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GLÓRIA E CAOS NO FUTURO DA CIDADE DE SÃO PAULO: IMPRENSA, POLÍTICA E INTELECTUALIDADE EM MEADOS DO SÉCULO XX1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Esse artigo recupera algumas das questões discutidas em minha tese de doutorado (ZOREK, 2019). A elaboração da tese contou com o apoio financeiro da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, através da concessão de duas bolsas de pesquisa (processos: 2013/17709-2; 2014/21434-1). A preparação final do artigo e seus últimos estágios de revisão contaram com o apoio financeiro da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, de Portugal, no âmbito dos projetos UIDB/04209/2020 e UIDP/04209/2020.

GLORY AND CHAOS IN THE FUTURE OF THE CITY OF SÃO PAULO: PRESS, POLITICS AND INTELLECTUALITY IN THE MID 20TH CENTURY

Resumo

A partir da análise da imprensa, de projetos urbanísticos e de textos de intelectuais, este artigo discute algumas transformações nas representações do futuro da cidade de São Paulo nas décadas de 1950 e 1960. Na primeira metade do século XX, o crescimento urbano foi hegemonicamente representado nos jornais, no mundo intelectual e entre os urbanistas como um elemento positivo para o progresso e modernização de São Paulo. Contudo, depois que a metrópole se tornou a cidade mais importante do Brasil, as expectativas sobre seu destino se alteraram. Uma série de problemas ganhou espaço nessas representações, figurando lado a lado com as esperanças de uma cidade melhor. O futuro de São Paulo se tornava assim esgarçado entre perspectivas redentoras e apocalípticas, cada qual ancorada em pontos específicos do espaço social e cultivadas por setores distintos das elites locais.

Palavras-chave
Cidade de São Paulo; Representações do Futuro; História dos Intelectuais; História da Imprensa; História das Cidades

Abstract

Based on the analysis of the press, urbanistic projects, and texts by intellectuals, this article discusses some transformations in the representations of the São Paulo city’s future in the 1950s and 1960s. In the first half of the 20th century, urban growth was hegemonically represented in newspapers, in the intellectual world, and among urban planners as a positive element for the progress and modernization of São Paulo. However, after the metropolis became the most important city in Brazil, expectations about its future changed. A series of problems gained space in these representations, figuring side by side with the hopes for a better city. São Paulo’s future was thus frayed between redemptive and apocalyptic perspectives, each anchored in specific points of social space and cultivated by different sectors of the local elites.

Keywords
City of São Paulo; Representations of the Future; History of Intellectuals; History of the Press; History of Cities

Nos anos 1950, a ideia de que São Paulo poderia se tornar uma cidade insuportável para seus habitantes em função dos inúmeros problemas urbanos provocados por seu gigantismo ganhou um significativo impulso no mundo intelectual. A preocupação não era nova, afinal estava presente, por exemplo, em textos de urbanistas importantes, como Luiz de Anhaia Mello já há algumas décadas.3 3 Além de escrever sobre o tema desde o final dos anos 1920, Anhaia Mello foi prefeito da capital paulista por alguns meses logo depois da Revolução de 1930, também consultor informal de assuntos urbanísticos da prefeitura de Fábio Prado (1934-1938), Secretário de Viação e Obras Públicas do Estado de São Paulo durante o Estado Novo e, mais tarde, um dos fundadores e o primeiro diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (BRESCIANI, 2010; ZOREK, 2017). No entanto, expectativas negativas para o futuro da cidade não eram muito comuns – o próprio Anhaia Mello só passou a enfatizar representações pessimistas justamente na década de 1950 (ZOREK, 2019ZOREK, Bruno. O futuro de São Paulo na década de 1950. Tese (Doutorado em História) – IFCH, Unicamp. Campinas, 2019.). Nas páginas das revistas Anhembi e Brasiliense, centrais para os debates da intelectualidade paulistana naquele contexto, bem como em discussões promovidas por seus diretores – Paulo Duarte e Caio Prado Jr., respectivamente – o futuro de São Paulo aparece de maneira ambígua.4 4 Paulo Duarte e Caio Prado Jr. ocupavam posições importantes no mundo intelectual paulistano na década de 1950, articulando através de suas revistas os principais pensadores locais e promovendo debates de ordem política, acadêmica e cultural. Sobre o papel dessas revistas para o campo cultural da cidade, ver: Limongi (1987), Miceli (2001), Jackson (2004) e Catani (2009). Sobre como Duarte e Prado Jr. pensavam sobre o futuro de São Paulo, sugiro a leitura do quarto capítulo de minha tese de doutorado (ZOREK, 2019). Havia preocupações com aspectos negativos do crescimento urbano, mas, ao mesmo tempo, manifestações de certeza de que São Paulo superaria todas as suas dificuldades nas décadas vindouras. Alguns artigos de Florestan Fernandes, escritos naquele contexto (1954 e 1959) e brevemente examinados adiante neste artigo, revelam receios semelhantes e são indicativos de como essas ideias eram discutidas pelos sociólogos da cidade – lembrando que, na década de 1950, Fernandes viveu uma ascensão meteórica em sua carreira, passando da condição de recém-doutor para a de líder da chamada Escola Sociológica Paulista, sendo reconhecido então como um dos principais sociólogos brasileiros, senão o principal, e, nesse sentido, representando, em alguma medida, a coletividade dos sociólogos (ARRUDA, 2001ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. Bauru, São Paulo: Edusc, 2001.; GARCIA, 2002GARCIA, Sylvia. Destino ímpar: Sobre a formação de Florestan Fernandes. São Paulo: USP, Curso de Pós-graduação em Sociologia; Editora 34, 2002.). No entanto, os documentos que talvez sejam mais representativos dessa renovada inquietação são os livros que compõem a coleção São Paulo: Estudos de geografia urbana, organizada por Aroldo de Azevedo – catedrático de Geografia do Brasil, na USP, naquele momento – e publicada em 1958. Esta coleção reuniu alguns estudantes, boa parte dos professores do Departamento de Geografia da USP e ainda colaboradores externos em um esforço de investigação que durou quase uma década (AZEVEDO, 1958AZEVEDO, Aroldo (org.). A cidade de São Paulo: Estudos de geografia urbana. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1958 (vol. 1, 2, 3 e 4).). Nas palavras do organizador:

Em conseqüência dessa marcha acelerada, [...] todos os problemas comuns às grandes cidades assumem, aqui, um caráter verdadeiramente angustioso. O abastecimento alimentar, os serviços de água e de esgotos, o suprimento de energia elétrica domiciliar e para a indústria, o transporte coletivo – tudo se apresenta mais ou menos deficiente. A cidade cresceu depressa demais ... (AZEVEDO, 1958, p. 21AZEVEDO, Aroldo (org.). A cidade de São Paulo: Estudos de geografia urbana. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1958 (vol. 1, 2, 3 e 4).).

Contudo, a apreensão provocada pelos problemas derivados do crescimento acelerado de São Paulo geralmente era contraposta por expectativas positivas de futuro. O otimismo, mesmo não sendo unívoco, foi hegemônico ao longo da primeira metade do século XX, pelo menos entre os intelectuais, na elite dirigente e na grande imprensa.5 5 Essa é uma afirmação bastante generalizadora e, evidentemente, simplifica processos e representações sociais que são na realidade bastante mais complexos e exigiriam um tratamento mais pormenorizado. Contudo, tanto por não ser o propósito central deste artigo apresentar uma documentação exaustiva sobre o tema quanto por uma questão de espaço, elementos que sustentam a existência de um otimismo hegemônico aparecerão aqui apenas de maneira ilustrativa. Para quem tiver interesse em uma discussão mais aprofundada sobre o assunto, remeto à minha própria tese de doutorado (ZOREK, 2019). Outras referências importantes para o tema são os trabalhos de Maria Arminda Arruda (2001), Candido Campos (2002) e o livro organizado por Nádia Somekh e Candido Campos (2008). O próprio Aroldo de Azevedo, poucas páginas depois de revelar suas preocupações, descrevia com bons olhos e fazendo homenagem ao passado bandeirante o que imaginava ser o destino da metrópole:

Capital do Estado mais populoso e de maior fôrça econômica da Federação Brasileira e, ao mesmo tempo, a maior cidade do país e metrópole regional de uma das mais povoadas e ricas regiões do Brasil. São Paulo vê, com justificado orgulho, ampliarem-se cada vez mais sua importância e sua esfera de influência. É como se os seus 3 milhões de habitantes quisessem reproduzir, de maneira menos rude e bem mais estável, a epopéia imortal de seus maiores do seiscentismo (AZEVEDO, 1958, p. 28AZEVEDO, Aroldo (org.). A cidade de São Paulo: Estudos de geografia urbana. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1958 (vol. 1, 2, 3 e 4).).

Ao se considerar os grandes jornais paulistanos, as representações da cidade e seu futuro são bastante diversas e correspondem a questões mais ou menos pontuais que eram notícia em cada contexto. Mas, ao se adotar um recorte específico, que destaca as edições dos aniversários de São Paulo e, sobretudo, dos aniversários redondos (como os 400 anos, de 1954) é possível perceber um movimento que vai de uma narrativa épica e valorizadora do crescimento urbano – dominante até os anos 1960 – para um suspense de contornos trágicos, com um apocalipse se insinuando a todo momento, embora aliviado pela afirmação de alguma esperança caso medidas fossem tomadas para mudar os rumos da cidade – imagem que se tornou cada vez mais forte da década de 1960 em diante. Esse movimento, embora não de maneira sincrônica, é parecido com o do mundo intelectual. Um otimismo generalizado em relação aos destinos da cidade, mesmo que às vezes manchado por críticas a determinados aspectos da urbanização local, é substituído por uma desconfiança pessimista, cada vez mais descrente nas soluções propostas especialmente pelos governantes para resolver os problemas de São Paulo.

O principal objetivo deste artigo é oferecer algumas explicações sobre como e por que as expectativas pessimistas a respeito de São Paulo se consolidaram a partir das décadas de 1950 e 1960 seja na imprensa, seja no mundo intelectual e com ecos no campo político. Para tanto, serão examinadas representações do futuro da cidade elaboradas em alguns dos grandes jornais paulistanos em datas comemorativas, por Florestan Fernandes, entendido como a encarnação por excelência do intelectual acadêmico na década de 1950 (e que se dedicou a escrever sobre a metrópole) e por determinados personagens híbridos, que circulavam tanto no mundo político quanto nos ambientes do urbanismo local. Para desenvolver esses elementos, além desta pequena introdução, o artigo se divide em mais sete partes. De início, apresenta-se um conjunto de imagens otimistas do futuro de São Paulo, reunidas a partir de recortes dos principais jornais da cidade, publicados especialmente na primeira metade do século XX. Em seguida, discutem-se previsões pessimistas desse futuro, que começaram a se tornar comuns na grande imprensa a partir dos anos 1960. Na terceira parte, retorna-se ao otimismo, desta vez considerando o ponto de vista de urbanistas ligados às elites dirigentes, com destaque para a São Paulo projetada por personagens como Francisco Prestes Maia e Robert Moses. O quarto ponto continua examinando a cidade dos urbanistas, mas agora com foco em Luiz de Anhaia Mello e suas previsões pessimistas para uma São Paulo que continuasse crescendo. Na quinta e sexta partes, a análise se dirige para o papel das ciências humanas nos debates sobre o futuro de São Paulo, destacando as transformações nas opiniões de Florestan Fernandes a esse respeito e apontando para a constituição de lugares sociais que permitiam o cultivo de uma visão negativa sobre a cidade. Finalmente, em sétimo e último lugar, procura-se oferecer uma resposta ao porquê e como as previsões do futuro da cidade

se transformavam, com atenção especial a processos ligados à composição social das elites paulistanas, ao mesmo tempo em que o artigo se encerra com uma retomada do lugar da imprensa na mediação entre perspectivas otimistas e pessimistas, procurando explicar alguns de seus efeitos sobre as representações dos destinos da cidade.

1. Futuro glorioso na imprensa

Todo ano, no dia 25 de janeiro, comemora-se o aniversário da cidade de São Paulo. Nessas ocasiões, além de celebrar a data, é recorrente que os grandes jornais locais também façam projeções sobre o futuro da capital paulista. De maneira geral, na primeira metade do século XX, o futuro de São Paulo foi apresentado com grande otimismo pela imprensa, valorizando o crescimento acelerado da cidade, seu passado bandeirante e construindo como horizonte fundamental a sua consolidação em uma das maiores e melhores metrópoles do mundo. Dos anos 1960 em diante, a expectativa de que São Paulo continuaria se expandindo se manteve inabalada, entretanto os significados atribuídos a esse crescimento progressivamente ganharam tons mais críticos. Uma série de preocupações com problemas urbanos derivados do gigantismo paulistano bem como apelos às autoridades para que medidas fossem tomadas com urgência passaram a figurar lado a lado com os desejos de que São Paulo se tornasse uma cidade melhor.

Os jornais paulistanos representam interesses diversos, variáveis no tempo e que aparecem de maneiras diferentes em suas páginas. Inclusive, dependendo do contexto em que são observados e do assunto sendo discutido, constituem-se como espaços efetivos de debate, em que vozes contraditórias podem se manifestar com relativa equivalência entre si. Contudo, especificamente nos aniversários de São Paulo, quando considerados em um corte sincrônico, esses jornais tendem a uma certa uniformidade nas representações da cidade e seu futuro. Nesse sentido, em um mesmo aniversário, por mais distantes que estejam uns dos outros em seus posicionamentos relativos à economia, à política, à cultura ou a qualquer outro tema, os jornais locais se apresentam de modo razoavelmente homogêneo nas comemorações da data em questão – especialmente nos aniversários redondos e focando as representações do futuro da cidade, tema fundamental para este artigo. As diversas mensagens publicadas nos grandes jornais paulistanos em comemoração aos aniversários de São Paulo são, portanto, tratadas aqui como discursos complementares entre si. De fato, com algum grau de generalização, é possível identificar um padrão nessas publicações em praticamente todo o século XX e, talvez, também nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do XXI. A homogeneidade nessas representações se explica, em primeiro lugar, pela adoção por parte da imprensa de fórmulas convencionais de se celebrar eventos desse tipo. Conforme tais fórmulas, os jornais congratulam a cidade e seus habitantes pela data em si, por alguns momentos selecionados do passado e por determinadas características do presente, além de manifestar os indispensáveis desejos de felicidade e progresso para o futuro. Essa sintaxe básica foi constante durante a primeira metade do século XX e, da década de 1960 em diante, foi complexificada pela adição de novos elementos – cujo propósito era explicitar alguns dos impasses vividos pelos paulistanos, embora sem modificar a mensagem fundamental de esperança em um futuro positivo.

Foi ao longo das primeiras décadas do século XX, quando a cidade de São Paulo recebia um enorme fluxo de novos habitantes – e, quebrando recordes, dobrava e triplicava de tamanho –, que se elaborou uma imagem do seu futuro na qual a figura do crescimento, retratada de maneira otimista, passou a ocupar um lugar central. Nesse período, era com admiração e fascínio que a imprensa observava o crescimento de São Paulo. Em 25 de janeiro de 1914, dia em que a cidade completou 360 anos, por exemplo, o Estadão estampava: “a maravilhosa expansão da capital paulista nos ultimos cincoenta annos desenrola aos nossos olhos um dos mais admiraveis espectaculos da civilização em terras do continente americano” (O Estado de S. Paulo, 25/01/1914, p. 5). Com o passar do tempo, além de fascinante, o crescimento e o progresso também se tornavam um destino para a cidade, que se apresentava como um desdobramento lógico da superação de determinados aspectos de seu passado. No aniversário de 380 anos da metrópole, a Folha da Noite celebrava: “a derrota da taipa e do lampeão de azeite pelo cimento-armado e pela luz electrica. A epopéa do arranha-céo” (Folha da Noite, 25/01/1934, p. 2). Cinco anos mais tarde, em 1939, a Folha da Manhã constatava que qualquer obstáculo imposto à cidade seria necessariamente superado, projetando, portanto, a continuidade dessa história no futuro e prevendo um desenlace glorioso para a narrativa que se elaborava para a metrópole. Conforme o jornal: “nada deterá os passos de S. Paulo para a frente e os seus remigios para o alto. Piratininga será a gloria dos paulistas e o orgulho dos brasileiros!” (Folha da Manhã, 25/01/1939, p. 8).

Essa representação atingiu seu auge em meados do século XX, com destaque para 1954, ano em que São Paulo festejou seu quarto centenário.

Na edição comemorativa dos 400 anos da capital paulista, a capa do Estadão apresentava o seguinte texto em homenagem à ocasião:

No passado das tuas “Bandeiras”, aí está, São Paulo, a melhor certeza do teu futuro magnífico, ante-visto no esplendor do teu presente ! / Terra dos Bandeirantes, os ciclópicos gigantes cujas botas marcaram as coxilhas... deixaram rastros na Amazônia... afundaram-se pelo litoral... e compassaram o oeste da Pátria Brasileira... as tuas singulares virtudes permanecem hoje ainda mais palpitantes do que ontem pois, si os “Bandeirantes” tiveram o seu progresso limitado pelas divisas da Pátria ou pelas espumas do mar, aos seus filhos de hoje, os paulistas, não mais importam essas linhas, resolvidos a fazer-te crescer e expandir no sentido vertical, rumo aos céus e espaços infinitos, sem outro limite que não o de sua própria inteligência ! / Fonte perene de estímulo à iniciativa, às realizações e ao civismo, és um esplêndido monumento homenageando o trabalho e o dinamismo dos teus próprios filhos. (O Estado de S. Paulo, 25/01/1954, p. 1O Estado de S. Paulo. 24/11/1893; 10/01/1905; 30/12/1911; 25/01/1914; 01/10/1937; 15/01/1954; 25/01/1954; 16/02/1955.)

Se a taipa e o lampião de azeite – destacados anos antes pela Folha da Noite – eram aspectos do passado que deveriam ser superados, as virtudes progressistas e expansionistas dos bandeirantes, em contraste, mereciam fazer parte do presente e do futuro de São Paulo. Essas virtudes se projetavam na “certeza” de um “futuro magnífico” reservado para a cidade, no qual seu crescimento contínuo, vertical e ilimitado conformava o ponto central, juntamente com a celebração do trabalho e do dinamismo dos seus habitantes. A metrópole tendia à expansão infinita – e isso era bom. O ápice desse otimismo foi atingido justamente ao redor do quarto centenário, quando festejava-se a capital paulista como a primeira cidade brasileira, o maior parque industrial da América Latina e a metrópole que mais rapidamente crescia no mundo (O Cruzeiro, 23/01/1954O Cruzeiro. 23/01/1954.; Folha da Manhã, 24/01/1954Folha da Manhã. 25/01/1953; 24/01/1954.; O Estado de S. Paulo, 25/01/1954O Estado de S. Paulo. 24/11/1893; 10/01/1905; 30/12/1911; 25/01/1914; 01/10/1937; 15/01/1954; 25/01/1954; 16/02/1955.; FERNANDES, 2008 [1954]FERNANDES, Florestan. Caracteres rurais e urbanos na formação e desenvolvimento da cidade de São Paulo [1954]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.; AZEVEDO, 1958AZEVEDO, Aroldo (org.). A cidade de São Paulo: Estudos de geografia urbana. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1958 (vol. 1, 2, 3 e 4).). A industrialização acelerada e a explosão populacional – elementos fundamentais para a transformação, ao longo do século XX, de várias cidades latino-americanas em metrópoles quase da noite para o dia – eram vistas então como fenômenos positivos na caracterização de São Paulo, que nos anos 1950 vivia um momento paradigmático desse processo (SANTOS, 2009SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2009.; ROMERO, 2009ROMERO, José. América Latina: As cidades e as idéias. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2009.).

2. Futuro ameaçado na imprensa

Ainda no mesmo contexto, da perspectiva dos paulistanos, São Paulo venceu uma espécie de batalha simbólica contra outras cidades brasileiras e cuja principal concorrente era o Rio de Janeiro. A então capital do Brasil detinha os títulos tanto de centro da política nacional quanto o de maior metrópole – enquanto São Paulo ocupava o segundo lugar nesses quesitos, embora representasse o mais importante núcleo econômico da nação já há algumas décadas. As características que faziam dessas cidades lugares importantes para a cultura e para o pensamento nacionais estavam distribuídas de maneira mais equilibrada e, portanto, nenhuma delas prevalecia de maneira definitiva – ainda que o Rio de Janeiro tenha sido imbatível nesses aspectos desde a sua conversão em capital da colônia e, mais intensamente, a partir da chegada da família real portuguesa em 1808. De qualquer forma, em meados dos anos 1950, essa situação mudou: a população paulistana superou a carioca e, no final da década, Brasília se tornou a nova capital do país. Sendo assim, as duas propriedades que faziam do Rio de Janeiro uma “adversária a ser batida” deixaram de ter relevância, elevando São Paulo, a partir de então, à referência que as demais metrópoles brasileiras “deveriam” superar. O Rio de Janeiro e outras capitais brasileiras continuavam reconhecidas como cidades de importância fundamental, mas a condição de principal cidade do país passou a ser atribuída a São Paulo. Essa “vitória” paulistana, que foi comemorada com orgulho e entusiasmo pelos locais (FERNANDES, 2008 [1954]FERNANDES, Florestan. Caracteres rurais e urbanos na formação e desenvolvimento da cidade de São Paulo [1954]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.), começou a se definir no imaginário de seus habitantes na época de seu quarto centenário.

No entanto, o otimismo que o contexto revela estava ameaçado. No aniversário de 410 anos da cidade, em 1964, as representações de São Paulo na imprensa local haviam adquirido novas características. Em uma página destacada para a comemoração da data, o jornal Folha de S. Paulo sobrepunha “as dificuldades de transito e estacionamento” na zona central da cidade a “um movimento benefico de descentralização que favorece outras grandes areas urbanas” (Folha de S. Paulo, 25/01/1964, p. 8). Por um lado, portanto, o diário criticava como nocivos determinados efeitos do crescimento, ao mesmo tempo em que, por outro lado, elogiava medidas que diminuíam a concentração urbana. Contudo, o crescimento não estava descartado nem se sugeria um destino alternativo para a metrópole. Em uma das chamadas dessa mesma página da Folha, lia-se: “Energia não ajuda mas SP não pára”, complementada adiante com o seguinte comentário: “E a energia (dos homens) que sobra substitui a energia (eletrica) que a natureza faz faltar. É mais uma crise; é mais uma luta, e mais uma batalha que já tem vencedor: São Paulo” (Folha de S. Paulo, 25/01/1964, p. 8). A expectativa da reportagem continuava sendo a de uma cidade “predestinada a um grande futuro”, embora os obstáculos agora se mostrassem consideráveis. De qualquer forma:

Pouco importam as conspirações que a têm cercado. Os maus politicos, os maus administradores e até os inimigos gratuitos que – por omissão ou por comissão – fazem por emperrar-lhe o progresso infrene. [Afinal,] a cada golpe, São Paulo responde com uma chaminé fumegante, a gritar com sua fumaça negra que operarios constroem a grandeza da patria (Folha de S. Paulo, 25/01/1964, p. 8).

A solução narrativa do jornal, nesse caso, mantinha o sentido épico como elemento fundamental das expectativas sobre São Paulo. Mas os obstáculos que o povo paulistano teria que enfrentar em sua “jornada heroica” não se restringiam apenas a elementos de um passado distante, como nas representações da primeira metade do século XX. Em vez disso, seus novos adversários eram modernos, produzidos pelo mesmo progresso que garantia o futuro glorioso da cidade. Também em contraste com as representações anteriores, as dificuldades de agora não eram mais simplesmente obstáculos inanimados (como a taipa ou o lampião de azeite), mas se tornaram antagonistas ativos – entre os quais alguns governantes –, que agiam propositalmente contra as tendências positivas de desenvolvimento da cidade.

No aniversário de 1969, já durante a ditadura militar, na mesma Folha de S. Paulo, o destaque às dificuldades enfrentadas pela metrópole produzia efeitos dramáticos ainda mais intensos. Mas a responsabilização dos governantes pelos problemas identificados era, nesse caso, um pouco mais sutil, mesmo que continuasse evidente:

Basta, ainda, uma chuva um pouco mais forte, para que ruas inteiras fiquem alagadas e se registrem desabamentos e até mortes. O município não parece ter-se preocupado, na medida necessaria, com seus problemas sociais, de que é prova o grande aumento da mendicancia na metropole; há problemas de abastecimento urbano que ainda não foram devidamente equacionados; os cursos dagua que atravessam a cidade continuam poluidos, dificultando a vida das populações ribeirinhas; o transito é aquilo que se conhece; por incrivel que pareça, enorme porcentagem da população não dispõe ainda de serviços de agua encanada e esgotos; questões relacionadas com saude publica e educação continuam a desafiar a competencia dos administradores; nos transportes urbanos e nas comunicações, há falhas gritantes (Folha de S. Paulo, 25/01/1969, p. 2Folha de S. Paulo. 25/01/1964; 25/01/1969.).

Novamente, e em parte porque era uma data comemorativa, o jornal decidia-se por uma projeção otimista – embora o caráter glorioso perdesse parte de sua ênfase anterior para ser destacada uma paisagem tranquila e harmoniosa. Além disso, a cidade de um passado recente, cuja representação fora hegemonicamente positiva, era descrita nesta ocasião em tons mais pesados:

Nos festejos de seu 415º aniversario, São Paulo pode orgulhar-se de já ter começado a recuperar o tempo perdido. Um passeio pelas suas ruas dá a exata impressão de que elas estão passando por uma fase de renovação e revolução que muitos paulistanos consideravam impossivel. A cidade do ano 2.000 já começa a delinear-se, nas grandes avenidas, nos arrojados viadutos, nas estradas marginais, nos melhoramentos de toda especie. A antiga cidade hostil vai pouco a pouco perdendo esse carater, e o proprio temperamento do paulistano deverá ser afetado beneficamente por essa mudança (Folha de S. Paulo, 25/01/1969, p. 2Folha de S. Paulo. 25/01/1964; 25/01/1969.).

Entretanto, não era assim que a reportagem terminava. Seu arremate alçava a incerteza ao primeiro plano, rompendo com a segurança garantida por um futuro definido. Alguns membros da classe política – cumprindo de novo o papel de antagonistas – fazem mais uma aparição no texto, mesmo que o jornal resolvesse apoiar o governo do momento. Nesse sentido, embora de maneira ambígua, a Folha desafiava, senão a capacidade do Estado, pelo menos a competência de parte dos governantes para conduzir São Paulo por um bom caminho.6 6 Norbert Elias (1990; 1993) e Reinhart Koselleck (2006) chamam a atenção para o crescente controle do tempo social promovido pelos processos de consolidação dos Estados Nacionais modernos. Nesses processos, há uma tendência de estabilização do futuro, que garante uma relativa segurança e previsibilidade para que os agentes sociais possam planejar suas vidas décadas adiante. Para que tal fosse possível, era necessário haver confiança nas instituições, no Estado, na burocracia etc., bem como em suas reproduções temporais – confiança adquirida, conforme Koselleck, através da conquista do monopólio de manipulação do tempo social. Embora evidentemente sem ameaçar o funcionamento das instituições, ao colocar em xeque o futuro oferecido pelo Estado ou pelos governantes para São Paulo, os jornais apontam tanto para a consolidação de lugares sociais suficientemente autônomos que sustentam perspectivas de futuro diferentes das oferecidas pelas elites tradicionais quanto são índices discretos de um processo mais longo de desconfiança em relação às narrativas otimistas sobre o futuro – uma desconfiança que, hoje em dia, chegou a níveis extremos e dramáticos. A literatura sobre o “fim do mundo” que se desenha em nosso horizonte é extensa. Ainda assim, sugiro os trabalhos de Luiz Marques (2015) e Rodrigo Turin (2019). Dessa forma, os diversos problemas enfrentados por São Paulo se tornavam uma ameaça não resolvida e faziam com que o futuro tivesse um final aberto:

É absolutamente indispensavel que, ao considerarem o problema, as autoridades competentes tenham acima de tudo a preocupação em manter o mesmo nivel da administração atual, para que as obras de humanização de São Paulo tenham prosseguimento no ritmo que hoje se observa, e não regressemos aos melancolicos tempos de prefeitos politiqueiros e incapazes (Folha de S. Paulo, 25/01/1969, p. 2Folha de S. Paulo. 25/01/1964; 25/01/1969.).

3. Futuro glorioso no urbanismo

A imagem da São Paulo do futuro como uma metrópole gloriosa esteve presente na imprensa e em outras plataformas por muitas décadas. Os anos 1950 foram um dos momentos de maior disseminação dessa representação, sobretudo ao redor das comemorações do quarto centenário da cidade. Apenas a título de exemplo, vale mencionar as edições comemorativas dos jornais Folha da Manhã (24/01/1954)Folha da Manhã. 25/01/1953; 24/01/1954. e O Estado de S. Paulo (25/01/1954)O Estado de S. Paulo. 24/11/1893; 10/01/1905; 30/12/1911; 25/01/1914; 01/10/1937; 15/01/1954; 25/01/1954; 16/02/1955., também os volumes especiais das revistas O Cruzeiro (23/01/1954)O Cruzeiro. 23/01/1954. e Manchete (Número Especial, 1954)Manchete. Número Especial, 1954., a inauguração, no aniversário de São Paulo em 1953, do Monumento às bandeiras, esculpido por Victor Brecheret (Folha da Manhã, 25/01/1953; WALDMAN, 2018WALDMAN, Thaís. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese (Doutorado em Antropologia) – USP. São Paulo, 2018.), a organização da já mencionada coleção A cidade de São Paulo: Estudos de geografia urbana, por Aroldo de Azevedo (1958)AZEVEDO, Aroldo (org.). A cidade de São Paulo: Estudos de geografia urbana. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1958 (vol. 1, 2, 3 e 4)., e, sobretudo, os festejos preparados pela Comissão do IV Centenário, que se estenderam por mais de um ano, incluindo diversas cerimônias cívicas, apresentações artísticas, eventos acadêmicos e uma feira internacional realizada no recém-aberto parque do Ibirapuera – todos produtos que celebravam a grandiosidade de São Paulo e tinham expectativas positivas a respeito de seu crescimento. Nesse sentido, era uma representação que se difundia de maneira bastante capilarizada e podia ser assumida por agentes sociais diversos. Ainda assim, alguns personagens históricos encarnaram versões especialmente potentes desse discurso. Francisco Prestes Maia – importante urbanista paulistano, prefeito da cidade por duas vezes e promotor de um conjunto de obras que redefiniram a estrutura urbana de São Paulo –, por exemplo, revela em seus textos e projetos imagens bastante nítidas desse tipo de representação. Da mesma forma, Robert Moses – personagem influente no mundo do urbanismo nos EUA, conhecido como “mestre construtor” de Nova York e que foi contratado pela prefeitura de São Paulo no final dos anos 1940 para preparar um projeto urbanístico para São Paulo – é mais um dos que propõem e preveem o crescimento paulistano com grande otimismo. Prestes Maia publicou em 1930 seu Estudo de um plano de avenidas para a cidade de São Paulo – um projeto urbanístico que, durante o Estado Novo, foi implementado na cidade durante a sua própria administração. Em 1950, foi a vez de Moses apresentar para as autoridades locais um projeto intitulado Programa de melhoramentos públicos para São Paulo – que, mesmo sendo uma encomenda da prefeitura, acabou não realizado. Ambos os projetos – muito semelhantes na concepção geral da cidade – imaginavam a São Paulo do futuro como uma grande, moderna e veloz metrópole. Em suas propostas, a cidade seria estruturada em função de um sistema de ruas composto, em primeiro lugar, por uma série de anéis viários concêntricos e, em segundo, atravessado por grandes avenidas radiais. Esse sistema seria acompanhado por túneis, pontes, avenidas suspensas, viadutos e outras soluções do gênero, garantindo um trânsito rápido e desimpedido por toda a cidade. O metrô, para ambos, seria inevitável no futuro, mas nenhum deles aconselhava a sua construção imediata por conta dos elevados custos de uma obra de tal magnitude. As regiões centrais de São Paulo seriam dominadas por arranha-céus, permitindo a concentração de serviços, lazer, negócios etc., enquanto os subúrbios seriam predominantemente residenciais. As margens do Tietê e do Pinheiros seriam ocupadas por indústrias – que, graças à construção das avenidas marginais (parte do sistema de anéis viários), teriam acessos privilegiado às estradas que chegavam e saíam da cidade. Alguns parques trariam uma importante contribuição para a paisagem urbana, oferecendo espaços de lazer e áreas verdes para os paulistanos. Inclusive a população local era imaginada por esses projetos, sendo descrita como uma gente empreendedora, progressista e cosmopolita – conforme o adequado à metrópole que se queria construir. Isso tudo combinado faria de São Paulo uma das melhores e maiores cidades existentes – uma metrópole gloriosa –, liderando a economia brasileira e desempenhando um papel de destaque na América Latina e no mundo (PRESTES MAIA, 1930PRESTES MAIA, Francisco. Estudo de um plano de avenidas para a cidade de São Paulo. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1930.; 1945PRESTES MAIA, Francisco. Os melhoramentos de São Paulo. São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo, 1945.; MOSES, 1950MOSES, Robert. Programa de Melhoramentos Públicos para a cidade de São Paulo. Nova York: International Basic Economic Corporation; IBEC Technical Services Corporation, 1950.; CARPINTÉRO, 1998CARPINTÉRO, Mariza Varanda Teixeira. Em busca da imagem: a cidade e seu figurino (São Paulo 1935-1954). Tese (Doutorado em História) – IFCH, Unicamp: Campinas, 1998.; LEME, 2011LEME, Maria Cristina. A presença norte-americana e a transformação de São Paulo no pós-guerra. In: LANNA, Ana Lúcia; PEIXOTO, Fernanda; LIRA, José Tavares; SAMPAIO, Maria Ruth (orgs.). São Paulo, os estrangeiros e a construção das cidades. São Paulo: Alameda, 2011.).7 7 Aqui, apresento apenas em linhas gerais o futuro imaginado por Prestes Maia e Moses. No segundo capítulo de minha tese de doutorado, examino a questão com mais vagar. Ver: Zorek (2019).

Embora mais sofisticadas nos projetos urbanísticos do que nos textos dos jornais, as expectativas fundamentais de que a cidade deveria continuar crescendo e de que esse crescimento seria positivo eram essencialmente as mesmas. No entanto, os projetos urbanísticos, porque elaborados sob encomenda estatal, tinham uma capacidade excepcional de produção do futuro. Esse patrocínio era um indicativo de que o Estado, de maneira geral, sustentava a mesma expectativa e, portanto, mobilizava suas forças no sentido de sua realização efetiva. Sendo assim, ao longo da primeira metade do século XX, consolidava-se no horizonte da cidade a metrópole gloriosa, destino que se imiscuía em projetos urbanísticos, em ações do Estado, nas imagens da imprensa e, considerando especialmente o contexto do quarto centenário, também em uma infinidade de representações equivalentes e otimistas que se multiplicaram nas mais variadas plataformas no início dos anos 1950. Em outras palavras, é possível dizer que diversas energias sociais se alinhavam para a produção deste futuro para a metrópole.

4. Futuro ameaçado no urbanismo

Se o otimismo em relação ao crescimento de São Paulo se disseminava de modo amplo através de diversos veículos, em contraste, o pessimismo, até os anos 1950, exigia a assinatura e os capitais simbólicos de quem se valia dessa perspectiva. Nesse contexto, o principal nome do urbanismo condenando a transformação de São Paulo em uma grande metrópole era: Luiz de Anhaia Mello. Também um urbanista reconhecido, com passagem por cargos importantes da administração pública (foi vereador em São Paulo na década de 1920, prefeito da cidade por alguns meses logo depois da revolução de 1930 e secretário de Viação e Obras Públicas do governo estadual durante o Estado Novo), Anhaia Mello converteu seus capitais políticos para o mundo acadêmico a partir de meados dos anos 1940. Consolidou-se, em seguida, como uma das lideranças da nova Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, fundada em 1948, e assumiu, a partir de então, uma posição híbrida, moldada tanto pelas lógicas do emergente campo cultural quanto pelas do campo político (FICHER, 2005FICHER, Sylvia. Os arquitetos da Poli: Ensino e profissão em São Paulo. São Paulo: Fapesp e Edusp, 2005.; BRESCIANI, 2010BRESCIANI, Maria Stella. Estudo da trajetória profissional do engenheiro-arquiteto Luiz I. R. de Anhaia Mello. In: SALGADO, Ivone; BERTONI, Angelo (orgs.). Da construção do território ao planejamento das cidades: Competências técnicas e saberes profissionais na Europa e nas Américas (1850-1930). São Carlos: RiMa, 2010.; ZOREK, 2019ZOREK, Bruno. O futuro de São Paulo na década de 1950. Tese (Doutorado em História) – IFCH, Unicamp. Campinas, 2019.). Desde a década de 1920, esse urbanista escrevia sobre a necessidade de se pensar com cautela sobre as intervenções urbanísticas experimentadas em São Paulo. Além de publicar em periódicos especializados, como o Boletim do Instituto de Engenharia de São Paulo e, mais tarde, na revista do mesmo instituto, Anhaia Mello apresentava suas ideias também em palestras e conferências, escrevia para os jornais de grande circulação e outros veículos de imprensa, como o Digesto Econômico. De maneira geral, mostrava-se simpático a soluções inspiradas na cidade-jardim de Ebenezer Howard e no planejamento regional de Patrick Geddes, entre outras influências que valorizavam a dispersão populacional (BRESCIANI, 2014BRESCIANI, Maria Stella. As múltiplas linguagens do urbanismo em Luiz de Anhaia Mello: técnica, estética e política. In: FARIA, Rodrigo; CERASOLI, Josianne; LIRA, Flaviana (orgs.). Urbanistas e urbanismo no Brasil: Entre trajetórias e biografias. São Paulo: Alameda, 2014.). No entanto, apenas na década de 1950 sua postura se tornou mais combativa, defendendo modelos alternativos de futuro para a capital paulista e, sobretudo, atacando o urbanismo então praticado na cidade (ANHAIA MELLO, 1954ANHAIA MELLO, Luiz de. O Plano Regional de São Paulo. Uma Contribuição da Universidade para o estudo do “Um Codigo de Ocupação Licita do Solo”. Monografia/Palestra – FAU, USP. São Paulo, 1954. (8 de novembro de 1954 – Dia Mundial do Urbanismo.); ZOREK, 2017ZOREK, Bruno. Um futuro alternativo para São Paulo: Anhaia Mello e a tese da limitação do crescimento da metrópole. In: Cadernos de História. Belo Horizonte: PUC-MG, v. 18, 2017.).

Anhaia Mello entendia a continuidade do crescimento como a condenação da cidade ao caos. Do seu ponto de vista, a expansão acelerada era um processo de destruição da vida urbana que precisava ser interrompido. Se nada fosse feito imediatamente, São Paulo em breve se tornaria uma cidade morta. Anhaia Mello acusava as diversas promessas do modelo de urbanismo experimentado na cidade de não se cumprirem. Em vez de uma metrópole moderna e veloz, São Paulo estava se mostrando um aglomerado urbano disfuncional e marcado pela paralisia. No entanto, havia uma saída, embora fosse radical. Seria preciso realocar toda a população de São Paulo por um território 20 vezes maior do que o ocupado pela cidade de então, distribuindo as pessoas em diversas pequenas cidades-jardim. Cada uma dessas cidades-jardim teria no máximo 30 mil habitantes e seria cercada por um cinturão verde, que tanto impediria o aumento do número de moradores quanto garantiria alimentos e espaços de natureza para os seus cidadãos. Em conjunto, essas cidades-jardim formariam uma grande confederação, organizada de acordo com um plano regional, que definiria as funções de cada unidade urbana no sistema que todas juntas conformariam (ANHAIA MELLO, 1954ANHAIA MELLO, Luiz de. O Plano Regional de São Paulo. Uma Contribuição da Universidade para o estudo do “Um Codigo de Ocupação Licita do Solo”. Monografia/Palestra – FAU, USP. São Paulo, 1954. (8 de novembro de 1954 – Dia Mundial do Urbanismo.)).

Evidentemente, seu plano não foi posto em prática – embora várias de suas ideias tenham sido consideradas na solução de problemas urbanísticos pontuais (FELDMAN, 2005FELDMAN, Sarah. Planejamento e zoneamento. São Paulo: 1947-1972. São Paulo: Fapesp e Edusp, 2005.; BRESCIANI; SCHICCHI, 2016BRESCIANI, Maria Stella; SCHICCHI, Maria Cristina. Luiz de Anhaia Mello: ensino, política e presença pública. In: Risco. São Paulo, v. 14, n. 1, 2016.). Mas suas críticas ao modelo de urbanização adotado por São Paulo, bem como suas previsões pessimistas sobre o futuro da cidade foram ouvidas e reverberaram em diversos espaços. Em primeiro lugar, essas críticas cresceram nas novas faculdades de arquitetura e urbanismo – a Mackenzie, fundada em 1947, e a FAU/USP, de 1948. Ambas eram um terreno fértil para as ideias de Anhaia Mello, entre outros motivos, porque, na São Paulo do final dos anos 1940 e início dos 1950, estava em processo a afirmação das diferenças entre arquitetos e engenheiros, no qual os primeiros procuravam se distinguir dos segundos, de quem acabavam de se separar institucionalmente. Como parte dessa diferenciação, as ideias urbanísticas defendidas por Anhaia Mello foram abraçadas pelos arquitetos, enquanto aquelas que tinham Prestes Maia ou Robert Moses como uns dos seus principais representantes eram privilegiadas pelos engenheiros (MEYER, 1991MEYER, Regina Maria Prosperi. Metrópole e urbanismo: São Paulo anos 50. Tese (Doutorado em Arquitetura – FAU, USP: São Paulo, 1991.; LEME, 2001LEME, Maria Cristina. Urbanismo: a formação de um conhecimento e de uma atuação profissional. In: BRESCIANI, Maria Stella (org.). Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2001.). Por isso, o fortalecimento de Anhaia Mello em determinados setores do mundo universitário. Em segundo lugar, suas ideias ganharam espaço também no recém-criado Departamento de Urbanismo da cidade de São Paulo (1947). Ao longo da década de 1950, uma série de novas práticas, metodologias e instrumentos urbanísticos passaram a ser utilizados por esse departamento, modificando os planos de intervenção na cidade de acordo com concepções caras a Anhaia Mello – em parte, porque vários dos novos profissionais recrutados pelo órgão haviam sido seus estudantes na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FICHER, 2005FICHER, Sylvia. Os arquitetos da Poli: Ensino e profissão em São Paulo. São Paulo: Fapesp e Edusp, 2005.; FELDMAN, 2005FELDMAN, Sarah. Planejamento e zoneamento. São Paulo: 1947-1972. São Paulo: Fapesp e Edusp, 2005.).

Incorporando algumas das críticas elaboradas por Anhaia Mello, mas sem adotar suas propostas de transformação das cidades, as ciências humanas também começaram a prever o futuro de São Paulo de maneira pessimista. Um caso especialmente interessante desse diálogo interdisciplinar é o de Florestan Fernandes, que representa tanto um novo modelo de intelectual acadêmico no Brasil dos anos 1950 quanto antecipa a perspectiva desencantada que marcará a sociologia urbana a partir das décadas de 1960 e 1970. De início, o sociólogo se manifestava com otimismo sobre o futuro da metrópole, mas mudou de opinião ao longo no final dos anos 1950, justamente quando as ideias mais críticas e combativas de Anhaia Mello passaram a circular com maior intensidade no mundo acadêmico, em periódicos especializados e também na grande imprensa.

5. Florestan Fernandes em 1954

Durante as comemorações do quarto centenário de São Paulo, um dos eventos promovidos para homenagear a cidade foi o XXXI Congresso de Americanistas. Na ocasião, Florestan Fernandes – que acabara de assumir a regência da cadeira de Sociologia I, na USP – apresentou um artigo no qual discutia diversos aspectos da cidade aniversariante (ARRUDA, 2001ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. Bauru, São Paulo: Edusc, 2001.; GARCIA, 2002GARCIA, Sylvia. Destino ímpar: Sobre a formação de Florestan Fernandes. São Paulo: USP, Curso de Pós-graduação em Sociologia; Editora 34, 2002.). Nesse trabalho, Fernandes descreveu São Paulo como uma metrópole gigantesca e complexa, que desempenhava um papel decisivo na economia nacional e era uma das aglomerações mais cosmopolitas da América Latina. No entanto, a condição de cidade grande era um desenvolvimento recente, que não tinha sido capaz de eliminar um importante conjunto de problemas estruturais herdados do passado. Além disso, a explosão populacional dos últimos 40 ou 50 anos criava os seus próprios impasses para a cidade, prejudicando, sobretudo, as populações em condições de maior vulnerabilidade social. Ainda assim, Fernandes projetava um futuro positivo para a metrópole, marcado pela superação de ambas as séries de problemas e pela melhoria das condições de vida para todos:

Tendo-se em vista as condições em que se processaram a desagregação da antiga ordem social escravocrata e senhorial e a formação incipiente da nova ordem de classes sociais, a urbanização representa e assegura a evolução para situações sociais de vida historicamente desejáveis no Brasil. Baste-nos um exemplo: com ela é que se inicia o aparecimento de condições sociais que comportam o livre exercício do voto, a organização de partidos de massas, a ascensão política das classes médias e das camadas populares, o advento de correntes e instituições políticas compatíveis com a instauração de um regime democrático (FERNANDES, 2008 [1954], p. 191FERNANDES, Florestan. Caracteres rurais e urbanos na formação e desenvolvimento da cidade de São Paulo [1954]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

Para Florestan Fernandes, eram as transformações sociais, politicamente orientadas para a democracia, que sustentavam as esperanças de um futuro melhor.8 8 Este também é o argumento de Maria Arminda Arruda, que, em sua análise dos textos de Fernandes produzidos nos anos 1950, destaca as preocupações do sociólogo com os acontecimentos mais recentes e deriva disto as suas perspectivas de futuro: “A ênfase no presente resulta na crença em um futuro promissor identificado, neste caso, com a realidade de uma sociedade de classes aberta e com um regime de participação democrática. A cidade burguesa que emergira nos fins do século XIX atingia, após meio século, genuíno estilo urbano de vida, ligado a um universo valorativo de ordem diversa, respaldado na idéia de progresso inelutável” (ARRUDA, 2001, p. 31). Além disso, conforme Walquíria Leão Rego, Fernandes estaria transformando essa perspectiva em uma postura que deveria ser adotada por toda a intelectualidade brasileira: “[...] o imperativo ético político que se colocava para a inteligência era ajudar no empreendimento de trazer o país para a modernidade da cidadania democrática, e assim redefinir os termos em que estava posta anteriormente a questão nacional. Desse modo, o problema da nação somente se resolveria de forma simultânea com a questão democrática. Não se poderia falar em projeto nacional se esse não fosse compreendido como projeto político democrático destinado à realização em todo o território nacional da mais ampla possível justiça distributiva. Tornara-se tarefa urgente dos intelectuais brasileiros compreender e propor de maneira exigente a cidadania democrática como fonte principal de orientação das políticas públicas voltadas para a liquidação de nosso passado de profundas iniqu¨idades sociais” (REGO, 2006, p. 180). Mesmo assim, o caminho para “situações sociais de vida historicamente desejáveis no Brasil” seria repleto de desafios, que precisariam ser superados conforme fórmulas específicas – ainda que não houvesse dúvida a respeito da concretização dessas conquistas. Na expectativa construída pelo Florestan Fernandes de 1954, São Paulo “naturalmente” seguiria um percurso vitorioso:

Em primeiro lugar, o equilíbrio social não poderá ser estabelecido através da restauração do passado, da reintegração das diferentes esferas da cultura e da sociedade, características do período semiurbano. Percebe-se que o desequilíbrio relativo do atual sistema de relações sociais será corrigido naturalmente pela evolução urbana e industrial da própria cidade. A emergência de condições dinâmicas mais estáveis depende de vir a cidade a exercer influências de caráter metropolitano em todos os setores da vida econômica, político-administrativa e cultural, no seio do imenso espaço social formado pelas comunidades urbanas, semiurbanas e rurais, que constituem o suporte material da industrialização e da urbanização de São Paulo. No momento, porém, assistimos à desintegração final da ordem social herdada do passado, em que os componentes rurais prevaleciam em muitas esferas sobre os componentes urbanos da cidade. Os ideais e os valores que asseguram, em qualquer parte, um estilo de vida [urbano com] tendências metropolitanas, estão em plena elaboração sendo perceptíveis a operação e os efeitos dos processos por meios dos quais eles substituem ideais e valores sociais anteriores (FERNANDES, 2008 [1954], p. 188FERNANDES, Florestan. Caracteres rurais e urbanos na formação e desenvolvimento da cidade de São Paulo [1954]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

O sentido da história de São Paulo proposto por Fernandes, portanto, alinhava-se em certa medida com o otimismo do IV Centenário. É verdade que os jornais louvavam o bandeirantismo, por exemplo, enquanto o sociólogo destacava a importância da superação dos valores herdados do passado. Ainda assim, ambas as representações eram muito positivas em suas imagens do futuro da metrópole. Continuando sua análise, Florestan Fernandes argumentava que o passado e o futuro da metrópole, inscritos em seu presente, transcendiam a própria cidade e revelavam tendências de desenvolvimento, senão universais, ao menos compartilhadas pela maior parte do mundo ocidental. São Paulo, neste sentido, era identificada pelo sociólogo como uma cidade que representava três temporalidades distintas e sobrepostas. Em primeiro lugar, era o passado das principais cidades europeias – São Paulo tenderia a se tornar o que aquelas cidades já eram. Em segundo, era o futuro das principais cidades brasileiras – que deveriam tornar-se o que São Paulo era naquele momento. E, finalmente, era o presente de si mesma. Portanto, a metrópole podia ser vista como uma espécie de laboratório social para se pensar o país. Conforme o sociólogo:

[...] as grandes cidades sofrem em maior escala os processos sociais que operam na sociedade brasileira. Nelas se evidenciam a significação e as consequências das mudanças que se processaram com a desagregação da antiga ordem social escravocrata e senhorial. Há quem afirme que o fenômeno das classes sociais é exclusivo das sociedades europeias. Semelhante opinião não encontraria confirmação diante de uma cidade como São Paulo, na qual se reproduz, em condições sociais diferentes, o passado daquelas sociedades (FERNANDES, 2008 [1954], p. 190FERNANDES, Florestan. Caracteres rurais e urbanos na formação e desenvolvimento da cidade de São Paulo [1954]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

Os tempos da metrópole articulavam não só os destinos locais, mas também os do restante do Brasil – que seria, no futuro, um país com condições de vida semelhantes às das economias industriais avançadas europeias. Novamente, uma perspectiva otimista, dado que naquele momento, mesmo com a sombra recente da Segunda Guerra Mundial, a Europa ainda (ou novamente) representava um modelo desejável de civilização (HOBSBAWM, 1995HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.; HARTOG, 1997HARTOG, François. O tempo desorientado: Tempo e história: ‘Como escrever a história da França?’. In: Anos 90. Porto Alegre, nº 5, v. 7, 1997.). Uma das expectativas sobre essas condições de vida era a generalização do modelo urbano de existência social. Nas palavras de Fernandes:

Por fim, conviria destacar [...] o que significam as novas condições de existência urbana, para os que vivem na cidade. Neste ponto, seria conveniente distinguir entre a significação subjetiva da urbanização e o sentido objetivo que ela possui, como um processo histórico-social. A significação subjetiva é extraordinariamente lábil e variável, como em qualquer outra cidade grande. Para uns, que encontram na expansão da cidade a ruína de antigos privilégios, a urbanização se apresenta como uma verdadeira catástrofe social, que “desgraçará” o Brasil. Para outros, que procuram na cidade melhores condições de vida ou certas garantias de liberdade moral, a urbanização surge como um valor desejável e positivo. Entre essas avaliações extremas, colocam-se as atitudes que mais interessam ao sociólogo. O conforto, a autonomia e a satisfação, assegurados pelo estilo de vida urbano, começam a ser contrabalanceados por sentimentos opostos, de cansaço, de insegurança e de irritação, impostos pelo estado de tensão contínua, a que os indivíduos se veem irremediavelmente compelidos. A questão de saber [se] a vida na cidade “vale” os sacrifícios que precisam ser feitos eleva-se, assim, à esfera de consciência social. Várias instituições conservadoras, misturadas a um saudosismo por um passado rural recente, fazem pressões no sentido de provocar reações negativas. No entanto, parece que os adestramentos indispensáveis à vida social urbana já encontram condições socioculturais favoráveis e regulares. A disposição subjetiva dominante não só envolve a aceitação, como a supervalorização das condições urbanas de existência social (FERNANDES, 2008 [1954], p. 191FERNANDES, Florestan. Caracteres rurais e urbanos na formação e desenvolvimento da cidade de São Paulo [1954]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

Embora houvesse a sugestão de um distanciamento das opiniões mais extremas sobre os valores da urbanização, Florestan Fernandes deixava subentendido que, se tivesse que escolher entre a sociedade do passado (rural) e a sociedade do futuro (urbana), provavelmente optaria pela segunda. Além de investir suas esperanças – e seu capital intelectual – em um futuro melhor para o Brasil e para a cidade de São Paulo, o sociólogo esboçava algumas das características que gostaria de ver estabelecidas: sobretudo a democracia política e um crescente processo de igualitarização econômica. Para Florestan, esse futuro desejável era indissociável da metropolização de São Paulo, da industrialização da economia e da urbanização dos costumes. Na conclusão de seu texto, o autor apresentava um diagnóstico das tendências futuras de São Paulo que indicava justamente esse caminho:

A cidade está evoluindo rapidamente no sentido de tornar-se a metrópole de um complexo sistema de comunidades urbanas ou em urbanização, semiurbanas e rurais. Daí a conclusão de que a importância atual de alguns componentes rurais tende a diminuir, à medida que as relações entre a cidade e o campo assumem um padrão propriamente metropolitano (FERNANDES, 2008 [1954], p. 192FERNANDES, Florestan. Caracteres rurais e urbanos na formação e desenvolvimento da cidade de São Paulo [1954]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

Em resumo, o Florestan Fernandes de 1954, por um lado, apontava para um passado rural da cidade e do país e os avaliava como algo a ser superado; por outro, olhava para um futuro urbano, onde a igualdade e a liberdade teriam, a princípio, condições de se desenvolver plenamente. Esse otimismo – explicável, em parte, por conta dos festejos que a cidade vivia e, também, pela hegemonia pouco questionada das representações convencionais do futuro da cidade – iria desaparecer cinco anos depois, quando São Paulo não passava por festejo nenhum, outras perspectivas sobre os destinos da metrópole haviam ganhado força e Fernandes ocupava uma posição diferente na estrutura do campo intelectual paulistano, que também se transformara, aprofundando sua autonomia.

6. Florestan Fernandes em 1959

Apenas cinco anos mais tarde, em 1959, Florestan Fernandes – que havia passado por um período de ascensão meteórica em sua carreira, assumindo a liderança da “Escola Paulista de Sociologia” e sendo reconhecido então como um dos mais importantes sociólogos brasileiros – mudava completamente sua perspectiva sobre São Paulo (ARRUDA, 2001ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. Bauru, São Paulo: Edusc, 2001.; GARCIA, 2002GARCIA, Sylvia. Destino ímpar: Sobre a formação de Florestan Fernandes. São Paulo: USP, Curso de Pós-graduação em Sociologia; Editora 34, 2002.). Aproveitando a edição comemorativa de 30 anos do jornal Diário de São Paulo, o sociólogo publicou um novo artigo sobre a cidade. Em parte, Fernandes recuperava suas análises de 1954, mas as desdobrava em outra direção – em vez de concluir que São Paulo teria um futuro positivo, sua expectativa para a metrópole se tornara pessimista:

Como acontece em outros países subdesenvolvidos e de economia tropical, a ausência de equilíbrio nas relações campo-cidade contribui para dar ao crescimento econômico de São Paulo um caráter tumultuoso, desordenado e descontínuo em pontos vitais. Por isso, o perigo de uma “retração” permanente existe e a cidade corre um risco que nos deve preocupar fundamentalmente. Ela poderá converter-se em uma cidade morta gigantesca (FERNANDES, 2008 [1959], p. 275FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.. Grifos originais).

Essa mudança de perspectiva estava relacionada tanto à transformação do lugar social de Fernandes quanto à sua leitura e incorporação dos debates sobre São Paulo realizados por outros estudiosos da cidade – entre eles, urbanistas como Anhaia Mello, mas também geógrafos como os participantes da coleção de Aroldo de Azevedo, historiadores, economistas e outros cientistas sociais. Em relação ao primeiro ponto, a nova posição ocupada pelo sociólogo no campo intelectual paulistano (que enfrentava por um processo acelerado de autonomização em parte graças justamente à atuação de Fernandes) foi, ao mesmo tempo, causa e efeito do pessimismo com que ele passou a representar o futuro da metrópole. Causa, por um lado, porque a afirmação de um ponto de vista derivado de valores como a neutralidade científica ou como a necessidade de um distanciamento crítico em relação aos espaços dominantes do campo do poder – e que se manifestava de forma essencialmente pessimista no contexto em questão – era parte do trabalho, realizado também e principalmente por Fernandes, de consolidação de uma perspectiva própria, que resultava na autonomização progressiva do campo intelectual. Efeito, por outro lado, porque a principal condição para que tal ponto de vista tivesse sentido na sociedade brasileira era justamente que houvesse um campo intelectual relativamente autônomo, oferecendo as bases sociais para sua sustentação e disseminação.

No caso do Florestan Fernandes de 1959, era justamente isso que se dava: a negatividade que passou a marcar sua perspectiva era fundamentalmente resultado da consolidação e da incorporação de princípios específicos de interpretação do mundo que se opunham àquelas correntes nos campos político e econômico. Por isso, sua apreciação da realidade acabava sendo marcada pelo desânimo e pela descrença em um futuro melhor – especialmente quando o que estava em pauta eram as ações das elites dirigentes:

Nesse terreno, no qual está em jogo a segurança e o conforto dos moradores da cidade tanto quanto a continuidade do progresso dela no futuro, falharam por diferentes motivos o empreendedorismo particular e o empreendedorismo oficial. O primeiro, pela ausência de previsão ou por causa do predomínio exclusivo de interesses egoísticos. O segundo, por incapacidade de renovação orgânica, que favorecesse o emprego crescente das técnicas de intervenção e de controle racionais exigidas pelas situações novas (FERNANDES, 2008 [1959], p. 271FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

Ou seja, Fernandes reservava para os governantes e para a burguesia papéis de antagonistas em sua nova estruturação narrativa, antecipando as formulações dos jornais da década seguinte. Embora a situação em que São Paulo se encontrava, na avaliação do sociólogo, fosse fruto de um processo complexo, composto por diversas variáveis e que, em muitos aspectos, tinha características positivas, ele destacava duas consequências específicas deste processo que, em suas palavras, tinham “aspecto sociopático” e eram diretamente ligadas aos detentores dos poderes político e econômico:

[...] vale a pena ressaltar o comportamento de ave de rapina, diante dos assuntos de interesse coletivo da cidade, e a persistência perigosa de avaliações pré-capitalistas na utilização da renda. / O primeiro ponto é facilmente ilustrável da mentalidade e das ações do moderno político profissional e dos eleitores que formam a sua clientela. Sem se identificarem com a segurança e o futuro da cidade, mantêm-se cegos às necessidades presentes de reconstrução dos serviços públicos, quando não se apropriam de bens oficiais ou se limitam a explorar projetos de alcance demagógico. O segundo ponto pode ser ilustrado por meio de comportamentos muito generalizados entre os empreendedores capitalistas. Encarando os lucros como efeito da própria capacidade de liderança e temendo as incertezas do ciclo econômico, muitos deles consomem verdadeiras fortunas suntuosamente ou deslocam-nas para fins neutros em face do desenvolvimento nacional. O aspecto sociopático desse comportamento é evidente. De um lado, ele se constitui em obstáculo à expansão de atitudes e técnicas racionais, indispensáveis ao fomento e ao aperfeiçoamento de empresas econômicas consistentes. De outro, concorre para a dissipação de recursos que não se produzem pela simples capacidade pessoal do empreendedor, já que as medidas protecionistas asseguram uma margem mínima de risco, com o fito de acelerar o desenvolvimento da economia brasileira à custa do sacrifício momentâneo do consumidor (FERNANDES, 2008 [1959], p. 273FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

Para Fernandes, naquele momento, a distinção entre interesses egoísticos e interesses coletivos era um aspecto fundamental de sua reflexão e tinha desdobramentos importantes em suas expectativas para o futuro. Assumindo uma perspectiva nitidamente weberiana, com toques de Durkheim, o sociólogo associava a racionalização típica do “espírito do capitalismo” com a reinversão dos lucros de qualquer empreendimento – público ou privado – em benefício da coletividade. Essa reinversão não necessariamente precisaria respeitar princípios democráticos ou que promovessem a igualdade para serem consideradas racionais do ponto de vista capitalista. Era simplesmente um uso dos recursos excedentes no sentido da produção de mais recursos o que Fernandes esperava que fosse o comportamento regular da burguesia brasileira. Da mesma forma, a racionalização do Estado deveria conduzir a um uso de seus recursos que ampliasse ainda mais sua capacidade de ação sobre a sociedade. Na opinião do sociólogo, nem uma coisa nem outra aconteciam, pois uma cultura pré-moderna – marcada justamente pelos interesses egoísticos da burguesia e pelo patrimonialismo dos governantes – ainda era dominante na orientação das ações das elites dirigentes brasileiras, criando, desta forma, uma situação indesejável.

Além disso, Fernandes avançava em relação a suas reflexões de 1954 justamente por incorporar os debates promovidos pelos geógrafos – com destaque para os trabalhos, explicitamente citados, de Aroldo de Azevedo e seus colaboradores – e, de forma parcial, também as representações apocalípticas do urbanismo de Anhaia Mello.9 9 Mesmo com essas novas referências, Fernandes entendia que as pesquisas sobre São Paulo estavam apenas começando: “Pouco se sabe ainda sobre as grandes transformações sociais recentes da cidade de São Paulo. Algumas pesquisas revelam certos aspectos dessas transformações. Mas faltam-nos dados positivos a respeito de todas as coisas essenciais na vida de uma metrópole” (FERNANDES, 2008 [1959], p. 269). O diálogo com os geógrafos permitia a Fernandes tanto assumir alguns dos princípios mais gerais defendidos por seus colegas – como, por exemplo: “A expansão de São Paulo constitui, em grande parte, o fruto de uma posição geográfica favorável” (FERNANDES, 2012 [1959], p. 269) – quanto modificava algumas de suas estratégias analíticas anteriores. Em vez de insistir em suas comparações com as metrópoles europeias, por exemplo, o Florestan Fernandes de 1959 dava mais valor à aproximação de São Paulo com as cidades dos Estados Unidos: “Com o aumento intensivo e contínuo da população, com a urbanização e a industrialização, sua configuração ecológica alterou-se, progressivamente, aproximando-se do padrão de organização ecológica das comunidades urbanas norte-americanas” (FERNANDES, 2008 [1959], p. 270FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.)

Embora não mencionasse diretamente Anhaia Mello, determinados elementos do discurso de Fernandes reproduziam de maneira muito fiel algumas ideias do urbanista. O significado essencialmente negativo que o crescimento teria para as cidades – argumento central nos trabalhos de Anhaia Mello – é um dos principais exemplos da incorporação, direta ou indireta, por parte de Fernandes, das representações pessimistas do futuro que ganhavam força nos debates sobre São Paulo. O sociólogo, que em 1954 se deixava contaminar pelo otimismo generalizado que marcava as representações de São Paulo no ano de seu quarto centenário, agora, em 1959, identificava, isolava e se distanciava desse otimismo. Em primeiro lugar, Fernandes chamava a atenção para a: “[...] convicção, acalentada com orgulho pelos paulistanos, de que ‘São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo’” (FERNANDES, 2008 [1959], p. 272. Grifo originalFERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.). Em seguida, procurava problematizar esse processo, associando o crescimento a diversos dos problemas da metrópole:

Conviria indagar, no entanto, o que se oculta sob semelhante índice de crescimento. Sob esse aspecto, São Paulo assemelha-se à terra revolvida pelo arado. O rebuliço nos quadros humanos foi completo e aqui se encontra um dos focos de explicação dos principais problemas sociais da cidade. A mobilidade demográfica intensa constitui uma condição adversa ao entrosamento da lealdade dos indivíduos ou de grupos de indivíduos com os interesses e valores da coletividade como um todo. Por isso, em certas circunstâncias ela chega a afetar tanto as bases materiais quanto os fundamentos morais da ordem social estabelecida ou em processo de reintegração. Parece fora de dúvida que isso vem ocorrendo em São Paulo, onde a extrema mobilidade dos vários estratos da população criou ambiente propício à predominância de interesses egoísticos ou particularistas sobre interesses vitais para a comunidade propriamente dita (FERNANDES, 2008 [1959], p. 272FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

Em outros momentos do mesmo texto, Fernandes se aproximaria ainda mais das ideias de Anhaia Mello. Embora os vocabulários fossem diferentes e suas preocupações apontassem para questões específicas de suas respectivas disciplinas, quando o sociólogo nomeava os problemas da cidade, o fazia de forma semelhante à do urbanista – sobretudo quando o futuro de São Paulo estava em jogo:

O lado dramático da transformação do cenário ecológico está na incapacidade de o homem promover alterações igualmente rápidas e profundas em seu sistema adaptativo. É certo que ela trouxe consigo benefícios palpáveis. Entre eles, cumpre mencionar a melhor distribuição e ocupação do espaço, bem como o acesso de famílias modestas, que moravam nos porões ou nos cortiços, a habitações próprias, construídas em lugares mais saudáveis. O busílis, aqui, está na relação entre o substrato material da vida social e o crescimento progressivo dos serviços públicos, proporcionados por instituições oficiais ou particulares. O homem, saído da antiga sociedade provinciana, era destituído de padrões que regulassem suas escolhas e exigências no novo mundo em formação. Os espaços ocupados o foram nas condições mais precárias. Com frequência, sem serviços regulares de abastecimento de água potável, de esgotos, de assistência médica, de ensino, de calçamento, de iluminação pública etc. Nas áreas onde se processou o crescimento vertical propriamente dito, nada se fez para reajustar as vias de comunicação, os serviços de águas ou de esgotos, de calefação etc., às estruturas dos prédios grandes e à maior concentração demográfica. No conjunto, o homem conquistou o espaço, mas não o domesticou no sentido urbano. A jornada para o trabalho ou deste para o lar, por exemplo, está cheia de aventuras, de inconvenientes e de provações, produzindo um encurtamento indireto do período útil da vida humana. Deste ângulo, as perspectivas são sombrias, pois a menor calamidade pública exporia a cidade e seus habitantes a crises terríveis, dadas as lacunas do abastecimento de água e de víveres, das formas de proteção da saúde e dos meios de preservação da ordem (FERNANDES, 2008 [1959], p. 270-271FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

Entretanto, mesmo tendo ecos do discurso apocalíptico de Anhaia Mello, o pessimismo apresentado por Fernandes tinha uma natureza sutilmente diferente. O urbanista desenhava como possível um futuro trágico para São Paulo, mas acreditava e apostava em mudanças que salvariam a cidade. Os protagonistas desse processo seriam as elites dirigentes, com destaque para os governantes – que, além de controlarem com as energias do Estado, também podiam contar com as técnicas do urbanismo para realizar seu trabalho. O sociólogo, por sua vez, também entendia que São Paulo caminhava para sua derrocada e também acreditava que havia possibilidades de salvação. Contudo, em sua narrativa, havia antagonistas poderosos que se opunham ao bom desenvolvimento da metrópole e dificilmente seriam derrotados – e quem desempenhava esse papel negativo eram justamente as elites dirigentes. Ou seja, para Anhaia Mello, a salvação, mesmo difícil, era o caminho provável, enquanto, para Fernandes, a salvação provavelmente não viria, mesmo sendo possível.

O sentido da história do Brasil e de São Paulo sugerido pelas considerações de Fernandes apontava para a racionalização e para a modernização de seus respectivos desenvolvimentos. Em 1954, “naturalmente” o país e a cidade seguiriam nessa direção. No entanto, em 1959, esse destino não se realizava porque os governantes e a burguesia agiam contra a tendência “natural” da história. Essa tendência, por sua vez, era alimentada fundamentalmente por forças coletivas inespecíficas, que se conformavam como as verdadeiras protagonistas de sua narrativa. Sendo assim, o drama construído por Fernandes, em 1959, opunha um conjunto de heróis sem rosto a adversários bastante bem delineados, em uma batalha cujo resultado, embora ainda indefinido, seria provavelmente trágico. Mesmo assim, havia uma pequena esperança de que as forças positivas conseguissem dobrar seus inimigos, trazendo-os para o seu lado:

É de esperar que, sob a pressão das exigências do presente e do significado palpável que elas possuem para os indivíduos e para a coletividade, se opere uma mudança substancial no estilo de ação do particular e [d]os órgãos oficiais. Essa é a condição de que depende o sucesso do homem na extensão da revolução urbana às esferas materiais mais profundas da existência humana, de modo a adaptar a organização ecológica da cidade aos requisitos especificamente urbanos da vida social (FERNANDES, 2008 [1959], p. 271FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

A transformação do comportamento das elites locais, no entanto, não seria simples. A “pressão das exigências do presente” precisaria ser organizada e direcionada em um sentido específico, que os governantes e a burguesia não eram capazes de perceber sozinhos. Havia, de qualquer forma, um caminho a ser percorrido, embora fosse lento e difícil:

Ambos os exemplos [o patrimonialismo dos governantes e o comportamento pré-capitalista da burguesia] atestam como se processam e justificam ajustamentos desfavoráveis ao bem-estar presente e à segurança futura da vida social na cidade. Esta ainda não se impõe como um valor supremo e indiscutível, pelo qual se deva trabalhar e combater. As coisas muitas vezes se dão como se o homem fosse um forasteiro – e não parte permanente da cidade – disposto a reencetar a caminhada em direção a algo melhor. De todos os males que afligem São Paulo, esse é o maior. Mas só poderá ser removido lentamente, pela reeducação do homem e a formação de um cosmo moral compartilhável por todos os habitantes da cidade (FERNANDES, 2008 [1959], p. 273FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

A responsabilidade por esta reeducação deveria ser assumida pela escola – uma instituição que a princípio compartilharia dos valores do campo intelectual (BOURDIEU, 1996BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.). É preciso frisar que a eleição da educação como solução fundamental para os problemas de São Paulo ou mesmo da sociedade brasileira era tanto uma conclusão lógica, honesta e sincera de Fernandes quanto uma valorização objetiva da principal área de atuação das ciências humanas e da universidade – especialmente dos cursos não tradicionais. Na narrativa em questão, a escola assumia um papel relevante e positivo, que se alinhava à produção de um futuro melhor para a cidade e se opunha ao papel desempenhado pelas elites dirigentes ou mesmo outros importantes agentes sociais:

A educação é, naturalmente, o elemento crucial para o reajustamento do homem a situações sociais que se alteram celeremente, como aconteceu em São Paulo. Em vista de várias instituições, da família ao sindicato e aos partidos, terem se omitido em suas “funções socializadoras”, impõe-se confiar às escolas maior parcela de responsabilidade na preparação do homem para a vida (FERNANDES, 2008 [1959], p. 282FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

Para coordenar o processo de mudança, portanto, seria necessária a participação consciente e ativa de um terceiro grupo de agentes sociais – distintos tanto do povo quanto das elites dirigentes –, que poderiam, caso lhe fosse angariado poder suficiente, alterar o rumo negativo para o qual São Paulo se encaminhava. Esse terceiro grupo era composto fundamentalmente por intelectuais envolvidos com educação, entre os quais os cientistas sociais mereciam destaque:

[...] a importância das ciências sociais não é menor. A educação poderá formar o novo homem, capaz de compreender e de utilizar, construtivamente, as forças que gravitam no mundo social urbano e metropolitano. No nível da atuação propriamente dita, porém, o homem carecerá de recursos intelectuais novos para perceber como essas forças se manifestam, para explicar a influência delas na preservação ou na alteração da ordem social, e para agir com eficácia sobre as condições ou os efeitos delas, suscetíveis de serem controladas de forma deliberada e racional. Tais recursos são fornecidos pelas ciências sociais. Daí o interesse que o fomento do ensino e da pesquisa dessas ciências apresenta para o desenvolvimento de uma cidade, que se converteu em metrópole sob o signo da civilização baseada na tecnologia científica (FERNANDES, 2008 [1959], p. 284FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

É interessante observar que, enquanto o Florestan Fernandes de 1954 e os geógrafos apenas analisavam São Paulo e seu futuro, o sociólogo de 1959 propunha intervir diretamente nos destinos da cidade – tal qual os políticos-urbanistas. Mas, em vez de obras urbanísticas, seria através da atuação dos intelectuais que a metrópole se transformaria para melhor. Contudo, o enredo proposto se encaminhava para um clímax de resolução ambígua. De um lado, havia forças coletivas e inespecíficas representando o “motor da história”. Apoiando essas forças de forma positiva e decisiva, estariam os intelectuais e a educação. De outro lado, estariam as elites dirigentes atrapalhando o desenvolvimento “natural” da história e, ao mesmo tempo, representando a única possibilidade de salvação da cidade – que viria através da mudança de seu comportamento. Para que os governantes e a burguesia se tornassem uma força positiva no desenvolvimento de São Paulo, seria preciso que incorporassem valores coletivos, abrindo mão de seus interesses particularistas. Os intelectuais seriam decisivos justamente porque teriam as ferramentas para educar tanto a população em geral quanto a elite dirigente no sentido que seria o mais benéfico para a metrópole. Entretanto, para que os intelectuais realizassem seu papel, os governantes e a burguesia precisariam garantir os investimentos necessários nas universidades e nas escolas. Portanto, a ambiguidade se definia pelo lugar contraditório ocupado pelas elites dirigentes, que eram, ao mesmo tempo, as únicas forças com condições de encaminhar as mudanças exigidas e as grandes antagonistas da história. Se essas elites investissem na educação, o futuro da cidade poderia ser positivo, mas elas só o fariam se tivessem incorporado valores coletivos – que, por sua vez, dependiam da educação para se generalizar.

No final de seu texto, Fernandes apresentava uma fórmula sucinta das condições que poderiam garantir um destino melhor para a cidade de São Paulo:

O futuro de São Paulo não depende do que se consiga em determinado setor do conhecimento científico, mas da expansão orgânica deste como um todo. [...] Se conseguirmos, simultaneamente: a) proporcionar meios suficientes para a expansão do ensino e da pesquisa no campo das ciências sociais; b) desenvolver nos cientistas sociais uma mentalidade realista, suscetível de favorecer novas combinações de alvos empíricos, teóricos e práticos na pesquisa científica; c) despertar nos leigos maior interesse pela espécie de colaboração que poderia receber dos cientistas sociais – estaremos em condições de enfrentar melhor os problemas humanos que decorrem do crescimento rápido e da transformação desordenada de uma cidade como São Paulo (FERNANDES, 2008 [1959], p. 284FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

O problema, enfim, era que esse “se” dependia de ações que extrapolavam o alcance dos intelectuais e, dadas as descrições do sociólogo sobre o grupo em condições de promover tais ações, as expectativas – embora não desesperadas – eram definitivamente pessimistas. A tragédia que se avizinhava, contudo, não estava completamente definida. Ainda havia um pequeno resquício de esperança.

7. Complexificação e diversificação das elites e a produção de um futuro esgarçado

Um dos fatores-chave para se compreender essa mudança nas representações do futuro de São Paulo foi a intensificação, nos anos 1950, da complexificação e da diversificação das elites paulistanas. Como mencionado, nesta década, São Paulo enfrentava um radical processo de transformação urbana. Como consequência da explosão populacional, da urbanização, da industrialização e de outros fatores relacionados, surgia na cidade uma nova e variada classe média, o proletariado se convertia em um agente político de peso e as elites se multiplicavam, criando e ocupando funções que seus quadros tradicionais até então não realizavam (QUEIROZ, 2004QUEIROZ, Suely. Política e poder público na Cidade de São Paulo: 18891954. In: PORTA, Paula (org.). História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004. v. III.). Isso dividia o campo do poder em diversos setores, com os campos político e econômico ocupando a porção dominante e o campo cultural se impondo como uma força desafiante. Mais especificamente, a São Paulo da década de 1950 assistia a uma autonomização relativa de seu campo cultural, que se constituía em oposição sobretudo ao campo político, permitindo que agentes sociais em posições privilegiadas (intelectuais, artistas, articuladores culturais, jornalistas etc.) assumissem perspectivas estruturalmente distintas das professadas pelos profissionais da política ou pelos donos do poder econômico. A divisão do trabalho de dominação social, portanto, tornava-se mais especializada, com uma elite cultural renovada – de origem cada vez menos atrelada às elites dirigentes tradicionais – passando a controlar as dimensões propriamente simbólicas do exercício do poder (LIMONGI, 2001LIMONGI, Fernando.”A Escola Livre de Sociologia e Política em São Paulo. In: MICELI, Sergio (org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Ed. Sumaré, 2001. vol. I.; JACKSON, 2007JACKSON, Luiz Carlos. Gerações pioneiras na sociologia paulista (1934-1969). In: Tempo Social – USP. São Paulo, v. 19, n. 1, junho de 2007.; MICELI, 2012)MICELI, Sergio. Vanguardas em retrocesso: Ensaios de história social e intelectual do modernismo latino-americano. São Paulo: Cia das Letras, 2012..

Em relação ao futuro da cidade, a expectativa otimista – e hegemônica na primeira metade do século XX – estava fundada principalmente nos valores do campo político, conforme os quais era importante projetar como positiva a cidade resultante das ações do Estado, dos governos ou dos pretendentes a governantes. Consequentemente, os principais representantes dessa perspectiva eram membros da elite dirigente paulistana, que ocupavam com frequência cargos importantes da administração pública. Sua constância nas páginas da grande imprensa local é um indicativo da proximidade sociológica dessas elites com os grupos responsáveis pelo jornalismo paulistano. As expectativas pessimistas, por sua vez, embora não tenham sido uma novidade dos anos 1950, conquistaram um significativo espaço nesse período. Inicialmente oriundas do mundo do urbanismo, imagens negativas ou mesmo distópicas do destino paulistano começaram a se disseminar nas faculdades de arquitetura, em determinados setores do Estado, ganharam corpo e novos fundamentos com o fortalecimento das ciências humanas nos debates públicos, para, em seguida, chegar aos jornais de ampla circulação. As principais encarnações do pessimismo, portanto, aconteciam em agentes do campo cultural da cidade, com destaque para professores universitários das áreas do urbanismo e das ciências humanas. Sua emergência nos jornais de São Paulo – já considerável na segunda metade da década de 1950, mas especialmente evidente da década de 1960 em diante – foi fruto do aumento da importância do campo cultural para o mundo do jornalismo, que se via dividido entre as principais forças que compunham o campo do poder na cidade.

Nesse sentido, as representações do futuro de São Paulo elaboradas por Florestan Fernandes são um excelente indicativo do afastamento sociológico relativamente acelerado entre os valores do campo cultural e os do campo político que acontecia na cidade durante a década de 1950. Graças à distância que se estabeleceu entre esses universos, era possível a existência simultânea de expectativas igualmente fortes, embora contraditórias, sobre os destinos da metrópole. Pode-se perceber que os pontos de vista adotados pelas elites locais estavam distribuídos no campo do poder de acordo com os princípios então correntes de visão e divisão do trabalho de dominação social – em que os setores dominantes (ou dominantes-dominantes) desse campo cultivavam perspectivas otimistas, enquanto os setores dominados (ou dominantes-dominados) percebiam a cidade com pessimismo. (Sem ignorar a existência de uma grande variedade de agentes sociais em posições mais ou menos híbridas que tanto respondiam à valores dos dois campos – e talvez de outros – e cujas representações do futuro da cidade também mesclavam os diversos interesses relacionados.) Os jornais, no entanto, ocupavam uma posição intermediária entre esses grupos, sobretudo da década de 1960 em diante, ora privilegiando os pontos de vista de um, ora os do outro e ora apresentando ambos conjuntamente. Na prática, esse trabalho de mediação realizado pela imprensa resultava na constituição de uma imagem do futuro original – dependente tanto do campo político quanto do campo cultural, mas diferente das duas perspectivas. Em vez de assumir uma previsão do futuro otimista ou pessimista, os jornais permitiam que ambas convivessem no mesmo espaço sem se anularem, fazendo com que São Paulo estivesse destinada ao paraíso e ao inferno simultaneamente. Dessa forma, a imprensa acabava propondo um futuro esgarçado e paradoxal para a cidade, estabelecendo uma dinâmica discursiva tensa, marcada por tentativas ambíguas de acomodação de valores contraditórios e concorrentes – resultando, como destacado, em uma narrativa de final aberto.

Se, como quer o historiador argentino Adrián Gorelik, “la ciudad y sus representaciones se producen mutuamente” (GORELIK, 1999, p. 2GORELIK, Adrián. Historia de la ciudad e historia intelectual. In: Prismas. Revista de historia intelectual. Buenos Aires, n. 3, 1999.), então não é possível separar os discursos sobre São Paulo da própria São Paulo. Nesse sentido, as diferentes percepções dos agentes sociais sobre a metrópole e seu futuro examinadas aqui ajudavam a constituir algumas das formas de se experienciar a vida na São Paulo daquele contexto. E, se os efeitos dos discursos das diferentes elites locais marcavam a cidade com perspectivas bastante definidas, a imprensa realizava o importante papel de sobrepor os sentimentos contraditórios de otimismo e pessimismo, favorecendo uma experiência ambígua, complexa e esgarçada para os habitantes da metrópole.

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    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Esse artigo recupera algumas das questões discutidas em minha tese de doutorado (ZOREK, 2019). A elaboração da tese contou com o apoio financeiro da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, através da concessão de duas bolsas de pesquisa (processos: 2013/17709-2; 2014/21434-1). A preparação final do artigo e seus últimos estágios de revisão contaram com o apoio financeiro da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, de Portugal, no âmbito dos projetos UIDB/04209/2020 e UIDP/04209/2020.
  • 3
    Além de escrever sobre o tema desde o final dos anos 1920, Anhaia Mello foi prefeito da capital paulista por alguns meses logo depois da Revolução de 1930, também consultor informal de assuntos urbanísticos da prefeitura de Fábio Prado (1934-1938), Secretário de Viação e Obras Públicas do Estado de São Paulo durante o Estado Novo e, mais tarde, um dos fundadores e o primeiro diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (BRESCIANI, 2010BRESCIANI, Maria Stella. Estudo da trajetória profissional do engenheiro-arquiteto Luiz I. R. de Anhaia Mello. In: SALGADO, Ivone; BERTONI, Angelo (orgs.). Da construção do território ao planejamento das cidades: Competências técnicas e saberes profissionais na Europa e nas Américas (1850-1930). São Carlos: RiMa, 2010.; ZOREK, 2017ZOREK, Bruno. Um futuro alternativo para São Paulo: Anhaia Mello e a tese da limitação do crescimento da metrópole. In: Cadernos de História. Belo Horizonte: PUC-MG, v. 18, 2017.).
  • 4
    Paulo Duarte e Caio Prado Jr. ocupavam posições importantes no mundo intelectual paulistano na década de 1950, articulando através de suas revistas os principais pensadores locais e promovendo debates de ordem política, acadêmica e cultural. Sobre o papel dessas revistas para o campo cultural da cidade, ver: Limongi (1987)LIMONGI, Fernando. Marxismo, Nacionalismo e Cultura: Caio Prado Jr. e a Revista Brasiliense. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 2, n. 5, outubro de 1987., Miceli (2001)MICELI, Sergio (org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Ed. Sumaré, 2001. vol. I., Jackson (2004)JACKSON, Luiz Carlos. A sociologia paulista nas revistas especializadas (1940-1965). In: Tempo Social – USP. São Paulo, v. 16, n. 1, junho de 2004. e Catani (2009)CATANI, Afrânio. A revista de cultura Anhembi (1950-62): Um projeto elitista para elevar o nível cultural do Brasil. Maringá: Eduem, 2009.. Sobre como Duarte e Prado Jr. pensavam sobre o futuro de São Paulo, sugiro a leitura do quarto capítulo de minha tese de doutorado (ZOREK, 2019ZOREK, Bruno. O futuro de São Paulo na década de 1950. Tese (Doutorado em História) – IFCH, Unicamp. Campinas, 2019.).
  • 5
    Essa é uma afirmação bastante generalizadora e, evidentemente, simplifica processos e representações sociais que são na realidade bastante mais complexos e exigiriam um tratamento mais pormenorizado. Contudo, tanto por não ser o propósito central deste artigo apresentar uma documentação exaustiva sobre o tema quanto por uma questão de espaço, elementos que sustentam a existência de um otimismo hegemônico aparecerão aqui apenas de maneira ilustrativa. Para quem tiver interesse em uma discussão mais aprofundada sobre o assunto, remeto à minha própria tese de doutorado (ZOREK, 2019ZOREK, Bruno. O futuro de São Paulo na década de 1950. Tese (Doutorado em História) – IFCH, Unicamp. Campinas, 2019.). Outras referências importantes para o tema são os trabalhos de Maria Arminda Arruda (2001)ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. Bauru, São Paulo: Edusc, 2001., Candido Campos (2002)CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade: Urbanismo e modernização em São Paulo. São Paulo: Senac, 2002. e o livro organizado por Nádia Somekh e Candido Campos (2008)SOMEKH, Nádia; CAMPOS, Candido (orgs.). A cidade que não pode parar. Planos urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo: Editora Mackenzie; Mackpesquisa, 2008..
  • 6
    Norbert Elias (1990; 1993)ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990-1993. v. 1-2. e Reinhart Koselleck (2006)KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. chamam a atenção para o crescente controle do tempo social promovido pelos processos de consolidação dos Estados Nacionais modernos. Nesses processos, há uma tendência de estabilização do futuro, que garante uma relativa segurança e previsibilidade para que os agentes sociais possam planejar suas vidas décadas adiante. Para que tal fosse possível, era necessário haver confiança nas instituições, no Estado, na burocracia etc., bem como em suas reproduções temporais – confiança adquirida, conforme Koselleck, através da conquista do monopólio de manipulação do tempo social. Embora evidentemente sem ameaçar o funcionamento das instituições, ao colocar em xeque o futuro oferecido pelo Estado ou pelos governantes para São Paulo, os jornais apontam tanto para a consolidação de lugares sociais suficientemente autônomos que sustentam perspectivas de futuro diferentes das oferecidas pelas elites tradicionais quanto são índices discretos de um processo mais longo de desconfiança em relação às narrativas otimistas sobre o futuro – uma desconfiança que, hoje em dia, chegou a níveis extremos e dramáticos. A literatura sobre o “fim do mundo” que se desenha em nosso horizonte é extensa. Ainda assim, sugiro os trabalhos de Luiz Marques (2015)MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Ed. da Unicamp, 2015. e Rodrigo Turin (2019)TURIN, Rodrigo. Presentismo, neoliberalismo e os fins da história. In: AVILA, Arthur Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo. (Org.). A História (in)disciplinada: teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico. Vitória: Milfontes, 2019..
  • 7
    Aqui, apresento apenas em linhas gerais o futuro imaginado por Prestes Maia e Moses. No segundo capítulo de minha tese de doutorado, examino a questão com mais vagar. Ver: Zorek (2019)ZOREK, Bruno. O futuro de São Paulo na década de 1950. Tese (Doutorado em História) – IFCH, Unicamp. Campinas, 2019..
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    Este também é o argumento de Maria Arminda Arruda, que, em sua análise dos textos de Fernandes produzidos nos anos 1950, destaca as preocupações do sociólogo com os acontecimentos mais recentes e deriva disto as suas perspectivas de futuro: “A ênfase no presente resulta na crença em um futuro promissor identificado, neste caso, com a realidade de uma sociedade de classes aberta e com um regime de participação democrática. A cidade burguesa que emergira nos fins do século XIX atingia, após meio século, genuíno estilo urbano de vida, ligado a um universo valorativo de ordem diversa, respaldado na idéia de progresso inelutável” (ARRUDA, 2001, p. 31ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. Bauru, São Paulo: Edusc, 2001.). Além disso, conforme Walquíria Leão Rego, Fernandes estaria transformando essa perspectiva em uma postura que deveria ser adotada por toda a intelectualidade brasileira: “[...] o imperativo ético político que se colocava para a inteligência era ajudar no empreendimento de trazer o país para a modernidade da cidadania democrática, e assim redefinir os termos em que estava posta anteriormente a questão nacional. Desse modo, o problema da nação somente se resolveria de forma simultânea com a questão democrática. Não se poderia falar em projeto nacional se esse não fosse compreendido como projeto político democrático destinado à realização em todo o território nacional da mais ampla possível justiça distributiva. Tornara-se tarefa urgente dos intelectuais brasileiros compreender e propor de maneira exigente a cidadania democrática como fonte principal de orientação das políticas públicas voltadas para a liquidação de nosso passado de profundas iniqu¨idades sociais” (REGO, 2006, p. 180).
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    Mesmo com essas novas referências, Fernandes entendia que as pesquisas sobre São Paulo estavam apenas começando: “Pouco se sabe ainda sobre as grandes transformações sociais recentes da cidade de São Paulo. Algumas pesquisas revelam certos aspectos dessas transformações. Mas faltam-nos dados positivos a respeito de todas as coisas essenciais na vida de uma metrópole” (FERNANDES, 2008 [1959], p. 269FERNANDES, Florestan. O homem e a cidade-metrópole [1959]. In: FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008.).

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Editado por

Editores Responsáveis
Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2020
  • Aceito
    27 Ago 2021
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