte de um sistema que pode facilmente se tornar um lugar de congestão ou bloqueio, onde a distribuição de dados entre continentes pode ser interrompida com pouco esforço.

Pensar o presente e o futuro da rede de cabos submarinos a partir de Fortaleza é um projeto que se beneficiará de um conhecimento mais aprofundado do seu uso passado e aqui se oferece uma base para isso. A arqueologia da rede, nesse sentido, é uma abordagem que possui como característica perceber a história não como o estudo do passado, mas o potencial do presente e dos futuros possíveis, repensando temporalidades e propondo argumentações que escapam de cronologias retilíneas.

Através de uma investigação da expressão-chave “cabo submarino” em periódicos disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, emergiu um emaranhado de eventos históricos bastante significativos para o reconhecimento dos modos de tais infraestruturas operarem no tempo. Salvaguardar narrativas infraestruturais que se revelaram profundamente vinculadas com a abolição da escravatura no Ceará – e, posteriormente, no Brasil – demanda uma atenção para uma complexa teia de eventos marcados por fissuras historiográficas e personalidades contraditórias que apenas recentemente têm ganhado melhor atenção crítica.

A história do desenvolvimento infraestrutural no Ceará dos anos 1880 revelou-se, enfim, também ser parte da história da abolição da escravidão, conectando-se com as reflexões de Eduardo Silva sobre essa tecnologia no processo do abolicionismo no Rio de Janeiro. O presente artigo, assim, aproxima História e Comunicação, argumentando principalmente que a estratégia política reconhecida por Silva (2001)SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001. no Rio de Janeiro em 1888 foi previamente ensaiada no Ceará em 1884.

O texto abre com a apresentação de aspectos gerais sobre a rede de cabos submarinos em sua era imperial, no período dos cabos telegráficos3 3 Conforme Starosielski (2015), os cabos submarinos podem ter sua história dividida em três eras: a era imperial dos cabos telegráficos, a era dos cabos coaxiais – que foi marcada pela Guerra Fria – e a atual era dos cabos de fibra óptica. . Em seguida, contextualiza os acontecimentos e as narrativas de conexão que relacionam o primeiro cabo submarino a operar no Brasil com o movimento abolicionista cearense, dedicando atenção especial a William John Ayres, superintendente da Brazilian Submarine Telegraph Co. em Fortaleza e ativista da Sociedade Cearense Libertadora, considerada a “mais radical” organização abolicionista dos anos 1880. Também se apresentará uma especial narrativa de transmissão do ano de 1884, quando se distribuiu a notícia de que 58 cidades cearenses aboliram conjuntamente a escravidão.

Esperanças de que tal tecnologia pudesse estar associada a um futuro mais democrático, de mais justiça, igualdade e progresso para a humanidade, aparecem constantemente nos arquivos estudados. São afetos envolvendo a promessa de um porvir tecnológico viabilizado pelo chão e pelo mar do Ceará ao Brasil. Como apontado por Anand et al. (2018), estejam “sendo construídas ou desmoronando, as infraestruturas simultaneamente indicam as conquistas e limites, expectativas e falhas da modernidade” (ANAND et al., 2018ANAND, Nikhil. A public Matter: Water, Hydraulics, Biopolitics. In: ANAND, Nikhil; GUPTA, Akhil; APPEL, Hannah (ed.). The promise of infrastructure. Durham: Duke University Press, 2018., p. 26; tradução nossa). No Ceará da década de 1880, foram claramente expressas as associações entre o progresso tecnológico do cabo submarino e o progresso da humanidade rumo ao fim da escravidão.

O progresso tecnológico, em sua promessa, é oferecido em troca de subjetivação política. Como colocado por Larkin (2018)LARKIN, Brian. Promising Forms: The Political Aesthetics of Infrastructure. In: GUPTA, Akhil; ANAND, Nikhil; APPEL, Hannah (ed.). The promise of infrastructure. Durham: Duke University Press, 2018., infraestruturas são “conjuntos tecnológicos promissores”, de modo que a palavra “promissor” implica que um “sistema tecnológico é o efeito posterior da expectativa; não pode ser teorizado ou entendido fora das ordens políticas que o pré-datam e que ele traz à existência” (LARKIN, 2018LARKIN, Brian. Promising Forms: The Political Aesthetics of Infrastructure. In: GUPTA, Akhil; ANAND, Nikhil; APPEL, Hannah (ed.). The promise of infrastructure. Durham: Duke University Press, 2018., p. 182). É justamente pelo fato de as infraestruturas estarem investidas com promessas e pelo fato de que essas promessas aparecem constantemente no plano de frente que – sendo bem-sucedidas ou falhando:

elas trazem visibilidade para a operação da racionalidade governamental e oferecem essa racionalidade para o debate político. Entender como isso toma lugar, como o material e o figural são colocados juntos, é útil para se entender o dispositivo técnico sobre o qual a estética-política se sustenta

(LARKIN, 2018LARKIN, Brian. Promising Forms: The Political Aesthetics of Infrastructure. In: GUPTA, Akhil; ANAND, Nikhil; APPEL, Hannah (ed.). The promise of infrastructure. Durham: Duke University Press, 2018., p. 183; tradução nossa).

Nesse sentido, Anand et al. (2018)ANAND, Nikhil; GUPTA, Akhil; APPEL, Hannah (ed.). The promise of infrastructure. Durham: Duke University Press, 2018. nos lembram de que, conforme os materiais e as tecnologias se transformam, também se transformam suas promessas: “novas infraestruturas são promessas feitas no presente sobre o nosso futuro. Na medida em que elas costumam ser sempre incompletas – materiais que ainda não se mobilizaram para entregar o seu potencial – elas parecem como ruínas de promessas” (ANAND et al., 2018ANAND, Nikhil. A public Matter: Water, Hydraulics, Biopolitics. In: ANAND, Nikhil; GUPTA, Akhil; APPEL, Hannah (ed.). The promise of infrastructure. Durham: Duke University Press, 2018., p. 27).

Considerando isso, oferece-se aqui conhecimento sobre narrativas que passam pelo espaço da beira-mar de Fortaleza como terreno-base de mobilização abolicionista e pelo agenciamento da infraestrutura de cabos submarinos para fins políticos nacionais da década de 1880, desembocando na abolição nacional da escravatura em 1888.

A rede de cabos na era imperial

O primeiro cabo submarino a conectar a Europa com a América do Sul ancorou no Brasil na virada de 1873 para 1874. Isso foi apenas oito anos depois do primeiro cabo que sustentou a transmissão elétrica através do Atlântico Norte, depois de duas tentativas falhas em 1858 e 1865. O esforço para que tal infraestrutura operasse pelo progresso do Brasil é creditado a Barão do Mauá, empreendedor, industrialista, banqueiro e político engajado com o investimento em infraestrutura por décadas. Richard Graham se refere a ele como “um empreendedor brasileiro profundamente influenciado pelos britânicos e com conexões próximas à Inglaterra” (GRAHAM, 1972GRAHAM, Richard. Britain and the Onset of Modernization in Brazil – 1850-1914, n. 4. CUP Archive, 1972., p. 161; tradução nossa).

Figura 1
Direcção das Linhas Telegráficas – Telegrapho Submarino Brazileiro de Lisboa a Pernambuco e de Outras Linhas

O cabo conectava Carcavelos, em Portugal, com Recife, via Madeira e Cabo Verde. Como apontado por Roland Wenzlhuemer (2012)WENZLHUEMER, Roland. Connecting the nineteenth-century world: the telegraph and globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., vários outros cabos ao longo da costa sul-americana conectavam Pernambuco com Ceará, Pará, Cayenne e Demerara no Norte. Ao sul de Pernambuco, a conexão se estendia através de trechos que iam para a Bahia e para o Rio de Janeiro.

No periódico pernambucano A Província, em 3 de janeiro do ano de 1874, foi reportada a inauguração do serviço telegráfico da Western & Brazilian Telegraph Limited. A celebração não teria sido das mais imponentes, mas estaria à altura da expectativa de que a chegada da nova tecnologia melhoraria a “economia social” e colaboraria com a democracia: “A inauguração do cabo submarino foi antes de tudo uma festa democrática. – Nas condições actuaes da sociedade, tudo quanto pode unir os povos – o caminho de ferro, o vapor, o telegrapho – não pode passar desappercebido para a democracia” (A PROVÍNCIA, 3 de janeiro de 1874).

Anunciou-se que a “folia inaugural” envolveu a troca de uma série de telegramas entre autoridades. D. Pedro II se comunicou celebrando a “introdução no paiz de um dos mais ouzados emprehendimentos do espirito humano, e que é incontestavelmente um dos mais poderosos agentes da moderna civilização” (A PROVÍNCIA, 3 de janeiro de 1874). O Barão do Rio Branco, outro investidor de inovações infraestruturais no país, afirmou que “pela impressão de hoje, julguemos das vantagens moraes e economicas que virão quando o mensageiro eletrico nos puzer em contacto com a Europa e a América” (A PROVÍNCIA, 3 de janeiro de 1874). O presidente de Pernambuco lhe respondeu tratando diretamente da implicação de tal tecnologia para a questão moral, mais especificamente afirmando que a sua chegada apenas foi possível após a promulgação da Lei do Ventre Livre (1871)4 4 A Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040) foi promulgada em 28 de setembro de 1871 e assinada pela Princesa Isabel, considerando livres todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir de então. : “Estava determinado que a electricidade só começaria a percorrer o território brasileiro, depois que nenhum escravo mais nascesse nelle”. Nessa narrativa de conexão (como se faz recorrentemente), a infraestrutura aparece como texto, a economia como pretexto e a política como subtexto (APPEL, 2018).

No Grão-Pará, sabe-se que, no dia da inauguração, foram libertadas duas crianças escravizadas, em honra ao progresso que prometia o cabo. Na Câmara Municipal de Belém, estava “uma immensa mesa em forma de ferradura, com 350 talheres, em cujo tope havia uma representação do cabo telegraphico em miniatura, formada de 4 hastes com bandeiras designativas das províncias unidas pelo telegrapho submarino”. No brinde oferecido ao Imperador, assistiu-se à libertação dos jovens Manoel e Joanna (A REGENERAÇÃO, 4 de janeiro de 1874).

Larkin (2013)LARKIN, Brian. The politics and poetics of infrastructure. Annual review of anthropology, v. 42, p. 327-343, 2013. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-anthro-092412-155522. Acesso em: 15 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-092412-155522.
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aponta como é difícil separar a análise de infraestruturas da crença de que, ao se promover circulação, “as infraestruturas geram mudança, e através da mudança elas realizam o progresso, e através do progresso nós ganhamos liberdade” (LARKIN, 2013LARKIN, Brian. The politics and poetics of infrastructure. Annual review of anthropology, v. 42, p. 327-343, 2013. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-anthro-092412-155522. Acesso em: 15 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-092412-155522.
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, p. 332). Tal processo, para ele, “explica o motivo de tais objetos provocarem comprometimentos afetivos profundos, ainda mais em sociedades em desenvolvimento” (LARKIN, 2013LARKIN, Brian. The politics and poetics of infrastructure. Annual review of anthropology, v. 42, p. 327-343, 2013. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-anthro-092412-155522. Acesso em: 15 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-092412-155522.
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, p. 332).

A empresa Brazilian Submarine Telegraph Co. foi criada em 1873 (tendo durante os anos 1880 mudado seu nome para Western Telegraph Co.), sendo propriedade de um político de Manchester e pioneiro das infraestruturas de cabo submarino, “o rei dos cabos” John Pender (LINGE, 2018LINGE, Nigel. The CABLE KING: The Life of John Pender. The International Journal for the History of Engineering & Technology, v. 88, n. 2, p. 274-277, 2018. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17581206.2019.1575100. Acesso em: 3 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1080/17581206.2019.1575100.
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): ele tinha 32 companhias de telégrafo em África, China, Austrália, Europa e América. Naquela época, sete cabos ancoravam em Pernambuco, a província que era o verdadeiro hub da América do Sul, status hoje obtido por Fortaleza.

Apesar das dificuldades para estabelecer estratégias de insulamento (proteção da infraestrutura frente às ameaças ambientais ou sociais), a tecnologia do telégrafo por meio de cabos submarinos avançou rapidamente entre os anos 1870 e 1880, promovendo uma globalização elétrica da comunicação. Para situar tal processo através de um estudo historiográfico baseado em dados, Wenzlhuemer (2012) analisou a taxa de crescimento na velocidade da comunicação entre Londres e o mundo nas décadas de 1870 e 1880. “Amostras foram tomadas do The Times de Londres nos anos 1850, 1860, 1870, 1880, 1890 e 1900 em quatro épocas distintas de cada ano para se evitar enviesar em razão dos períodos das monções” (WENZLHUEMER, 2012WENZLHUEMER, Roland. Connecting the nineteenth-century world: the telegraph and globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., p. 125; tradução nossa).

Wenzlhuemer (2012)WENZLHUEMER, Roland. Connecting the nineteenth-century world: the telegraph and globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. menciona que todas as regiões incluídas em sua análise exibiram um crescimento dramático das taxas de velocidade de comunicação, “com a exceção notável do Nordeste sul-americano”, atribuída ao fato de que o The Times em 1880 continha quase nenhuma “informação das cidades de Pernambuco, Ceará e Pará (hoje Recife, Fortaleza e Belém no Brasil)” (WENZLHUEMER, 2012WENZLHUEMER, Roland. Connecting the nineteenth-century world: the telegraph and globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., p. 127; tradução nossa). Nenhuma outra explicação é dada pelo historiador sobre essa exceção notável.

É uma coincidência a falta de tais dados sobre o Ceará (a primeira província a abolir a escravidão no Brasil, em março de 1884), Grão-Pará (a segunda, em maio de 1884) e Pernambuco, a província com o maior número de organizações abolicionistas, de acordo com Castilho (2016, p. 10)CASTILHO, Celso. Thomas. Slave emancipation and transformations in Brazilian political citizenship. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2016.. Justamente em 1880, o Brasil vivia o seu “momentum abolicionista” (YOUNG, 2015YOUNG, Ronald. Abolition in Brazil. In: RODRIGUEZ, Juniuz P. (org.). Encyclopedia of Emancipation and Abolition in the Transatlantic World. London: Routledge, 2015.), como será visto, eletrizado pelas linhas telegráficas.

Anand (2018, p. 158)ANAND, Nikhil; GUPTA, Akhil; APPEL, Hannah (ed.). The promise of infrastructure. Durham: Duke University Press, 2018. chama atenção de que já tem sido amplamente descrito pelos historiadores como as infraestruturas modernas que emergiram na metade do século XIX foram chave para a consolidação do projeto de governança liberal, de modo que a expansão das tecnologias de distribuição de sinais deu ao estado liberal sua forma material.

Quando o Brasil aboliu a escravidão em 1888, a rede brasileira de telégrafos já punha em comunicação direta todas as principais cidades do país, do extremo norte ao extremo sul, compondo 11.000 km de linhas e o traçado no chão de mais de 18.000 km de fios condutores ligando 173 estações por todo o país (SILVA, 2011SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001., p. 109). O primeiro a reconhecer o papel dessa infraestrutura no processo de abolição da escravidão no Brasil foi o historiador Eduardo Silva, quem afirmou que o cabo transatlântico afetou profundamente o contexto político e cultural, acelerando a modernização do país e sua população.

Para Silva (2001)SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001., com a rapidez da comunicação estabelecida pelos cabos submarinos no país continental, a urgência do progresso da modernidade se acelerou contra o atraso da escravidão. Essa correlação entre aceleração dos processos abolicionistas, vinculada à rapidez da comunicação, ganha expressão curiosa no Ceará, algo que passou despercebido pelo historiador carioca:

O heróico movimento abolicionista da província do Ceará deve augmentar na relação direta do desenvolvimento que os progressos humanos apresentão. O telegrapho sempre foi a guarda avançada da liberdade, porque muito antes do homem conseguio emancipar os povos da escravidão das distâncias. Avante. Paula Ney

(O LIBERTADOR, 3 de abril de 1881O Libertador, Gazetilha, A Festa da Liberdade, 18 fev. 1881. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/229865/28. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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).

Tal pressa demorou quatro anos a mais para chegar no Rio de Janeiro, mas Silva afirma que, quando chegou, já não era possível esperar nem a publicação normal da Lei Áurea. Inicialmente constituída de uma única emenda imediatamente aprovada, a lei de 1888 incorporou na proposta inicial da sentença performativa “é declarada extinta a escravidão no Brasil” uma visão nova do tempo com cinco palavras que faziam toda a diferença – “desde a data desta lei”:

(...) pegando a reação escravista no contrapé: desde a data desta lei, isto é, imediatamente, tão rapidamente quanto o possa transmitir a telegrafia elétrica. A Lei Áurea, caso talvez único na História, traz embutida nela mesma a existência da telegrafia elétrica. Trata-se, portanto, de uma lei moderna não apenas no que se refere ao conteúdo, a questão da liberdade e da igualdade civil entre os homens, mas ainda no tocante a sua forma de difusão e enquadramento da sociedade

(SILVA, 2001SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001., p. 111).

Ressaltando como a Lei Áurea trouxe embutida a distribuição de si mesma pela infraestrutura de cabo submarino e linhas de telégrafo, Silva (2001)SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001. aponta como, tampouco tendo a Princesa Isabel (que assinou a lei) tomado distância de seu palácio na capital para ir de trem a Petrópolis, os ministros de governo correram para telegrafar a sanção de validade imediata para as capitais brasileiras conectadas pelos cabos submarinos que, por vez, levaram a notícia para as grandes capitais do mundo. As nações modernas, no dia seguinte, congratularam a última nação no hemisfério ocidental a se render atrasadamente a uma etapa modernizadora do capitalismo industrial. “Era o fato consumado. A validade instantânea da lei, a rapidez do telégrafo e a reação popular, por meio da festa, revelaram-se golpes fundamentais na desarticulação de qualquer possível – e até previsível – movimento de resistência” (SILVA, 2001SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001., p. 111).

Ao longo do artigo, arquivos de periódicos cearenses da década de 1880 são apresentados para salvaguardar as narrativas sobre o cabo e para reforçar o argumento principal: tal estratégia e a apropriação política da infraestrutura dos cabos submarinos foram ensaiadas previamente no Ceará, em 1884, de onde partiram as primeiras “ondas eletroabolicionistas” da maré que viabilizou o tardio momentum abolicionista brasileiro.

Narrativa de conexão do cabo na Terra da Luz

O apelido Terra da Luz, atribuído ao Ceará, é antigo e foi dado pelo romancista, ativista e jornalista José do Patrocínio5 5 O primeiro uso do apelido que pudemos encontrar fazendo referência ao Ceará está no periódico Gazeta da Tarde, em 6 de março de 1883. Pode-se ver aí um telegrama enviado pela organização abolicionista Sociedade Cearense Libertadora reportando a libertação de 200 escravizados, além de um texto de José do Patrocínio analisando o movimento abolicionista na província. São reportadas também as reações do governo local contra tal ativismo. . Ele foi um dos protagonistas-chave do que Young (2015)YOUNG, Ronald. Abolition in Brazil. In: RODRIGUEZ, Juniuz P. (org.). Encyclopedia of Emancipation and Abolition in the Transatlantic World. London: Routledge, 2015. nomeia “momentum abolicionista”, quando o movimento abolicionista ganhou força no Brasil. Patrocínio era articulador nacional de movimentos abolicionistas como a Sociedade Brasileira contra a Escravidão (1880) e a Confederação Abolicionista (1883) (RODRIGUEZ, 2015RODRIGUEZ, Juniuz P. Encyclopedia of Emancipation and Abolition in the Transatlantic World. London: Routledge, 2015., p. 84). No Ceará, Patrocínio chegou mesmo a ter seu rosto oferecido em um chapéu abolicionista, negociado em uma série de promoções que faziam honras aos líderes do movimento (O LIBERTADOR, Chapeu Abolicionistas, 1884O Cearense. Publicações Solicitadas. 17 fev. 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/709506/15991. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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).

O apelido foi dado na ocasião em que ele estava visitando cidades que hoje compõem a região metropolitana da Grande Fortaleza e que foram (uma em seguida da outra) abolindo a escravidão no ano de 1883: Acarape, Pacatuba e Fortaleza. A última teve a sua cerimônia de abolição pintada pelo artista cearense José do Irineu, tendo sido a pintura exposta um ano depois, em 1884, quando 58 cidades conjuntamente declararam que o Ceará estava livre da escravidão.

O gesto da libertação, conforme se verá ao longo do artigo, estava embutido por um afeto que se pode chamar mesmo de “eletroabolicionista”: a transmissão do heroísmo cearense através dos oceanos pelas ondas elétricas do cabo submarino era um gesto de sujeitos políticos conscientes de suas novas tecnologias de distribuição comunicacional.

Figura 2
Obra do pintor cearense José Irineu e que representa a cerimônia de votação para o fim da escravidão em Fortaleza, no ano de 1883

Como escritor e jornalista, Patrocínio visitou a província ao norte da capital do Império pela primeira vez entre maio e setembro de 1878. Ele estava em Fortaleza para reportar a Grande Seca (1877-1879), um desastre climático que ocorreu em uma trágica combinação com uma epidemia de varíola. Uma fossa comum foi aberta no dia 10 de dezembro de 1878, possivelmente o dia mais trágico da história da cidade e que ficou conhecido como o “Dia dos Mil Mortos”.

Ainda que cause estranhamento, não é uma surpresa que a coincidência de uma chuva no dia em que o cabo submarino ancorou na cidade, em 1882, fez com que se embutisse a esperança abolicionista como afeto dessa infraestrutura comunicacional. A chegada do telégrafo pelo imaginário cearense esteve associada com climas e tempos melhores: “Estamos em pleno abril... do inverno as tardes sombrias dão aos campos alegrias, esperanças, fantasias a um povo grande e viril. (...) É uma verdade incontestável: foi o cabo ou antes o Norseman [embarcação que instalava os cabos] que nos trouxe o inverno” (A CONSTITUIÇÃO, Folhetim, 2 de abril de 1882A Constituição. Folhetim. 2 abr. 1882. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/235334/5358. Acesso em: 2 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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).

A narrativa de conexão identificada no periódico A Constituição nos apresenta, além de afetos relacionados à esperança, uma situação de curiosidade ante a monumentalidade do cabo:

A proposito do cabo: houve um tal e qual alvoroço n’alfandega (segundo nos informam), quando uns vinte trabalhadores conduziam da beira da maré para um armazém, do lado de éste da praça da dita, um grande cabo. E o caso que sendo a peça ou rolo enorme em tamanho e pezo, – os carregadores iam levando-o destendendo-o, ficando assim todos a guiza de posto fenomenal. Alguem lembrou de dizer: olha o cabo submarino! Lá se foi tudo a ver o cabo. E se alguém mais o tivesse visto, então pediria ao inspector uma portaria, para que não se consentisse no desembarque d’esse bixo – caso fosse animal feroz!

(A CONSTITUIÇÃO, Folhetim, 2 de abril de 1882A Constituição. Folhetim. 2 abr. 1882. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/235334/5358. Acesso em: 2 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
http://memoria.bn.br/DocReader/235334/53...
).

Também uma intrigante relação entre fantasmagoria, tecnologia e abolição da escravidão vem à superfície com essa narrativa de conexão encontrada no periódico A Constituição do dia 2 de abril de 1882.

Para situar melhor o trecho que segue, Fortaleza estava (e ainda está, em boa parte) edificada sobre dunas6 6 Em 1649, os holandeses construíram o forte de Schoonemborch na foz do rio Pajeú. Cinco anos depois, os portugueses expulsaram os holandeses e passaram a chamar o forte de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. . Foi promovida ao status de cidade em 1726, e sua urbanização se deu no entorno de um morro que, no século XIX, era conhecido como Croatá. Desde os fins dos anos 1840, os mortos da cidade passaram a ser enterrados em um cemitério localizado no entorno dessa duna, desativado por lotação poucos anos depois. Não tão distante, foi construído um outro cemitério.

Quando tocava a ponta do cabo do Sr. Lacy [capitão do navio Norsemann] nas faldas do morro do Croatá – o nosso Pindo –, levantou-se um mormaço do seio das sepulturas que, o Codolino e seu companheiro de jardim, tiveram de pôr-se em guarda sobre os fechos do portão, por onde ninguém mais voltou depois de ter entrado – officialmente. A opinião de um nosso amigo deixa, entretanto, paz sobre o caso fenomenal e vem a ser que: ao contato da eletricidade, até os mortos se levantam. E não se admire o leitor, pois que, esse mesmo nosso amigo, provou a sociedade que a Libertadora Cearense é um fecto vivo

(A CONSTITUIÇÃO, Folhetim, 2 de abril de 1882).

Quem seria tal amigo que entende de eletricidade, cabos e que poderia provar que uma nova organização abolicionista estava efetivamente viva na cidade? Não é dito. Pode-se apenas especular que era algum membro da organização “mais radical” federada à Confederação Abolicionista: a Sociedade Libertadora Cearense, atuante em Fortaleza.

Quanto à associação entre cabo submarino e fantasmagoria, deve-se ressaltar que, conforme Stolow (2006)STOLOW, Jeremy. Techno-Religious Imaginaries: on the Spiritual Telegraph and the Circum-Atlantic World of the 19th Century. Globalization Working Papers, v. 6, n. 1, 2006. p. 1-32. Disponível em: https://ciaotest.cc.columbia.edu/wps/ighc/0007547/f_0007547_6420.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023.
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, o projeto infraestrutural de modernização telegráfica alterou as condições da comunicação em escala global ao oferecer novas oportunidades e expectativas para a presença do sujeito no mundo etéreo dos fluxos e correntes elétricas – um universo em que o corpo humano aparentemente não poderia entrar e que poderia ser a porta para “o mundo do além”:

(...) a telegrafia envolvia importantes afinidades eletivas com movimentos religiosos e com o trabalho de imaginação religiosa no século dezenove, especialmente no que concerne à circulação de ideias sobre progresso, transcendência, harmonia social e ecológica, saúde e vitalidade, morte e pós-vida. A comunicação telegráfica era frequentemente descrita no século dezenove em termos de milagres e poder sagrado. (...) E, com recorrência, no nível da cultura popular, tais debates envolvendo as implicações morais da telegrafia foram absorvidos em um entendimento amplamente animista do universo, onde as linhas dividindo ciência, espetáculo e mágica eram constantemente muito difíceis de se desenhar

(STOLOW, 2006STOLOW, Jeremy. Techno-Religious Imaginaries: on the Spiritual Telegraph and the Circum-Atlantic World of the 19th Century. Globalization Working Papers, v. 6, n. 1, 2006. p. 1-32. Disponível em: https://ciaotest.cc.columbia.edu/wps/ighc/0007547/f_0007547_6420.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023.
https://ciaotest.cc.columbia.edu/wps/igh...
, p. 11; tradução nossa).

Elemento crucial da operação logística da rede global telegráfica eram os cablemen, trabalhadores das estações de cabos submarino. Uma característica impressionante da presença dessa infraestrutura na Fortaleza do século XIX era o ativista e engenheiro elétrico britânico que permitiu a si mesmo ser fotografado como membro da Sociedade Cearense Libertadora: William John Ayres (1851-1943)7 7 Para checar a lista de membros, conferir a edição de 25 de março de 1884 de O Libertador, disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/136. .

Superintendente da estação de cabo submarino da Brazilian Submarine Telegraph Co. em Fortaleza, Ayres largou o emprego um ano após a abolição nacional, em 1889 (1944 Institution of Electrical Engineers: ObituariesINSTITUTION OF ELECTRICAL ENGINEERS. [Obituaries]. Disponível em: https://www.gracesguide.co.uk/William_John_Ayres. Acesso em: 3 mar. 2023.
https://www.gracesguide.co.uk/William_Jo...
). Por mais de um século, seu papel na narrativa do abolicionismo cearense careceu de alguma atenção historiográfica, desconhecendo-se aqui alguma referência que a ofereça. Ao longo do artigo, seu trabalho será situado, bem como seus laços familiares em Fortaleza, sua operação no dia da abolição provincial de 1884 e o que mais se pode saber através dos arquivos da Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.

Figura 3
Sociedade Cearense Libertadora

Mencionou-se que Wenzlhuemer (2012)WENZLHUEMER, Roland. Connecting the nineteenth-century world: the telegraph and globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., através dos dados do The Times, não conseguiu confirmar o crescimento estatístico do fluxo de informação entre o Norte do Brasil, Londres e outras capitais europeias. O tecido social da rede telegráfica indica, todavia, que os efeitos foram o suficiente para acelerar mudanças políticas.

Se essa aceleração teria propósitos imperialistas britânicos, isso pode se tornar uma questão ou linha discursiva para pensar a presença de William John Ayres no abolicionismo cearense. Para entender se essa questão ou linha faria sentido, verificou-se aqui como a produção de discurso histórico sobre a tecnologia de cabos submarinos foi revisada por Wenzlhuemer em seu esforço para contextualizar a telegrafia e seu papel no processo de globalização durante o século XIX.

Ele complexificou a concepção das linhas submarinas como uma ferramenta imperial e pontuou como elas afetavam os negócios e as finanças, a distribuição de notícias e o tecido social da cultura. Wenzlhuemer (2012) revisou a relevância prévia da ênfase historiográfica sobre o imperialismo, afirmando que ela apresentava uma forma de os historiadores entenderem como a comunicação global e os impérios estavam correlacionados, mostrando “como os políticos e os administradores coloniais estavam ávidos para se beneficiar da comunicação rápida entre partes distantes do mundo e como as redes de comunicação global foram formadas por interesses imperiais” (WENZLHUEMER, 2012WENZLHUEMER, Roland. Connecting the nineteenth-century world: the telegraph and globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., p. 83; tradução nossa).

Uma relação complexa entre cabos, colonialismo e imperialismo também foi apontada por Simone M. Müller (2016)MÜLLER, Simone M. Wiring the world: the social and cultural creation of global telegraph networks. Columbia University Press, 2016.. Para ambos os autores, a maior parte das pesquisas históricas sobre cabos e telégrafos apontaram para o nível macro do imperialismo, e apenas recentemente tem ocorrido uma mudança quanto a isso. Ela aponta para um caminho menos macro para pensar sobre o imperialismo britânico: deve-se estar consciente de que a ascendência britânica como um poder global estava relacionada com o progresso tecnológico e o desenvolvimento, mas seria atualmente necessário reduzir a ênfase no imperialismo ao se aumentar a consciência de que:

Por mais que os atores se beneficiassem fortemente das estruturas nacionais e imperiais e da colonialidade global, um mundo formado através da experiência e da lógica de séculos de colonialismo, eles não necessariamente abraçaram interesses imperiais. (...) O relacionamento entre redes de atores individuais e estruturas nacionais imperiais, ou os níveis micro e macro, era muito mais complexa; os fortes emaranhados entre as práticas culturais e sociais e econômicas e as estratégias políticas eram muito mais importantes para a estrutura, coordenação e regulação do sistema global de mídia do que já foi explorado

(MÜLLER, 2016MÜLLER, Simone M. Wiring the world: the social and cultural creation of global telegraph networks. Columbia University Press, 2016., p. 7; tradução nossa).

Considerando a relevância de tal atenção para os emaranhados sociotécnicos da existência dos cabos no tempo, os tópicos seguintes irão escavar mais fundo em fontes que explicitam uma narrativa de transmissão operada pelo britânico W. J. Ayres e as organizações abolicionistas na Fortaleza de 1884. Tal narrativa deixa dubio se Ayres agia de acordo com atores imperiais embebidos de colonialidade ou em mera aliança com sua sogra, Maria Tomásia Figueira Lima, e a narrativa histórica que a construiu como heroína do abolicionismo cearense.

Sociedade Cearense Libertadora e a praia como campo de luta

Parte dos arquivos que aqui fazem aparição foram publicados em O Libertador, propriedade da organização abolicionista da qual Ayres fazia parte. O tópico tratará de situar melhor a organização e os aspectos do processo de luta pelo fim da escravatura no Ceará. Por mais que o tópico desvie brevemente do foco do artigo, ele se faz imprescindível em termos de contextualização histórica.

Como apontado, a rede de cabos daquele momento apoiava um sistema midiático globalizado (em vez de meramente viabilizador de empreendimentos imperiais e coloniais), e O Libertador atuou pela abolição da escravidão se aproveitando da presença de Ayres na operação de tal infraestrutura.

Na fotografia da Sociedade Cearense Libertadora (Figura 3), está presente Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, personalidade mais celebrada da abolição cearense: também conhecido como Chico da Matilde e originalmente nomeado por Patrocínio como Lobo do Mar8 8 José do Patrocínio atribuiu para Francisco José do Nascimento o apelido de Lobo do Mar e Dragão do Mar, sendo o último o herói reconhecido até hoje. Para checar a menção mais antiga encontrada, visite a edição de 2 de maio de 1884 de O Libertador: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/226. . Ele se tornou o herói simbólico do ativismo abolicionista da classe trabalhadora dos jangadeiros, operadores das jangadas emblemáticas da cultura nordestina.

Sua posição como herói e membro da Sociedade Libertadora Cearense foi negociada entre abolicionistas e um de seus colegas: Luiz Napoleão, um negro que não havia nascido livre como Dragão do Mar, mas um libertador que comprou sua própria liberdade e que usou suas economias para continuar emancipando sua família e outros como ele (GIRÃO, 1984GIRÃO, Raimundo. A abolição no Ceará. Secretaria de Cultura e Desporto, 1984., p. 105-106).

Sobrinho (2005)SOBRINHO, José Hilário Ferreira. “Catirina minha nega, Teu sinhô ta te querendo vende, Pero Rio de Janeiro, Pero nunca mais ti vê, Amaru Mambirá”: O Ceará no tráfico interprovincial –1850-1881. Fortaleza: UFC, 2005. Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal do Ceará. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/56005/1/2005_dis_jhferreirasobrinho.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023.
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avançou na revisão historiográfica do papel que líderes negros desempenharam durante tais eventos políticos com os quais a história de cabos submarinos na cidade está emaranhada. O pesquisador chama atenção para as relações de solidariedade e afetividade entre os negros cativos e livres na organização dos jangadeiros, fundamental para o desenvolvimento das estratégias abolicionistas na província (SOBRINHO, 2005SOBRINHO, José Hilário Ferreira. “Catirina minha nega, Teu sinhô ta te querendo vende, Pero Rio de Janeiro, Pero nunca mais ti vê, Amaru Mambirá”: O Ceará no tráfico interprovincial –1850-1881. Fortaleza: UFC, 2005. Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal do Ceará. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/56005/1/2005_dis_jhferreirasobrinho.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023.
https://repositorio.ufc.br/bitstream/riu...
, p. 151).

Duas greves dos Jangadeiros em 1881 podem ser entendidas como gatilho para o desencadear da “maré abolicionista” que foi se espalhando pelo Brasil naquela década. As greves foram um momento de comoção popular, mas pretos e pretas como Luiz Napoleão, sua mulher Maria Simôa da Conceição e Francisco José do Nascimento assumiram papéis-chave9 9 Enquanto o Sr. Nascimento se tornou o herói no imaginário local ao longo do século XX, Napoleão e Tia Simôa apenas recentemente estão ganhando visibilidade pelo movimento negro local através de blogs de Internet e dissertações como a de Hilário Sobrinho (2005). . A primeira greve aconteceu em 27, 30 e 31 de janeiro de 1881 (MILES, 2012MILES, Tschombe. Black leaders and their concept of freedom in nineteenth century northeast Brazil. African and Black Diaspora: An International Journal, v. 5, n. 2, p. 264-282, 2012. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17528631.2012.695225. Acesso em: 3 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1080/17528631.2012.695225.
https://doi.org/10.1080/17528631.2012.69...
, p. 64).

A citação a seguir ilustra o que aconteceu em Fortaleza durante aqueles dias e exemplifica o que a historiadora Angela Alonso afirma sobre o movimento abolicionista de 1880 no Brasil: pouco se adequa a palavras como “elitista” ou “popular”, constituindo na verdade uma teia complexa que é difícil classificar (ALONSO, 2012ALONSO, Angela. A teatralização da política: a propaganda abolicionista. Tempo Social, v. 24, n. 2, p. 101-122, 2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/53134. Acesso em: 3 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1590/S0103-20702012000200006.
https://www.revistas.usp.br/ts/article/v...
, p. 116). O recém-criado O Libertador assim narrou a primeira greve:

No dia 27 de Janeiro uns senhores que não conhecem outro meio de vida, sinão comprar e vender creaturas humanas trataram de exportar para os portos do sul quatorze homens e mulheres. Quando, à luz da civilisação, a sociedade inteira se levanta contra a escravidão, o povo cearense não podia ficar aquem do seu século e collocar-se na reta-guarda dos tempos que já la foram. Assim entendeu elle de seu dever protestar contra o deshumano trafico, e um por um affluiram à praia mais de 1,500 homens de todas as classes e condições. Lá já estavam os jangadeiros prestando os valiosos e indispensáveis serviços de sua profissão. A elles, pois, se dirigiam os negreiros sollicitanado o embarque dos infelizes que destinavam vender no sul. NO PORTO DO CEARÁ NÃO SE EMBARCA MAIS ESCRAVOS! Esta resposta terminante e decisiva partio ao mesmo tempo de todos os labios. Não se sabe mesmo quem primeiro a proferisse. Era uma ideia que estava em todas as intelligencias, um sentimento que brota em todos os corações.

(O LIBERTADOR, 7 de fevereiro, 1881O Libertador. 3 de março de 1881. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/1033. Acesso em: 4 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
http://memoria.bn.br/DocReader/229865/10...
)

No dia 30 de janeiro de 1881, a Sociedade Libertadora Cearense foi oficialmente fundada em meio ao clima da primeira greve. Sua fundação contou com a performance de um ritual de sangue com juras de “matar e morrer” pela abolição, de acordo com uma das testemunhas ativas de tal evento, Antônio Bezerra (1906, p. 44)BEZERRA, Antônio. O Ceará e os Cearenses: ligeiras apreciações. Fortaleza: Typ. Minerva, 1906.. As juras de sangue dividiram “os radicais” e aqueles que pensavam que a abolição deveria se dar com uma transição pacífica10 10 Nesse encontro, Bezerra indica que eles também deliberaram o uso de pseudônimos e criptografia para se comunicar. Por mais que W. J. Ayres tenha ousado aparecer na foto da radical organização abolicionista, qualquer escrito radical seu publicado em O Libertador não estaria assinado. .

O primeiro convite aos jangadeiros foi feito pelo presidente da Sociedade Libertadora Cearense, José do Amaral, direcionado para Luiz Napoleão e não para Francisco do Nascimento. O historiador Eduardo Girão afirma que Amaral foi insistente e esperava que Napoleão aceitasse liderar “o campo da praia” da luta. Napoleão recusou, mas apontou para do Nascimento: “aqui tem um que serve para o que o senhor quer” (GIRÃO, 1984GIRÃO, Raimundo. A abolição no Ceará. Secretaria de Cultura e Desporto, 1984., p. 108).

O cabo submarino de 1882 ancorou nesse campo de luta da praia onde os pretos também sabiam o que queriam, deflagrando uma greve no porto da cidade e realizando manifestações para resistir ao embarque de pessoas escravizadas para venda ao Sudeste11 11 Analisando os sensos de liberdade cultivados pelo herói negro do abolicionismo do Ceará, Miles considera claro que Franscisco do Nascimento possuía liderança, habilidade e alta inteligência. Por possuir duas jangadas, distinguia-se também. Já para Sobrinho, o fato de que ele foi apontado por Napoleão para integrar a Sociedade Cearense Libertadora indica que entre a recusa heroica e a aceitação da performance de heroísmo havia dois homens que respeitavam um ao outro na causa comum contra a escravidão. Ao recusar tal papel, Napoleão permanece hoje obliterado dessa narrativa, por vezes esquecido. . Enquanto isso, no Rio, conferências eram organizadas por homens como José do Patrocínio, tendo esse professado discursos alinhados com os radicais jangadeiros e cearenses.

Foi Patrocínio quem primeiramente chamou Chico da Matilde de “Lobo do Mar” e, posteriormente, “Dragão do Mar”. Alonso (2012)ALONSO, Angela. A teatralização da política: a propaganda abolicionista. Tempo Social, v. 24, n. 2, p. 101-122, 2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/53134. Acesso em: 3 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1590/S0103-20702012000200006.
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contou 43 conferências abolicionistas na capital do império entre julho de 1880 e julho de 1881. Elas geralmente tinham um ou dois palestrantes, e José do Patrocínio palestrou em 17 deles, afirmando que a abolição deveria acontecer sem o pagamento de indenização aos escravizadores (ALONSO, 2012ALONSO, Angela. A teatralização da política: a propaganda abolicionista. Tempo Social, v. 24, n. 2, p. 101-122, 2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/53134. Acesso em: 3 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1590/S0103-20702012000200006.
https://www.revistas.usp.br/ts/article/v...
, p. 106). Tais eventos e personagens representam adequadamente a asserção de Castilho de que o abolicionismo brasileiro tinha uma natureza dinâmica – “caráter descentralizado, composição inter-racial extensa, e formações nacionais e transnacionais” (CASTILHO, 2016CASTILHO, Celso. Thomas. Slave emancipation and transformations in Brazilian political citizenship. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2016., p. 9).

A segunda greve ocorreu em 30 de agosto de 1881. Já tinha Francisco do Nascimento como herói ascendente da classe trabalhadora dos jangadeiros, em sua associação com poetas, industriais, filhos de juízes e o telegrafista britânico, superintendente da Brazilian Submarine Telegraph Co. Desde então, não existem mais registros de escravizados sendo embarcados no porto de Fortaleza12 12 Como as ondas de Fortaleza eram bastante tempestuosas, os barcos não atracavam no porto, tendo as pessoas e as malas que esperar a distância que as jangadas as fossem buscar e as transportar para a terra. .

Assim, trabalhadores do mar e W.J. Ayres, ambos administravam um relacionamento próximo com o oceano para gerar e transmitir as ondas que ecoaram a famosa frase do abolicionismo cearense para o Brasil de 1880: “No porto do Ceará não se embarcam mais escravos!”. O papel infraestrutural de um era discretamente atuar com o cabo submarino; e o do outro, heroicamente, com a jangada, ambas mídias oceânicas em aliança curiosa pela liberdade liberal13 13 Para mais considerações sobre as relações entre oceano, barcos e estudos de mídia, conferir “Of Cetaceans and Ships”, por John Durham Peters (2015). .

Em 25 de março de 1884, a escravidão foi declarada abolida no Ceará. O tópico final irá narrar melhor a narrativa de transmissão do cabo submarino que se pode encontrar sobre aquele dia. Por ora, é destacado que o 25 de março de 1884 foi meticulosamente escolhido como culminação de uma longa campanha: o Brasil celebrava naquela mesma data 60 anos de sua Constituição Imperial.

No 25 de março, no outro lado do Atlântico, em Paris, um banquete foi oferecido com a presença do renomado abolicionista francês Victor Schoelcher14 14 José do Patrocínio publicou, n’O Libertador de 5 de maio de 1884, mensagens escritas por Victor Hugo e Victor Shoelcher se referindo ao banquete, ao Ceará e à abolição. . A cerimônia visava unir em pensamento o Ceará com a França, conforme estava programado em articulação com os esforços de José do Patrocínio, naquele período em visita a Paris.

Tal articulação sincronizada de conteúdo para os jornais internacionais dependia de as linhas telegráficas distribuírem as notícias de liberdade através dos cabos submarinos. Dentro do prédio do senado no Rio de Janeiro, o senador cearense Tristão de Alencar é citado para se jogar mais uma camada de evidência de uma subjetivação política com a rede submarina:

Senhores, o Ceará oje cobre-se de galas e do seo seio levanta-se um foco de luz que irradia pelo Brazil inteiro, annunciando-nos a bôa nova, e transpõe os mares para refletir na culta Europa, mostrando os Brazileiros como povo, que busca lugar entre as nações livres da Terra. Sim, senhores, o Ceará banio de seo sólo a escravidão, e declara ao mundo, que nas auras cearenses já não respira um só escravo. O Ceará é terra de omens livres, e convida o Brazil todo a suprimir o escravo, e a declarar-se livre. O telegrafo certificou-nos, que o Ceará, como prometera [grifo nosso], avia completado a sua libertação total: a palavra e o brio cearense desempenharão-se para com a pátria e o mundo

(ARARIPE, 1884ARARIPE, Tristão de Alencar. 25 de março – O Ceará no Rio de Janeiro: discurso histórico do conselheiro Tristão Alencar de Araripe. Fortaleza: Typ. do Libertador de Sobral, I. O. D. M., & CE-IOM, S. C., 1884. (Genealogia Sobralense, vol. 2, Os Gomes Parente)., p. 7).

Eduardo Silva (2001)SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001. aponta como os tempos, em 1880, estabeleciam um novo ritmo para a experiência cotidiana, implicando uma ideia de pressa que estava ansiosa pelo progresso em direção ao futuro positivista. No Brasil, tal pressa envolvia colocar um fim ao sistema escravagista. A Sociedade Cearense Libertadora tomou a frente desse movimento no começo dos anos 1880, abolindo a escravidão sem respeito total aos meios legais, na província que então era a maior fornecedora de escravizados para o mercado interno do Brasil:

Corria bem o ano de 1881 e o movimento do grupo radical ganhava força. O grande dilema daquele momento era o tráfico de escravos para outras províncias. Lembremos que enquanto o Ceará vinha num ritmo de diminuição de sua população cativa, naquele contexto motivado pela seca que o assolou em fins da década de 1870, regiões de economia mais dinâmica como Rio de Janeiro e São Paulo necessitavam cada vez mais de escravos para manter a produção de café. Considerando a impossibilidade de aquisição de escravos africanos, proibida definitivamente desde 1851, restava agora a compra de escravos nacionais. É aqui que o Ceará é importante. No início da década de 1880, a província do Ceará era a maior exportadora de escravos do Brasil

(MARTINS, 2012MARTINS, Pedro Henrique de Sousa. Escravidão, abolição e pós-abolição no Ceará: sobre histórias, memórias e narrativas dos últimos escravos e seus descendentes no sertão cearense. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2012. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/td/1641.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023
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, p. 10).

Quando o cabo submarino ancorou pela primeira vez na Fortaleza traumatizada pela Grande Seca e pelo Dia dos Mil Mortos, justamente em um dia de chuva no começo dos anos 1880, foi em um momento decisivo para os ativistas locais o usarem para tentar projetar seus ideais como a expressão mais avant-garde do Brasil. Paulo H. S. Martins (2012)MARTINS, Pedro Henrique de Sousa. Escravidão, abolição e pós-abolição no Ceará: sobre histórias, memórias e narrativas dos últimos escravos e seus descendentes no sertão cearense. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2012. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/td/1641.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023
https://www.historia.uff.br/stricto/td/1...
destaca como para o Ceará não era suficiente libertar: era importante mostrar as ações do abolicionismo cearense para o mundo todo (MARTINS, 2012MARTINS, Pedro Henrique de Sousa. Escravidão, abolição e pós-abolição no Ceará: sobre histórias, memórias e narrativas dos últimos escravos e seus descendentes no sertão cearense. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2012. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/td/1641.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023
https://www.historia.uff.br/stricto/td/1...
, p. 16). Todas as ondas de informação geradas por essa maré abolicionista foram transmitidas através do oceano sob a supervisão de W. J. Ayres, o superintende da Brazilian Submarine Telegraph Co.

William John Ayres, responsável pelas transmissões no Ceará, mudou-se para Pernambuco em 1889, e em 1942 sua foto foi publicada no Jornal Pequeno, com base em Recife. Era a celebração do seu aniversário de 92 anos, “Uma figura relevante da sociedade pernambucana e um membro ilustre da colônia britânica do estado” (JORNAL PEQUENO, Album Elegante, 1942Jornal Pequeno. Album Elegante, 1942, n. 125. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/67363. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
http://memoria.bn.br/DocReader/800643/67...
). Um ano depois, a mesma foto foi publicada para lamentar sua morte (JORNAL PEQUENO, William John Ayres, 1943).

1884: narrativa de transmissão

Figura 4
Fotografia publicada no obituário de W.J. Ayres, no Jornal Pequeno, em 1943

Os trabalhadores de estações de cabo submarino na era imperial atuavam intensamente com seus corpos, que afinal eram integrais à infraestrutura que fazia a comunicação transoceânica possível. A transmissão de sinais elétricos oceano afora, na era imperial, era uma prática de distintivo engajamento corporal. Os operadores responsáveis por enviar e receber sinais telegráficos se tornavam fisicamente parte do circuito, tendo sua operacionalidade na rede reconhecida pelos detalhes de suas individualidades.

Os trabalhadores de estações eram responsáveis por transmitir notícias que chacoalhavam o mundo político, desde terremotos às guerras, como se pode ver nos periódicos de Fortaleza durante o período em que W.J. Ayres superintendeu. Suas horas de trabalho eram pouco usuais, não eram ajustadas ao horário local, mas ao tempo global dos impérios principais: “quando eles entravam no ambiente de trabalho, os cablemen ocupavam esse espaço global, uma zona de velocidade e pressão” (STAROSIELSKI, 2015STAROSIELSKI, Nicole. The undersea network. Durham: Duke University Press, 2015., p. 105).

Atualmente, na era da fibra óptica (em que as estações são administradas remotamente), os trabalhadores e as estações de cabo submarino operam com um aparato de hardware automatizado. Naquela época, o corpo do trabalhador era um parasita da infraestrutura física:

A estação de cabo submarino era o lugar onde microcirculações conectadas com correntes globais e práticas locais podiam se disseminar através da rede (de desenvolvimento tecnológico até porres de bebida). O corpo do trabalhador dos cabos – um local através do qual mensagens e informação passava e onde eram interpretadas – formava o portão chave para o sistema e para o ponto de pressão mais importante da rede. Movimentos muito pequenos aqui podiam ter efeitos de grande escala: o corpo dos cablemen era entendido como o local que era mais suscetível à variação ou interrupção do fluxo. Como argumentado por Jussi Parikka, nas redes do século dezenove e do século vinte, “eram geralmente pessoas que ocupavam essa posição de parasita ou intruso entre a transmissão”

(STAROSIELSKI, 2015STAROSIELSKI, Nicole. The undersea network. Durham: Duke University Press, 2015., p. 105; tradução nossa).

Ayres começou a trabalhar para a Brazilian Submarine Telegraph Co. quando tinha 23 anos de idade, em 1874. Para a realização da pesquisa, entramos em contato com o Museum of Global Communications, localizado em Porthcurno, Inglaterra, importante ponto de ancoragem de cabos para o império britânico. O museu é detentor dos arquivos da companhia que Ayres trabalhou, mas o administrador dos arquivos, Alan Renton, demonstrou surpresa ao não encontrar nada sobre ele, para além do seu obituário, publicado na revista Zodiac, pertencente à indústria de cabos submarinos.

Entre os obituários que temos a reportar neste mês, será notado o nome de W.J. Ayres, cuja notícia de sua morte em idade avançada acabou de chegar até nós. O Sr. Ayres era pessoalmente conhecido por muitas gerações de nossa equipe, e foi relatado que ele foi ao Brasil com a primeira expedição de instalação de cabos. Ele nasceu em Londres em 1851, foi para o Brasil em 1874 para a Brazilian Submarine Company, predecessora da Western Company, e serviu em Rio Grande do Sul, Florianópolis, Bahia, Rio e, finalmente, em Ceará como Gerente da Estação lá até 1889, quando ele renunciou e foi para Pernambuco para dedicar suas atividades ao comércio e à indústria açucareira. Em 1901, ele fundou a empresa W.J. Ayres, que em 1912 tornou-se Ayres & Son. Ele deixa dois filhos e sete filhas, sendo um deles o Sr. Jack Ayres, da Ayres, Son & Co

(ZODIAC, 1944Zodiac. Obituary. January 1944.; trad. nossa).

A menção mais antiga feita a ele nos arquivos da Biblioteca Nacional foi publicada na província da Bahia, noticiando-o como passageiro de uma embarcação nomeada de Ceará, em direção ao Rio de Janeiro. Ceará estava transportando outro britânico chamado John Lister, alguns brasileiros e “14 escravos para ser entregues” (O MONITOR, 1879O Monitor. Notícias Diversas. 3 jan. 1879. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/704008/2994. Acesso em: 4 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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).

Ayres deveria ser discreto com suas atividades abolicionistas, conforme se pode considerar, a partir de Starosielski (2015)STAROSIELSKI, Nicole. The undersea network. Durham: Duke University Press, 2015., que todas as companhias orientavam os cablemen a manter discrição. Casamento com locais, todavia, era parte da estratégia de insulamento da infraestrutura de cabo submarino: “A estação de cabo submarino era porosa e a mistura cultural em ambientes remotos significava que os laços sociais também poderiam se tornar confusos” (STAROSIELSKI, 2015STAROSIELSKI, Nicole. The undersea network. Durham: Duke University Press, 2015., p. 103-104).

No Ceará, John Ayres casou com Francisca de Oliveira Lima Ayres, filha de Maria Thomázia Figueira Lima, a heroína abolicionista que representou a dedicação crucial das mulheres à causa. A imprensa cearense noticia pelo menos dois eventos com a presença de Ayres, expondo-o como marido da filha de Maria Thomázia: a inauguração de um busto em uma praça local e o funeral de um parente comum (O LIBERTADOR, Annuncios, 1886O Libertador. Annuncios. 3 fev. 1886. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/229865/1832. Acesso em: 2 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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; O LIBERTADOR, Perante a Estatua, 1888O Libertador. Perante a Estatua. 8 abr. 1888. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/229865/872. Acesso em: 2 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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).

Sua sogra era uma das principais articuladoras do movimento abolicionista brasileiro e líder da Sociedade das Senhoras Libertadoras. Estabelecida em 8 de dezembro de 1880, as Senhoras Libertadoras constituíram a primeira organização política de mulheres no Brasil (O CEARENSE, Publicações Solicitadas, 1884O Cearense. Publicações Solicitadas. 17 fev. 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/709506/15991. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
http://memoria.bn.br/docreader/709506/15...
).

A Senhoras Libertadoras era composta de mulheres da classe média e da elite engajadas culturalmente, algumas inclusive inovadoras escritoras de literatura, como Emília de Freitas, autora da primeira obra de sci-fi futurista do Brasil, Rainha do Ignoto (1899). Outras eram esposas de membros ativos da Sociedade Cearense Libertadora, como a esposa de Ayres. Ela morreu em 1904, dois anos depois de sua mãe ter falecido no Rio de Janeiro e 39 anos antes de seu marido ser enterrado no Cemitério Britânico do Recife (JORNAL PEQUENO, William John Ayres, 1943Jornal Pequeno. William John Ayres. 22 maio 1943. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/69086. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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; JORNAL PEQUENO, Agradecimento, 1904Jornal Pequeno. Agradecimento. 29 ago. 1904. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/800643/7322. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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). Uma das filhas de Ayres foi uma freira em Roma e escreveu para ele dizendo que estava bem na Itália de 1944, ainda sem saber que ele havia naquele mesmo ano falecido (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, A irmã Hilda manda notícias à sua família no Recife, dum convento de Roma, 1944Diário de Pernambuco. A irmã Hilda manda notícias à sua família no Recife, dum convento de Roma. 12 jul. 1944. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/029033_12/16146. Acesso em: 2 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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)15 15 A notícia de sua morte apresenta uma falsa alegação sobre os seus casamentos. Afirma que ele se divorciou do seu primeiro casamento, no Ceará, em 1889, mudando-se então para Recife, mas arquivos de periódicos pernambucanos da década de 1890 confirmam a presença de Francisca com ele no Recife até a sua morte em 1904 (JORNAL DO RECIFE, Commendador Rodrigues Lima, 1894). Também afirmam que ele retornou de uma visita a Southampton em 1898 (JORNAL PEQUENO, Passageiros, 1898). Ele abriu uma fábrica de tecidos, e, por essa atividade comercial, o Sr. Ayres se tornou conhecido na sociedade pernambucana do começo do século XX (A PROVÍNCIA, Companhia de Tecidos Paulista, 1900). Jornais também o apresentam como um jogador de futebol durante a década de 1900 (JORNAL PEQUENO, Sport, 1909) e como um beberrão de cerveja, para um senhor de 80 anos na década de 1940 (JORNAL PEQUENO, Registos do Dia, 1938. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/56807). .

O genro de Maria Thomázia e trabalhador da estação de cabo submarino aparece de modo sutil, mas essencial na narração publicada em O Libertador sobre o que aconteceu nos dias 24 e 25 de março de 1884 em Fortaleza. Uma série de eventos de celebração confirmam que Fortaleza aplicou o modelo reconhecido por Eduardo Silva como uma aliança deliberada entre cabo submarino e abolição nacional em 1888.

A representação de O Libertador sobre esses dois dias afirma “o cearense” como a personificação da modernidade progressista no Brasil, aliando ideais de liberdade às tecnologias de distribuição midiática. Também coloca as mulheres, como Maria Thomázia e a organização que ela representa, como uma “Heroína Cearense”. Sintomaticamente, entretanto, não apresenta nenhum discurso ou a presença de Dragão do Mar, Tia Simoa ou Napoleão Simões.

Para Hilário Sobrinho (2005)SOBRINHO, José Hilário Ferreira. “Catirina minha nega, Teu sinhô ta te querendo vende, Pero Rio de Janeiro, Pero nunca mais ti vê, Amaru Mambirá”: O Ceará no tráfico interprovincial –1850-1881. Fortaleza: UFC, 2005. Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal do Ceará. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/56005/1/2005_dis_jhferreirasobrinho.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023.
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, o discurso abolicionista no Ceará foi construído para colocar os abolicionistas como principais líderes e alguns jangadeiros como líderes também, mas peculiarmente limitados ao campo da praia, como se o segundo fosse resultado do primeiro, e não o contrário. “Não é de se estranhar que se tenha fabricado um líder ou herói para o movimento dos jangadeiros. Nesse contexto, portanto, é que se deve compreender o aparecimento do herói Dragão do Mar” (SOBRINHO, 2005SOBRINHO, José Hilário Ferreira. “Catirina minha nega, Teu sinhô ta te querendo vende, Pero Rio de Janeiro, Pero nunca mais ti vê, Amaru Mambirá”: O Ceará no tráfico interprovincial –1850-1881. Fortaleza: UFC, 2005. Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal do Ceará. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/56005/1/2005_dis_jhferreirasobrinho.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023.
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, p. 152).

No dia anterior à abolição oficial, Justiniano de Serpa ofereceu um brinde em um banquete abolicionista em Fortaleza para Maria Thomázia, “a incansável protectora dos captivos, a Heroina Cearense, que se tornou, por seu esforço e dedicação à causa dos escravos, a incarnação mais brilhante do nosso patriotismo”. Justiniano de Serpa também escreveu depois um artigo celebrando José do Patrocínio e seu apoio para o movimento abolicionista cearense (O LIBERTADOR, Tribuna do Povo, 1884O Libertador. Tribuna do Povo. 2 maio 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/227. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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).

A organização das Senhoras Libertadoras ofereceu um jantar para 58 pessoas, número equivalente à quantidade de cidades cearenses que estavam realizando a abolição, no que se denominou o “Banquete dos Pobres” (O LIBERTADOR, Victoria e Gloria, 1884O Libertador. Applaudimos. 18 mar. 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=229865&pagfis=129. Acesso em: 2 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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). Era apenas um dos múltiplos “festivais de caridade” que se espalhavam pela cidade (O LIBERTADOR, Acontecimento Sem Igual, 1884O Libertador, Chapeus Abolicionistas. n. 97, 15 maio 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/271. Acesso em: 2 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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).

No dia da abolição, em torno do anfiteatro, “as cambiantes de uma variedade quasi sem numero de lanternas, de luzes, e de bicos de gaz, de fammulas e galhardetes, parecia phantastico ou divinal o espectaculo que se observava” (O LIBERTADOR, Acontecimento Sem Igual, 1884O Libertador, 5 maio 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/229865/234. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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). Uma praça iluminada à noite pela luz elétrica representava, em tal notícia, a inversão de ordem que a modernidade prometia.

A sogra do cablemen foi quem assinou a abolição de 58 cidades com uma caneta de cetim de ouro. “A bella metropole do abolicionismo brazileiro estava, de facto e de direito, constitutida – TERRA DA LUZ!” (O LIBERTADOR, Acontecimento Sem Igual, 1884O Libertador, 2 maio 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/226. Acesso em: 4 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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). Fortaleza tinha música tocando pelas ruas com composições abolicionistas e uma grande quantidade de pessoas em torno do anfiteatro cheio, onde poetas, tais como Antônio Bezerra (Sociedade Cearense Libertadora) e Francisca Clotilde (Sociedade das Senhoras Libertadoras), declamaram poemas à liberdade.

A “declaração de liberdade” foi articulada com um espetáculo de eletricidade, o que é relevante para se considerar que, conforme Larkin (2018, p. 328)LARKIN, Brian. Promising Forms: The Political Aesthetics of Infrastructure. In: GUPTA, Akhil; ANAND, Nikhil; APPEL, Hannah (ed.). The promise of infrastructure. Durham: Duke University Press, 2018., o conceito de “infraestrutura tem suas raízes conceituais na ideia do Iluminismo de um mundo em movimento e aberto para a mudança em que a circulação livre de bens, ideias e pessoas criou a possibilidade de progresso”, o que torna tão íntimo o fornecimento de infraestruturas, o senso de se dar forma à modernidade e a realização do futuro.

A rede discursiva que vem à superfície nas cenas apresentadas a partir de relatos publicados em O Libertador mostra uma operação meticulosamente planejada relacionando arte, tecnologia, política e uma consciência histórica romancista. Maria Thomázia Figueira Lima foi recebida com a aclamação entusiástica do povo, e frente a ela estavam 58 mulheres balançando “lindos estandartes symbolicos dos ramos principaes das lavouras de cada uma dessas circumscripções municipais” (O LIBERTADOR, Acontecimento Sem Igual, 1884O Libertador, 25 mar. 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/136. Acesso em: 4 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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).

As mulheres vestiam um vestido branco com um laço de cetim azul ao lado. Dentro se podia ler o nome de uma cidade cearense escrita em linhas de ouro. Todas as mulheres estavam ao redor de um “aparato telefônico portátil” conectado com um outro. Imediatamente depois que a abolição foi proferida pela voz do governador,

ouviam-se os primeiros tiros; foi uma bonita ideia e de magnifico efeito. Imediatamente os telegrafistas das linhas terrestres e submarina comunicaram ao mundo inteiro a realização da ideia mais grandiosa, que até hoje consta na história do Brasil [grifo nosso]

(O LIBERTADOR, acontecimento sem igual, 1884O Libertador. Acontencimento Sem Igual. 1 abr. 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/142. Acesso em: 2 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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).

Um “ruidoso oceano de aplausos” ecoou visando reverberar o heroísmo cearense oceano afora, conforme o Sr. Ayres cumpriu seu papel infraestrutural no plano por vezes brindado em devoção à sua sogra.

Como mencionado, naquele mesmo momento, José do Patrocínio estava em Paris e alguns dias depois das cerimônias em Fortaleza ele publicou em O Libertador uma notícia comemorativa, ao lado de outras escritas por estrangeiros como Victor Schoelcher e o romancista Victor Hugo. José do Patrocínio escreveu uma carta para Hugo poucos dias antes da abolição cearense, e a resposta original, antes de ser publicada em Fortaleza, foi beijada por Patrocínio com comoção, como ele mesmo declarou (O LIBERTADOR, O dia 25 de março em Paris, 1884O Libertador. Acontecimento Sem Igual. 18 abr. 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/186. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
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).

O momentum abolicionista gerou naquele instante uma onda de pressão através da telegrafia. O que O Libertador representou acima se adequa totalmente com o que Eduardo Silva aponta sobre o papel da telegrafia submarina na abolição nacional de 1888.

Silva (2001)SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001. narra como, em 1888, a maré abolicionista inundou o Rio de Janeiro de alegria na forma de oito dias de samba, interrompendo a rotina normal da capital imperial. As lojas tiveram que fechar para a festa passar (SILVA, 2001SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001., p. 112). O lugar mais chic da pequena Paris brasileira, Rua do Ouvidor, foi tomado de danças sensuais que já incomodavam a persistente high society imperial carioca, que reclamou sobre músicas feitas de requebros para se ouvir com as pernas em vez de se ouvir com os ouvidos.

Para Silva (2011)SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001., quando a festa acabou, “não existiam mais escravos”, fazendo com que a revolta brasileira seja um fenômeno que se ergue pela “imensa capacidade subversiva da felicidade descontrolada” (SILVA, 2001SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001.) que inverteu socialmente os códigos do aparato escravocrata. A grande festa, aliada com o cabo submarino, sincronizou o Brasil semifeudal com um projeto de modernização que logo culminou com a queda do império (SILVA, 2001SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001., p. 113). Para Alonso, entretanto, o abolicionismo de 1880 como movimento dependia de uma retórica de redenção que limitava as conquistas pós-escravidão e muitos benefícios que ex-escravizados mereciam: “a abolição, ao extinguir a relação senhor-escravo, resgataria a ambos” (ALONSO, 2012ALONSO, Angela. A teatralização da política: a propaganda abolicionista. Tempo Social, v. 24, n. 2, p. 101-122, 2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/53134. Acesso em: 3 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1590/S0103-20702012000200006.
https://www.revistas.usp.br/ts/article/v...
, p. 113).

Figura 5
Pintura “Abolição dos Escravos” do cearense Raimundo Cela, feita em 1938 para o Palácio do Governo do Ceará

Considerações finais

A curiosa conexão entre abolicionismo e cabos submarinos se coloca a partir dos arquivos que emergiram ao se pesquisar sobre tal infraestrutura nos periódicos do século XIX: ao chegar no “campo da praia” onde os cearenses articulavam a abolição em 1882, o cabo foi infundido por afetos fantasmagóricos e abolicionistas evidentes na narrativa de conexão encontrada no periódico A Constituição (e, ainda antes, nas cerimônias de ancoragem realizadas em 1873 em Recife e Belém), na narrativa de transmissão de 25 de março de 1884 e na narrativa nodal constituída através da maré eletroabolicionista.

O artigo colabora, portanto, com os estudos de infraestruturas das mídias e com a história dos cabos submarinos ao apresentar narrativas situadas da rede telegráfica submarina do século XIX, dando evidências da pouco usual rede de operação político-cultural (aparentemente bem articulada por José do Patrocínio e Maria Thomázia), exemplificada na produção consciente de uma narrativa histórica eletroabolicionista.

Com a disciplina da História, colabora no sentido de desdobrar o artigo de Eduardo Silva sobre as relações entre o telégrafo e o abolicionismo no Rio de Janeiro. Especificamente, acrescenta que o Ceará foi o laboratório de tal articulação e salvaguarda esses afetos climáticos, pós-epidêmicos e fantasmagóricos da província com tal infraestrutura. Opta-se pelo foco no Ceará e o breve diálogo com o Rio de Janeiro a partir de Eduaro Silva (2001)SILVA, Eduardo. Integração, globalização e festa: a abolição da escravatura como história cultural. In: PAMPLONA, Marcos (org.). Escravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Acess, 2001., estando aberta a possibilidade da continuidade desta pesquisa sobre narrativas, afetos e imaginários infraestruturais dos cabos submarinos para além dessas duas províncias, como já indicado pelas breves menções ao Pernambuco e ao Pará.

O artigo promove também conhecimento sobre uma pessoa, William John Ayres, sobre a qual não existem estudos. Ayres era o tipo de intermediário do sistema de comunicação que John Durham Peters considera ser capaz de “ganhar fortunas e fazer ou destruir impérios” (PETERS, 2015PETERS, John Durham. Infrastructuralism: Media as Traffic between Nature and Culture. In: STAROSIELSKI, Nicole (org.). Signal Traffic. Amsterdam: Brill Rodopi, 2015., p. 37; tradução nossa). Peters lembra como nos primórdios dos estudos de comunicação, Harold Innis já havia apontado que cada novo meio gera um quadro de especialistas que descobrem como manipular e programar suas capacidades especiais e padrões de transporte. Ayres atuou (não tão) discretamente no campo da tecnopolítica a favor do liberalismo, “uma forma de governo que desautoriza a si mesma, buscando organizar as populações e territórios através de domínios tecnológicos que parecem bem distantes das instituições políticas formais” (LARKIN, 2013LARKIN, Brian. The politics and poetics of infrastructure. Annual review of anthropology, v. 42, p. 327-343, 2013. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-anthro-092412-155522. Acesso em: 15 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-092412-155522.
https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-0...
, p. 328; tradução nossa).

O artigo, nesse sentido, igualmente colabora com o esforço dos pesquisadores das infraestruturas para “traçar a operação material dessas tecnologias e os modos nos quais essa materialidade tem consequência para processos políticos” (LARKIN, 2013LARKIN, Brian. The politics and poetics of infrastructure. Annual review of anthropology, v. 42, p. 327-343, 2013. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-anthro-092412-155522. Acesso em: 15 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-092412-155522.
https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-0...
, p. 328; tradução nossa), considerando que “mesmo o fluxo livre de bens que constitui uma economia laissez-faire se sustenta em uma base infraestrutural que organiza tanto o mercado quanto a sociedade” (LARKIN, 2013LARKIN, Brian. The politics and poetics of infrastructure. Annual review of anthropology, v. 42, p. 327-343, 2013. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-anthro-092412-155522. Acesso em: 15 mar. 2023. Doi: https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-092412-155522.
https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-0...
, p. 328; tradução nossa).

Dando-se atenção para o cabo submarino e seu uso político nas mãos de William John Ayres, sua sogra e seus parceiros da Sociedade Cearense Libertadora, a arqueologia da rede contribui com recentes reconsiderações do abolicionismo cearense que adotam uma abordagem mais crítica. O aspecto mais importante desses movimentos recentes, todavia, é a discussão feita por acadêmicos negros como Hilário Sobrinho e Tschombe Miles, bem como outros graduados e pós-graduandos da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira – Unilab, localizada na cidade de Redenção, onde a abolição foi primeiramente declarada no país.

Por mais que o Dragão do Mar seja parte do imaginário local e seja honrado pela decisão do Estado do Ceará de, em 1999, dar o seu nome para o principal complexo cultural de Fortaleza, outros líderes negros como Tia Simôa e seu marido José Luis Napoleão foram apagados ou invisibilizados dessas narrativas históricas por rejeitarem desempenhar o papel estipulado pelos abolicionistas brancos. Essa questão evidencia justamente o sintoma de um dos aspectos mais problemáticos na construção da identidade cearense no século XX: o mito de que no Ceará não existem populações negras e indígenas, atualmente contestado por movimentos sociais e acadêmicos16 16 As pessoas negras na história do Ceará são apagadas por racismo e epistemicídio. Analisando os dados dos anos 1808, 1810, 1813 e 1872, Hilário Sobrinho reafirma que a maioria da população cearense no século XIX não era “branca”. O historiador Geraldo Nobre também apresenta dados apontando que o Ceará era “altamente miscigenado” no século XIX. Parte da população negra escravizada foi retirada do estado durante a Grande Seca, mas a narrativa alegando que depois da abolição não existiam mais negros no Ceará é um apagamento que ainda ecoa. .

Nesse sentido, Quijano e Ennis (2000, p. 555-566)QUIJANO, Anibal; ENNIS, Michael. Coloniality of Power, Eurocentrism, and Latin America. Durham: Duke University Press, 2000. apontam que as elites dirigentes na América Latina não nutriam interesses em comum com as populações originárias, negras e mestiças, ainda que essas constituíssem a maior parte da população. Os detentores do poder econômico e político estavam alinhados com as burguesias imperiais e, nesse viés, excluíram a maior parte da população das decisões referentes à organização política e social e sustentaram uma lógica de colonialidade, mesmo em um Brasil independente, republicano e com a abolição declarada.

A aproximação entre o tema dos cabos submarinos e a abolição, promovida no artigo, espera ressoar em debates para pensar essa colonialidade no contexto atual dos cabos de fibra óptica. Por mais circunstancial que possa ser a associação de parte da infraestrutura (como o próprio Ayres) com o processo político do abolicionismo, a atenção para tais eventos nos ajuda a entender sobre tecnopolítica na história: para além de oferecer desenvolvimento em termos técnicos, as infraestruturas também desempenham na invisibilidade uma função ideológica de viabilizar a formação de outras subjetividades políticas.

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    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Desenvolvido a partir de capítulo da tese “Infraestrutura de cabos submarinos: uma pesquisa baseada em práticas artísticas situadas a partir da Praia do Futuro” (2022), defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com apoio de bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes (88887.480146/2020-00).
  • 3
    Conforme Starosielski (2015)STAROSIELSKI, Nicole. The undersea network. Durham: Duke University Press, 2015., os cabos submarinos podem ter sua história dividida em três eras: a era imperial dos cabos telegráficos, a era dos cabos coaxiais – que foi marcada pela Guerra Fria – e a atual era dos cabos de fibra óptica.
  • 4
    A Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040) foi promulgada em 28 de setembro de 1871 e assinada pela Princesa Isabel, considerando livres todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir de então.
  • 5
    O primeiro uso do apelido que pudemos encontrar fazendo referência ao Ceará está no periódico Gazeta da Tarde, em 6 de março de 1883Gazeta da Tarde, A Terra da Luz, n. 51, 1883. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/226688/2691. Acesso em: 2 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
    http://memoria.bn.br/DocReader/226688/26...
    . Pode-se ver aí um telegrama enviado pela organização abolicionista Sociedade Cearense Libertadora reportando a libertação de 200 escravizados, além de um texto de José do Patrocínio analisando o movimento abolicionista na província. São reportadas também as reações do governo local contra tal ativismo.
  • 6
    Em 1649, os holandeses construíram o forte de Schoonemborch na foz do rio Pajeú. Cinco anos depois, os portugueses expulsaram os holandeses e passaram a chamar o forte de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção.
  • 7
    Para checar a lista de membros, conferir a edição de 25 de março de 1884 de O Libertador, disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/136.
  • 8
    José do Patrocínio atribuiu para Francisco José do Nascimento o apelido de Lobo do Mar e Dragão do Mar, sendo o último o herói reconhecido até hoje. Para checar a menção mais antiga encontrada, visite a edição de 2 de maio de 1884 de O Libertador: http://memoria.bn.br/DocReader/229865/226.
  • 9
    Enquanto o Sr. Nascimento se tornou o herói no imaginário local ao longo do século XX, Napoleão e Tia Simôa apenas recentemente estão ganhando visibilidade pelo movimento negro local através de blogs de Internet e dissertações como a de Hilário Sobrinho (2005)SOBRINHO, José Hilário Ferreira. “Catirina minha nega, Teu sinhô ta te querendo vende, Pero Rio de Janeiro, Pero nunca mais ti vê, Amaru Mambirá”: O Ceará no tráfico interprovincial –1850-1881. Fortaleza: UFC, 2005. Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal do Ceará. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/56005/1/2005_dis_jhferreirasobrinho.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023.
    https://repositorio.ufc.br/bitstream/riu...
    .
  • 10
    Nesse encontro, Bezerra indica que eles também deliberaram o uso de pseudônimos e criptografia para se comunicar. Por mais que W. J. Ayres tenha ousado aparecer na foto da radical organização abolicionista, qualquer escrito radical seu publicado em O Libertador não estaria assinado.
  • 11
    Analisando os sensos de liberdade cultivados pelo herói negro do abolicionismo do Ceará, Miles considera claro que Franscisco do Nascimento possuía liderança, habilidade e alta inteligência. Por possuir duas jangadas, distinguia-se também. Já para Sobrinho, o fato de que ele foi apontado por Napoleão para integrar a Sociedade Cearense Libertadora indica que entre a recusa heroica e a aceitação da performance de heroísmo havia dois homens que respeitavam um ao outro na causa comum contra a escravidão. Ao recusar tal papel, Napoleão permanece hoje obliterado dessa narrativa, por vezes esquecido.
  • 12
    Como as ondas de Fortaleza eram bastante tempestuosas, os barcos não atracavam no porto, tendo as pessoas e as malas que esperar a distância que as jangadas as fossem buscar e as transportar para a terra.
  • 13
    Para mais considerações sobre as relações entre oceano, barcos e estudos de mídia, conferir “Of Cetaceans and Ships”, por John Durham Peters (2015)PETERS, John Durham. Of Cetaceans and Ships. In: PETERS, John Durham. The Marvelous Clouds: Toward a Philosophy of Elemental Media. Chicago: The University of Chicago Press, 2015..
  • 14
    José do Patrocínio publicou, n’O Libertador de 5 de maio de 1884, mensagens escritas por Victor Hugo e Victor Shoelcher se referindo ao banquete, ao Ceará e à abolição.
  • 15
    A notícia de sua morte apresenta uma falsa alegação sobre os seus casamentos. Afirma que ele se divorciou do seu primeiro casamento, no Ceará, em 1889, mudando-se então para Recife, mas arquivos de periódicos pernambucanos da década de 1890 confirmam a presença de Francisca com ele no Recife até a sua morte em 1904 (JORNAL DO RECIFE, Commendador Rodrigues Lima, 1894Jornal do Recife. Commendador Rodrigues Lima. 1 mar., 1894. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/705110/32076 Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
    http://memoria.bn.br/DocReader/705110/32...
    ). Também afirmam que ele retornou de uma visita a Southampton em 1898 (JORNAL PEQUENO, Passageiros, 1898Jornal Pequeno. Passageiros. 8 jul. 1898. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/546. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
    http://memoria.bn.br/DocReader/800643/54...
    ). Ele abriu uma fábrica de tecidos, e, por essa atividade comercial, o Sr. Ayres se tornou conhecido na sociedade pernambucana do começo do século XX (A PROVÍNCIA, Companhia de Tecidos Paulista, 1900A Província. Companhia de Tecidos Paulista. 28 out. 1900. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/128066_01/9474. Acesso em: 2 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
    http://memoria.bn.br/DocReader/128066_01...
    ). Jornais também o apresentam como um jogador de futebol durante a década de 1900 (JORNAL PEQUENO, Sport, 1909Jornal Pequeno. Foot-ball. 14 ago. 1909. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/10817. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
    http://memoria.bn.br/DocReader/800643/10...
    ) e como um beberrão de cerveja, para um senhor de 80 anos na década de 1940 (JORNAL PEQUENO, Registos do Dia, 1938Jornal Pequeno. Registos do Dia. 1938. 6 dez. 1938. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/56807. Acesso em: 3 mar. 2023. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.
    http://memoria.bn.br/DocReader/800643/56...
    . Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/56807).
  • 16
    As pessoas negras na história do Ceará são apagadas por racismo e epistemicídio. Analisando os dados dos anos 1808, 1810, 1813 e 1872, Hilário Sobrinho reafirma que a maioria da população cearense no século XIX não era “branca”. O historiador Geraldo Nobre também apresenta dados apontando que o Ceará era “altamente miscigenado” no século XIX. Parte da população negra escravizada foi retirada do estado durante a Grande Seca, mas a narrativa alegando que depois da abolição não existiam mais negros no Ceará é um apagamento que ainda ecoa.

Referências bibliográficas

Referências

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Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2023
  • Aceito
    03 Jul 2023
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História Av. Prof. Lineu Prestes, 338, 01305-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3091-3701 - São Paulo - SP - Brazil
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