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Sinais da historicidade revelados em fragmentos de memória

Signs of historicity revealed in fragments of memory

RESUMO

Este artigo tem como proposição a apresentação reflexiva de narrativas de três interlocutoras que possibilitam descortinar fragmentos das relações sociais estabelecidas no ambiente familiar e comunitário em Itapina, distrito de Colatina, Espírito Santo. O lugar, constituído no final do século XIX, se tornou um dos polos comerciais de café mais importantes do estado no primeiro quartel do século XX, com o estabelecimento e o fortalecimento de uma elite econômica, social e cultural no contexto do Noroeste, e perdeu seu vigor econômico nos anos de 1960 com a erradicação do café. A partir de então a grande maioria dos moradores migrou para a sede do município ou para outras regiões do país. O texto é ancorado nas perspectivas teórico-metodológicas da memória e da história oral.

PALAVRAS - CHAVE
História oral; Itapina; narrativas

ABSTRACT

This article proposes the reflective presentation of narratives by three interlocutors who make it possible to uncover fragments of social relations established in the family and community environment in Itapina, Colatina district, Espírito Santo. The place, established at the end of the 19th century, became one of the most important commercial coffee poles of the state in the first quarter of the 20th century, with the establishment and strengthening of an economic, social and cultural elite in the Northwest context and lost its in the 1960s with the eradication of coffee. From then, on the great majority of the inhabitants migrated to the headquarters of the municipality or to other regions of the country. It is anchored in the theoretical-methodological perspectives of Memory and Oral History.

KEYWORDS
Oral history; Itapina; narratives

Um lugarejo que hoje parece perdido nos rastros do tempo: Itapina, distrito da cidade de Colatina, Espírito Santo, localizado a aproximadamente 25 km da sede do município, na margem sul do baixo Rio Doce. No lugar, as histórias individuais e coletivas podem ser apreendidas por um analista imaginativo e atento às marcas anunciadas nas medidas do espaço presente revelando os acontecimentos do passado. Os sinais da historicidade estão impregnados pelas biografias individuais e coletivas, pelas finalidades humanas, pelas configurações das atividades produtivas, pelas interações socioculturais, patrimoniais e institucionais estabelecidas.

Constituído no último quartel do Oitocentos, o distrito de Itapina materializa por meio das aspirações, das estratégias, das relações socioculturais e conflitos ali estabelecidos as representações dos diversos grupos assentados. Em pouco mais de 80 anos, período demarcado entre o fim do século XIX e o desenlace do XX, grupos de imigrantes estrangeiros – italianos, alemães, poloneses e sírio-libaneses –, de imigrantes nacionais – sobretudo mineiros –, indígenas, negros libertos e descendentes de todas essas etnias que inicialmente batizaram o distrito com o nome de Lages conheceram os sentidos da bonança e do declínio socioeconômico e populacional. Tal processo ocorre a partir do final dos anos de 1880 com a criação do lugar, a exploração e exportação da madeira, com a produção e comercialização do café à decadência, com o programa federal de erradicação do café nos anos de 1960.

O apogeu produtivo possibilitou, na sede do distrito, a edificação de diversos armazéns, especialmente para comercialização e escoamento do café e, também, o estabelecimento e o fortalecimento de uma elite econômica, social e cultural no contexto do Noroeste do Espírito Santo. De tal modo que a concentração de um rico patrimônio arquitetônico e urbanístico, com um conjunto de casario em sua maioria datado da primeira metade do século XX, fez com que a vila do distrito de Itapina fosse tombada pelo patrimônio histórico estadual em 28 de junho de 2013. Contudo, as transformações na economia internacional e a exploração da fronteira norte do estado marcaram negativamente a expansão dos negócios no local.

Assim, o objetivo deste artigo é buscar compor um fragmento da realidade sociocultural construída em Itapina durante os anos de 1940 a 1980. Visa, nessa direção, compreender o plano do cotidiano que ordenava parcela das relações sociais e culturais estabelecidas no lugar nesse período segundo a história de vida de três interlocutoras que ali nasceram e viveram por mais de 60 anos.

Para tal, utilizamos como fundamento teórico-metodológico a história oral, entendida nesta pesquisa, a partir de Portelli (2011)_____. História oral como gênero. Proj. História, São Paulo, n. 22, jun. 2001, p. 9-36.3 3 Publicado no site Napoli monitor em 23/5/2011. , como um trabalho relacional e que envolve o narrador e o entrevistador num processo dialógico; o hoje/presente ao qual nos referimos e o passando – a memória – do qual estamos falando; a esfera privada e a pública, a autobiografia e a história; e, por fim, a relação entre a oralidade da fonte e a escrita do pesquisador.

O lugar e os rastros da historicidade

Ao investigar as histórias coletiva e individual tecidas em Itapina por meio dos parcos documentos oficiais encontrados4 4 Várias pesquisas foram realizadas no Arquivo Público do Estado, em bibliotecas, na prefeitura e em outras instituições com esse fito. Foram pouquíssimos os documentos obtidos. A maior parte dos documentos disponíveis são arquivos familiares, como fotografias. , periódicos jornalísticos e, principalmente, por meio da história oral, começamos a descortinar os indícios das relações socioculturais ali assentes. Como nos orienta Ginzburg (1989)GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., passamos também a analisar os sinais emitidos pelos interlocutores, de modo a salientar as particularidades narradas, os não ditos e as atitudes corporais. O propósito era tão somente entender de que forma se acentuavam os detalhes contingentes nas vidas e nos acontecimentos individuais dos envolvidos.

Notadamente por avaliarmos que é nos ritos mais simples e nas práticas cotidianas que as narrativas são atualizadas e reconfiguradas, investimos no rastreamento de pequenos indícios transbordados nas falas das interlocutoras, bem como na observação de comportamentos de diferentes membros da família, na análise de fotografias e dos objetos disponibilizados para nossa apreciação nos encontros para as entrevistas.

Na prospecção indiciária, pouco a pouco fomos removendo as camadas das histórias guardadas no baú da memória dos interlocutores e com eles descobrindo e, simultaneamente, construindo fragmentos sobre uma história de Itapina que está além das narrativas oficiais registradas em periódicos da época ou em discursos ou conversas públicas de membros da comunidade local. Nesse registro, nossas interlocutoras exerceram um protagonismo velado, mas com passos seguros de quem sabia o que queria, onde queria estar e como agiria para alcançar os seus objetivos.

Itapina (Figura 1) foi um lugar de referência para a população do Norte e do Noroeste do estado por sua efervescência cultural, social, política e econômica, especialmente na primeira metade do século XX. Principalmente após o estabelecimento de uma estação da estrada de ferro que a transformou num importante entreposto comercial para comércio e exportação de café. Um elemento que indica seu destaque é a inauguração da estrada para tráfego de automóveis ligando a antiga vila ao município de Itaguaçu na década de 1920, evento raríssimo no interior do Espírito Santo nessa época. Mas o lugar também foi palco de intensos conflitos sociopolíticos promovidos entre integralistas e não integralistas.

Figura 1
Localização de Itapina.

O início da perda de poder político e econômico como entreposto comercial de Itapina pode ser avaliado a partir de dois eventos ocorridos em sequência, com grande repercussão para o distrito: a construção da Ponte Florentino Avidos, inaugurada em 1928, sobre o Rio Doce, em Colatina, que possibilitou a abertura de novas rotas para o interior do estado; e a crise de 1929, que promoveu a queda nas exportações do café.

As consequências geradas por esses acontecimentos foram diversas, de modo que nas décadas seguintes o distrito perdeu referência como núcleo próspero e passou a receber poucos empreendimentos novos. A partir da década de 1940 tem início o processo de esvaziamento da vila, e na década de 1960, com a política de erradicação do café, ocorre sua derrocada final. Nesse período, deu-se início ao processo de transformação populacional, conforme se pode verificar na Figura 2..

Figura 2
Itapina – Evolução da população residente segundo a situação de domicílio – 1940-2010.

Ao se observar a Tabela 1, verifica-se que entre os anos de 1940-1980 – que se encontram dentro do recorte que envolve este artigo – o vértice da pirâmide populacional do distrito foi o de 1960, com um total 5.350 habitantes. A partir dessa década, reduziu-se gradativamente a população. Grande parte dos moradores migrou para a cidade de Colatina ou para outras regiões do estado ou do país, permanecendo no local, no censo de 2010, 2.505 pessoas, sendo 696 no perímetro urbano. Desse total, 218 pessoas com mais de 70 anos (TESCH, 2018TESCH, Arleida Lemke. Multiterritorialidade no distrito de Itapina, Colatina - Espírito Santo. Dissertação (Mestrado em Geografia). Programa de Pós-Graduação em Geografia, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo. 2018. 194 f., p. 124).

A pesquisa de campo em Itapina nos permitiu perceber como os moradores conheciam as intimidades das vidas um dos outros – o que não é um fator estranho, uma vez que é um lugar com um número relativamente pequeno de pessoas residindo na vila, que se encontram e têm muita relação entre elas mesmas. Nossa percepção foi nos guiando nos rastros de que no lugar havia um consenso tácito em não compartilhar questões familiares que os antigos moradores julgavam de foro reservado. Se não todos, mas a maior parcela daqueles que constituíam nossa rede de contatos, integrada por membros das famílias pioneiras na fundação do lugar, consideravam que deveriam manter entre eles as memórias dolorosas ou prejulgadas como moralmente proibitivas.

Tendo Massey (2008 apud BARBOSA, 2019BARBOSA, Lohayne Jardim. Experimentações em Rimbaud na “casa dos doidos”: pensando justiça espacial no estudo de caso de duas residências terapêuticas, em Cariacica-ES. 186 f. Tese (Doutorado em Geografia). Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Espírito Santo. 2019., p. 32) como perspectiva do espaço ali constituído, buscamos entender esses indícios como potencializadores da “justaposição circunstancial de trajetórias previamente não conectadas [criadoras de um] estar junto não coordenado”. Consistindo, portanto, na convivência múltipla de percursos de pessoas e objetos, materiais e imateriais em permanente negociação social.

Desse modo, de formas diversas, mas presente nas frases incompletas e nas palavras não ditas, nos olhares fugazes e nos sorrisos velados, nos gestuais das mãos, ou nas crispações das faces, apreendíamos uma concordância silenciosa para que os protagonismos permanecessem reservados àquela comunidade restrita e já detentora de determinados conhecimentos. Percebíamos, nos entreatos do que nos foi possibilitado conhecer, que eventos tidos como ultrajantes para os costumes da época tornaram-se segredos comentados apenas na intimidade das famílias ali estabelecidas.

Tomando como base esses indícios construímos este artigo a partir das narrativas de três interlocutoras nascidas em Itapina e que passaram praticamente toda a vida nesse local e que por razões próprias foram protagonistas de histórias guardadas no silêncio das famílias residentes ali. Importante ressaltar que absolutamente nada do que essas interlocutoras nos narraram foi, em momento algum, falado de forma direta ou indireta por outros moradores a não ser por elas próprias. Reafirmando-se, assim, a negociação social arquitetada pelo grupo assentado, conforme indica Massey (apud BARBOSA, 2008BARBOSA, Lohayne Jardim. Experimentações em Rimbaud na “casa dos doidos”: pensando justiça espacial no estudo de caso de duas residências terapêuticas, em Cariacica-ES. 186 f. Tese (Doutorado em Geografia). Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Espírito Santo. 2019.). Duas interlocutoras cursaram somente o ensino fundamental e sempre foram donas de casa, como assim se autodenominaram; a terceira estudou até o ensino médio, foi professora e diretora escolar.

Nesse sentido, procuramos desenvolver o exercício da comparação programática sem o objetivo de produzir hierarquizações por julgamento exterior às falas das interlocutoras da pesquisa. O que se pretende, tão somente, é refletir sobre o papel desempenhado por dona Marina, dona Bernardina e dona Samira5 5 Todas as entrevistas têm a assinatura do Termo de Livre Consentimento de Entendimento. Os nomes são fictícios. enquanto agentes na produção e reprodução da vida em determinada sociedade, num determinado contexto, tempo e espaço, considerando diversas fontes e historicidades.

De acordo com Pollak (1992)POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. a memória é um elemento importante no sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo. Assim, na construção desta pesquisa buscamos refletir sobre a maneira como dado grupo compõe visões de mundo e as compartilha, e sobre a memória coletiva e individual, para depreender como as representações estabelecem laços de continuidade em um dado grupo.

Tal perspectiva encontra suporte em Candau (2014, p. 16)CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014. ao assegurar que “a memória, ao mesmo tempo que nos modela, é também por nós modelada”. De maneira, que isso “resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa” (CANDAU, 2014CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014., p. 16).

As representações culturais estão vivas na memória de um indivíduo e de um grupo social, elas se atualizam, são reconstruídas/reelaboradas e constituem parte da identidade. Assim, compreende-se que a experiência dessas interlocutoras, moradoras de Itapina, enquanto prática cultural que permeia o cotidiano pode servir de suporte à interpretação de fragmentos das interações sociais estabelecidas no lugar, de modo que se desvele parcialmente a realidade social construída, possibilitando compreender a constituição do cotidiano e as significações relacionadas ao exercício da conformação do local.

Dessa maneira, a construção da pesquisa persegue metodologicamente sempre o mesmo caminho: uma conversa informal e livre, em locais escolhidos pelos interlocutores, cujo objetivo é apreender os percursos da história de vida a partir das suas experiências. Assim, conforme sugere Lechner (2009)LECHNER, Elsa. Migração, pesquisa biográfica e emancipação social: contributo para a análise dos impactos da pesquisa biográfica junto de migrantes. textRevista Crítica de Ciências Sociaistext, n. 85, 2009, p. 43-64., seguimos o fluxo das narrativas, mas tendo como fio condutor um eixo comum composto de subtemas: a trajetória familiar, incluindo local de origem, infância, adolescência, trabalho, casamento, decisões na vida adulta; o cotidiano em Itapina; a percepção dos outros, as interações sociais e ações desenvolvidas.

Em geral, as entrevistas são realizadas na residência dos interlocutores, sem a presença de familiares. Esse é um momento no qual os narradores desvelam sentimentos encaixotados nos baús da memória, assim como mostram fotografias e objetos familiares. Em geral, em acordo com os narradores, agendamos novos encontros para explorarmos mais questões que se apresentaram ao longo da entrevista.

É comum o narrador falar sobre sua experiência de vida ressaltando a importância do significado de sua própria história. Lechner (2009, p. 56)_____. Migração, resiliência e empoderamento: uma equação teórico-prática à luz da pesquisa biográfica. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v. 1, n. 2, 2016, p. 314-325. afiança que “os sujeitos, mesmo os motivados para a compreensão de si e dos seus itinerários biográficos, encontram-se com frequência presos a histórias e papéis que os designam. Como se fossem objetos, as pessoas são ditas e ditadas por discursos pré-fabricados”. Desse modo, compreendemos que, no processo constituído e interacional com o interlocutor, muitos – ou quase todos – sentem-se libertos para fazer uso de sua voz e narrar, sem amarras, fatos sobre os quais emudeceram por anos.

Assim, à medida que mergulhávamos no universo dos interlocutores, compreendíamos que se desvelava um conjunto de narrativas muito contundentes e silenciadas em Itapina. Nas entrevistas as interlocutoras deixavam entrever um protagonismo pouco presente no discurso oficial e oficioso sobre o lugar. Nesse processo de interação, de descobertas e de desnudamentos, a qualificação do pronome pessoal “eu” foi ganhando destaque, e a fala sobre si se ampliava conforme elas se assenhoravam do próprio papel no ciclo de nascimento, infância, adolescência, vida adulta e velhice.

Um elemento a se levar em consideração nesse processo é a importância do contexto (e do tempo) no estímulo à rememoração que a entrevista provocou. Conforme Bloch (apud CANDAU, 2014CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014., p. 33), ao avaliar o escopo antropológico, “a presença do passado no presente é bem mais complexa, bem menos explícita, mas talvez bem mais forte que a existência de narrativas explícitas nos poderia fazer crer”. O que para Bloch (apud CANDAU, 2014CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014. p. 34) é um indicativo de “significação social, pois se trata de um ativo colocado em reserva para futuras representações sociais”.

Foram inúmeros os fragmentos de falas das interlocutoras sinalizando uma inadequação ao papel a elas predeterminado, a estratégias de construir suas próprias histórias, muita vez sem assumir posição de enfrentamento com pais e companheiros. Com isso, essas falas foram pouco a pouco ganhando nova dimensão também na nossa percepção.

Contudo, os indícios que sinalizavam o não dito, o invisível, nem sempre foram por nós percebidos, até porque na progressão da rotina das pesquisas novas questões surgiam e se impunham, obrigando-nos a refletir sobre questões candentes, mas que exigem tempo de maturidade. Assim, na medida em que as interlocutoras se dispunham a expor sobre o silêncio de décadas, juntávamos os rastros dos sinais que foram sendo apontados.

Certamente, o fato de certas narrativas não ganharem tonalidade altiva no conjunto polifônico da vida de uma comunidade não significa que não se formulem e se reformulem diariamente. Nos interstícios da cultura, os sujeitos atualizam suas experiências de muitas maneiras e diferentes linguagens. Dessa forma, as varandas, além de fato sociocultural que salta aos olhos do observador comum, constituem espaços informais, onde nos cochichos, gestos e piscadelas (GEERTZ, 1975GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1975.) se coaduna um emaranhado de diálogos e trocas aparentemente silenciosas, mas que incide de forma determinante na construção do ethos comunitário.

As varandas, assim como as cozinhas, os ateliês de costura, enfim, todos os espaços privados e comuns àqueles habitados pelas interlocutoras da geração das entrevistadas são poderosos territórios de tessitura da memória, que exigem do pesquisador alcançar os sentidos contidos nas mais simples expressões da ação social. Mas, como assegura Casellato (2016a, p. 26 – tradução nossa)CASELLATO, Alessandro. Troppo tardi? Per una storia orale della grande guerra. Fonti scritte e orali al servizio della storia e della linguistica, a cura di Serenella Baggio, Trento 2016a. Disponível em: <https://bit.ly/3hERqUo>. Acesso em: 10 abr. 2019.
https://bit.ly/3hERqUo...
, de quem nos apropriamos aqui para conjeturar sobre nossas interlocutoras, “a permanência nos locais onde os fatos narrados ocorreram contribuiu muito para manter a memória”. Tal como ocorre com nossas interlocutoras, que por anos viveram num mesmo local, viram suas casas e armazéns serem construídos, participaram de atividades em comum e tantas outras na intimidade de seus lares. Mas que sempre transitam pelas ruas que guardam a memória individual e coletiva de Itapina, a exemplo do que se vislumbra na Figura 3.

Figura 3
Uma das ruas do Sítio Histórico de Itapina.

Fragmentos

Quando nos sentamos para entrevistar dona Marina6 6 Entrevista realizada em 12 abril de 2002. , ela tinha 77 anos. A entrevista aconteceu em sua casa, situada na rua principal de Itapina. Era um sábado de tarde e ela assistia a um programa de televisão na sala de estar. Na parede pintada de branco, apenas dois quadros emoldurando fotografias antigas: uma do pai e outra dela, com a mãe e os irmãos.

Sobre os quadros com as fotografias, importante o destaque que faz Meloni (2011)MELONI, Pietro. La cultura materiale nella sfera domestica. In: BERNArdI, Silvia; DEI, Fabio; MELONI, Pietro (Org.). La materia del quotidiano: per un’antropologia degli oggetti ordinari. Pisa: Pancini. 2011, p. 183-202. ao afiançar que os objetos domésticos possuem modos diversos de expor os significados que possuem para seus proprietários: memórias, afetos, projeções sociais. De modo que, sobre a história familiar, eram eles a revelar publicamente o desejado pela proprietária da casa: o destaque do pai, sozinho num quadro, e a mãe e os irmãos, juntos, mas complementando o outro.

Sobre a mesa vigiava uma garrafa de café, xícaras de alumínio esmaltado e um pedaço de bolo. Tudo primorosamente arrumado, visando indicar que ela nos aguardava, o que contrastava com sua vestimenta simples, como a tentar demonstrar a casualidade do encontro. Em outro cômodo da casa, num quarto cuja porta estava semiaberta, encontrava-se a irmã solteira que morava com dona Marina.

Na época muito nos chamou a atenção a troca de olhares e sorrisos estabelecida entre ela e a irmã mais velha, que, assistindo à televisão no quarto, de tempos em tempos atravessava a sala onde realizávamos a entrevista. Com o desenrolar de nossa conversa, ficava claro que a presença da irmã cruzando a sala era um indício, a “piscadela” de Geertz (1975)GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1975., de sua necessidade de estabelecer limites à narrativa de dona Marina, que aparentava querer falar sem as amarras de seu passado.

Desse modo, a história de dona Marina se constituiu na narrativa entrecortada no vácuo da censura e da liberdade que ela própria se permitiu construir durante nosso encontro: a de uma jovem, filha de um imigrante italiano, que se apaixonou e foi morar com um homem casado. Apesar do contexto, dona Marina revelou seu desejo de publicizar a própria história. Especialmente a experiência de viver em um tempo em que uma mulher que ia morar com um homem sem se casar ganhava adjetivos considerados pouco gentis entre seus conhecidos e familiares. Conotação pior ganhava aquela que passava a viver com um homem que deixou a esposa para morar com ela.

Foi sorrindo, num intervalo em que a irmã se encontrava no quarto, que dona Marina contou um fragmento de sua história de vida:

Eu tinha 22 anos, acho que era maio de 1947, quando eu fui morar com ele. Não foi fácil não! Mas com o passar dos anos o papai se conformou, né! Éramos em muitos irmãos, oito, e morreram três. E a lavoura de café comandava aqui (na fazenda). Era o que fazíamos para ganhar dinheiro. Papai precisava de mim para trabalhar.

O pai de dona Marina veio da Itália ainda criança. Ele possuía uma lavoura de café, era integralista e obrigava os membros da família a estarem presentes em todas as atividades sociais, políticas e econômicas das quais participava. Segundo dona Marina:

Os integralistas eram fanáticos. Sempre iam para algum lugar marchar. As mulheres também marchavam. Eu participava sempre, desde mocinha; adorava ir porque a gente saía de casa. Todo mundo podia participar. Era uma festa (risos).

Interessante notar, a partir da narrativa de dona Marina, os sentidos para além dos morais e ideológicos do movimento integralista. O sucesso e a adesão a esse tipo de movimento por partes significativas dos sujeitos nesse tipo de localidade nem sempre se conectam a demandas institucionais. Podem atender aos desejos de socialização e entretenimento tão valiosas para quem os vive quanto os ritos formais.

As revelações de dona Marina sobre sua união com um homem que deixou a esposa para viver com ela, a aceitação do pai por uma razão pragmática (necessidade de mais braços para ajudar no trabalho da colheita familiar) e a participação nas atividades integralistas com objetivo de diversão nos conduzem às análises de Portelli (1996)PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 1996, p. 59-72. e aos estudos realizados por Das Veena (2011)DAS, Veena. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, n. 37, julho-dezembro, 2011, p. 9-41..

Portelli (1996, p. 63) aponta que na narração de determinados personagens “os fatos importantes são os que se desenvolvem dentro da consciência: não são os fatos vistos, mas o processo de visão, interpretação e, em consequência, de mudança”. Das Veena (2011, p. 9-10)DAS, Veena. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, n. 37, julho-dezembro, 2011, p. 9-41., por sua vez, questiona como acontecimentos passados são incorporados na estrutura temporal das relações, interrogando-se sobre o que as diversas violências/violações provocaram na subjetividade das mulheres, sobretudo como “as mulheres tomaram esses signos nocivos de violação e os reocuparam através do trabalho de domesticação, ritualização e re-narração”.

A narrativa de dona Marina e o comportamento do não dito oralmente mas indicado por sua irmã nos conduzem a pensar em como a entrevistada construiu seu processo de interpretação e de mudança, em consequência, de domesticação de seu destino. Uma mulher vivendo escolhas de vida tão difíceis para enfrentar um ambiente em que prevalecia o conservadorismo e o fanatismo sociopolítico. E o fez, enfrentando barreiras tradicionais de moral familiar e religiosa, disposta a lutar por sua vida amorosa.

Destino diferente teve dona Bernardina, 98 anos7 7 Entrevista realizada em 3 de maio de 2016. . Neta de imigrantes italianos, na casa de seus pais a voz que determinava o que se podia ou não fazer era a da mãe: uma matriarca que não aceitou que ela morasse com os avós na capital do estado, Vitória, para poder estudar e que a obrigou a se casar aos 19 anos com um homem 12 anos mais velho, amigo da família. Vivendo sozinha, mas em casa próxima à de um filho, dona Bernardina disse que faz questão de ser a responsável pelas despesas e limpeza da casa.

Preocupa-se em afirmar sua independência socioeconômica e emocional da família, à exceção do neto e da neta mais velhos, por quem demonstra adoração. Na sua narrativa prepondera a fala do eu: “Eu casei, morei dois anos na casa do meu sogro, depois o meu sogro nos deu um terreno no Norte, onde eu acabei de criar os meus filhos”8 8 Entrevista realizada em 22 de junho de 2016. .

Essa valorização do eu na entrevista de dona Bernardina, segundo Portelli (2001, p. 11)_____. História oral como gênero. Proj. História, São Paulo, n. 22, jun. 2001, p. 9-36., indica que há “realce da autoconsciência e da autoridade do narrador”. Fato que pode gerar a possibilidade de o entrevistado levantar questionamentos de sua experiência de vida sobre os quais ele nunca falou com outras pessoas – ou tampouco sobre os quais refletiu. A utilização do pronome eu nas narrativas, ainda segundo Portelli (2001, p. 11)_____. História oral como gênero. Proj. História, São Paulo, n. 22, jun. 2001, p. 9-36., se apresenta como “o resultado de processos de autorização muito diferentes”.

Desse modo, essa narrativa em primeira pessoa de dona Bernardina sinaliza sobre a importância que a entrevista adquiriu para sua autoconsciência. De tal forma que durante todo o percurso dos dois encontros ela foi buscando ordenar uma estratégia de narrativa em que seu protagonismo na vida familiar fosse ressaltado. Mas também, conscientemente, lançava pistas sobre questões afetivas familiares que buscava apresentar de modo fortuito, mas que marcadamente a apresentavam como uma pessoa forte e detentora das decisões familiares, tal como a mãe havia sido em sua infância e adolescência. Tal estratégia foi sendo apresentada a conta-gotas nos dois encontros realizados, ficando explícita especialmente em três momentos:

A minha mãe criou seis filhos: cinco mulheres e um homem. A escola ficava a três quilômetros da nossa casa. Meu avô veio embora para Vitória e me trouxe. Eu tinha oito anos. Eu fiquei um tempão com ele em Vitória. Depois minha mãe veio me buscar, eu queria ficar para estudar, meu avô também queria que eu ficasse, mas ela não deixou.

Conheci meu marido desde criança, ele cuidava de mim desde que eu tinha dois anos. [...] A gente morava a um quilômetro da casa dele e eu estava sempre lá. [...] Eu ia para a escola e passava todo dia na casa deles, a minha cunhada, que é a irmã dele, me ensinou a costurar, me ensinou a fazer as coisas. E assim casei. Besteira pura.

Ah, minha filha, eu criei os meus filhos e cada qual tem seu lugar: três são médicos, um é engenheiro e uma é professora.

A narrativa de dona Bernardina concentra-se assim na importância do seu protagonismo como matriarca responsável pela trajetória do seu grupo familiar, segundo a representação construída a partir da experiência materna. Em sua fala, o marido é personagem quase invisível: resume-se a fazer saber que o conhecia desde criança, destacando quando ele morreu – ficaram casados por 26 anos. Ou seja, duas fases muito distintas, com um longo hiato da vida adulta compartilhada com o marido, cuja importância é projetada exclusivamente nas suas atitudes.

Esse protagonismo também fica evidente quando dona Bernardina ressalta que trabalha desde criança e que, casada, era ela quem controlava os negócios da família:

A vida era plantar café, feijão, arroz... Tudo era produzido na fazenda, a comida e as roupas eram feitas em casa. Eu, com nove anos, levantava às quatro horas da manhã para tocar o boi, porque meu pai estava moendo cana para fazer rapadura.

Ele (um meeiro) queria ir embora de Itapina e queria que eu pagasse dez cruzeiros em cada pé de laranja plantado. Naquela época era muito dinheiro. Pedi então para chamar este meu meeiro e eu falei assim: não vou comprar pé de laranja seu, não. Pouco tempo depois, em 1979, veio a enchente no Rio Doce. A enchente carregou tudo. Resultado: comprei todos os pés de laranja por doze reais para ajudar o pobre meeiro e também uma ilha que ficava em frente ao meu terreno de um casal de velhinhos que ficou isolado durante a enchente. Tudo por mil cruzeiros.

Autossuficiente, dona Bernardina procurou demonstrar que seu desejo sempre foi estudar – fato que não aconteceu porque na época sua mãe considerava mais importante ter uma filha casada. Nesse aspecto, subverteu completamente a representação do olhar materno, incentivou os filhos a estudar – os seis fizeram universidade –, e, além disso, demonstrou que nunca valorizou o casamento, sobretudo na juventude. Para ela, o casamento da filha aos 24 anos, contra a vontade dela, e da neta, grávida aos 17 anos, foi um grande erro cometido por ambas.

A outra filha, médica, casou-se depois de formada. O que a seu sentir, conforme ela confidenciou, foi um grande acerto. Afinal, dona Bernardina avalia que uma mulher ter uma profissão e fazer o que quer da vida é mais importante do que estar sujeita à vontade do outro – no caso, um marido. Nesse sentido, dona Bernardina transferiu seu desejo de estudar, interditado pela mãe, aos filhos. Mas uma ressalva: ela não faz referência ao casamento dos outros quatro filhos.

Sobre as narrativas de dona Marina e dona Bernardina, é importante recordar que ambas são filhas de imigrantes vindos da Itália oitocentista. Nesse sentido, esses emigrados italianos eram de famílias camponesas, católicos, tinham muitos filhos – até por uma questão racional, para garantir ampla força de trabalho –, vinculados a relações hierárquicas arcaicas, nas quais a autoridade paterna não possibilitava muita autonomia aos filhos em todas as áreas de suas vidas, mesmo após o casamento (CASELLATO, 2016bCASELLATO, Alessandro. “Mio padre si era portato dietro uno schiavo”. Modelli familiari, distanze sociali e culture politiche dall’Italia alla Francia. In: Liberare e federare. L’eredità intellettuale di Silvio Trentin. A cura de Fulvio Cortese. Firenze University Press, 2016b. Disponível em: <https://iris.unive.it/handle/10278/3679641#.XL-GcugzaUk>. Acesso em: 10 abr. 2019.
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). Assentados no Espírito Santo, em Itapina, imigrantes e filhos vão alterar seu comportamento ao longo das décadas.

A história de vida de dona Samira9 9 Entrevista realizada em 16 de julho de 2016 , filha de imigrantes libaneses, também reforça os laços de fidelidade comunal das famílias aos fatos considerados esdrúxulos, idiossincráticos ou “imorais” a partir dos acontecimentos da vida familiar e social em Itapina. Aos 80 anos, e o marido 84, dona Samira está casada há 58 anos e tem três filhos. Para a entrevista, ela nos aguardava muito bem arrumada, com os cabelos impecavelmente escovados e maquiada. O marido estava ao seu lado para acompanhar a entrevista.

Sua narrativa é uma fonte importante para demonstrar como dona Samira presenciou e experienciou o mundo de violência que dominava a região no período10 10 Estudos sobre a violência no norte podem ser obtidos em Silva (2019), Costa (2016), Vilaça (2015). a procurava autorreferenciá-la como uma pessoa destemida, capaz de lutar e de proteger sua atividade profissional, familiares e amigos. Uma mulher, portanto, determinada e de comportamento fora dos padrões preestabelecidos à época.

[...] eu fui muito vitoriosa, graças a Deus. Eu tinha muito amor a Itapina, eu me esmerava o máximo, sabe? Eu era diretora, delegada de ensino e era eu que respondia por todo o distrito de Itapina.

Nunca deixei os alunos sem merenda, porque nós nos esforçávamos em festas, eventos, clube agrícola, com os pais de alunos. Eles colaboravam muito. Pediam para eu ir buscar frutas e outros alimentos quando pudesse, porque eles não tinham veículos, somente cavalo. Uma vez fui buscar (as ofertas de alimentos) com o caminhão de seu Domingos, eu fui dirigindo e foi meu ajudante do meu lado. Eu agarrava um homem do meu lado, né! Eu dirigia o caminhão e podia dar algum problema, mas eu ia ao interior. Eu andava a cavalo, ia lá, pra cá. Não tinha medo.

A narrativa afirmando seu destemor tornou-se especialmente surpreendente quando contou como ajudou a salvar a vida de um pistoleiro do Noroeste do estado, que era apontado publicamente como um dos mais temidos do período, mas que dona Samira orgulhosamente considerava mais que um amigo: era membro da família. O evento, segundo sua memória, aconteceu quando os filhos desse pistoleiro – alunos da escola onde ela era diretora – vieram avisá-la que o pai tinha sido ferido a bala e estava com hemorragia, em virtude de uma emboscada. Eles diziam que havia homens que iam tentar levar o pai embora de Itapina e matá-lo no caminho.

Ela então contou que foi para o portão de sua casa, local onde estava sendo tratado o pistoleiro, para aguardar os tais homens, que viriam num carro especial. Fazia ação tão destemida a pedido dos filhos do amigo. Assim descreveu a cena:

[...] eles falaram assim: “dona Samira, você fica para nós lá no portão e não deixa ninguém entrar. Porque vai parar um carro especial e vem para matar o nosso pai”. “Fico”, eu disse. “A senhora não tem medo não?”, “Não. Pode deixar que eu fico aqui.” Aí eu fiquei na porta e realmente virei a noite. Quando o carro chegou, desceram dois homens e perguntaram: “Como é que vai o ...?”; e eu: “Vai muito bem. Está sendo socorrido”. Com muita educação, falei: “Ele tem muitos amigos, ele tem os filhos, que são homens, não são crianças nem jovens, são homens e estão todos ao lado dele. E eu estou aqui também, como amiga, minha família é a dele”. Não tive medo, não. Quando eu voltei, os meninos falaram assim: “Eh, professorinha valente!”.

Essa narrativa revela outro elemento recorrente na historicidade do Espírito Santo, assim como de muitos lugares do interior do Brasil: o histórico de execuções encomendadas que marca a vida política e econômica contemporânea do estado. Assim, escutar a narrativa de um típico caso dessa natureza, numa condição de fala nem sempre privilegiada, é um dado interessante especialmente dada a situação de segredo em que comumente se guardam as histórias de violência pessoal e familiar. Por meio de sua narrativa, dona Samira busca afirmar sua importância na vida coletiva e familiar em Itapina. Até porque ela nos indicou o quanto se via como uma pessoa que buscava controlar seu destino e daqueles a quem estimava. Mas também deixava claro que o marido era elo importante em sua história. Dessa forma, sempre utilizava o pronome nós, demonstrando o nível de intimidade e compartilhamento da experiência matrimonial de 58 anos, especialmente após a erradicação do café, quando milhares de pessoas migraram para a área urbana e o distrito perdeu população e a pujança econômica: “Nós fizemos um trabalho para levantar Itapina e para segurar a população de Itapina. Isso para aqueles alunos que terminavam a oitava série, que era quinta série naquela época, não saírem de lá”. É importante ressaltar, no entanto, que essa inclusão tem como autorreferência sua atividade profissional, demonstrando seu protagonismo e reforçando sua identidade pessoal.

À guisa de considerações finais

A memória dessas três interlocutoras remete às experiências e histórias de vida de um tempo, contexto e espaço pouco propícios ao comportamento mais libertário. Ao contrário, o conservadorismo era reinante. Itapina localizava-se no interior do Espírito Santo, numa fase que ainda mais de 80% da população do estado habitava em área rural. Enfim, era um contexto no qual os homens detinham o poder de determinar o que elas, as mulheres, poderiam ou não realizar. Nesse sentido, a narrativa das três interlocutoras demonstra que elas optaram por certo tipo de protagonismo social, mesmo que tardiamente, como no caso de dona Bernardina.

Viver suas escolhas amorosas, familiares, financeiras ou profissionais foi de amplitude incomum para o contexto. Isso porque, nas histórias reveladas por elas não se apresenta o lugar da vítima do preconceito, do autoritarismo ou do medo. Ao contrário, evidenciam-se eventos traumáticos, mas superados por interlocutoras que nem sempre aceitaram se sujeitar a ideias preconcebidas.

Lutar contra as representações de um senso comum no universo social local, em especial numa época cuja mentalidade valorizava o casamento religioso e eterno, ter vencido, total ou parcialmente, os conflitos inerentes à disputa pública contra o senso comum de familiares e moradores de Itapina, tudo fez parte da história de vida das três. Cada uma, a seu modo, caminhou e se posicionou além do confinamento do espaço e do tempo a elas reservados.

O resultado desse processo encontra-se presente, mesmo que veladamente, na construção social do lugar. A biografia dessas mulheres está inscrita, de formas várias, na memória que modela e também é modelada por dona Marina, dona Bernardina, dona Samira e pelos moradores de Itapina, alimentando, dessa forma, suas trajetórias individuais e de todos que miram os feitos realizados pelas três.

As narrativas, provocativamente centradas no eu, claramente são marcadas por uma autoconsciência e apreensão da importância individual e coletiva, seja para um grupo seleto, seja para um grupo estendido. O custo da rebeldia nunca foi explicitado nas narrativas. O orgulho de terem sido protagonistas, sim, esse foi reivindicado por todas – cada uma o fez a seu estilo e personalidade. Contudo, ao relembrar e analisar os rastros que nos conduziram a essas narrativas e ao entendimento desses protagonismos, voltamos a pensar nos indícios sobre os não ditos, olhares velados e silenciamentos dos moradores de Itapina. O que mantém a problemática em discussão, porque nos faz perguntar: quantas Marinas, Bernardinas, Samiras, Josés, Pedros, Franciscos ainda aguardam para narrar suas histórias de vida? O quanto foram importantes em nível micro e macro as escolhas dessas protagonistas na história do lugar? O que o silenciamento externo dessas histórias – e de outras ainda não identificadas – explicita sobre o grupo social? Questões claramente em aberto e que, acreditamos, merecem novos e diferentes mergulhos no mundo tácito do foro reservado, em busca de trazer à tona renovados elencos de discussões e de novas compreensões.

  • 3
    Publicado no site Napoli monitor em 23/5/2011.
  • 4
    Várias pesquisas foram realizadas no Arquivo Público do Estado, em bibliotecas, na prefeitura e em outras instituições com esse fito. Foram pouquíssimos os documentos obtidos. A maior parte dos documentos disponíveis são arquivos familiares, como fotografias.
  • 5
    Todas as entrevistas têm a assinatura do Termo de Livre Consentimento de Entendimento. Os nomes são fictícios.
  • 6
    Entrevista realizada em 12 abril de 2002.
  • 7
    Entrevista realizada em 3 de maio de 2016.
  • 8
    Entrevista realizada em 22 de junho de 2016.
  • 9
    Entrevista realizada em 16 de julho de 2016
  • 10
    Estudos sobre a violência no norte podem ser obtidos em Silva (2019)SILVA, Edmilton. As representações da violência na região do Contestado entre o Espírito Santo e Minas Gerais (1940-1962). 126f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, 2019., Costa (2016)COSTA, Marco Aurélio B. Vítimas que choram: trajetórias de coerção, acumulação social, e empreendedorismo violento no Espírito Santo. São Paulo: Opção livros, 2016., Vilaça (2015)VILAÇA, Adilson. Cotaxé. Lisboa: Chiado, 2015..
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2019
  • Aceito
    17 Jul 2020
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