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Marx, marxismos e Serviço Social

EDITORIAL

Marx, marxismos e Serviço Social

Trazer ao debate os "marxismos" no Serviço Social significa enfrentar deformações, distorções, extravios, derivações, revisões e reducionismos sofridos pelo pensamento de Marx no curto período em que esse diálogo foi incorporado aos conteúdos da formação profissional do assistente social. Contudo, iniciar destacando tais consequências não implica ignorar o enriquecimento que a assimilação desse pensamento tem possibilitado ao Serviço Social. Não seria exagero dizer que, graças a essa opção teórico-metodológica, a empreitada de se opor à hegemonia das classes dominantes, na academia, tornou-se quase unicamente do Serviço Social, tanto que o curso é, hoje, o refúgio de filósofos, economistas, educadores e de outros profissionais que querem uma ruptura radical com o legado positivista.

Reconhecer, aqui e agora, a qualidade dos grandes intelectuais marxistas vinculados ao Serviço Social, cuja produção intrinsecamente crítica tornou-se referência nas Ciências Sociais, seria uma tarefa fácil. Porém, a menção ao marxismo no plural - marxismos - não deixa dúvida sobre o propósito do convite feito pela Revista Katálysis. Cabe a mim, portanto, na perspectiva do "conhecimento totalizante" (WOOD; FOSTER, 1999), a difícil tarefa de sintetizar o que importantes pesquisadores já demonstraram ao se debruçarem sobre este mesmo tema. Nesse sentido, antes de enveredar na especificidade, recorro a Netto (1989), cuja contribuição é fundamental para que se compreendam os desdobramentos da aproximação do Serviço Social à tradição marxista. Há, segundo Netto, um "antagonismo genético" entre o pensamento de Marx e o Serviço Social, mas, ao mesmo tempo, os "quadros macroscópicos inclusivos e abrangentes da sociedade burguesa" lhes constituem um piso comum, sendo ambos "impensáveis fora do âmbito da sociedade burguesa". Sob perspectivas diferentes, tanto o Serviço Social quanto o marxismo têm a "questão social" como substrato. Mas, enquanto o Serviço Social "surge vocacionado para subsidiar a administração da 'questão social' nos quadros da sociedade burguesa", a questão social é, para Marx, "um complexo absolutamente indivorciável do capitalismo". Assim, essa relação diversa com um mesmo substrato tem um "papel pouco significativo, se comparado com o que os distingue". Com isso, o autor não exclui possibilidades de interlocução entre o Serviço Social e o pensamento de Marx, mas demonstra, através do movimento que os incompatibiliza, implicações que "desenham um cenário de excludência" no plano teórico. Sobretudo ao se levar em conta que a "profissão se institucionaliza e se afirma nutrindo-se de um conjunto de saberes ancorados numa vertente teórica (a do pensamento conservador) antagônica à marxista."

O diálogo entre setores do Serviço Social e a tradição marxista inicia-se na década de 1960, no interior de um movimento social que não é exclusivo ao Brasil, tampouco à profissão. À época, além da pressão dos movimentos revolucionários e da rebelião estudantil, especialmente na França (1968), a universidade brasileira não escapa, também, às influências internas do golpe militar de 1964. É nesse contexto que emerge a Reconceitualização do Serviço Social na América Latina - processo que questiona o significado da ação profissional e, por conseguinte, introduz o marxismo nos conteúdos da formação profissional - com repercussões e derivações do pensamento de Marx que se colocam na agenda profissional até hoje. Materializado na disciplina Metodologia do Serviço Social, esse conteúdo foi formalmente inserido na formação profissional, em 1982, num ambiente marcado por lutas internas, que opunham pensamento conservador e pensamento crítico. Evidentemente, a opção pela nova perspectiva carecia de aproximação às fontes marxianas e aos clássicos da tradição marxista, mas não é o que a realidade comprova. Ao contrário, a pesquisa de Quiroga (2000, p. 138) demonstra que havia, e ainda há, diferentes compreensões do marxismo. Nas derivações apontadas, Quiroga distingue:

[...] um Marx que agiganta a determinação do fator econômico como elemento único, gerador do desenvolvimento da sociedade; um Marx que supervaloriza o papel das classes, de sua luta, do significado do sujeito construindo sua história, desvinculado da base material que o sustenta; um Marx que é 'metodológico' na própria acepção positivista, ou seja, que se reduz ao método; um Marx atrofiado à sua dimensão de cientista social 'investigador' da sociedade, desligado de sua convicção da necessidade de transformação desta.

A aproximação do Serviço Social à tradição marxista realizou-se "sob exigências teóricas muito reduzidas - as requisições que a comandavam foram de natureza sobretudo ideopolítica, donde um cariz fortemente instrumental nessa interlocução" (NETTO, 1989, p. 97). Quiroga esclarece que a maioria dos docentes por ela entrevistados não teve acesso aos textos originais de Marx, sendo a formação deles liderada pelo pensamento de Althusser, cuja reflexão epistemológica atribui primazia ao sujeito no processo científico. Em O estruturalismo e a miséria da razão, Coutinho (2010, p. 175-176) afirma que "Althusser e sua escola pretendem apresentar o estruturalismo (ou a sua versão particular dele) como o resultado de uma 'leitura' correta de Marx". E retruca: "sob o pretexto de 'redescoberta' do verdadeiro Marx, pratica-se uma destruição objetiva da essência da herança marxista e sua substituição, consciente ou inconsciente, por uma filosofia burguesa da moda."

Não diria que a opção do Serviço Social por Althusser tenha tido a pretensão consciente ou inconsciente de uma "redescoberta" do verdadeiro Marx, mesmo porque, como fora atestado, a maioria dos docentes nem lera Marx. Entretanto, apesar da aproximação enviesada, o Serviço Social assimilou elementos isolados do pensamento de Marx que respondem por uma indignação hegemônica na profissão, distinguível da ideia de hegemonia marxista. Esta é falsa e, a meu ver, explica o ecletismo.

À semelhança de Netto (1989, p. 100-101), penso que há uma centralização do debate que precisa ser enfrentada. Nas suas palavras:

[...] inclino-me a pensar que o debate está centralizado por profissionais vinculados à tradição marxista (ou a ela próximos) 'porque a efetiva diferenciação da categoria não está sendo explicitada'. Nesta eventualidade, a polêmica pode esvaziar-se, dado que distintos protagonistas, representantes de outras tendências, não se fazem ouvir - e a perda é coletiva, posto que não ocorra um confronto de ideias aberto, marxistas e não marxistas deixam de estimular-se reciprocamente no terreno privilegiado que é o do enfrentamento ideal.

Em tese, todo assistente social é marxista. Onde reside a dificuldade de serem assumidas as diferenças? A mim parece mais apropriado dizer que o Serviço Social é a profissão que mais reúne seres humanos indignados, mas isso não faz de todos marxistas. Ressaltaria que a formação desse profissional, apesar dos enormes avanços, ainda não conseguiu acumular os recursos intelectuais necessários para que essa indignação se constitua na ponte que conecte todos os assistentes sociais ao "conhecimento totalizante". Daí os muitos marxismos, os quais não permitem aspirar a uma oposição unificada contra o capitalismo.

Além dos vieses aludidos, é difícil ao Serviço Social, pelo seu caráter interventivo, escapar ao ativismo, que tende a se subordinar a ideologias positivistas. Analisando "a estreiteza estalinista", Coutinho (2010, p. 180), demonstra como "inúmeros marxistas sinceros" combateram a herança de Marx e colocaram no seu lugar "as mais passageiras 'modas' do pensamento da decadência."

No Brasil, sobretudo na era Lula, na qual a sutileza de iniciativas contraditórias tece a "apologia do novo desenvolvimentismo" (MOTA, 2012), constitui o maior desafio para o Serviço Social analisar esse momento histórico. Estariam os profissionais capacitados a essa análise sem capitular ao irracionalismo? Ana Elizabete Mota, que conhece essa matéria bem mais que eu, reafirma na profissão a condição de protagonista de um projeto profissional calcado em valores, princípios e diretrizes inerentes a um dado projeto societal: uma sociedade emancipada e radicalmente humana. Nesse sentido, convém que se invista permanentemente em uma formação fundada em Marx e na tradição marxista.

Findo aqui, não por haver terminado, mas pelos meus próprios limites e por falta de espaço. Com os sinceros agradecimentos à Revista Katálysis, deixo os leitores com os artigos que compõem este número da revista e com a tarefa de pensar que há uma sociedade a ser transformada.

Maria Augusta Tavares, João Pessoa, janeiro de 2013.

Referências

COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

MOTA, A. E. (Org.). Desenvolvimentismo e construção de hegemonia: crescimento econômico e reprodução da desigualdade. São Paulo: Cortez, 2012.

NETTO, J. P. O Serviço Social e a tradição marxista. Serviço Social & Sociedade, Cortez, ano 10, n. 30, p. 89-102, maio/ago. 1989.

QUIROGA, C. Invasión positivista en el marxismo: el caso de la enseñanza de la metodologia en el Servicio Social. In: BORGIANI, E.; MONTAÑO, C. (Org.). Metodologia y Servicio Social hoy en debate. São Paulo: Cortez, 2000, p. 121-170.

WOOD, E. M.; FOSTER, J. B. (Org.). Em defesa da história: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

Maria Augusta Tavares

guga2004@uol.com.br

Doutora em Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Pós-Doutora em Serviço Social pelo Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra, em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e em História Contemporânea pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, Portugal

Professora Associada II do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

UFPB - Departamento de Serviço Social

Conj. Humanístico, Bloco 4 - Campus I

João Pessoa - Pernambuco - Brasil

  • COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão São Paulo: Expressão Popular, 2010.
  • MOTA, A. E. (Org.). Desenvolvimentismo e construção de hegemonia: crescimento econômico e reprodução da desigualdade. São Paulo: Cortez, 2012.
  • NETTO, J. P. O Serviço Social e a tradição marxista. Serviço Social & Sociedade, Cortez, ano 10, n. 30, p. 89-102, maio/ago. 1989.
  • WOOD, E. M.; FOSTER, J. B. (Org.). Em defesa da história: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 2013
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