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Expropriação do funcionalismo público: o gerencialismo como projeto

Expropriation of the public servant: managerialism as a project

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo compreender o projeto de expropriação social do aparelho do Estado brasileiro a partir da análise da ideia de administração gerencial relativa às instituições públicas. Delimitamos nossa investigação entre os anos de 1995 e 2002, quando Fernando Henrique Cardoso esteve à frente do governo no Brasil, levando em consideração o projeto de Reforma do Estado. Portanto, pretendemos perceber a partir da noção de capital-imperialismo quais são as bases teóricas que sustentam a ideia de reforma gerencial protagonizada pelo governo Cardoso.

Palavras-chave:
Gerencialismo; Capital-imperialismo; Reforma do Estado

Abstract

This work aims to understand the project of social expropriation of the Brazilian state apparatus, analyzing the notion of managerial administration applied to public institutions. The study observes the period of President Fernando Henrique Cardoso’s government, between 1995 and 2002, emphasizing the state reform carried out. The work uses the notion of capital-imperialism to identify the theoretical bases that supported the idea of managerial reform that was put into practice at that time.

Keywords:
Managerialism; Capital-imperialism; State reform

Introdução

A temática das reformulações e formas de apropriação do Estado, em especial no Brasil, vem adquirindo cada vez mais espaço nas investigações em suas mais diversas áreas do saber, com destaque para estudos dedicados à Reforma do Estado brasileiro levada a cabo pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (19952002). A partir de enfoques e perspectivas variadas, as pesquisas em sua grande maioria concentram-se na discussão sobre os desdobramentos sociais, políticos e econômicos, bem como a estrutura do projeto reformista, observando uma pequena parcela de estudos nas ciências humanas e sociais acerca das questões de natureza da organização das instituições públicas nos processos de reestruturação de suas formas políticas e administrativas.

O discurso forjado a partir da década de 1990 no Brasil baseia-se na ideia de gerencialismo como método eficaz para o acesso das instituições públicas no caminho do progresso. Desse modo, o presente texto pretende discutir as bases teóricas assentadas na edificação do projeto de administração gerencial, dialogando com a noção de capital-imperialismo de Virginia Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) para compreensão das dinâmicas e aspectos estruturais do capitalismo contemporâneo que se relacionam com a ideia de gerencialismo.

Capital-imperialismo: interpretando o capitalismo contemporâneo

O conceito de capital-imperialismo é de autoria da historiadora Virginia Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.), que se refere à atual fase do capitalismo iniciada logo após a Segunda Guerra Mundial. A autora se apoia em Marx, Lenin e Gramsci para desenvolver seu trabalho, contribuindo para a renovação e atualização interpretativa ancorada no marxismo para o mundo em que vivemos. Nesse sentido, Fontes (2010) defende que o capitalismo possui duas tendências que são inerentes e se revelam incontroláveis: a concentração de recursos sociais e a recriação permanente das expropriações sociais.

Para Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) a forma social que dá sentido de existência ao capitalismo assenta na extração de mais-valor a partir do trabalho livre. Assim, ainda que a concentração de recursos sociais e as expropriações sejam condições fundamentais para a concentração capitalista, não são suficientes, pois necessitam da combinação de extração de mais-valor com a disponibilidade de trabalhadores livres a fim de vender sua força de trabalho ao capital.

Desse modo, recorrendo às formulações de Lenin (1975 apud FONTES, 2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) acerca da noção de imperialismo, na qual ocorria a junção de capital industrial com capital bancário, Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) assinala que a forma atual não diverge da analisada por Lenin (1975 apud FONTES, 2010). Refletindo sobre a ideia de Marx (1985 apud FONTES, 2010) e Lenin (1975 apud FONTES, 2010) de que o capitalismo se modifica de maneira qualitativa de acordo com o grau de concentração de capitais, Fontes (2010) aponta que devido à escala atual de concentração se configurar muito acima da época desses autores, até mesmo em graus inimagináveis, verifica-se que o imperialismo atual é de novo tipo. Além disso, o capitalismo contemporâneo não assenta nas forças produtivas diretamente vinculadas à produção como no tempo de Lenin e Marx, mas se concentra nos recursos sociais de produção.

Outro fator importante revelado por Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) corresponde ao fato do capitalismo vigente não se basear apenas na relação entre capital bancário e industrial, uma vez que revela um entrelaçamento de grupos empresariais a nível global, traduzido sobretudo na figura das multinacionais, bem como uma maior concentração de capitais de origens diversas, maior circulação de capitais a nível internacional e predomínio do capital monetário (fictício). Para Fontes (2010), a atual forma do capitalismo advém e impulsiona todas as formas de acumulação de capitais que, segundo ela (FONTES, 2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010., p. 198), estão “pornograficamente entrelaçadas”.

Por conta disso, o capital-imperialismo exige que seja extraído mais-valor de maneira acelerada, sob qualquer pretexto e de qualquer maneira, exigindo garantias jurídicas de propriedade e relativas às relações de trabalho. O capital-imperialismo passa a exigir que as sociedades em contexto global estejam disponíveis para vender sua força de trabalho ao capital e se possível sem estabilidade, garantias e direitos, competindo entre si no mercado. Portanto, Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) entende que o capitalismo contemporâneo vem aprofundando ainda mais as desigualdades e expandindo relações capitalistas, descartando a hipótese de que o capitalismo está em fase de retrocesso.

Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) sugere que uma das características do capital-imperialismo é o aprofundamento das formas de expropriação social, sendo ela condição inicial, meio e resultado do processo de acumulação de capital. Nesse sentido, as expropriações se configuram como constitutivas do processo de estabelecimento e expansão da base social do capital, ao contrário daqueles que postulam uma fase inicial para as expropriações, vinculadas à acumulação primitiva, de modo que com a modernização do capitalismo será possível organizar o processo produtivo em pilares civilizatórios, eliminando as expropriações tidas como bárbaras de sua origem. Fontes (2010) entende que o processo de expropriações é permanente e se reproduz em escala sempre crescente.

Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) divide as expropriações em primárias e secundárias. A primeira é relativa ao meio rural (sujeitos expulsos do campo ou atraídos pela cidade), configura também aqueles “[...] incapacitad[o]s de manter sua reprodução plena através de procedimentos tradicionais, em geral agrários [...]” (FONTES, 2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010., p. 44). Por seu turno, as expropriações secundárias correspondem a tudo aquilo que os trabalhadores dispõem para impor algum limite ao processo de acumulação em curso, como assinala Fontes (2010, p. 54, grifo do autor):

Estas expropriações, que estou denominando disponibilizações ou expropriações secundárias, não são, no sentido próprio, uma perda de propriedade de meios de produção (ou recursos sociais de produção), pois a grande maioria dos trabalhadores urbanos dela já não mais dispunha. Porém, a plena compreensão do processo contemporâneo mostra terem se convertido em nova - e fundamental - forma de exasperação da disponibilidade dos trabalhadores para o mercado, impondo novas condições e abrindo novos setores para a extração de mais-valor. Este último é o ponto dramático do processo.

As expropriações contemporâneas impõem o rompimento de toda e quaisquer barreiras à reprodução ampliada do capital, operando formatos variados na extração de mais-valor. Dentre outros exemplos trabalhados por Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.), cabe destacar as expropriações nas relações de trabalho, como os contratos de trabalho por meio da terceirização, subcontratações, contratos por bolsa, por projeto e por tempo determinado. Estes acordos tendem a retirar direitos, como férias remuneradas, aviso prévio, condições mínimas de trabalho, representação classista e organização dos trabalhadores, como se verifica em contratos por bolsas.

No mesmo caminho verifica-se o doloroso processo de reforma da previdência, no qual a aposentadoria compreendida como um direito socialmente conquistado é vista como um grande entrave para o capital, pois o trabalhador ao se aposentar pode estar livre da subsunção direta e imediata ao capital, contrariando a lógica de extração de mais-valor. Desse modo, Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) defende que o capitalismo em sua fase atual intensifica as expropriações sociais em função da escala de concentração, revelando-se potencialmente ilimitadas, colocando em risco a existência humana.

Por conseguinte, Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) examina o Estado nos termos gramscianos, ou seja, em seu sentido integral/ampliado formado pela sociedade política1 1 A sociedade política, também chamada por Gramsci (2000) de Estado-governo ou Estado do político, é o Estado em seu sentido restrito, correspondente ao aparelho governamental voltado para a administração direta e do exercício legal da coerção sobre aqueles que não consentem de maneira ativa ou passivamente. e sociedade civil, que se constituiu através do nexo dialético de unidade-distinção, ou seja, uma inseparável relação entre o exercício da dominação que se expressa na sociedade civil e a coerção na sociedade política, mesmo que ambos possuam funcionamentos distintos (GRAMSCI, 2000GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. v. 3.). Dessa forma, entendemos o Estado como uma relação social, isto é, “a condensação material de uma relação de forças entre classes e frações de classe, tal como ele expressa, de maneira sempre específica, no seio do Estado”. (POULANTZAS, 1980POULANTZAS, N. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1980., p. 147). Portanto, as relações sociais no bojo do Estado são atravessadas por luta social, distanciando da perspectiva liberal do gerencialismo assente na visão despolitizada e tecnicista das ações no aparelho do Estado.

Assim, Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) verifica que o capital-imperialismo necessita do Estado, ou seja, precisa que o conjunto das massas dominadas estejam aderidas a esta forma social, acreditem nela, sejam educadas para o capital e que quaisquer mobilizações contrárias sejam controladas pelo Estado. Assinala que as lutas sociais são deslocadas para o âmbito nacional, das políticas internas de cada país, tendo como contrapeso a ideia de democracia, na qual todas as conquistas democráticas serão uma maneira de amarrar os trabalhadores no capitalismo.

O capital-imperialismo se configura pelo encapsulamento da força de trabalho dentro do Estado, impedindo qualquer atividade de luta para além das fronteiras nacional-capitalistas. Em contrapartida, verifica-se no capital-imperialismo a expansão de formas de organização intercapitalista a nível internacional, que segundo a historiadora devem ser analisadas, desveladas suas conexões, seus projetos, seus agentes, suas formas organizacionais, bem como suas formas de convencimento (FONTES, 2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.).

A partir desses enunciados, Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.), refletindo sobre o Brasil pós-1964, levanta a hipótese de que o País apresenta um capitalismo baseado em formas articuladas de desenvolvimento desigual e combinado, sob formas mais modernas para valorização do valor e formas históricas precedentes que se configuram nas relações político-econômicas internas e externas. Nessa direção, no capital-imperialismo não há possibilidade de a elite nacional comportar-se como autônoma, devido ao alto grau de internacionalização de capitais e elites orgânicas transnacionais. Por outro lado, a elite brasileira promove modos de dominação em formas arcaicas e novas, recriando permanentemente profundas desigualdades internas.

Nesse sentido, Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) assinala que o Brasil pode ser compreendido como capital-imperialismo, pelo fato de possuir um ciclo avançado de industrialização e monopolização do capital que já vem sendo realizado com grande intensidade desde do golpe de 1964, bem como existem diferentes setores econômicos complexamente entrelaçados. Além disso, o País dispõe de um Estado adaptado ao fulcro central da acumulação de capitais e com certa autonomia diante das pressões de grupos ou setores da economia capitalista em formas organizativas singulares, sendo capaz de garantir a acumulação e conter as reivindicações das camadas populares (FONTES, 2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.). Dessa forma, a autora (FONTES, 2010) argumenta que o Brasil adere de maneira subalterna ao capital-imperialismo.

A adesão subalterna do capitalismo brasileiro ao capital-imperialismo traz profundos rebatimentos para a compreensão dos fenômenos internos. Para Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) não se pode perder de vista as intensas lutas de classes na sociedade civil brasileira ao longo de sua história, os processos de organização dos trabalhadores e o embate constante com as expropriações e com as classes dominantes. Essas disputas são marcadas por intensas repressões, nas quais a saída para o enfrentamento se deu por meio de golpes. Nas palavras da autora (FONTES, 2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010., p. 315):

Para sustentar a dominação nos novos patamares que a própria luta social impunha, era preciso realizar seguidos saltos para a frente em termos da acumulação de capitais, de maneira a assegurar tanto a coesão interelitária, através de um aumento na escala da concentração e da acumulação de capitais, quanto o controle e a adesão, para além do silenciamento, de segmentos populares.

Nesse sentido, Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.) assinala que o processo de redemocratização da década de 1980 exigiu novas formas de convencimento, que serão conquistadas por um processo de integração pelo alto de diversos segmentos das classes sociais. Portanto, a partir dessa chave explicativa buscaremos na próxima seção compreender um dos projetos de convencimento e de expropriação social contidos na órbita do bem público, isto é, o ideário da reforma gerencial voltada para as instituições públicas elaborado durante os mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) no Brasil.

Dimensões do gerencialismo

Logo no primeiro ano de seu primeiro mandato presidencial (1995-1998), Fernando Henrique Cardoso incumbiu o Ministro Bresser-Pereira à frente do Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (MARE) de traçar as diretrizes do projeto de refuncionalização do aparelho do Estado brasileiro. Nas palavras de seu mentor (BRASIL, 1995, p. 17):

A reforma do Estado deve ser entendida dentro do contexto da redefinição do papel do Estado, que deixa de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e serviços, para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desenvolvimento. No plano econômico o Estado é essencialmente um instrumento de transferências de renda, que se torna necessário dada a existência de bens públicos e de economias externas, que limitam a capacidade de alocação de recursos do mercado. Para realizar essa função redistributiva ou realocadora, o Estado coleta impostos e os destina aos objetivos clássicos de garantia da ordem interna e da segurança externa, aos objetivos sociais de maior justiça ou igualdade, e aos objetivos econômicos de estabilização e desenvolvimento.

A consolidação desse projeto no Brasil é expressa com a criação do MARE, que, em 21 de setembro de 1995, lança o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) (BRASIL, 1995), instrumento norteador do projeto de reforma do Estado responsável por estabelecer as diretrizes para a reforma na administração pública. Cardoso (BRASIL, 1995), na apresentação do PDRAE, ressalta que a administração pública deve se reconstruir em bases modernas e racionais, rompendo com a ineficiência da burocracia do funcionalismo público, sendo necessária a implementação de um novo paradigma apoiado em abordagens atuais da administração, como a descentralização e a ideia de que o cidadão é um cliente dos serviços oferecidos pelo poder público.

A administração pública gerencial apresentada por Fernando Henrique Cardoso como solução para os problemas do Brasil e como caminho da modernidade não passa de uma invenção liberal para reestruturação do Estado no contexto do capital-imperialismo. Esta construção da classe dominante está intimamente ligada com os processos de reestruturação produtiva verificado nas empresas privadas a partir da década de 1970. A reestruturação produtiva consiste na busca por novos modelos para romper com a rigidez do binômio fordistataylorista, resultando no que Ricardo Antunes (2009ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.) denominou de empresas flexíveis.

O sociólogo Giovanni Alves (2014ALVES. G. A disputa pelo intangível: estratégias gerenciais do capital na era da globalização. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 55-72., p. 55) observa que “o núcleo ideológico do novo regime de acumulação flexível é o toyotismo, posto como a ideologia orgânica do novo complexo de reestruturação produtiva que surge com a mundialização do capital”. O toyotismo2 2 Vale mencionar que estes novos modelos não rompem totalmente com os padrões produtivos do fordismo-taylorismo, de certa forma, incorporam elementos de continuidade e descontinuidade, porém, seus traços são distintos e capazes de gerar um novo regime de acumulação. Ver Antunes (2009) e Alves (2011). , como modelo organizacional, traduz regras e valores de gestão (ALVES, 2007ALVES. G. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2007.) que serão introduzidos no setor privado e em ambientes organizacionais como, por exemplo, na administração pública por meio da administração gerencial.

Em síntese, os traços essenciais da reestruturação produtiva que geram valor ideológico no campo das organizações públicas podem ser melhor apreendidos em (ANTUNES; DRUCK, 2014ANTUNES, R.; DRUCK, G. A epidemia da terceirização. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo. 2014. p. 13-24.): flexibilização das relações de trabalho e em estruturas flexíveis; subcontratação e terceirização da mão de obra; terceirização dos serviços; salário flexível; métodos de trabalho em equipe; “[...] “times de trabalho” e dos grupos “semiautônomos”, além de exercitar, ao menos no plano discursivo, o “envolvimento participativo” dos trabalhadores”; “[...] “trabalho polivalente”, “multifuncional” [...]”, pautados por uma estrutura de gestão horizontalizada; redução do tempo de trabalho e maior produtividade; utilização de planos de “[...] metas [...]” e de “[...] “competências” dos “colaboradores” [...]” (ANTUNES; DRUCK, 2014, p. 14).

Em virtude disso, as classes dominantes e suas frações necessitavam que fosse edificado um pensamento ou mesmo um projeto capaz de nortear a reestruturação no serviço público. A saída encontrada consistiu na introdução do pensamento gerencialista, também conhecido pelos termos de nova administração pública (new public management), managerialismo e administração pública gerencial (REIS, 2016REIS, T. S. Trajetória político-institucional da Fiocruz (1970-2003): a flexibilização gerencial como projeto. 2016. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de História Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2016.). Entendemos que o gerencialismo3 3 Além da matriz neoliberal, a Teoria da Escolha Pública tem espaço na formação do pensamento gerencialista. Esta teoria, em síntese, emprega princípios econômicos da ciência política: partidos políticos, eleições, teoria do Estado, análise constitucional e análise da burocracia. Tem como premissa teórica o autointeresse e o individualismo metodológico, sob o fundamento da razão instrumental. Alguns de seus postulados são (PAULA, 2003): 1) o Estado deve ser mínimo e as políticas públicas devem adotar estímulos de mercado; 2) o homem é tido como um maximizador de utilidade, egoísta e racional; 3) transfere o princípio de mercado para a política e; 4) o mercado é visto como pressuposto universal. Para saber mais, ver Paula (2003) e Andrews (2004). é um movimento ideológico e prático que tem por objetivo aplicar no setor público métodos e valores culturais da administração empresarial privada. Este movimento, como observa Jean-François Chanlat (2002CHANLAT, J.-F. O gerencialismo e a ética do bem comum: a questão da motivação para o trabalho nos serviços públicos. In: CONGRESO INTERNACIONAL DEL CLAD SOBRE LA REFORMA DEL ESTADO Y DE LA ADMINISTRACIÓN PÚBLICA, 7., 2002, Lisboa. Anais […]. Lisboa: Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo, 2002., p. 9), caracterizase por um “sistema de descrição, explicação e interpretação do mundo a partir das categorias da gestão privada”.

Nesse sentido, a flexibilidade passa a ser a palavra de ordem na linguagem gerencialista, adequando de forma sumária os pressupostos da empresa flexível. Nessa perspectiva, essas mudanças são traduzidas pelo movimento que ficou conhecido como reinventando o governo, cujo expoente é o livro originalmente publicado em 1990 Reinventando o Governo de David Osborne e Ted Gaebler (1993OSBORNE, D.; GAEBLER, T. Reinventando o governo: como o espírito empreendedor está transformando o setor público. Brasília: MH Comunicação, 1993.), material amplamente divulgado e utilizado como referência basilar por Bresser-Pereira, ministro da Reforma do Estado no Brasil.

A centralidade desse movimento assenta na ideia de governo empreendedor e na cultura do management4 4 De acordo com Ana Paula Paes de Paula (2003, p. 42-43), as características essências que configuram a cultura do management são: “1) a crença numa sociedade de mercado livre; 2) a visão do indivíduo como auto-empreendedor; 3) o culto da excelência como forma de aperfeiçoamento individual e coletivo; 4) o culto de símbolos e figuras emblemáticas, como “palavras de efeito” (inovação, sucesso, excelência) e “gerentes heróis” e; 5) a crença em tecnologias gerenciais que permitem racionalizar as atividades organizadas grupais”. , desenvolvendo um discurso empresarial apoiado pela midiatização da figura do homem de negócios, reproduzido e estruturado pelas escolas de administração e pelas empresas de consultoria empresarial. A contribuição do movimento reinventando o governo é, sobretudo, pensar o Estado como agente empreendedor, capaz de proporcionar um ambiente de competição interna e com o setor privado. Nessa linha empreendedora, Osborne e Gaebler (1993OSBORNE, D.; GAEBLER, T. Reinventando o governo: como o espírito empreendedor está transformando o setor público. Brasília: MH Comunicação, 1993.) direcionam as ações que os governos precisam tomar para se adequarem aos métodos e valores da empresa privada, propondo dez princípios para reinventar o governo. São eles: 1) competição entre os prestadores de serviços públicos; 2) transferência do controle das atividades da burocracia para os usuários; 3) avaliação e medição dos resultados dos órgãos públicos; 4) orientar-se por objetivos, e não por regras e regulamentos; 5) usuários como clientes; 6) atuar na prevenção dos problemas; 7) prioridade do investimento na produção dos recursos e não nos insumos; 8) descentralização da autoridade; 9) preferência por mecanismos de mercado em vez de soluções burocráticas e; 10) catalisar a ação do setores público, privado e não-governamental.

Nesse sentido, propõe-se a divisão entre gestão e execução na medida em que o Estado deve se concentrar em traçar os rumos da coisa pública, cabendo ao setor privado e/ou ao público administrado pelo privado (público não estatal) a execução das atividades. Esta distinção entre planejar e executar é ilustrada na metáfora utilizada por Osborne e Gaebler (1993OSBORNE, D.; GAEBLER, T. Reinventando o governo: como o espírito empreendedor está transformando o setor público. Brasília: MH Comunicação, 1993.) em navegar e remar, onde o governo tem a função de navegar (organizar e traçar os rumos) e o setor privado e o terceiro setor de remar (executar o serviço público). Sendo assim, essa lógica traduz-se em uma concepção difusa de eficiência, gestão organizacional e prestação de serviços, principalmente em afirmar que esses atributos são naturais do setor privado, restando ao Estado a ineficiência, improdutividade, incapacidade de gestão nos múltiplos campos de sua atuação, tratados pelos autores como algo natural e intrínseco. É nessa linha que recomendam a penetração do setor privado como saída para a prestação dos serviços públicos por meio de privatização e terceirização, estes últimos em casos onde as atividades requerem um envolvimento social, atos de solidariedade, como no caso da saúde e educação, percebidos como pouco lucrativos (OSBORNE; GAEBLER, 1993OSBORNE, D.; GAEBLER, T. Reinventando o governo: como o espírito empreendedor está transformando o setor público. Brasília: MH Comunicação, 1993.).

Além disso, sugere-se a despolitização da administração pública, instrumentalizando-a como mecanismo de prevenção dos males da gestão estatal, negando qualquer hipótese de elaborar e levantar questões sobre a totalidade dos problemas, os interesses e sujeitos sociais envolvidos no âmbito mais amplo do serviço público, ou seja, o manejo das ações do setor passa a ser visto de forma mecânica, instrumental e despolitizada. A ideia de eficiência só será alcançada com o expurgamento da cultura burocrática, atualizando as formas de dominação, entendidas pelos autores (OSBORNE; GAEBLER, 1993OSBORNE, D.; GAEBLER, T. Reinventando o governo: como o espírito empreendedor está transformando o setor público. Brasília: MH Comunicação, 1993.) como um modelo pós-burocrático, flexível, e construído a partir da incorporação dos sentidos da empresa flexível e moderna.

De modo geral, até o fim do século XX, os componentes do gerencialismo podem ser sistematizados da seguinte forma (REIS, 2016REIS, T. S. Trajetória político-institucional da Fiocruz (1970-2003): a flexibilização gerencial como projeto. 2016. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de História Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2016.): 1) governo empreendedor; 2) orientação para o mercado; 3) ambiente de competição entre agências públicas e o mercado; 4) descentralização do serviço público: descentralização das ações do poder central para os núcleos no âmbito federal, estadual e regional. Além disso, verifica-se o estímulo em firmar parcerias com o setor privado e com as organizações não governamentais (ONGs); 5) maior autonomia para as agências públicas; 6) privatização e terceirização; 7) lógica empresarial, substituição de cidadão por cliente; 8) desregulamentação do mercado de trabalho, flexibilização das leis trabalhistas, fim da seguridade do emprego público, negociação coletiva, novas formas de contratos de trabalho; 9) uso da linguagem empresarial: busca por eficiência, eficácia, foco em resultados, gestão horizontalizada, redução de custos, controle dos processos e do trabalhador, mecanismos de avaliação de desempenho, incentivo ao planejamento estratégico de médio e longo prazo, uso de técnicas do setor privado como Total Quality Management (qualidade total), e transformação da cultura do serviço público para uma cultura da empresa privada na administração pública e; 10) aplicação do contrato de gestão para controle dos gestores públicos. Refere-se aos contratos entre as instituições estatais e o poder central, em que são utilizados normas e instrumentos responsáveis por medir e controlar as metas e os objetivos explicitados nos contratos. Em grande medida, este procedimento vincula-se à narrativa da gestão por resultados5 5 Os fundamentos do gerencialismo divergem entre os estudiosos do tema, mas mantêm como referência para o serviço público as características da empresa privada. Destacam-se os autores Abrucio (1997) e Bresser-Pereira e Spink (1998). .

Nessa direção, Bresser-Pereira, valendo-se desses enunciados, escreve o PDRAE (BRASIL, 1995). Levando em consideração as reformas na administração pública já realizadas no País, aponta para o caráter pioneiro da reforma administrativa de 1967 por meio do Decreto-lei nº 200 (BRASIL, [2003]), na medida em que buscou a descentralização das atividades estatais, como, por exemplo, para as fundações, e com a criação de novas técnicas de flexibilização da gestão pública. No entanto, Bresser-Pereira (BRASIL, 1995) acusa o controle do poder executivo e a ausência de técnicas modernas de administração como os fatores centrais para o fracasso da reforma de 1967. Nessa linha, o alvo principal de sua crítica recai sobre a Constituição de 1988, considerada como retrógrada e burocrática (BRASIL, 1995).

Na verdade, o que Bresser-Pereira (BRASIL, 1995) acusava dizia respeito à criação do regime jurídico único (RJU) e da retirada do modelo flexível de direito privado que vigorou em grande parte das entidades públicas na ditadura civil-militar (1964-1985). A Constituição Brasileira de 1988 alterou substancialmente a forma jurídica e administrativa das instituições públicas, como por exemplo as fundações públicas, ora de direito privado, que passaram a responder pelo direito público, alterando o regime contratual baseado na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e sem estabilidade para a obrigatoriedade de realizar concursos públicos para provimento de cargos, bem como reger-se pelo regime contratual estatutário, alicerçado no RJU, que, dentre outros, confere estabilidade no emprego ao servidor público.

Após 1988 a administração pública assumiu uma série de normativas e regramentos, tais como a Lei de Licitações e Contratos (BRASIL, [2019]), que obriga o setor público a licitar na compra de mercadorias e contratação de serviços de terceiros, assim como recai sobre o setor uma maior ação dos órgãos de fiscalização e controle. Estas prerrogativas oferecem obstáculos para as políticas de expropriação social no capitalismo contemporâneo, colocando limites à extração de mais-valor no mundo do trabalho, na apropriação de serviços, nas vantagens comerciais, no assalto ao fundo público e de tudo aquilo que se vinculasse à esfera do poder público por parte dos capitais de origem privada.

Bresser-Pereira (BRASIL, 1995) dispara contra as mudanças no serviço público operada pela Constituição de 1988. Para o ministro (BRASIL, 1995, p. 29-30), “[...] houve um encarecimento significativo do custeio da máquina administrativa, tanto no que se refere a gastos com pessoal como bens e serviços, e um enorme aumento da ineficiência dos serviços públicos”. Portanto, a reforma do Estado objetivou cortar gastos com o funcionalismo público, flexibilizar os contratos de trabalho, ou seja, o estatuto do servidor público, e abrir o aparato jurídicoinstitucional das entidades públicas para a natureza jurídica do direito privado e para as privatizações.

A rigidez da estabilidade assegurada aos servidores públicos civis impede a adequação dos quadros de funcionários às reais necessidades do serviço, e dificulta a cobrança de trabalho. Da mesma forma, a transformação do concurso público - cuja exigência generalizada na administração pública representou o grande avanço da Constituição de 1988 - em uma espécie de tabu dificulta as transferências de funcionários entre cargos de natureza semelhante. Por outro lado, as exigências excessivas de controles no processo de compras e o detalhismo dos orçamentos são exemplos dessa perspectiva burocrática implantada na lei brasileira, que dificultam de forma extraordinária o bom funcionamento da administração pública. (BRASIL, 1995, p. 34-35).

Bresser-Pereira (BRASIL, 1995, p. 35) complementa ressaltando:

A legislação que regula as relações de trabalho no setor público é inadequada, notadamente pelo seu caráter protecionista e inibidor do espírito empreendedor. São exemplos imediatos deste quadro a aplicação indiscriminada do instituto da estabilidade para o conjunto dos servidores públicos civis submetidos a regime de cargo público e de critérios rígidos de seleção e contratação de pessoal que impedem o recrutamento direto no mercado, em detrimento do estímulo à competência.

Identificados os problemas, o MARE define quais serão os setores e as formas de propriedade compostas pelo aparelho do Estado6 6 Além do núcleo dos Serviços Não Exclusivos, o MARE (BRASIL, 1995, p. 52-53) define também: “NÚCLEO ESTRATÉGICO. Corresponde ao governo, em sentido lato. É o setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento. É, portanto o setor onde as decisões estratégicas são tomadas. Corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e, no poder executivo, ao Presidente da República, aos ministros e aos seus auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas públicas. ATIVIDADES EXCLUSIVAS. É o setor em que são prestados serviços que só o Estado pode realizar. São serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado - o poder de regulamentar, fiscalizar, fomentar. Como exemplos temos: a cobrança e fiscalização dos impostos, a polícia, a previdência social básica, o serviço de desemprego, a fiscalização do cumprimento de normas sanitárias, o serviço de trânsito, a compra de serviços de saúde pelo Estado, o controle do meio ambiente, o subsídio à educação básica, o serviço de emissão de passaportes etc. [...] PRODUÇÃO DE BENS E SERVIÇOS PARA O MERCADO. Corresponde à área de atuação das empresas. É caracterizado pelas atividades econômicas voltadas para o lucro que ainda permanecem no aparelho do Estado como, por exemplo, as do setor de infra-estrutura. Estão no Estado seja porque faltou capital ao setor privado para realizar o investimento, seja porque são atividades naturalmente monopolistas, nas quais o controle via mercado não é possível, tornando-se necessário no caso de privatização, a regulamentação rígida”. . A grande novidade da nova classificação do aparelho do Estado assentou em criar o setor de Serviços Não Exclusivos, protagonizado pela propriedade “[...] pública não-estatal” (BRASIL, 1995, p. 55) e privada. Esses serviços são definidos pelo Plano Diretor (BRASIL, 1995, p. 53) como sendo os que “[...] envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educação e da saúde, ou porque possuem “economias externas” relevantes, na medida que produzem ganhos que não podem ser apropriados por esses serviços através do mercado”, porque, segundo o MARE, não podem ser transformados em lucro. Este setor seria composto por entidades sem fins lucrativos, “[...] que não são propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas diretamente para o atendimento do interesse público. O tipo de propriedade mais indicado variará de acordo com o setor do aparelho do Estado”. (BRASIL, 1995, p. 54).

Há um claro contrassenso na definição de propriedade estatal por parte do interlocutor Bresser-Pereira (BRASIL, 1995), tendo em vista que entidades sem fins lucrativos organizadas fora da estrutura do Estado atendem pela natureza jurídica do direito privado que corresponde ao interesse privado, individual e/ou de determinado grupo social, sem qualquer comprometimento e/ou relação com o interesse coletivo e social. Além disso, Leonardo Brito (2016BRITO, L. L. de. O intelectual e o desmonte do Estado no Brasil: Luiz Carlos Bresser Pereira e o MARE (Ministério Extraordinário da Administração e Reforma do Estado). 2016. Tese (Doutorado em História Social) - Departamento de História, Instituto de Ciências Humanos e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016., p. 209), ao analisar a construção desse modelo de propriedade no seio do aparelho do Estado, sugere que Bresser-Pereira identificou o Estado “[...] como algo externo à sociedade civil e vazio quanto à presença de disputas políticas inerentes à dinâmica dos conflitos das frações de classe que ocupam o aparelho de Estado”. Para Brito (2016, p. 209), Bresser-Pereira se vale de um “[...] neutralismo burocrático estatal [...]” ao estabelecer as formas de propriedade concernentes ao aparelho do Estado.

A reforma do Estado brasileiro não se configura isoladamente, ela necessita do Estado e suas agências para garantir a sua institucionalização e generalização. Cabe destacar que o Estado não é uma entidade autônoma, um sujeito ou objeto, ele está recortado pelas classes e suas frações, em contínua disputa entre si. As reformas no setor público são políticas resultantes das formas concretas da dinâmica do capital-imperialismo (FONTES, 2017FONTES, V. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx e o Marxismo, Niterói, v. 5, n. 8, p. 45-67, jan./jun. 2017.). O desmantelamento das instituições públicas e as reconfigurações na extração de maisvalor são levadas a cabo por projetos de convencimento, que devem ser percebidos como interesse comum e inevitável para o processo de modernização.

No capital-imperialismo o trabalho adquire formatos diversificados e contraditórios, reduzindo-se a emprego, limitando-se à busca pela subsistência, perdendo suas capacidades criativas, com forte tendência a assumir contratos jurídicos de emprego variados e precários (FONTES, 2017FONTES, V. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx e o Marxismo, Niterói, v. 5, n. 8, p. 45-67, jan./jun. 2017.). A reforma do setor público transforma contratos que ora garantiam direitos aos trabalhadores, em seus empregos, em contratos via terceirização da força de trabalho, reduzindo o número de trabalhadores diretos, mantendo-se somente os cargos de relevância político-econômica, ao passo que os demais serão terceirizados e/ou contratados de forma precária, sem garantias de futuro, às vezes sem quaisquer garantias trabalhistas, por exemplo, contratos de trabalho por meio de bolsa.

A força de trabalho, que ora detinha certa organização e conquistas, vê-se desmantelada pela flexibilidade imposta pela reestruturação produtiva e pela reforma do Estado. Conforme aponta Ricardo Antunes (2010ANTUNES, R. A nova morfologia do trabalho, suas principais metamorfoses e significados: um balanço preliminar. In: GUIMARÃES, C; BRASIL, I.; MOROSINI, M. V. (org.). Trabalho, educação e saúde: 25 anos de formação politécnica no SUS. Rio de Janeiro: EPSJV, 2010. p. 11-28.), é neste quadro de precarização estrutural do trabalho que o capital vem, de forma cada vez mais rigorosa, exigindo dos governos nacionais o desmonte da legislação social que protege a classe trabalhadora. É a lógica do capital-imperialismo assumida pela reforma do Estado, a permanência das expropriações sociais, com mais trabalhadores disponíveis para vender sua força de trabalho e em concorrência com os trabalhadores empregados, bem como a despossessão dos bens coletivos via privatização das instituições públicas.

Considerações finais

A ideia de administração gerencial voltada para o setor público, tendo a reforma do Estado brasileiro de FHC como expressão, foi responsável por elaborar projetos, modelos e formas de pensar acerca do funcionamento das instituições públicas baseadas na flexibilização das ações administrativas e diretivas. Trata-se de um projeto de reestruturação da organização do serviço público visando favorecer a edificação de uma imagem de que o setor público necessitaria urgentemente se modernizar pela via da flexibilização gerencial para se adequar ao progresso tecnológico, político, econômico e até mesmo societal. O gerencialismo, valendo-se de uma narrativa baseada na primazia da técnica, da especialização, das normas e regulamentos, buscou despolitizar a organização do serviço público, os conflitos e lutas sociais na sociedade civil em favor de interesses de poucos, distanciando-se da participação popular nas decisões estatais e no acesso aos bens e serviços públicos.

Reformar as instituições públicas tem por preceito o funcionamento pela via da empresa privada, flexibilizando processos, normas e contratos de trabalho, abrindo caminho para apropriação de capitais privados do fundo público e na organização no serviço público, expropriando os bens coletivos. Esse é, sem dúvida, um dos formatos atuais de expropriação social do capital-imperialismo que a reforma do Estado preconizou. Os direitos conquistados pela Constituição de 1988 configuram entraves para a dinâmica do capital-imperialismo, sendo duramente atacados pela reforma de FHC.

O gerencialismo configura-se como uma das formas contemporâneas de expropriação no contexto do capital-imperialismo, aprofundando as lutas de classes no interior do Estado. As dimensões dessa forma de expropriação devem ser analisadas em pesquisas empíricas dedicadas a compreender as diversas faces desse fenômeno que se apresenta como uma nova maneira de apropriação do Estado por parte das classes e suas frações dominantes, retirando direitos sociais coletivos e aprofundando a desigualdade social.

Referências

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Notas

  • 1
    A sociedade política, também chamada por Gramsci (2000) de Estado-governo ou Estado do político, é o Estado em seu sentido restrito, correspondente ao aparelho governamental voltado para a administração direta e do exercício legal da coerção sobre aqueles que não consentem de maneira ativa ou passivamente.
  • 2
    Vale mencionar que estes novos modelos não rompem totalmente com os padrões produtivos do fordismo-taylorismo, de certa forma, incorporam elementos de continuidade e descontinuidade, porém, seus traços são distintos e capazes de gerar um novo regime de acumulação. Ver Antunes (2009) e Alves (2011).
  • 3
    Além da matriz neoliberal, a Teoria da Escolha Pública tem espaço na formação do pensamento gerencialista. Esta teoria, em síntese, emprega princípios econômicos da ciência política: partidos políticos, eleições, teoria do Estado, análise constitucional e análise da burocracia. Tem como premissa teórica o autointeresse e o individualismo metodológico, sob o fundamento da razão instrumental. Alguns de seus postulados são (PAULA, 2003): 1) o Estado deve ser mínimo e as políticas públicas devem adotar estímulos de mercado; 2) o homem é tido como um maximizador de utilidade, egoísta e racional; 3) transfere o princípio de mercado para a política e; 4) o mercado é visto como pressuposto universal. Para saber mais, ver Paula (2003) e Andrews (2004).
  • 4
    De acordo com Ana Paula Paes de Paula (2003, p. 42-43), as características essências que configuram a cultura do management são: “1) a crença numa sociedade de mercado livre; 2) a visão do indivíduo como auto-empreendedor; 3) o culto da excelência como forma de aperfeiçoamento individual e coletivo; 4) o culto de símbolos e figuras emblemáticas, como “palavras de efeito” (inovação, sucesso, excelência) e “gerentes heróis” e; 5) a crença em tecnologias gerenciais que permitem racionalizar as atividades organizadas grupais”.
  • 5
    Os fundamentos do gerencialismo divergem entre os estudiosos do tema, mas mantêm como referência para o serviço público as características da empresa privada. Destacam-se os autores Abrucio (1997) e Bresser-Pereira e Spink (1998).
  • 6
    Além do núcleo dos Serviços Não Exclusivos, o MARE (BRASIL, 1995, p. 52-53) define também: “NÚCLEO ESTRATÉGICO. Corresponde ao governo, em sentido lato. É o setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento. É, portanto o setor onde as decisões estratégicas são tomadas. Corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e, no poder executivo, ao Presidente da República, aos ministros e aos seus auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas públicas. ATIVIDADES EXCLUSIVAS. É o setor em que são prestados serviços que só o Estado pode realizar. São serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado - o poder de regulamentar, fiscalizar, fomentar. Como exemplos temos: a cobrança e fiscalização dos impostos, a polícia, a previdência social básica, o serviço de desemprego, a fiscalização do cumprimento de normas sanitárias, o serviço de trânsito, a compra de serviços de saúde pelo Estado, o controle do meio ambiente, o subsídio à educação básica, o serviço de emissão de passaportes etc. [...] PRODUÇÃO DE BENS E SERVIÇOS PARA O MERCADO. Corresponde à área de atuação das empresas. É caracterizado pelas atividades econômicas voltadas para o lucro que ainda permanecem no aparelho do Estado como, por exemplo, as do setor de infra-estrutura. Estão no Estado seja porque faltou capital ao setor privado para realizar o investimento, seja porque são atividades naturalmente monopolistas, nas quais o controle via mercado não é possível, tornando-se necessário no caso de privatização, a regulamentação rígida”.
  • Agência financiadora

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Projeto: 870107/1997-6. Processo: 140712/2018-6. Vigência: 01/03/2018 a 28/02/2022.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2018
  • Aceito
    18 Set 2018
  • Revisado
    20 Fev 2019
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