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Paisagens brasileiras do século XIX: cotidiano e desafios dos viajantes naturalistas

19th century Brazilian landscapes: daily life and challenges of naturalist travelers

RESUMO

Os diários de naturalistas em expedições no Brasil, no século XIX, formam um arcabouço para a pesquisa bibliográfica sobre diversas expedições realizadas por várias porções do país. Este estudo buscou, através da leitura dos relatos de viagem, conhecer as paisagens do interior do Brasil no século XIX, além do cotidiano das populações. Os resultados foram agrupados em categorias e indicam semelhanças nas experiências de campo, assim como no captar das diferentes paisagens naturais e antrópicas.

PALAVRAS-CHAVE
Naturalistas; paisagem; século XIX; experiência de campo.

ABSTRACT

The diaries of naturalists in expeditions in Brazil, in the nineteenth century, form a framework for bibliographic research on various expeditions carried out in various parts of the country. This study sought, through the reading of travel reports, to get to know the landscapes of Brazil´s countryside in the 19th century, as well as the daily life of the populations. The results were grouped into categories and indicate similarities in the field experiences, as well as in the capturing of different natural and anthropic landscape.

KEYWORDS
Naturalist; landscape; XIX century; field experience.

Encontrar o Brasil, suas espécies minerais, botânicas, animais e índios estava no imaginário dos naturalistas do século XIX, que na época já travavam conhecimento sobre os trópicos. As paisagens brasileiras eram apresentadas em publicações de viagens e em toda uma gama de histórias que fascinavam a população europeia. Entre os que estiveram em solo brasileiro, no referido período, foram selecionadas as obras de Johann Emanuel Pohl (1782-1834 - austríaco), George Gardner (1812-1849 - escocês), Francis Castelnau (1810-1880 - francês), Louis Van Houtte (1810-1876 - belga) e Auguste Biard (1799-1882 - francês), para a compreensão das paisagens e dos desafios relacionados à experiência de campo e fazer científico.

Com uma missão de reconhecimento e estudos ligados à expedição científica, que compôs parte da comitiva nupcial da arquiduquesa Leopoldina por ocasião de seu casamento com o príncipe dom Pedro I, ao Brasil, Johann Emanuel Pohl, médico, percorreu do litoral ao interior entre os anos de 1817 e 1821.

Outro europeu a empreender uma longa viagem nas terras tropicais do Brasil, entre 1836 e 1841, foi George Gardner, médico e botânico, que, no prefácio do livro sobre a viagem realizada, descreveu que sua mente foi acesa pela grandiosidade das descrições de Humboldt e outros viajantes sobre a magnitude dos cenários e das belezas da América. Era grande seu interesse por botânica, e foram determinantes, para a realização da viagem, o aconselhamento de seu professor de botânica e a pouca quantidade de ingleses que já tinham realizado a expedição, especialmente ao cerne do Brasil.

Representante da França, o naturalista Francis Castelnau chefiou uma missão enviada pelo governo e esteve no Brasil entre 1843 e 1845, quando sua expedição foi em direção à Bolívia. Percorreu um amplo trajeto, o que também incluiu extensa navegação pelo rio Araguaia e a divisa do Brasil com o Paraguai, mas teve a permissão de entrada negada. Ao longo da viagem, recolheu, com muitas dificuldades, exemplares de animais, plantas, rochas e, com muitos temores, inclusive da tripulação, travou vasto contato com indígenas e esforçou-se na descrição das províncias e dos ambientes naturais.

O viajante Louis van Houtte, formado em estudos comerciais, trabalhou no ministério de finanças, em Bruxelas, e parte do seu tempo livre era dedicada ao estudo das flores do Jardim Botânico da cidade. Houtte foi proprietário de uma loja de flores e sementes. Em 1833, fundou uma revista de horticultura. Patrocinado por um rico colecionador, o viajante belga partiu para o Brasil (1834) com objetivo de coletar orquídeas e outras espécies vegetais que foram enviadas para a Europa. Depois de permanecer por quatro meses no Rio de Janeiro, Louis van Houtte seguiu para Minas Gerais, Goiás, São Paulo e Paraná. Em 1837, quando regressou para a Europa, foi nomeado diretor do Jardim Botânico de Bruxelas. Dez anos depois, Houtte publicou “Courte excursion dans les montagnes des Orgues et dans les forêts vierges au Brésil” (1847).

Auguste François Biard, pintor, gravador e naturalista francês, estudou na École des Beaux-Arts, em Lyon. Em 1824, mudou-se para Paris. Viajou para Egito, Grécia e Síria. Em 1858, desembarcou no Rio de Janeiro, aos 60 anos de idade. Depois de excursionar pela África e pelo Oriente, Biard decidiu aventurar-se pela América do Sul. Por recomendação de Taunay, cônsul francês no Brasil, Biard foi recebido pelo imperador dom Pedro II, hospedando-se no Paço Imperial. Permaneceu dois anos no Brasil, fez excursões por Amazonas, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Em 1862, publicou Deux années au Brèsil com gravuras de Edouard Riou a partir dos esboços do próprio Biard.

Com a abertura dos portos a partir de 1808 e a vinda da Família Real, o Brasil, anteriormente fechado às expedições científicas e com pouca ou nenhuma ligação entre as províncias, era um campo novo de pesquisas em comparação com a América. O período foi assinalado por duras críticas dos naturalistas à forma de gestão e tratamento destinado ao estrangeiro, conforme relato de Castelnau (2000CASTELNAU, F. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000., p. 144), que cita a existência na Biblioteca do Rio de Janeiro de um documento “assaz curioso, que nos dá a medida do espírito de ignorância que presidia ao governo deste belo país; é a ordem para prender e mandar como prisioneiro a Europa o Sr. Barão de Humboldt, caso viesse ele a penetrar em território brasileiro”.

Alexander von Humboldt, sempre lembrado pelo pioneirismo, em suas viagens e publicações, conquistou um grande público e elevou os conhecimentos científicos, “foi o primeiro a explicar as funções fundamentais da floresta para o ecossistema e o clima: a capacidade das árvores de armazenar água e enriquecer a atmosfera com umidade, sua proteção do solo e seu efeito resfriador” (WULF, 2016WULF, A. A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt. São Paulo: Planeta, 2016., p. 94). Sua relevância como fonte de inspiração está presente nos naturalistas desde a descrição da natureza nas inter-relações estabelecidas aos elementos e gosto pela paisagem com a formação de um quadro repleto de significados.

As publicações de Humboldt e seu próprio estilo de vida marcaram a história e acabaram por idealizar e orientar o que seria encontrado nas expedições, abrindo um panorama de busca por descobertas e caminhos ainda não trilhados. Assim, o Brasil constituía um campo ainda não explorado que poderia adensar as descobertas e fornecer muitas novidades aos naturalistas.

O presente trabalho tem como objetivo investigar os atributos das paisagens e as experiências in loco dos viajantes naturalistas, além de estabelecer as semelhanças e o que há de particular em cada comitiva, tomando como referência fragmentos textuais dos relatos de viagem publicados.

CONTEXTO DAS EXPEDIÇÕES E REFERENCIAL TEÓRICO

Além do interesse científico de formar coleções para museus e publicação de livros, havia as possibilidades de estabelecer rotas comerciais e descobertas de minerais. Para tanto, a Europa pós-napoleônica, que vivia um período de grande ebulição cultural, ansiava por cultura, ciência e riquezas. Uma das formas de conseguir o prestígio, a fama e o reconhecimento era financiar viagens e empreitadas científicas, nas quais a expedição de Humboldt constitui exemplar de excepcional sucesso (ANTUNES; MOREIRA; MASSARANI, 2015ANTUNES, A. P.; MOREIRA I. C.; MASSARANI, L. M. O descanso dos naturalistas: uma análise de cenas na iconografia oitocentista. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 22, n. 3, jul.-set 2015, p. 1051-1066. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/j54BQnKB3Jdxp5mRpLkx35z/?lang=pt. Acesso em: 17 fev. 2022.
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).

Pohl, Gardner, Castelnau, Houtte e Biard são exemplos de continuação das práticas expedicionárias e científicas financiadas pelas nações europeias. Obtiveram também amplo apoio para viajar pelo Brasil e fazer conhecer toda a riqueza da imensidão de suas terras. O que não quer dizer que não passaram adversidades financeiras e até fome em território nacional devido à “dificuldade para arranjar gêneros alimentícios” (POHL, 1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 313), especialmente em pequenas localidades em que nada podia ser obtido, pois “não havia produção agrícola ou pecuária e os habitantes viviam da caça e coleta de frutos silvestres” (CASTELNAU, 2000CASTELNAU, F. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000., p. 203).

A solidariedade e a acolhida por diversas pessoas, seja em suas casas para repouso e abrigo da comitiva seja na distribuição de alimentos, quando havia, são muito citadas como bons momentos de um vínculo inesperado, uma vez que o morador nada receberia em troca. Em contraste, há a falta de apoio de autoridades, como o que sobreveio e muito ofendeu Gardner na passagem por Diamantina e Ouro Preto. Já no final da expedição, tornou-se necessário a ele solicitar dinheiro emprestado de um conterrâneo e sucedeu que

Contando-lhe então o escopo da minha viagem, dei-lhe candidamente a conhecer a desagradável situação em que me encontrava por falta de dinheiro e pedi-lhe emprestadas vinte e cinco libras esterlinas, que pagaria mediante ordem de meus agentes no Rio. Com isso, disse-lhe eu, faria um favor a mim e àqueles sob cujo patrocínio estava viajando. [...] dizendo-me que lhe pesava nada poder fazer por mim; [...] “Em todo caso”, concluiu ele, o “médico de lá é patrício seu, um escocês, que talvez esteja disposto a valer-lhe”. Com este parecer virou-me as costas, sem se despedir, e retirou-se da sala.

Bem se pode imaginar quanto me senti ofendido com este tratamento incivil. (GARDNER, 1942GARDNER, G. Viagens no Brasil: principalmente nas províncias do norte nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942., p. 404).

Mesmo com todos os desajustes, não há alusão a arrependimentos ou tentativa de desistir. O objetivo a que se alvitrava era maior e, mesmo com o cansaço ou a falta de recursos, bastava a descoberta de uma planta ou dormir em uma cama para acalentar os maus ânimos. Com os viajantes, o objetivo era o mesmo, adentrar o interior do Brasil e explorar lugares ainda não relatados, formando grandes coleções enviadas ainda durante o trajeto à sua terra natal.

O interesse por ciências naturais, em especial botânica, zoologia e mineração, era requisito essencial para estabelecer o que deveria ser feito em registro e preservado. Para isso, a formação em medicina muito amparava na compreensão dos processos estruturais da vida. Além de medicina, era necessário entender sobre as formações minerais, o regime de chuvas, as particularidades do solo e da sociedade. Conhecimentos que poderiam ser obtidos por literatura ou no contato de campo com a comitiva que guiava e ensinava sobre a natureza do sertão. O conhecimento médico muito auxiliou Gardner e Pohl na obtenção da simpatia da população que foi atendida por eles e atribuía as curas e melhoras como milagrosas, do mesmo modo para o tratamento de sua própria saúde, pois diversas vezes estiveram doentes, e a única fonte de medicamentos era a que carregavam na bagagem.

Apesar da formação e da preparação para um longo deslocamento, que consistia em contratar tropeiros, arrumar caixas, animais de carga e obter cartas de recomendação e autorização para transitar no território, contar com o inesperado foi a regra. Mesmo com as tentativas de prever e preparar-se para a jornada, houve toda sorte de infortúnios, como roubos, moléstias, erros de caminho, falta de alimentos e equipamentos.

Para construir esta pesquisa, buscou-se conhecer quem era o naturalista e a importância do trabalho realizado. De acordo com Padoan (2015)PADOAN, L. L. F. A Educação Ambiental em dois museus de ciências na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Revista Eletrônica em Gestão, Educação e Tecnologia Ambiental, v. 19, n. 3, 2015, p. 629-638., pode-se caracterizar o viajante naturalista como aquele que trabalhava/pesquisava/estudava durante o período de deslocamento unicamente com estudos sobre a terra e sua dinâmica, dedicando-se aos estudos de história natural. Assim, o naturalista é dotado de grande empenho e interesses científicos, aliados à vontade de construir um arcabouço de saberes, sem limitar-se apenas à catalogação.

As atividades científicas do século XIX não poderiam limitar-se a descrições e apreciação dos fenômenos naturais sem buscar explicações, causas e razões para a existência de tal acontecimento e travar formas para alcançar a essência do conhecimento (FREITAS, 2004FREITAS, I. A. A geografia dos naturalistas-geógrafos no século das luzes. Terra Brasilis, Rio de Janeiro, n. 6, 2004, p. 107-150. Disponível em: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/376. Acesso em: 5 jan. 2022.
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). O fazer científico e a certeza do reconhecimento posterior, aliados à primazia de como captar um mundo novo, no qual tudo era diferente e a todo momento a diversidade abundava, são o arcabouço dos relatos.

Uma possível angústia do naturalista, conforme descreve Freitas (2004FREITAS, I. A. A geografia dos naturalistas-geógrafos no século das luzes. Terra Brasilis, Rio de Janeiro, n. 6, 2004, p. 107-150. Disponível em: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/376. Acesso em: 5 jan. 2022.
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, p. 17), levanta uma importante questão, pois “era necessário encaixar cada elemento da natureza no formato de sua folha de papel, sem hesitar em distorcer a planta ou o animal para fazê-los entrar no quadro escolhido (e muito mais que no simples quadro da folha, é no quadro mental do Ocidente que se trata de fazê-los entrar)”.

O que retratar, o que deixar de citar? Como escolher os elementos? Quais não são dignos de relato? Tais dúvidas são inerentes à produção textual e iconográfica, pois é impossível captar toda a paisagem, assim como descrever aquilo que não é conhecido ou familiar.

Sobre a paisagem, Gomes (2017GOMES, P. C. C. Quadros geográficos: uma forma de ver, uma forma de pensar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017., p. 134) elucida que “a ideia de paisagem nos ensina a olhar de outra forma, nos ensina a ver as coisas, conteúdos, valores, onde parecia antes nada haver de admirável”. A valorização das particularidades e o reconhecimento da instabilidade da natureza e do papel determinante do tempo na construção das paisagens nos instruem a olhar tais porções mínimas de cena e compor um quadro geográfico. Assim, é a combinação de elementos físicos com socioculturais que dá a dinâmica das paisagens.

Com os relatos, temos a perspectiva do europeu sobre as paisagens que desponta muito sobre como direta ou indiretamente impuseram sua presença aos territórios. O deixar de relatar também é importante, pois pode apontar cansaço, doença ou até mesmo o desconhecimento do valor material e simbólico.

A perspectiva naturalista nos permitiu, antes de tudo, descobrir a diversidade das paisagens da Terra, preparando o terreno para o estabelecimento de correlações entre uma série de fatos que não aparecem espontaneamente associados. Enfim, a perspectiva naturalista clamou pela transformação de nossa disciplina em uma ciência explicativa. (FREITAS, 2004FREITAS, I. A. A geografia dos naturalistas-geógrafos no século das luzes. Terra Brasilis, Rio de Janeiro, n. 6, 2004, p. 107-150. Disponível em: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/376. Acesso em: 5 jan. 2022.
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, p. 20).

Junto aos relatos, as imagens são de grande valor para visualizar e entender o captar da paisagem. Nem todas as expedições contavam com tal processo, mas as imagens de tal período em conjunto com as descrições formam um arcabouço pictórico e científico que compõe um mosaico de saberes. Um exemplo é a obra La moustiquaire, de Auguste François Biard, em que é possível visualizar o esforço do naturalista para trabalhar:

Quando voltava a casa, preparava os animais que matara: aves, mamíferos, cobras. No tocante aos insetos, era necessário ter caixas para guardá-los, e eu não as trouxera por esquecimento. Felizmente não eram raras as caixas de charutos; cortei umas tirinhas de cacto, preguei-as ao fundo dessas caixas e ali coloquei minhas coleções de insetos. (BIARD, 2004BIARD, F. A. Dois anos no Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. (Edições do Senado Federal, v. 13)., p. 68).

Cansado dos terríveis insetos, o viajante constrói uma tenda em forma de mosquiteiro para realizar seu trabalho sem tantos incômodos. Essa cena é rara, pois quase sempre são realçadas as paisagens com destaque para o relevo, os animais e, principalmente, as plantas. A experiência humana fica em segundo plano, pois era necessário dar legitimidade científica ao trabalho.

Na manhã seguinte armei um mosquiteiro com quatro paus e meti-me debaixo dele como o fazia no Rio na minha cama do palácio. Era o único jeito a dar. Tinha, entretanto, pequeno inconveniente: o pano do mosquiteiro era verde e tudo quanto eu pintava saía dessa cor. Contudo, sentado nessa espécie de barraca, estava protegido contra as picadas, via e ouvia, com certo ar de desafio, milhares de maruins investirem contra meu fraco abrigo e sitiá-lo em vão. (BIARD, 2004BIARD, F. A. Dois anos no Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. (Edições do Senado Federal, v. 13)., p. 106.)

Figura 1
La moustiquaire. Fonte: Biard (1862BIARD, F. A. Deux années au Brèsil. Ouvrage illustré de 180 vignettes dessinées par E. Riou d’aprés les croquis de M. Biard. Paris: Librairie de L. Hachette et C, 1862. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/227401. Acesso em: 17 jan. 2023.
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, p. 261)

Todas as contribuições possuem proeminência para as ciências especialmente por se tratar de um período histórico de grandes descobertas, expansão das ciências e divisão do saber, a exemplo da geografia, que se inicia com as grandes descobertas e interesse por conhecimento das diversas paisagens da terra. Antunes, Moreira e Massarani (2015ANTUNES, A. P.; MOREIRA I. C.; MASSARANI, L. M. O descanso dos naturalistas: uma análise de cenas na iconografia oitocentista. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 22, n. 3, jul.-set 2015, p. 1051-1066. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/j54BQnKB3Jdxp5mRpLkx35z/?lang=pt. Acesso em: 17 fev. 2022.
https://www.scielo.br/j/hcsm/a/j54BQnKB3...
, p. 1.053) asseguram que,

Embora seja difícil medir as proporções de observação e imaginação que os viajantes colocaram em seus relatos, é impossível negar a importância de seu legado científico e iconográfico. Os livros de viagem tiveram um papel importante na atração de jovens para a atividade científica e representaram um verdadeiro domínio literário de divulgação científica.

Seja com imagens ou descrições, muitas das bases de investigação dos saberes geográficos e históricos foram construídas em campo pelos naturalistas, que, em sua época, com a formação existente, buscaram ultrapassar as barreiras físicas, conhecer e fazer conhecer as diversas paisagens do planeta.

MATERIAL E MÉTODOS

Para a composição do artigo, a metodologia teve como base as propostas de Reis Júnior (2007)REIS JÚNIOR, D. F. C. Cinquenta chaves. O físico pelo viés sistêmico, o humano nas mesmas vestes... e uma ilustração doméstica: o molde (neo)positivista examinado em textos de Antonio Christofoletti. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007., que, para a análise de literatura de viagens, orienta confrontar as informações do texto com as concepções do autor e as pesquisas sobre o contexto científico da época. Na descrição metodológica, são seguidas as etapas: leitura geral para seleção de fragmentos e leitura detida para levantamento de fragmentos de interesse. A proposta metodológica de Reis Júnior (2007)REIS JÚNIOR, D. F. C. Cinquenta chaves. O físico pelo viés sistêmico, o humano nas mesmas vestes... e uma ilustração doméstica: o molde (neo)positivista examinado em textos de Antonio Christofoletti. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. ainda indica a criação de quadros de leitura nos quais seja expresso o texto selecionado e a referida análise.

Para Gomes (2017)GOMES, P. C. C. Quadros geográficos: uma forma de ver, uma forma de pensar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017., na análise de um texto, uma das variáveis é a sua capacidade de produção de imagens na mente do leitor. Trata-se da ideia de quadro geográfico, que considera o texto como dispositivo de construção da imagem, e, a partir da imagem, tem-se a formação da paisagem via reconhecimento de suas variáveis. Assim a seleção de fragmentos textuais teve como base os quadros construídos via descrição dos naturalistas.

Após a leitura, foi possível organizar um quadro com as principais referências das viagens, no qual constam s seguintes categorias: contato com a população, hospitalidade, doenças e considerações sobre a viagem. Na etapa de levantamento de fragmentos de interesse e formação de quadros de leitura, o resultado foi um grande número de fragmentos textuais relacionados às temáticas acima citadas, assim, optou-se por agrupar em categorias. Devido ao grande número de referência em cada uma das categorias, foram selecionados trechos pontuais que representassem amplamente a realidade vivida.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A paisagem natural, foco da experiência em campo dos naturalistas, constitui a base para relatos associados que possibilitam a compreensão da gênese dos estudos das paisagens e dos desafios, das possibilidades e do reconhecimento da grandiosidade da natureza. A primeira observação ao adentrar no Brasil é o Rio de Janeiro, com sua exuberante paisagem natural, a exemplo do que é descrito por Francis Castelnau por via marítima: “Enquanto aguardávamos a permissão para saltar em terra, estivemos a admirar a posição feérica da grande capital, encaixada entre montanhas de forma extravagante, e em parte ainda cobertas de matas, por entre as quais apareciam de todos os lados magníficas plantações” (CASTELNAU, 2000CASTELNAU, F. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000., p. 20).

Pohl, no início da expedição, demonstrava grande admiração pela flora e pela fauna, mas com persistentes críticas à escravidão, à indolência, à falta de valores morais e à pobreza do país. Enfrentou muitas adversidades, como chuvas torrenciais e altas temperaturas, somadas à dificuldade de conseguir alimentos e repouso adequado, a que ele atribui os vários problemas de saúde ao longo da expedição.

A experiência naturalista, à medida que existe o contato com as diversas paisagens, enriquece e possibilita entender a organização dos sistemas, o que pode ser verificado nos escritos de Gardner (1942GARDNER, G. Viagens no Brasil: principalmente nas províncias do norte nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942., p. 34): “Nos climas temperados as florestas naturais são compostas na maior parte de árvores que crescem gregariamente. Nos climas tropicais é raro verem-se duas ou três árvores da mesma espécie crescendo juntas, tão grande é a variedade de espécies”. É no contato com o ambiente e as populações que desenvolve uma rica experiência para além da pesquisa científica, com possibilidades de interações e construção de saberes acadêmicos, físicos e humanos.

A EXPERIÊNCIA DE CAMPO

O viajante belga Louis Houtte deixou registrado como “se equipar e viajar nesses países não seria inútil, tanto mais que não sei se qualquer viajante se dignou a entrar nesses detalhes, talvez fúteis sob certas circunstâncias” (HOUTTE, 1847, p. 284 - tradução nossa). Houtte considerava algumas recomendações de extrema importância para a vida e a segurança dos viajantes que, por amor à ciência ou por necessidade, se embrenhavam na floresta tropical.

Enquanto esteve no Rio de Janeiro, Louis Houtte, coletou espécies botânicas na serra do Corcovado, na Tijuca e nas proximidades de Teresópolis. Alugou os serviços de domingo de um jovem negro forte para auxiliar no trabalho de campo. Acompanhava a comitiva um cão pastor. A bagagem consistia em uma rede e um cobertor de couro, “caixas e redes para capturar insetos, isso para o acampamento e o trabalho. Quanto à comida não era de grande importância, carne seca com aspecto de uma tora grossa” (HOUTTE, 1847HOUTTE, L. V. Courte Excursion dans les Montagnes des Orgues et dans les forêts vierges au Brésil. In: LEMAIRE, Cartles; VAN HOUTTE, Louis (Org.). Flore des serres et des jardins de l’Europe, v. 4, Oct. 1848., p. 282 - tradução nossa). Louis Houtte levou para a expedição “excelente rifle de cano duplo”, uma espada curta e larga, um par de pistolas, chumbo e balas em quantidade e, além disso, aguardente feita de cana-de-açúcar, de sabor “bastante desagradável”.

Houtte inspirou-se em George Gardner para narrar sua viagem ao Brasil, quando publicou “Courte excursion dans les montagnes des Orgues et dans les forêts vierges au Brésil” (1847). Provavelmente ele não teria publicado a narrativa de sua jornada depois de dez anos. A recente publicação da viagem de Gardner “reviveu as minhas memórias de maneira mais enérgica” (HOUTTE, 1847HOUTTE, L. V. Courte Excursion dans les Montagnes des Orgues et dans les forêts vierges au Brésil. In: LEMAIRE, Cartles; VAN HOUTTE, Louis (Org.). Flore des serres et des jardins de l’Europe, v. 4, Oct. 1848., p. 282 - tradução nossa).

Louis Houtte relata que viajou pelos mesmos lugares que Gardner, “segui o mesmo caminho”. Então “eu vi as mesmas coisas que esse viajante, porém, algumas reminiscências me escapam daquilo que ele diz e do que ele experimentou, espero ser perdoado por isso”. Ainda sobre o livro de viagem de Gardner, o viajante belga esperava ser perdoado “por me servir, às vezes, de suas próprias lembranças, para emprestar até mesmo alguns fragmentos de sua narrativa relacionada apenas com a vegetação desses países” (HOUTTE, 1847HOUTTE, L. V. Courte Excursion dans les Montagnes des Orgues et dans les forêts vierges au Brésil. In: LEMAIRE, Cartles; VAN HOUTTE, Louis (Org.). Flore des serres et des jardins de l’Europe, v. 4, Oct. 1848., p. 284 - tradução nossa).

CONTATO COM A POPULAÇÃO E HOSPITALIDADE

Quanto maior a distância percorrida do litoral e da capital, maior era a imersão em um cenário de paisagens marcadas por imensas formações vegetais, domínio do relevo acidentado e dos elementos naturais os quais a população não conseguia vencer, como os insetos. Todo esse cenário, acrescido ao isolamento das comunidades, cria um ambiente não favorável aos viajantes, por isso era preciso contar com a solidariedade e aprender a conviver com as diferenças.

Tal ideia encontra parâmetros na descrição de Pohl (1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 83), em Barbacena-MG, que salienta a alegria de ter espaço para ordenar suas coleções, momento raro, pois quase sempre tinha abrigos improvisados, dormia em rede e não tinha móveis nos aposentos. Entretanto afirma que “minha satisfação foi perturbada por uma multidão de espectadores, os quais, da manhã até a noite, observavam por curiosidade o meu trabalho, uns pela janela, outros dentro do quarto”. Com certeza um grande espetáculo para as populações das regiões distantes do litoral brasileiros e não acostumadas com a presença e os hábitos dos estrangeiros.

Trata-se de um choque cultural, de um estranhar mútuo e de não buscar semelhanças nos comportamentos e sim caracterizar o outro como diferente e estranho à paisagem. Outro viajante também ilustra tais situações. Embora em local e época diferentes, as situações se repetem, tudo causava curiosidade e espanto, “todos os homens fugiram quando nos viram aproximar, ficando apenas algumas crianças, e uma escrava velha, surda-muda, que nos arranjou apesar disso excelentes laranjas” (CASTELNAU, 2000CASTELNAU, F. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000., p. 116).

Não faltaram críticas aos costumes: “depois dos trabalhos desse dia necessitávamos de total repouso e de restaurar-nos com o sono; disso nos privaram os negros, que chegaram por volta da meia-noite, com o luar, para se divertirem bebendo e cantando” (POHL, 1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 78). As relações de trabalho são as mais criticadas, em especial as revoltas por parte da comitiva: “a minha volta de Sabará, percebi que o espírito de insubordinação se havia apoderado de alguns homens pertencentes à comitiva. Não tardou que estalasse uma resistência aberta as minhas ordens” (CASTELNAU, 2000CASTELNAU, F. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000., p. 109).

Eu devia também conseguir novos criados, pois, com os que tivera até agora, que me enganavam em todas as ocasiões e, por má índole ou preguiça, não cumpriam as minhas ordens e a toda hora me causavam aborrecimentos, eu não me atrevia a iniciar minha viagem pelos distritos do norte de Goiás, através de regiões desertas e insalubres. (POHL, 1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 121).

Não havendo na cidade nenhum ferrador, tive de mandar um soldado ao Arraial dos Carmos à procura de um; mas, como esse homem, em vez de desincumbir-se do trato feito, achou melhor furtar uma das mulas, enviei pessoas em seu encalço e mandei dar-lhe uma pequena sova. (CASTELNAU, 2000CASTELNAU, F. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000., p. 224).

Outra vertente de contato com o povo brasileiro é pela solidariedade demonstrada ao hospedar o estrangeiro em sua casa ou propriedade, sua amabilidade e doação de tudo quanto era possível para tornar a estadia o mais agradável possível. Com grande surpresa, os naturalistas recebiam tal complacência, os elogios à hospitalidade com certeza são superiores às críticas relacionadas a alimentação e moradias rudimentares.

O costume interiorano, a intimidade concedida e o compartilhar do pouco que havia despertavam grandes emoções. Diversas observações colaboram para sacramentar que “a nossa recepção, aqui, foi muito acolhedora e cordial. Deram-nos as boas-vindas com muita amabilidade e generosamente nos ofereceram tudo o que pudesse tornar agradável a nossa estada” (POHL, 1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 197). Confirmam tal afirmação as seguintes passagens:

Tudo estava pronto para a partida; recebemos dessa honrada gente as mais tocantes provas de amizade e estima. Todos tinham lágrimas nos olhos e um por um apertaram-nos cordialmente as mãos. Também nós não nos despedimos sem saudades dessas criaturas bondosas. (POHL, 1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 267).

Os brasileiros são particularmente atenciosos com qualquer estrangeiro que lhes é recomendado; e, durante todas as minhas peregrinações, poucas vezes fui de um lugar para o outro sem cartas, nem me lembra uma só vez que não fosse cortesmente recebido por aqueles a quem assim me apresentei. (GARDNER, 1942GARDNER, G. Viagens no Brasil: principalmente nas províncias do norte nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942., p. 94).

Passamos o mais alegre dia de Natal deste mundo; se o calor abafante nos impediu que se acendesse a tradicional fogueira, o opíparo jantar, a numerosa sociedade e a excelente música, fizeram-nos esquecer de que estávamos entre os Trópicos. (CASTELNAU, 2000CASTELNAU, F. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000., p. 104).

Embora nem tudo seja positivo, são destacadas ocasiões de conflito que, ao considerar a frequência, pode-se afirmar serem pontuais. Mas deve-se ponderar que todos, em algum momento, estiveram sujeitos a desafios:

Passamos a noite em um rancho, entre duas das casas; e, ao nos levantarmos no outro dia, Mr. Walker deu pela falta de algumas de suas roupas; e foi sorte que não faltassem outras coisas, porque depois soubemos que o lugar nada mais era que um covil de ladrões. (GARDNER, 1942GARDNER, G. Viagens no Brasil: principalmente nas províncias do norte nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942., p. 319).

Passamos a noite numa casa suja, em completo desmantelo, e sem um só instante de repouso, por causa dos carrapatos de que estávamos cheios. (CASTELNAU, 2000CASTELNAU, F. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000., p. 104).

Um mendigo, com um grande porrete na mão e outro debaixo do braço, invadiu meu quarto e pediu com estupidez uma esmola, ameaçando matar meu macaco em caso de recusa. (POHL, 1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 91).

A visão do estrangeiro branco, em uma comitiva, era algo que quebrava a monotonia e a dureza do cotidiano. A população local, constituída por fazendeiros, mineradores e agentes oficiais do governo e da Igreja Católica, pouco acrescentava informações sobre as paisagens, além do conviver com os rigores da natureza, como chuvas e secas.

O trabalho do naturalista muitas vezes era interrompido por graves moléstias, várias delas provocadas pela amplitude térmica, ou calor excessivo, além do trajeto inevitável por paisagens alagadas, pântanos e florestas densas que constituíam ambientes ideais para a proliferação de moléstias tropicais.

AS DOENÇAS: PADECER NOS TRÓPICOS

No Brasil, no século XIX, marcado pelo isolamento das províncias e um grande vazio demográfico, as comitivas estavam entregues à própria sorte. Podiam valer-se, com garantia, apenas dos recursos próprios que carregavam, já que as pessoas dos locais pouco conheciam ou acreditavam na medicina, entregando-se a curandeiros, rezas e simpatias. Mesmo com precauções, é grande o penar:

A tal ponto se agravara o meu estado, que imediatamente tive de ir para a cama. Altíssima febre intermitente e reumatismo atacaram tanto a mim como aos meus criados durante semanas. Foi este o incômodo resultado de nossa excursão, que foi inútil para quaisquer dos objetivos de nossos esforços. (POHL, 1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 166).

Afligiram-me dores violentas em todo o corpo, dormência nos pés, dor de cabeça e mal-estar; sentia-me tão fraco e doente que não podia apear sozinho, mas tive de ser retirado do cavalo pelos meus criados. (POHL, 1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976. p. 183).

Um dia depois da referida tempestade, senti-me indisposto e febril e dois dias depois sofri um forte ataque de disenteria, que é moléstia frequente nesta estação, e causada, sem dúvida, pelas súbitas mudanças de temperatura. (GARDNER, 1942GARDNER, G. Viagens no Brasil: principalmente nas províncias do norte nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942., p. 106).

Pohl, segundo seu relato, parece ser o mais atingido. Mesmo com todos os preparativos e a formação médica, muito padeceu nos anos em que esteve no Brasil. Ao final da expedição, deixa um relato aos futuros viajantes, quase que um alerta e um desabafo sobre as condições do país:

Quem, acompanhando este diário, tiver em mente as condições que, quase todo dia e a cada hora, tem de enfrentar o naturalista naquele país - condições das quais na Europa nem ideia se faz - não se admirará de que, em constante luta com os elementos que passam de um extremo a outro; com animais indóceis que têm de ser utilizados nos transportes; com a falta de toda sorte de medicamentos que, nas terras civilizadas, se encontram em toda parte; com os maus caminhos, a preguiça e ignorância do povo [...] o espírito e o corpo dos viajantes, às vezes, se prostrem e de modo algum possa render tanto quanto na Europa. (POHL, 1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 416).

Grandes foram os males que o atingiram, tanto que sua publicação é dividida em duas partes, com um aviso de que, mesmo após voltar à Europa, uma prolongada enfermidade seguida pelo seu desaparecimento impediu que ele pessoalmente concluísse a edição da obra. Ficaram a cargo das autoridades do imperador dom Pedro I as ordens para findar o trabalho. Quando embarcou de volta à Áustria, já estava muito doente: “recebi a permissão, por mim solicitada a Sua Majestade Imperial, de regressar à Europa, em vista do meu debilitado estado de saúde” (POHL, 1976POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976., p. 416). Em buscas bibliográficas em bases de dados, apenas é citada sua morte em 1834, na cidade de Viena.

AS ADVERSIDADES COTIDIANAS E AS PAISAGENS NATURAIS DO BRASIL

Caminhar, repousar, conviver com a natureza e lutar contra o tempo inclemente - além de relatar tudo isso, mesmo em condições de doenças e falta de local adequado às anotações, o andar do naturalista era uma busca e uma superação de adversidades previstas e acontecimentos tempestuosos. Com isso, as considerações de viagens são intrinsecamente relacionadas às paisagens naturais. Nas longínquas terras, além do local habitual, há o desenvolver de um novo olhar para a amplitude do caminho e das possibilidades científicas. Assim, a ciência é um fazer solitário, com reflexões no cotidiano e mediadas pelo pensamento de um tempo histórico. Lançar-se ao desconhecido é uma grande aventura que traz o incógnito e exige motivações, como a ciência, as possibilidades de imortalizar o nome na história ou as promessas de riquezas. Para tal época os empreendimentos naturalistas representam um custo físico, material e um risco de grandes proporções. O Quadro 1 revela algumas das condições a que os naturalistas estavam sujeitos e as quais narraram no Brasil do século XIX.

Quadro 1
Considerações sobre as paisagens e os desafios no Brasil do século XIX. Elaboração dos autores

A paisagem natural por vezes é um obstáculo no caminho, por outras, uma recompensa aos pesados trabalhos e dura jornada. Para Sallas (2013SALLAS, A. L. F. Ciência do homem e sentimento da natureza: viajantes alemães no Brasil do século XIX. Curitiba: UFPR, 2013., p. 31), na construção de conhecimento dos viajantes, há gestos que marcam a forma de apreensão dos objetos, assim “práticas e representações estavam impregnadas de ideias que regulavam os seus gestos, orientavam o seu olhar, sua maneira de escrever, de narrar, de desenhar, enfim, de tornar ‘legível’ a sua experiência da viagem”.

Conceitua-se que o olhar dos viajantes “dirigiu-se para a paisagem, procurando apreendê-la, num primeiro nível, por sua topografia, para em seguida cartografá-la como espaço conhecido e reconhecido” (SALLAS, 2013SALLAS, A. L. F. Ciência do homem e sentimento da natureza: viajantes alemães no Brasil do século XIX. Curitiba: UFPR, 2013., p. 103). Apresenta-se então instituída a relação entre o campo de estudos - a viagem - e a descrição da paisagem natural que é marcada por acontecimentos do cotidiano e conhecimentos preestabelecidos.

O captar dos elementos para a composição do quadro local permite conhecer as paisagens e a interferência antrópica. No primeiro fragmento textual do Quadro 1, Pohl descreve um relevo de planície com canaviais e uma cerca constituída pela vegetação. Temos o uso e a ocupação do solo de uma parte do Rio de Janeiro no século XIX e a adaptação dos camponeses, os quais, talvez por falta de arame, para limitar as propriedades e plantações, utilizavam a vegetação. Trata-se de uma paisagem alterada e da sensibilidade do viajante, que, mesmo frente à dificuldade, escolhe relatar a importante passagem do natural à antropização.

Observar e descrever são atividades fundamentais nas quais são impressas as nossas categorias. Assim “o conhecimento é essa atividade complexa que se constrói pela observação do mundo guiado por categorias que são elas mesmas fundadas na experiência do mundo” (GOMES, 2017GOMES, P. C. C. Quadros geográficos: uma forma de ver, uma forma de pensar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017., p. 33). Tratando da falta de alimentos, Castelnau extrapola a simples descrição e insere o termo “grés” (rocha sedimentar), fruto de conhecimentos de ciências naturais. Percebe-se nesse fragmento textual um encontro entre a análise da paisagem, a descrição das angústias vivenciadas em campo e o desejo de construção científica que era o grande objetivo dos naturalistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um grande empreendimento, assim são as proezas dos naturalistas. Chegaram via Rio de Janeiro dispostos a conhecer bem mais do que a costa marítima já povoada por estrangeiros. O desejo de ir rumo ao inexplorado os levou às paisagens do far West. Apesar de rotas diferentes, todos tiveram contato e foram dependentes da solidariedade dos camponeses e das autoridades locais, como padres e juízes, que os abrigaram e por vezes forneciam alimentos e guias.

Devido ao amplo número de obstáculos mencionados, pode-se concluir que, mesmo com todos os preparativos, as paisagens naturais constituíram adversidades para a qual nem os tropeiros mais experientes estavam habilitados. Assim expõe-se a grandiosidade do território que com suas múltiplas formações submete os seres aos seus reveses com a natureza indomável.

No contato com os habitantes, foram surpreendidos positivamente pelo apoio e pela solidariedade, que foi negada pelo conterrâneo, como ocorreu com Gardner, e negativamente pela insubordinação dos criados, que não compartilhavam com a mesma ambição científica ou por uma população carente de recursos materiais e esperanças com o fim do período de grandes extrações minerais.

Um povo entregue à própria sorte, em um Estado que pouco ou nada fornecia de garantias, até mesmo em relação à saúde, entregue a rezas, ervas e curandeiros que pouco proviam de explicações ou curas. Nesse cenário, o naturalista percebe um cotidiano tão diferente da Europa em que é necessário adaptar-se a cada local, deixando as regras e o modo europeu para participar ativamente da vida dos sertanejos, compartilhando com eles os hábitos alimentares, o cansaço de uma vida dura e as dificuldades cotidianas de um território em relativo isolamento.

Assim, a experiência da viagem é marcante e cheia de simbolismo do que muito se fez para além das coleções minerais e botânicas, do desbravar literalmente de matas, na convivência dolorosa com os insetos, fome e doenças. Portanto, compreendemos que a ciência se faz para além dos laboratórios, por isso são necessários o campo e a vivência da natureza.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
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