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Judicialização e seguridade social: restrição ou efetivação de direitos sociais?

Judicialization and social security: Restriction or enforcement of social rights

Resumo

O artigo objetiva problematizar o sistema de proteção social e o fenômeno da judicialização num contexto de fragilidade na efetivação das políticas sociais. A análise deste trabalho fundamenta-se, tão logo, em pesquisa de campo, documental e bibliográfica. Discutem-se os retrocessos, os desmontes, as violações de direitos, e o que leva, seguidamente, os cidadãos recorrerem à via judicial como alternativa para acessá-los. Demonstra-se que mudanças nas regulamentações, bem como nos critérios para acessar direitos na atual conjuntura, tornam-se cada vez mais restritos, rigorosos, o que aponta para perdas de direitos assegurados aos cidadãos. Ademais, o processo de judicialização, como meio para buscar os direitos negados, também oferece limites, uma vez que as instituições e os serviços não alcançam todas as populações, caracterizando-se, ainda, como algo longo, demorado, desgastante e burocrático, que não atende, por vezes, à exigência de celeridade e resolução do contexto de vulnerabilidade social vivenciado pelos sujeitos que buscam, por meio dessa via, a efetivação de direitos sociais.

Palavras-chave:
Seguridade social; Direitos sociais; Judicialização

Abstract

The article problematizes the social protection system and the judicialization in a context of weak enforcement of social policies. The study is supported by field research and documentary and bibliographical analysis and discusses the setbacks and violations regarding social rights, as well as the dismantling of the social protection system, which leads citizens to judicialize their demands in order to access rights. The article shows that current changes in the regulation and criteria have made access more restrictive and excessively rigorous, which indicates that citizens are, in practice, losing assured rights. Also, the process of judicialization to obtain denied rights is limiting, since institutions and services do not reach the entire population. It is a long term, time-consuming, wasteful, and bureaucratic process that barely meets the speed and resolution required by individuals in a context of social vulnerability.

Keywords:
Social security; Social rights; Judicialization

Introdução

O processo de conquista e estruturação do sistema de proteção social no Brasil, bem como os desmontes de direitos, situa-se num contexto de expansão do modo de produção capitalista, a partir da lógica neoliberal, de reestruturação produtiva e de acumulação flexível, de modo a manter o crescimento econômico em detrimento de avanços sociais. Em decorrência disso, são alteradas as relações sociais e as condições de trabalho, reduzidos os investimentos no âmbito das políticas sociais, o que, em consequência, provoca retrocesso dos direitos sociais conquistados e o agravamento das expressões da questão social.

Segundo Behring e Boschetti (2008BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008., p. 51), as políticas sociais “[...] são desdobramentos e até mesmo respostas e formas de enfrentamento - em geral setorializadas e fragmentadas - às expressões multifacetadas da questão social no capitalismo, cujo fundamento se encontra nas relações de exploração do capital sobre o trabalho [...]”. A relação capital-trabalho se expressa de modo contraditório e desigual, pois, ao mesmo tempo em que é capaz de produzir riqueza, é capaz de gerar pobreza, miséria, aumento do desemprego e violência. Estas são expressões da questão social que emergem dessa relação e que demandam intervenção por parte do Estado, o qual cria mecanismos voltados para atender, principalmente, aos interesses da classe dominante e não atuar no cerne da questão social.

Cabe destacar que, desde a sua emergência, as políticas sociais se apresentam de forma limitada, segmentada, instável, alvo de contrarreformas, com intervenção mínima do Estado em prol de um projeto de sociedade pautado pela lógica capitalista. O cenário contemporâneo brasileiro é permeado por contrarreformas e consequente desmonte das políticas públicas. Este fato restringe, limita e dificulta o acesso dos cidadãos aos direitos sociais, aumenta as desigualdades sociais e violações de direitos.

Assim sendo, debater sobre a Seguridade Social significa situá-la tanto no âmbito da conquista e ampliação de direitos, quanto no dos retrocessos e limites para a sua implementação na sociedade capitalista. Inúmeros são os desafios e os embates constantes para a efetivação desse modelo de proteção social, em especial, no Brasil. Diante da fragilidade na efetivação dos direitos sociais assegurados na Constituição Federal de 1988, emerge o fenômeno da judicialização de direitos, de modo que o Estado cumpra, compulsoriamente, o dever de efetivá-los. Convém destacar a ampliação efetiva dos direitos sociais, sobretudo em se tratando de sua estruturação normal e seus marcos legais, fato este que, per se, não evitou o desencadeamento dos processos de judicialização dada a crescente violação de direitos aos cidadãos. Recorrer cada vez mais à via judicial, muitas vezes, parece ser a única alternativa para acessar os direitos violados.

Desse modo, o presente trabalho objetiva problematizar sobre o sistema de proteção social e do fenômeno da judicialização num contexto de fragilidade na efetivação das políticas sociais. São abordadas algumas questões que remetem à estruturação de um sistema amplo de garantia de direitos, mas que, diante de um projeto de sociedade pautado na lógica neoliberal, restringem-se mediante a redução de investimentos nas políticas sociais, a desresponsabilização do Estado perante sua efetivação, caminhando, dessa forma, para as perdas e as violações de direitos, conforme sinalizado. Discute-se, ainda, o fenômeno da judicialização, o qual cresce frente a esse cenário de retrocessos, dificuldade e limitações no acesso aos direitos sociais garantidos constitucionalmente. Por fim, as discussões, as reflexões e as análises fundamentam-se em uma abordagem de natureza qualitativa, utilizando-se de pesquisa de campo, documental e bibliográfica.

O sistema de proteção social e os limites para efetivação de direitos sociais

A seguridade social no Brasil, constituída pelas políticas de saúde, previdência e assistência social, representa importante conquista no campo dos direitos para a classe trabalhadora, uma vez que a introdução deste conceito na Constituição Federal de 1988 permitiu a ampliação e a universalização de acesso aos direitos sociais assegurados aos cidadãos. Ficou previsto no art. 194 da referida Constituição que a seguridade social “[...] compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. (BRASIL, [2017]). Esse sistema tem por objetivo garantir o bem-estar, a igualdade e a justiça social, competindo ao Estado, por meio do planejamento, da formulação e da execução de políticas públicas, efetivá-los.

Esse modelo de proteção social é resultante de lutas históricas empreendidas pela classe trabalhadora que reivindicava a garantia e ampliação de direitos, de modo a assegurar-lhes condições de vida dignas e igualdade de oportunidades. Ressalta-se, entretanto, que as lutas objetivando garantir o acesso aos direitos são contínuas, haja vista que estes são alvo de ataques, desmontes na sociedade capitalista, em que predomina a busca incessante pela acumulação de riqueza, opressão e exploração da classe trabalhadora.

Embora seja inegável que esse sistema integrado representou avanços em termos de conquistas de direitos, a sua implementação oferece limites para que sejam efetivados e universalizados. Com base nas concepções de Boschetti (2009BOSCHETTI, I. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS DE SERVIÇO SOCIAL. (org.). Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS, 2009. p. 323-340.), a seguridade social na sociedade brasileira encontra-se estruturada a partir de princípios dos dois modelos distintos de seguridade social, instituídos na Alemanha e na Inglaterra, quais sejam: o modelo bismarckiano e o modelo beveridgiano, respectivamente. Ao estabelecer a distinção entre tais sistemas, sendo o primeiro baseado numa lógica de seguro social e que beneficia os trabalhadores formais, e o segundo numa lógica de universalidade de direitos a todos os cidadãos, a autora compreende que a seguridade social brasileira se constitui a partir desses modelos na medida em que passa a “[...] restringir a previdência aos trabalhadores contribuintes, universalizar a saúde e limitar a assistência social a quem dela necessitar [...]” (BOSCHETTI, 2009BOSCHETTI, I. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS DE SERVIÇO SOCIAL. (org.). Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS, 2009. p. 323-340., p. 1).

Para Boschetti (2009BOSCHETTI, I. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS DE SERVIÇO SOCIAL. (org.). Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS, 2009. p. 323-340.), a seguridade representa importante conquista no âmbito dos direitos, entretanto, apresenta limites para sua universalização, uma vez que terão assegurados direitos, prioritariamente, aqueles trabalhadores inseridos no mercado de trabalho formal e que destinam contribuição ao sistema de previdência social. Quanto àqueles que desenvolvem atividades informais de trabalho ou que vivenciam condição de desemprego, ficam desprovidos de garantias que são oriundas do labor. Desse modo, a situação de emprego formal é condicionante para acessar, por exemplo, benefícios previdenciários. A autora (BOSCHETTI, 2009BOSCHETTI, I. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS DE SERVIÇO SOCIAL. (org.). Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS, 2009. p. 323-340.) destaca, ainda, que no sistema de seguridade social foi introduzida a lógica social, não contributiva, de transferência de renda, visto que a lógica do seguro, contributiva, é incapaz de atender a todos, sobretudo aqueles que desempenham atividades informais e os desempregados, conforme mencionado. Boschetti (2009, p. 8) afirma, portanto, que:

No Brasil, estamos longe desse padrão de seguridade social. O capitalismo brasileiro implantou um modelo de seguridade social sustentado predominantemente na lógica do seguro. Desde o reconhecimento legal dos tímidos e incipientes benefícios previdenciários com a Lei Elóy Chaves em 1923, predominou o acesso às políticas de previdência e de saúde apenas para os contribuintes da previdência social. A assistência social manteve-se, ao longo da história, como uma ação pública desprovida de reconhecimento legal como direito, mas associada institucionalmente e financeiramente à previdência social.

A instituição do sistema previdenciário surgiu ligada à lógica do seguro e para atender, inicialmente, algumas categorias de trabalhadores específicas. Nesse sentido, a Lei Eloy Chaves de 1923, importante marco para a constituição da previdência no Brasil, criou Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs) para trabalhadores das empresas ferroviárias e marítimas, em específico, uma vez que estavam diretamente envolvidas com o processo de desenvolvimento econômico no país, conforme apontam Behring e Boschetti (2008BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008.). No que se refere ao acesso à saúde, como se pode notar, era garantida aos contribuintes da política previdenciária. Já para aqueles em situação de pobreza, a assistência à saúde era assegurada sob o viés da caridade, da filantropia.

Para Boschetti (2009BOSCHETTI, I. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS DE SERVIÇO SOCIAL. (org.). Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS, 2009. p. 323-340., p. 4) “[...] esse padrão de seguridade social, fundado na lógica do seguro, só universaliza direitos se universalizar, igualmente, o direito ao trabalho, já que os benefícios são condicionados ao acesso a um trabalho estável que permita contribuir para a seguridade social [...]”. Diante disso, convém assinalar que a falta de acesso igualitário ao trabalho, as mudanças nas condições e nas relações de trabalho, que tendem a uma maior precarização, a elevação do número de pessoas desempregadas e/ou em situação de trabalho informal, apresentam-se como elementos que impõem limites para o acesso aos direitos previdenciários e trabalhistas. Importante sinalizar que essa realidade contribui para que haja maior demanda pela proteção da política de assistência social, uma vez que corrobora para o aumento da população desprovida de garantias trabalhistas e previdenciárias, assim como os índices de pobreza e miséria que tendem a elevar-se.

A política de previdência social, como se observa, estrutura-se atrelada à lógica do seguro, o que a aproxima do modelo bismarckiano alemão. Essa política, conforme se encontra descrita na Lei nº 8.213 de 1991, tem por objetivo “[...] assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente”. (BRASIL, [2019a]). Em relação aos benefícios garantidos aos segurados e aos dependentes do Regime Geral de Previdência Social, encontramse dispostos na Lei nº 8.213 de 1991, quais sejam: Aposentadorias por Idade, por Tempo de Serviço, por Invalidez e Especial, Pensão por Morte, Salário-Maternidade, Salário-Família, Auxílio-Doença, Auxílio-Reclusão e Auxílio-Acidente (BRASIL, [2019a]).

Tais direitos, na atualidade, são submetidos a amplas reformulações1 1 É o caso da MP nº 664, de 2014, e da Lei nº 13.135, de 2015, (BRASIL, [2015b]) em que se observam modificações nos critérios de carência, exigência de tempo mínimo de casamento ou união estável, vitaliciedade e duração do benefício de Pensão por morte. (MEDIDAS..., 2015). As mudanças atingem os trabalhadores que tem acesso cada vez mais limitado aos direitos. Conforme destacado em material produzido pelo Conselho Federal de Serviço Social (2017), as medidas e propostas caracterizam-se como agressivas no governo do ilegítimo Presidente Michel Temer (MDB). Tendo o mesmo, no ano de 2016, extinguido o Ministério da Previdência Social e Trabalho, de modo que órgãos responsáveis por gerir, controlar, executar a política de previdência passaram a fazer parte de outros dois Ministérios, Ministério da Fazenda e Ministério Desenvolvimento Social e Agrário. Também no mesmo período, dezembro de 2016, foi encaminhada à Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287 de 2016, que versa sobre a Reforma Previdenciária (BRASIL, 2016; CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2017). Também fazem parte dos retrocessos dos direitos as alterações no BPC previstas no Decreto nº 8.805 de 2016 (BRASIL, [2016]), entre elas a obrigatoriedade do cadastramento dos requerentes no CadUnico. Vale mencionar que o conjunto dessas medidas objetiva “[...] assegurar a manutenção do sistema financeiro, retomar o crescimento econômico e assegurar a sustentabilidade da dívida pública à custa da retirada de direitos sociais”. (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2016). , mediante medidas e propostas, que implicam na redução, perda de direitos, haja vista que os critérios de acesso e de manutenção se tornam cada vez mais limitados e restritivos. São contrarreformas realizadas pelos governos que visam cortar gastos sociais e utilizar recursos para pagamentos, dentre outros, dos juros da dívida pública e financiar o grande capital financeiro. Ademais, a redução de recursos investidos em políticas e serviços públicos corrobora para a precarização e a ineficiência destes, o que dá condições de expansão para o mercado de planos privados de previdência, de saúde, favorecendo a lógica neoliberal vigente.

Tal cenário caracterizado pelo desmonte do Estado (LESBAUPIN; MINEIRO, 2002LESBAUPIN, I.; MINEIRO, A. O desmonte da nação em dados. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.), perda de direitos, iniciado no governo anterior e vivenciado de maneira mais intensa no atual governo2 2 Este governo refere-se ao do ex-Presidente da República, Michel Temer, que assumiu a presidência no período de 2016 a 2018, após um golpe político, jurídico e midiático, que culminou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff. que, inclusive, intenta alterar substancialmente o direito à pensão por morte, contribuindo para o agravamento das expressões da questão social, pois o Estado se retrai em suas responsabilidades de assegurar os direitos aos cidadãos e de garantir a efetivação das políticas públicas. Fato que contribui para o crescimento de ações judiciais movidas por cidadãos que buscam, através da judicialização, ter acesso aos direitos conquistados e que estão previstos na Carta Magna.

Vale destacar que as Medidas Provisórias (MPs) nº 664 e nº 665, de 2014, aprovadas no governo Dilma Rousseff, alteram regras de concessão de direitos trabalhistas e previdenciários, dentre os quais: auxílio-doença, pensão por morte, abono salarial e seguro-desemprego. Em se tratando do benefício de pensão por morte, em específico, está previsto na Lei nº 8.213 de 1991 (BRASIL, [2019a]), a qual dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social. Este benefício é garantido às pessoas que mantinham relação de dependência com o falecido segurado. Ressalta-se que com as regulamentações em vigência, estabelecidas na Lei nº 13.135 de 2015 (BRASIL, [2015b]), as regras para acessar a pensão por morte, por exemplo, têm se tornado cada vez mais restritivas e limitadas, sobretudo no contexto atual de permanente reformulação e mudanças nas legislações.

Com relação às regras para o benefício de pensão por morte proposta pela MP nº 664, de 2014, e a Lei nº 13.135, de 2015 (BRASIL, [2015b]), fica previsto tempo mínimo de 18 contribuições por parte do segurado, ainda, período mínimo de 2 anos para comprovação de casamento ou união estável. Além disso, a duração da pensão por morte passa a ser variável entre 3 e 20 anos para cônjuges, companheiro(a) com idade inferior a 44 anos de idade, e pensão por morte vitalícia a partir de 44 anos, ou seja, a manutenção do benefício varia conforme a idade do dependente do segurado na data do óbito. Cabe destacar que anterior às medidas, o benefício de pensão por morte concedido ao dependente do segurado era vitalício e independia da idade do beneficiário(a), assim como não era exigido tempo mínimo de contribuição ou de casamento ou união estável (MEDIDAS..., 2015). Com tais mudanças na garantia de pensão vitalícia, como destacado acima, deixa de ser beneficiado o público mais jovem. Ademais, vale sinalizar que uma das justificativas para tais alterações é coibir fraudes, abusos na concessão do benefício (BRASIL, [2015c]), o que, per se, revela a face do Estado em punir os pobres (WACQUANT, 2003WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.) e criminalizar a pobreza.

Acrescenta-se que, com a Reforma Previdenciária proposta pelo governo do ex-presidente Michel Temer (BRASIL, 2016), restringem-se cada vez mais os direitos, uma vez que o referido benefício não poderá ser acumulado com outro benefício previdenciário, aposentadoria ou pensão, por exemplo, devendo optar por um deles. Praticamente significará o fim da pensão por morte, já que a pessoa terá que optar pela remuneração mais elevada. Ainda, a pensão deixa de ser integral e passa a ser 50% da aposentadoria acrescido de 10% por dependente; assim, em casos em que há mais de um dependente, o benefício é rateado entre as partes. Ademais, em uma situação em que o filho do segurado atinge a idade de 21 anos e cessa o benefício, a cota de 10% não é revertida ao cônjuge, companheiro(a), por exemplo. Outra regra é que o benefício passa a ser desvinculada do salário mínimo (BRASIL, [2016]). Como se observa, tais pontos indicam para a destituição de tal direito previdenciário.

Dentre outras mudanças propostas pela Reforma Previdenciária (BRASIL, 2016) e que apontam para os retrocessos de direitos, podem ser citadas: aumento da idade mínima de 65 anos para aposentadoria de homens e mulheres, suscetível à alteração na medida em que elevar a expectativa de vida da população; tempo de contribuição mínimo para aposentadoria por idade passa de 15 anos para 25 anos; desvinculação dos Benefícios de Prestação Continuada à pessoa com deficiência e à pessoa idosa e das pensões por morte do salário mínimo, podendo ser inferior. Dessa forma, os critérios definidos em legislação para concessão e manutenção destes benefícios tornam-se cada vez mais limitados, o que sinaliza, portanto, para perdas, retrocessos de direitos.

Concernente à Assistência Social como política também integrante do sistema de seguridade social, a atenção por parte do Estado é ainda mais seletiva e está voltada àqueles segmentos da sociedade que enfrentam situações de pobreza, extrema pobreza. Destaca-se que é somente a partir da Constituição de 1988 que esta adquire, pela primeira vez na sociedade brasileira, o caráter de política pública de seguridade social, juntamente com as políticas de saúde e previdência, cabendo ao Estado a responsabilidade pela sua efetivação.

Apesar de essa política ter obtido reconhecimento legal a partir de 1988, a sua implementação tem início somente a partir de 1993, com a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) (BRASIL, [2019b]). Ficou previsto na Lei nº 12.435 de 2011 que a assistência social “[...] direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”. (BRASIL, [2011]). É mister ressaltar, contudo, que os investimentos destinados a esta política são cada vez mais reduzidos, o que dificulta o acesso dos usuários(as) aos serviços e aos benefícios. São considerados benefícios assistenciais o Benefício de Prestação Continuada (BPC), de caráter não contributivo e operacionalizado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), e os benefícios eventuais garantidos aos cidadãos e às famílias por ocasião de nascimento, morte, situação de vulnerabilidade e/ou calamidade pública.

De acordo com o estabelecido na legislação em vigor (BRASIL, [2018]) o BPC é “[...] a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais, que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família”. O referido benefício é garantido àquelas pessoas que não contribuem com a previdência, que não desenvolvem atividades geradoras de renda, devendo comprovar renda per capita familiar inferior ou igual a ¼ do salário mínimo (BRASIL, [2018]). Com as propostas de reformas, já sinalizadas, este benefício também passa por alterações, de maneira que restringe ainda mais o acesso da população a esse direito.

A partir de regras que são estabelecidas para acessar benefícios dessa natureza, no caso do BPC, podese perceber que estão voltados a determinado segmento da sociedade, aqueles em situação de pobreza e/ou miséria, e é cessado quando superada a condição que o demandou. Há uma perspectiva seletista, focalizada, compensatória e limitada aos quesitos de renda. Muitas vezes, os cidadãos que requisitam tais benefícios encontram limites e dificuldades para acessá-los, diante da burocratização do acesso e pelas características inerentes à legislação que normatiza sua garantia.

Em relação à política de saúde, com a Constituição de 1988, esta passa a ser um direito assegurado aos cidadãos, cabendo ao Estado o dever de garanti-la mediante a efetivação de políticas públicas para a promoção, proteção e recuperação, numa perspectiva universal e igualitária. Nesse sentido, o Sistema Único de Saúde (SUS), atendendo aos princípios e às diretrizes, organiza o conjunto das ações e serviços realizados por órgãos e instituições, de forma a garantir o acesso à saúde como direito universal. Convém destacar que esta política também possui limites para sua efetivação, uma vez que a população enfrenta longas filas de espera para realização de consultas médicas, exames, falta de medicamentos e insumos, falta de estrutura física das instituições, dentre outros. Tais situações de precarização dos serviços dificultam o acesso da população a esse direito.

Mediante alguns dos retrocessos das políticas sociais, conforme apontado a partir de mudanças de critérios para acesso e manutenção de benefícios da política previdenciária, por exemplo, vê-se o esvaziamento de princípios que garantem a universalidade da cobertura e do atendimento, a irredutibilidade do valor dos benefícios. Diante da dificuldade de acesso, da fragilidade na efetivação dos direitos assegurados por parte do poder estatal, portanto, os cidadãos que vivenciam contexto de violação de direitos e vulnerabilidade social passam a recorrer, de forma crescente, à judicialização como meio compulsório de garantir os direitos violados pelo poder público. Trata-se, tão logo, de um recurso do Estado para obrigar o próprio Estado a cumprir, ainda que por essas vias, seu papel.

A judicialização num contexto de violação de direitos sociais

A discussão sobre o fenômeno da judicialização das políticas sociais situa-se no contexto da expansão da política neoliberal, haja vista que esta tem provocado impactos negativos na condução da garantia de direitos que se tornam alvo de constantes ataques, retrocessos e desconstituição frente à desresponsabilização do Estado que, atendendo aos interesses da classe dominante, tem se mostrado cada vez mais inoperante na efetivação dos direitos previstos na Constituição Federal de 1988. É neste sentido que a população em condição de vulnerabilidade social, sem acesso aos direitos essenciais, busca acionar os meios judiciais, a fim de têlos assegurados. Ressalta-se que este fenômeno passa a ser crescentemente demandado por sujeitos que tem seus direitos negados/violados. Assim sendo, para Sierra (2011SIERRA, V. M. A judicialização da política no Brasil e a atuação do assistente social na justiça. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 256-264, jul./dez. 2011., p. 257):

A judicialização das políticas públicas pode ser entendida como o aumento desmesurado de ações judiciais movidas por cidadãos que cobram o direito à proteção social. No Brasil, este processo deslanchou após a promulgação da Constituição de 1988 (BRASIL, 1999), que não apenas positivou os direitos fundamentais, mas também atribuiu ao Poder Judiciário a função de intérprete do controle de constitucionalidade.

É possível perceber que esse processo de garantia de direitos tem se dado de modo contraditório, característica típica das relações sociais capitalistas, na medida em que os direitos sociais foram ampliados e assegurados justamente pela Constituição, entretanto, a sua efetivação depende cada vez mais da atuação do Poder Judiciário (que, por sinal, também integra o Estado), de modo a exigir que o Estado exerça o dever de cumpri-los. Tal realidade está associada ao fato de que “[...] as políticas sociais foram submetidas às condições ditadas pelas medidas políticas e econômicas de ajuste fiscal. A redução no orçamento provocou a degradação dos sistemas de proteção social [...]” e, por tal razão, vem desencadeando intenso processo de judicialização (SIERRA, 2014SIERRA, V. M. O poder judiciário e o Serviço Social na judicialização da política e da questão social. SER Social, Brasília, v. 16, n. 34, p. 30-45, jan./jun. 2014., p. 36). Desse modo, crescem as violações de direitos aos cidadãos que passam a demandar a atuação das instituições jurídicas na tentativa de que o poder público os efetive.

Nesse sentido, para atender às demandas da população que encontra dificuldades para acessar os direitos, são instituídos e ampliados os espaços de controle social democrático que passam a atuar junto aos cidadãos em condição de vulnerabilidade social e que tiveram seus direitos violados. Entre tais espaços podem ser citados: Defensorias Públicas, Varas de Infância, Juventude e Família, Promotorias, Juizados, Varas Criminais, Ministério Público, Delegacias Especializadas e Conselhos Tutelares. Em se tratando do acesso, em específico, à Defensoria Pública, o mesmo ainda é restrito, seja em razão de critério de renda para ter assistência jurídica integral e gratuita, de áreas distanciadas dos órgãos e de desconhecimento dos sujeitos de sua existência, ou mesmo de sua função e/ou utilidade. Conforme expresso pelo Conselho Federal de Serviço Social (2014, p. 61), “o processo de implantação da Defensoria Pública nos estados e a Defensoria Pública da União [...] é lento, sendo que muitos estados ainda recorrem a convênios com universidades e com a OAB para a prestação de assistência jurídica”.

Para ilustrar essa realidade do fenômeno da judicialização, e a crescente violação de direitos sociais, mediante vivências em campo de estágio e realização de pesquisa de campo no setor de Serviço Social da Defensoria Pública da União (DPU) no estado do Ceará, convém destacar que dentre os diversos processos de assistência jurídica encaminhados referem-se às demandas de direitos negados e que perpassam políticas públicas diversas: Saúde, Previdência, Assistência Social, Habitação e Educação. Vale salientar que as maiores demandas direcionadas ao referido setor estão atreladas aos processos decorrentes de indeferimento/negação/suspensão de benefícios da política de previdência social. Tais processos envolvem benefícios previdenciários negados como, pensão por morte, auxíliodoença, salário-maternidade, aposentadoria, auxílio-reclusão, e também o BPC que, apesar de ser um benefício da assistência social, é operacionalizado pelo INSS. No caso do benefício de pensão por morte, o não reconhecimento da união estável pela via administrativa apresenta-se como motivo de indeferimento, o que pode vir a ser comprovado pela via judicial após realização de procedimentos adotados pela instituição. Ressalta-se que o Estudo Social é, muitas vezes, solicitado ao Serviço Social para subsidiar as decisões judiciais.

Em relação ao benefício assistencial à pessoa idosa e à pessoa com deficiência, especificamente, foi possível observar grande demanda deste requerida por cidadãos que vivenciam situação de insuficiência de recursos, pobreza e adoecimento. Dentre os principais motivos que levam ao indeferimento dos pedidos, por meio da via administrativa, estão os seguintes: renda per capita superior ao permitido em lei, não atendimento aos critérios classificatórios de deficiência, falta de reconhecimento da incapacidade para a vida independente e para o trabalho, dentre outros. Assim, na tentativa de acessar o direito que lhes foi negado, ingressam com processo judicial contra a instância que indeferiu o pedido, no caso o INSS. Esse público, muitas vezes, enfrenta sérios contextos de privação financeira e material, concomitante às graves problemáticas de saúde, cenário que demanda, por vezes, celeridade nos processos judiciais.

Muitos dos(as) usuários(as) que buscaram assistência jurídica da DPU para a consecução de benefícios assistenciais à pessoa idosa e à pessoa com deficiência, especificamente, conviveram, ao longo da vida, com a negação de outros direitos sociais, à saúde, à educação e ao trabalho, por exemplo. Muitas vezes, estiveram inseridos em relações precárias de trabalho, atividades informais, autônomas e sem garantias trabalhistas. No contexto atual, vivenciam situação de desemprego, desprovidos de recursos, com quadro de adoecimento, sem experiência formal de trabalho, com baixo ou nenhum grau de escolarização, inseridos em núcleos familiares em situação de vulnerabilidade social. Isso revela que, além de não terem acesso aos direitos previdenciários, já que se requer comprovação de inserção em atividade laboral formal, contribuição prévia, acabam por enfrentar dificuldade de acessar benefícios da política de assistência social, o que leva a recorrer, por vezes, à via judicial.

A realidade da negação de direitos em relação à política de saúde não é diferente. A população que utiliza os serviços públicos de saúde enfrenta longas filas de espera para realização de consultas e exames, muitas vezes agravando a situação de saúde, falta de medicamentos, sendo alguns desses de alto custo, insumos, equipamentos, condições de estrutura e instalações precárias, falta de especialidades médicas e quantidade de profissionais incompatíveis com a grande demanda. Tais condições também se tornam alvo de ações ajuizadas por cidadãos que não conseguem acessar os direitos relativos à saúde.

Diante de tais circunstâncias, é perceptível o caminhar das políticas públicas para o processo de desconstituição, restrição, violação de direitos, o que corrobora para que haja maior procura ao Poder Judiciário para a viabilização ao acesso de direitos negados pelo Estado, conforme já sinalizado. Desse modo, Sierra (2011SIERRA, V. M. A judicialização da política no Brasil e a atuação do assistente social na justiça. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 256-264, jul./dez. 2011., p. 260) afirma que:

De fato, mais do que uma forma de proteção contra os abusos do Poder Executivo, a judicialização da política pública, no Brasil, ocorre em função da escassez de políticas que assegurem a efetivação dos direitos de cidadania. De certo modo, não é sobre o reconhecimento da autonomia do sujeito ou da exigência por participação no controle social que aumentam os processos judiciais, mas é da cobrança pelo acesso aos serviços públicos, principalmente, de saúde, educação e assistência. Muitos desses processos são ajuizados na expectativa de que os juízes forcem o governo a cumprir o direito.

Fica demonstrado que esse processo de judicialização cresce diante da falta de acesso às políticas sociais. Recorrer a essa via representa, frequentemente, para os sujeitos, a única alternativa para cobrar e obrigar o Estado a assegurar seus direitos. No entendimento de Silva (2012SILVA, N. L da. A judicialização do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 111, p. 555-575, jul./set. 2012., p. 559), a judicialização figura-se “[...] como possibilidade de ampliação do provimento das políticas públicas, de se fazer justiça social ao incluir parcelas da população que são negligenciadas no acesso aos seus direitos sociais, devido ao crivo cada vez menor adotado pelas políticas públicas”. Ademais, essa é uma “[...] instância capaz de transpor barreiras legais e rever equívocos administrativos [...]” (SILVA, 2012SILVA, N. L da. A judicialização do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 111, p. 555-575, jul./set. 2012., p. 572). É preciso um olhar ampliado, crítico e de totalidade para as realidades sociais em que os sujeitos estão inseridos, pois estas se apresentam de forma multifacetada, evitando, portanto, leituras superficiais e imediatistas.

No que se refere às concepções tecidas por Aguinsky e Alencastro (2006AGUINSKY, B. G.; ALENCASTRO, E. H. de. Judicialização da questão social: rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no poder judiciário. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 19-26, jan./jun. 2006., p. 21), as autoras caracterizam o fenômeno da judicialização “[...] pela transferência, para o Poder Judiciário, da responsabilidade de promover o enfrentamento à questão social, na perspectiva de efetivação dos direitos humanos”. Há uma centralização na esfera judicial no atendimento às demandas sociais enquanto que deveria haver uma atuação articulada entre as três esferas que compõem o poder estatal. Nesse sentido, convém destacar a seguinte afirmação:

[...] ao transferir para um poder estatal, no caso o Judiciário, a responsabilidade de atendimento, via de regra individual, das demandas populares - coletivas e estruturais, nas quais se refratam as mudanças do mundo do trabalho e as expressões do agravamento da questão social - ao invés de fortalecer a perspectiva de garantia de direitos positivados, pode contribuir para a desresponsabilização do Estado, sobretudo dos Poderes Legislativo e Executivo, com a efetivação destes direitos, através das políticas públicas. (AGUINSKY; ALENCASTRO, 2006AGUINSKY, B. G.; ALENCASTRO, E. H. de. Judicialização da questão social: rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no poder judiciário. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 19-26, jan./jun. 2006., p. 25).

Em continuidade ao pensamento das autoras, merece ênfase o fato de que “[...] esta via não poderá dar conta, sozinha, do enfrentamento à questão social, que é histórica e estrutural, demandando um movimento maior que possui, junto à esfera pública, seu palco privilegiado de disputa”. (AGUINSKY; ALENCASTRO, 2006AGUINSKY, B. G.; ALENCASTRO, E. H. de. Judicialização da questão social: rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no poder judiciário. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 19-26, jan./jun. 2006., p. 25). Dessa maneira, é necessária a atuação articulada entre as três esferas do poder, garantindo a viabilização de direitos mediante a efetivação das políticas sociais para o enfretamento das diversas expressões da questão social, que se agravam diante de contextos de expansão da lógica capitalista neoliberal.

Apesar de a esfera do Judiciário ter uma atuação voltada para a garantia do acesso aos direitos violados pelo poder público, esta instância também possui limites para a concretização dos direitos assegurados. Como se pode perceber a partir de Silva (2012SILVA, N. L da. A judicialização do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 111, p. 555-575, jul./set. 2012., p. 559), há “[...] acesso ainda restrito à justiça, já que parcela significativa da população, com pouca informação e/ou sem condições financeiras para arcar com custas advocatícias, acabam por não conseguir acionar essa instância decisória”. Afora isso, ela reforça questões que envolvem o acesso desigual às instâncias jurídicas nas diversas regiões brasileiras, de forma que não atinge a toda a população equitativamente.

Apesar de haver uma ampliação da estrutura que compõe o Poder Judiciário, esta não é capaz de abranger todo o território brasileiro, havendo locais distanciados das sedes, por exemplo, que impossibilita o acesso aos órgãos. Ademais, as populações, regularmente, desconhecem sobre os seus direitos e quais instituições devem acionar, o que indica os limites e obstáculos nesse processo de busca por direitos pela via da judicialização, de modo a garantir a efetivação dos direitos a todos os cidadãos de forma justa e igualitária.

O processo de judicialização implica, sobretudo, capacidade de lutar e resistir frente à violência institucional do Estado em sua omissão histórica de priorizar o atendimento às demandas das classes trabalhadoras. Na via judicial, materializa-se num trâmite processual longo, burocrático, penoso, desgastante e demorado, visto que necessita passar por procedimentos diversos: atendimentos; entrevistas; comparecimento às instituições; providências de documentos; instauração de processo legal; submissão à audiência; recorrência, por vezes, a testemunhas - o que compromete a exigência de celeridade e resolução diante do contexto de dificuldades que enfrentam, principalmente, após a perda do companheiro que assumia a manutenção financeira da família, quando se trata, em especial, de casos em que a companheira requisita o benefício de pensão por morte através da judicialização. Outrossim, é um benefício que, quando concedido, torna-se a principal fonte de renda familiar, diante de condições de ausência de renda própria e realização de trabalhos formais. Nesse sentido, a partir da experiência da DPU no Ceará, percebeu-se que os percursos para a conquista do direito violado, mesmo seguindo todos os ritos exigidos, nem sempre alcançam o sucesso desejado.

Os sujeitos, após terem seus direitos negados na via administrativa, procuraram assistência jurídica integral e gratuita da DPU no Ceará. Tanto as realidades de vida quanto os percursos na busca pelo direito ao benefício de pensão por morte do companheiro por meio da via da judicialização demonstraram a materialização das violações de direitos, as desigualdades sociais que enfrentam no cotidiano e as constantes lutas travadas pelos sujeitos para o acesso aos direitos na sociedade brasileira.

Considerações finais

Diante do que fora exposto, evidencia-se que as políticas sociais apresentam tendências que expressam situação de fragilidade, instabilidade, seletividade, direitos não assegurados, intervenção mínima do Estado, sendo tal realidade agravada com a implementação de um projeto de sociedade pautado pela perspectiva neoliberal, reestruturação produtiva e financeirização do capital.

No cenário contemporâneo, testemunha-se, portanto, um processo contínuo e intenso de desmontes, reconfiguração, ataques aos direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora, desconstituição de princípios, como a universalidade, a igualdade, a justiça social e a participação democrática. Diante dos cortes nos gastos sociais, privatização e sucessivas contrarreformas, o Estado desresponsabiliza-se pela primazia de seu papel na efetivação dos direitos, de modo que os cidadãos encontram dificuldades de acessar as políticas e os serviços públicos com qualidade.

As legislações passam por alterações, reformulações no que tangem aos critérios para acesso e manutenção de benefícios assistenciais e previdenciários, tornando-os mais rigorosos, restritivos e limitados, o que corrobora para o aumento das desigualdades sociais diante da dificuldade de acesso de direitos sociais que garantam condições para prover os mínimos sociais.

Na condução das políticas sociais na sociedade capitalista, em que se vivencia a sua desconstituição, a violação dos direitos pelo poder público estatal tem levado, de maneira crescente, os cidadãos a recorrerem à atuação do Poder Judiciário, configurando no fenômeno chamado de judicialização das políticas sociais, a qual tem como objetivo exigir do Estado o cumprimento de seu papel na garantia da proteção social, conforme prevê a Carta Magna. Contudo, cabe destacar que, tendo como horizonte a sociedade do capital e todo o arsenal ideopolítico, cultural e material acionado por este tipo de sociabilidade, a instância do Poder Judiciário não está imune às ingerências dessa ordenação, que afeta não somente a esfera da produção, mas também a da reprodução social, na qual está situado o conjunto de normativas legais de regulação sociojurídica. Assim, os limites e os critérios restritivos para acessá-la e para efetivar os direitos sociais, podendo o cidadão obter ou não resolutividade, celeridade em suas demandas, integram uma lógica que extrapola o espaço stricto sensu do judiciário.

As vias judiciais aparecem, continuadamente, como alternativas para tê-los assegurados, haja vista que essa instância atua no sentido de que o poder público efetive e garanta os direitos previstos na Constituição. É perceptível, a partir do que fora discutido, a fragilidade nas políticas sociais que vivenciam intenso processo de desmonte no cenário contemporâneo, sendo, portanto, a afirmação e a efetivação de direitos sociais espaço constante de embates e lutas a serem empreendidas pela classe trabalhadora.

Referências

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Notas

  • 1
    É o caso da MP nº 664, de 2014, e da Lei nº 13.135, de 2015, (BRASIL, [2015b]) em que se observam modificações nos critérios de carência, exigência de tempo mínimo de casamento ou união estável, vitaliciedade e duração do benefício de Pensão por morte. (MEDIDAS..., 2015). As mudanças atingem os trabalhadores que tem acesso cada vez mais limitado aos direitos. Conforme destacado em material produzido pelo Conselho Federal de Serviço Social (2017), as medidas e propostas caracterizam-se como agressivas no governo do ilegítimo Presidente Michel Temer (MDB). Tendo o mesmo, no ano de 2016, extinguido o Ministério da Previdência Social e Trabalho, de modo que órgãos responsáveis por gerir, controlar, executar a política de previdência passaram a fazer parte de outros dois Ministérios, Ministério da Fazenda e Ministério Desenvolvimento Social e Agrário. Também no mesmo período, dezembro de 2016, foi encaminhada à Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287 de 2016, que versa sobre a Reforma Previdenciária (BRASIL, 2016; CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2017). Também fazem parte dos retrocessos dos direitos as alterações no BPC previstas no Decreto nº 8.805 de 2016 (BRASIL, [2016]), entre elas a obrigatoriedade do cadastramento dos requerentes no CadUnico. Vale mencionar que o conjunto dessas medidas objetiva “[...] assegurar a manutenção do sistema financeiro, retomar o crescimento econômico e assegurar a sustentabilidade da dívida pública à custa da retirada de direitos sociais”. (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2016).
  • 2
    Este governo refere-se ao do ex-Presidente da República, Michel Temer, que assumiu a presidência no período de 2016 a 2018, após um golpe político, jurídico e midiático, que culminou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Não se aplica. A pesquisa não realizou coleta de dados direta por meio de instrumentos aplicados com sujeitos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2018
  • Aceito
    18 Set 2018
  • Revisado
    22 Fev 2019
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