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Superpopulação relativa e "nova questão social": um convite às categorias marxianas

Relative over population and the "new social question": an invitation to marxian categories

Resumos

Este artigo analisa a concepção mistificada que a pobreza vem adquirindo no atual estágio de acumulação capitalista. Objetiva correlacionar o crescimento da superpopulação relativa a uma perspectiva crítica em que o conflito capital/trabalho é condição fundamental de sua emergência e permanência. Portanto, parte da relação da lei geral de acumulação capitalista e das transformações na ordem do capital e, consequentemente, da abordagem naturalizada que a questão social adquire neste contexto, convidando a revisitar as categorias marxianas.

acumulação capitalista; trabalho; pobreza


This article analyzes the mystified concept that poverty has acquired in the current stage of capitalist accumulation. It relates the growth of overpopulation to a critical perspective in which the conflict between labor and capital is an essential condition for the emergence and permanence of this overpopulation. It looks at the relationship of the general law of capitalist accumulation and at transformations in the order of capital, and then at the naturalized approach that the social question has acquired in this context, inviting a review of Marxian categories.

capitalist accumulation; labor; poverty


PESQUISA TEÓRICA

Ednéia Alves de Oliveira

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

RESUMO

Este artigo analisa a concepção mistificada que a pobreza vem adquirindo no atual estágio de acumulação capitalista. Objetiva correlacionar o crescimento da superpopulação relativa a uma perspectiva crítica em que o conflito capital/trabalho é condição fundamental de sua emergência e permanência. Portanto, parte da relação da lei geral de acumulação capitalista e das transformações na ordem do capital e, consequentemente, da abordagem naturalizada que a questão social adquire neste contexto, convidando a revisitar as categorias marxianas.

Palavras-chave: acumulação capitalista, trabalho, pobreza.

ABSTRACT

This article analyzes the mystified concept that poverty has acquired in the current stage of capitalist accumulation. It relates the growth of overpopulation to a critical perspective in which the conflict between labor and capital is an essential condition for the emergence and permanence of this overpopulation. It looks at the relationship of the general law of capitalist accumulation and at transformations in the order of capital, and then at the naturalized approach that the social question has acquired in this context, inviting a review of Marxian categories.

Key words: capitalist accumulation, labor, poverty.

Introdução

Este texto discute a formação do exército industrial de reserva ou superpopulação relativa no interior das relações sociais de produção capitalista como resultado direto da crescente acumulação e concentração/centralização da riqueza. Nos dias atuais, este debate tem sido caracterizado como um processo natural, em face do avanço do discurso neoconservador que tende a considerar tais desigualdades como responsabilidade dos sujeitos que as vivenciam. Por esta razão, a "questão social" tem sido apresentada como algo "novo" e dissociada da contradição capital/trabalho. Portanto, seu "tratamento" assume uma perspectiva de voluntarismo e comunitarismo, numa ótica despolitizada, distante do direito, como afirma o discurso de alguns autores com os quais dialogaremos neste texto. Portanto, mais do que nunca, resgatar as categorias históricas utilizadas por Marx para analisar as relações sociais de produção é conditio sine qua non para desmistificar este discurso e trazer a "questão social" para o plano que lhe é de direito, qual seja: um processo intrinsecamente relacionado à lei geral de acumulação capitalista, principalmente no seu estágio imperialista ou monopolista, colocando-a como consequência da exploração do trabalho, da formação do exército industrial de reserva, da maior produtividade do trabalho, da mais-valia etc.

1 A lei geral da acumulação capitalista

A acumulação de capital está intrinsecamente relacionada à contradição histórica entre capital/trabalho. Para Marx (1988), este processo deve ser analisado sob a composição do capital e as modificações ocorridas no curso da acumulação. A composição deve ser analisada sob dois aspectos, quais sejam: o do valor e da matéria. No âmbito do valor, é determinada pela proporção em que se divide o capital constante (valor dos meios de produção) e capital variável (valor da força de trabalho). No âmbito da matéria, o capital se decompõe em meios de produção e força de trabalho viva e está relacionado à massa dos meios empregados e a quantidade de trabalho necessária para utilizá-los. A média dos capitais individuais aplicados em ramos determinados da indústria permite calcular a composição global do capital e a média geral das composições médias permite chegar à composição do capital social de um país. Porém, ressalta Marx, o acréscimo de capital está associado ao aumento da parte variável, isto é, a capacidade de produzir valor no processo produtivo faz com que o processo de trabalho tenha a finalidade de produção de mais-valia.

A mais-valia é a parte do trabalho excedente e não pago ao trabalhador que, na sociedade capitalista, aparece sob a forma mistificada de lucro. Portanto, a mais-valia é retirada do sobretrabalho, trabalho abstrato e não trabalho concreto. Marx vai revelar esta relação apontando os seus elementos constitutivos. Para ele, a produção de mais-valia é a razão de ser da produção capitalista. Mas esta não aparece revelada, pois, na aparência, o capitalista paga ao trabalhador o valor diário do seu trabalho. Mas, na essência, este valor diário da força de trabalho não é o valor necessariamente pago, pois o capitalista toma horas de trabalho excedentes e que não são pagas ao trabalhador, permitindo obter daí uma lucratividade maior. Para acrescer lucratividade, o capitalista busca extrair o máximo de produtividade do trabalhador.

Esta extração da produtividade vai ser expressa no volume relativo dos meios de produção que um trabalhador transforma em produto com o mesmo tempo de trabalho. Com a crescente introdução de máquinas e tecnologias sob o domínio das relações capitalistas, o trabalho se torna mais produtivo e, consequentemente, extrai-se mais-valia sobre o trabalho. Esta mudança se expressa na composição do valor do capital, aumentando o capital constante (expresso nos meios de produção) na razão inversa do capital variável (expresso nos salários pagos ao trabalhador). Este aumento da produtividade é a alavanca mais poderosa da acumulação capitalista. "O aumento desta se patenteia, portanto, no decréscimo da quantidade de trabalho em relação à massa dos meios de produção que põe em movimento, ou na diminuição do fator subjetivo do processo de trabalho em relação aos seus fatores objetivos" (MARX, 1988, p. 723).

Este decréscimo dos fatores subjetivos em detrimento dos fatores objetivos amplia a acumulação de capital, pois tende a aumentar a parte do capital constante à custa do capital variável. Este momento é caracterizado por um duplo movimento. O primeiro seria "a concentração crescente dos meios de produção e do comando sobre o trabalho e, do outro, através da repulsão recíproca de muitos capitalistas individuais" (MARX,1988, p. 727). Ou seja, a acumulação também gera uma centralização que inibe a concorrência entre os capitalistas, impedindo a competição em níveis iguais de oportunidade, culminando na falência ou absorção dos pequenos pelos grandes capitais. Paradoxalmente, ressalta Marx, ela aumenta a competitividade entre os grandes que passam a disputar o controle da produção e do desenvolvimento tecnológico, afetando a relação com o trabalho, pois neste processo, a produtividade do trabalho é fundamental, tendo em vista que o preço das mercadorias tende a diminuir em face do aumento da concorrência. Portanto, para ele, a centralização é mais nociva que a concentração, pois marca a distribuição dos capitais já existentes e altera apenas o quantitativo dos componentes do capital social. É na raiz da centralização que se encontram a fusão e a aquisição de vários capitais por um mesmo, formando os monopólios11 Paulo Netto (2001, p. 20-21) assinala que o monopólio possui algumas características que incluem a fusão de empresas, passando pelo pool, o cartel e o truste, o aumento dos preços das mercadorias e serviços, aumento das taxas de lucro, elevação da taxa de acumulação, acentuando a tendência descendente da taxa média de lucro e a tendência ao subconsumo, economia de trabalho vivo com a introdução de novas tecnologias etc..

Para Lênin (1987), a concentração de capital se adensa na fase imperialista, permitindo a expansão do monopólio para regiões subdesenvolvidas, dependentes em relação às nações industrializadas. Esta expansão da concentração estabelece a divisão entre centro e periferia, com a dominação das primeiras sobre as segundas. Para o autor, este seria um fator determinante para a economia mundial, pois estabeleceria uma nova dinâmica entre as relações comerciais e produtivas, sem esquecer, é claro, das relações trabalhistas (OLIVEIRA, 2005, p. 18). Esta fase imperialista também é marcada pela exportação constante de capitais mais livremente entre as nações, numa estreita vinculação entre capital produtivo e capital bancário, formando o capital financeiro.

Este momento, segundo Lênin (1987), caracteriza-se pelo domínio total dos grandes grupos empresariais na economia, que passam a controlar não só a produção e a exportação de mercadorias, mas, também, a exportação de capitais, através da formação de excedentes pelas grandes nações do centro. Esta exportação de capitais se dá na forma de empréstimos aos países em vias de desenvolvimento e não na forma de investimentos em ramos da indústria, criando uma política de endividamento que mantém a subserviência dos países periféricos e a crescente exploração de suas riquezas, fortalecendo a acumulação nos países centrais.

Para além da concentração/centralização, a acumulação impõe uma dinâmica peculiar na relação capital constante e capital variável. Ou seja, o progresso da acumulação amplia a composição orgânica do capital e diminui relativamente a parte do capital variável empregado na produção capitalista. Quanto mais o capitalista investe em meios de produção, menor será o emprego da força de trabalho, ou da parte variável do capital. Ao contrário, quanto maior a grandeza do capital global menor a incorporação de força de trabalho. Isto não significa que a produção tende a diminuir, ela simplesmente passa a depender menos da força de trabalho (capital variável) e mais da utilização de meios de produção (capital constante).

Essa redução relativa da parte variável do capital, acelerada com o aumento do capital global, e que é mais rápida do que este aumento, assume, por outro lado, a aparência de um crescimento absoluto da população trabalhadora muito mais rápido que o do capital variável ou dos meios de ocupação dessa população (MARX, 1988, p. 731).

A acumulação capitalista, portanto, sempre necessita da geração de uma força de trabalho desnecessária, excedente relativamente, para além das suas necessidades de expansão. Este movimento de expulsão ou de inserção dos trabalhadores depende do dinamismo do processo de acumulação ou, ainda, da correlação de forças na sociedade protagonizada pela organização dos trabalhadores. Em alguns momentos, a força de trabalho ocupada será mais demandada em face da expansão de alguns ramos da produção, ora esta força de trabalho será reduzida pelo emprego de mais tecnologia22 Na nota de rodapé citada por Marx, retirada dos censos da Inglaterra e País de Gales, relativos aos anos de 1851 e 1861, ou seja, um período de 10 anos, está evidente a expulsão de trabalhadores de diversos ramos da produção. Esta expulsão constante de trabalhadores em alguns ramos da produção é atribuída pelo autor ao advento de inovações técnicas como a introdução de máquinas que reduzem o número de trabalhadores na fabricação de pregos. Por outro lado, o autor ressalta o aumento da força de trabalho em outros ramos da produção como, por exemplo, na confecção de tecidos, serradores etc. Ao final, conclui que "[...] desde 1851, o aumento de trabalhadores é, em regra, maior nos ramos onde até agora não se aplicou maquinaria com sucesso" (MARX, 1988, p. 732).. Esta crescente expansão de força de trabalho excedente se constitui como um dos pilares do processo de acumulação capitalista. Ou seja, formar uma força de trabalho excedente e disponível para ser absorvida no mercado de trabalho é imanente ao processo de produção tipicamente capitalista. A economia política clássica vê este aumento da população excedente como algo natural e até necessário à indústria moderna.

Para estes economistas, a importância de se criar um exército industrial de reserva é fundamental para o equilíbrio do sistema. Ele serve para ser absorvido pela produção quando necessário, mas sobretudo, para manter o nível dos salários relativamente no limite para não afetar o processo de acumulação de capital. Por outro lado, se o capital precisa da criação deste excedente de trabalhadores, pelas razões supracitadas, ele também vai necessitar de extrair mais trabalho da parte do capital empregado. Isto significa que a manutenção ou diminuição do capital variável não implica em menos trabalho ou mais tempo livre, mas, pelo contrário, em maior produtividade do trabalho. Quanto maior a produtividade extraída da força de trabalho pelo proprietário dos meios de produção, maior será a grandeza da sua riqueza e maior será a acumulação de capital. Desde o início da industrialização, o capital vem aprimorando suas técnicas para extrair maior produtividade do trabalho sem despender maior quantidade de capital. Por isto, em alguns momentos, lança mão de estratégias para extrair maior produtividade a custos mais baixos como, por exemplo, substituição da força de trabalho masculina pela feminina ou infantil, trabalho qualificado por aqueles com menos qualificação, a introdução de máquinas etc.

Esta relação aparece mistificada pelos apologetas da sociedade capitalista burguesa que defendem que estes mecanismos tendem a favorecer o trabalhador, propiciando-lhe tempo livre. Este tempo livre aparece como benéfico ocultando, na verdade, a liberação do trabalhador do mercado de trabalho. Esta relação é mais visível quando se trata da substituição dos homens pelas máquinas. Ao contrário dos mecanismos elencados anteriormente, o uso capitalista da maquinaria expulsa homens, mulheres e crianças. Nesse caso, não há a substituição de uns pelos outros, mas de todos pelas máquinas, afetando a lei geral da oferta e da procura e provocando uma concorrência entre os próprios trabalhadores que passam a disputar entre si as vagas oferecidas no mercado de trabalho, garantindo a formação do exército industrial de reserva ou a superpopulação relativa.

Porém, a superpopulação relativa não é uma categoria monolítica, estável, onde se incluem determinados segmentos de trabalhadores e excluem-se outros. Sua inserção ou exclusão do mercado de trabalho depende dos momentos de crise e/ou de expansão do processo de industrialização, da pressão dos trabalhadores organizados ou, ainda, das políticas governamentais adotadas pelos governos dos diferentes países. Marx (1988) define três formas em que a superpopulação relativa se manifesta. A primeira delas ele chama de flutuante. Nessa forma, o número de trabalhadores das fábricas, manufaturas, usinas siderúrgicas e minas podem aumentar ou diminuir, aumentando o número de empregados, porém não na mesma razão do aumento da produção.

A outra forma seria a constante migração do campo para a cidade, principalmente quando a agricultura introduz técnicas capitalistas e expulsa milhares de trabalhadores rurais que, por não encontrarem postos de trabalho na agricultura, voltam-se para as cidades em busca de oportunidade de trabalho, formando um excedente de trabalhadores também na área rural. Por último, tem-se a forma estagnada da superpopulação relativa representada pelos trabalhadores irregulares, cuja ocupação não se insere nem na grande indústria, nem na agricultura. São os trabalhadores supérfluos, precários e temporários, mas que contribuem para a lógica da acumulação, pois pressionam o contingente de trabalhadores excedentes para cima. A superpo- pulação relativa estagnada divide-se em três grupos, os aptos para o trabalho, os filhos e órfãos dos indigentes e os incapazes para o trabalho. É nesta fração da classe trabalhadora que se expande com maior rapidez a pauperização e a miséria. Mas é também parte essencial para o aumento da riqueza capitalista. Esta é para Marx (1988, p. 747), a "lei geral, absoluta, da acumulação capitalista".

O aumento do pauperismo, portanto, está na razão direta da expansão da acumulação da riqueza. A pauperização atinge os trabalhadores inseridos no mercado de trabalho, haja vista que a relação salarial é sempre estabelecida como necessária a suprir as necessidades básicas do trabalhador e de sua família. Por isso, paralelo ao pauperismo dos excluídos do mercado de trabalho, assiste-se a um processo de precarização das condições de vida da população trabalhadora. O aumento da produtividade de trabalho produz uma maior pressão em torno dos trabalhadores precarizando suas condições de existência. À medida que o capital acumula, faz-se necessário piorar as condições de vida do trabalhador, não importa sua remuneração. Ao extrair maior produtividade do trabalho, o capitalista transforma o trabalhador em fragmentos de ser humano, em apêndice da máquina. O trabalho passa a ser entendido como sofrimento, não importa se o trabalho é mais ou menos remunerado. Todo trabalho sob o jugo do capital se transforma em trabalho inumano.

Este caráter antagônico da produção capitalista se expressa sob diferentes formas pelos economistas políticos, mas, que, na sua essência, tendem a culpabilizar os pobres pela sua condição, naturalizando a lei da riqueza social. Estas concepções estão expressas nas citações que Marx retira de alguns pensadores burgueses do século 18. Para eles, a fome e a pobreza são componentes fundamentais para garantir a obediência do trabalhador. Criticam, inclusive, a assistência aos pobres como uma destruição da harmonia e da ordem estabelecida por Deus.

Para Sismondi, com o progresso da ciência, o trabalhador pode produzir mais, mas não deve ter acesso aos bens produzidos, pois isto o tornaria inapto para o trabalho, o que fatalmente levaria a ruína dos proprietários dos meios de produção. Pois deve existir uma diferença entre aqueles que trabalham e os que usufruem do trabalho alheio (MARX, 1988, p. 751).

A produção da riqueza é, portanto, simultaneamente, a produção da miséria. Miséria material do trabalhador, mas, sobretudo, miséria humana (MARX, 1988, p. 749). Assim, as relações sociais de produção capitalista fazem com que o trabalho apareça ao homem como mera atividade física, como realização de consumo e não como momento fundante da vida humana, satisfazendo as necessidades humanas e o realizando como ser social. O início do processo de industrialização já evidenciava esta tendência de acumulação através da exploração do trabalho humano. As extensivas jornadas de trabalho, chegando a atingir em torno de 15 a 16 horas por dia, além do trabalho realizado por mulheres e crianças mostravam a natureza própria do processo de produção capitalista, qual seja: a acumulação de capital através da absorção do trabalho vivo, da criação do trabalho excedente, que gera mais-valia e permite acumular riquezas.

Diante do exposto, podemos concluir que a sociedade baseada no modo de produção capitalista produz e reproduz as desigualdades sociais. Isto é, esta desigualdade é condição inerente das relações sociais de produção e se expressa na constituição da superpopulação relativa ou dos trabalhadores "desnecessários" e ainda na extração da mais-valia sobre a parte da força de trabalho empregada. Nesta dinâmica, produz a acumulação de capital e conse-quentemente a pobreza relativa dos trabalhadores, provocando uma crescente tensão entre capitalistas e trabalhadores. Este tensionamento exigiu por parte dos Estados nacionais, ainda no final do século 19, algumas medidas que tendiam a evitar conflitos e manter o bom funcionamento da ordem.

2 A concentração/centralização do capital no atual estágio de acumulação capitalista e a naturalização da questão social

No curso do processo de acumulação, o capitalismo veio desenvolvendo formas para ampliar a concentração/centralização e responder às crises viven- ciadas pelo capital. Portanto, em alguns momentos, favoreceu a criação de um padrão regulacionista, criando políticas que priorizavam o crescimento econômico e social e, em outros, políticas de livre mercado, como evidencia o retorno da ideologia neoliberal a partir de 1970 nos países centrais. O neoliberalismo, ancorado pela globalização no seu aspecto econômico, expande-se respaldado pela ideia de retomada do crescimento, revitalizando ideais adormecidos desde a década de 1930. Fundamentalmente, resgata o mercado como instância suprema das relações econômicas. Esta revitalização do mercado foi justificada pelo baixo índice de crescimento associado à inflação e desemprego em ascensão, que assolava tanto os países centrais quanto os países considerados da periferia econômica, dando origem a um fenômeno denominado de estagflação (SOARES, 2000). A intervenção estatal passa a ser identificada como responsável pela queda no crescimento, sendo necessária uma reestruturação do seu aparelho como condição fundamental para a superação da crise.

Destarte, ocorre uma maior internacionalização ou mundialização do capital a partir de 1980, com características bem peculiares se comparadas ao período anterior (CHESNAIS, 1996, p. 33). Este momento foi marcado pela expansão das fusões/aquisições em face da privatização de empresas estatais, principalmente, nos países periféricos. Estas fusões/aquisições aumentaram a concentração empresarial restringindo o número de empresas globais, localizadas essencialmente nos países do centro. De fato, segundo dados do BM, a concentração e a centralização das empresas transnacionais é um fato marcante no atual estágio de acumulação capitalista. Devido ao alto grau de concentração, a concorrência, uma das premissas básicas do capitalismo, fica restrita a essas empresas, transformadas em grandes grupos industriais. É no interior desses grupos que ocorre a disputa por preços e por investimentos científicos e tecnológicos, principalmente nos países membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ou seja, antes de se expandir para outros Estados, as empresas se transformaram em grupos fortes com produção e investimentos diversificados, apoiados pelos Estados nacionais de origem, determinando sua estratégia de expansão e de competitividade a nível mundial33 O conceito de grupo implica a diversificação que, por sua vez, pode ser de origem produtiva de investimentos de capital, ou seja, investimentos de base industrial como também de investimentos improdutivos de caráter especulativo e, consequentemente, parasitário (CHESNAIS, 1996, p. 76).. Mattoso (1996) avalia que estas duas características, produção e investimento diversificado e apoio dos Estados nacionais têm permitido aos grandes grupos criarem estratégias para a manutenção do seu poderio econômico. Esses grupos conjugam estratégias avançadas de racionalização da produção com a manutenção, porém, da implantação de filiais ou subsidiárias nos países periféricos, reforçando a tendência presente desde os anos de 1950.

Outro fator importante é a migração dos grupos empresariais para investimentos no setor financeiro como forma de maior lucratividade, alimentando uma ciranda de investimentos especulativos. A opção desses grupos pelo capital financeiro acirrou a interrelação entre as dimensões produtivas e financeiras, constituindo-se parte essencial da dinâmica de funcionamento destes grupos, tendência já assinalada por Lênin no início do século 20. A busca por lucratividade é uma das tônicas destes grupos, haja vista que o controle por parte dos investidores institucionais (fundos de pensão, fundos mútuos, seguradoras com carteira de ativos importantes) exige que o grupo seja muito rentável, caso contrário, reduz os investimentos sobre ele. Esta seria uma das razões pela diversificação dos investimentos das empresas e/ou grupos transnacionais e pela opção de investimentos no mercado financeiro e não mais exclusivamente no setor produtivo.

Os Estados nacionais têm favorecido essas transações, reduzindo impostos sobre investimentos em bolsa de valores e mercado cambial, demonstrado uma conivência enorme com a manutenção desta economia especulativa. De outro lado, a especulação financeira induz ao domínio do que Guttmann (1998, p. 77) chama de "capital fictício", um capital que não oferece contrapartida direta em capital produtivo e cujo valor é alimentado pela previsão de um rendimento futuro, irreal. Outro fator tem favorecido as grandes empresas transnacionais na centralização de sua riqueza: a transferência de suas atividades de produção para perto de suas bases, graças à criação dos acordos intrarregionais como é o caso do Nafta e da UE. Isto privilegia a proximidade da produção, implicando em diminuição de custos com transporte e na manutenção de salários baixos. Um exemplo é a relação dos EUA com o México e da UE com os países recém-capitalistas da Europa Oriental (OLIVEIRA, 2008).

O componente político também é um dos elementos fundamentais para a garantia deste processo de concentração/centralização da riqueza, pois foi a partir dele que as imposições e legislações foram criadas para respaldar a expansão das empresas transnacionais. Um exemplo paradigmático foi a total abolição de restrições ao IED e às empresas transnacionais na década de 1980 nos países em desenvolvimento, seguindo os ditames impostos pelo neoliberalismo. Outras medidas como as alterações no terreno trabalhista com a adoção de legislações mais flexíveis que reduzem o valor dos salários ao mesmo tempo em que aumentam a jornada de trabalho foram imprescindíveis para a garantia deste atual estágio de acumulação.

Estas mudanças, ainda em curso, têm acentua-do o processo de acumulação da riqueza, pois tendem a extrair maior produtividade do trabalho, resultando na expansão da superpopulação relativa. Paralelo ao crescimento da superpopulação relativa, assiste-se à crescente precarização das condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora. Porém, estes fatores têm sido apontados pelos neocon-servadores como uma "nova" fase do capitalismo, gerando uma "nova pobreza". Para os apologetas da ordem burguesa, a pobreza é resultado da incapacidade dos indivíduos de se adequarem às mudanças em curso. Sua base não é mais originária do conflito entre capital/trabalho, mas resultado exclusivo dos sujeitos sociais. Como afirma Telles (1998), a pobreza e suas consequências são consideradas como responsabilidade do indivíduo e as medidas para seu combate é meramente de adequação ao "novo"44 Os grifos são meus. estágio do capital, cuja exclusão é resultante da incapacidade dos indivíduos de se adequarem às exigências propostas pelo projeto em tela.

Esta culpabilização dos indivíduos remonta aos pri-mórdios da revolução industrial quando a questão social era objeto de repressão aos pobres, considerados responsáveis por sua situação de miserabilidade. Iamamoto (2005, p. 82) analisa que, no atual contexto, a "questão social" vem sendo objeto de um processo de criminalização, "acompanhada da transformação de suas manifestações em objeto de programas assistenciais focalizados de "combate à pobreza" ou em expressões da violência dos pobres, cuja resposta é a "segurança e a repressão oficiais".

Este contexto reacende o debate em torno do princípio do apto e não apto e reforça a tendência a criar os bons e maus pobres, ou seja aqueles com disposição para o trabalho e aqueles considerados incapazes para o trabalho. Rosanvallon (1998) salienta que a "questão social" mudou em face do desemprego estrutural, surgindo novas formas de pobreza e de desamparo. Portanto, a "questão social" deixa de ter um enfoque global para adquirir uma abordagem mais focalizada dos segmentos mais vulneráveis da população. Para este autor, as ações voluntárias e solidaristas praticadas por organizações caritativas têm representado um papel fundamental para reverter este novo estágio da pobreza. Sennet (2005) também considera que o comunitarismo é uma das formas para responder aos riscos sociais oriundos do "novo capitalismo".

Outro autor que defende a solidariedade como elemento crucial para superação das dificuldades atuais é Rifkin (1995) quando ressalta que as atividades comunitárias vêm desempenhando ações importantes no combate aos problemas sociais. Para ele, a expansão do terceiro setor desperta nas pessoas o sentido da solidariedade, além de ocupar aqueles que se encontram excluídos do mercado de trabalho. Neste momento, aproxima-se da tendência a conjugar políticas assistenciais com a prestação de serviços55 Rifkin (1995, p. 263) aponta o comunitarismo como a terceira força, independente do mercado e do Estado, na reconstrução de milhares de comunidades locais. Considera que o avanço do comunitarismo é o caminho inevitável para vencer a crise do emprego. Salienta, ainda, o fato de que com a diminuição da importância do Estado e do mercado na vida pública, o terceiro setor se constitui uma verdadeira possibilidade de criação de uma era pós-mercado.. Offe (1989) também considera que o sistema de proteção social criado no pós-guerra favorecia determinados grupos em detrimentos de outros e que, na atualidade, essas mudanças políticas tendem a retirar os ideários igualitário-coletivistas para ideais libertários, antiestatizantes e comunitários. Giddens (1991) também destaca a humani-zação do capital como fator importante para superar os problemas impostos pela crescente globalização do risco. Já Gorz (1996) defende a necessidade de gerar formas de inserção dos pobres através de programas assistenciais, subvencionando empregos precários e de baixa remuneração, sem direito algum e com horários e locais irregulares, mas que permitiriam a subsistência mínima do trabalhador.

De acordo com os autores supracitados, a pobreza é entendida como um problema de ordem natural, sem nenhuma relação com o modo de produção capitalista. Estas concepções minimalistas apenas servem como estratégia para perpetuar uma ideologia conservadora que tende a retirar a questão social do conflito capital/trabalho colocando-a como problema do indivíduo. Tais teses, em consonância com os ditames do capital, reforçam a desigualdade social e apostam em saídas paliativas em que o Estado, afinado com as diretrizes das agências multilaterais, deve agir somente com políticas residuais para os mais pobres. Nesta perspectiva, o papel do Estado volta-se para a garantia de políticas de assistência social para os com- provadamente pobres - como atestam os programas de geração de renda como o Bolsa Família - que se revelam como políticas sociais de combate à pobreza e não de garantia de direitos. De outro lado, o governo brasileiro comemora os altos números do superávit primário que, no início de 2010, fechou em torno de 14 bilhões de reais. O que os dados não revelam, porém, são os custos sociais deste superávit primário, com a redução dos investimentos em políticas sociais. Como o trabalho formal não é mais o mecanismo de inserção, o governo vem investindo em políticas de emprego que reforçam o empre-endedorismo e o individualismo, como exemplifica o programa de Economia Solidária, além de fomentar a qualificação de jovens de forma a gerar força de trabalho mais barata e com direitos reduzidos, evidenciando a responsabilidade do terceiro setor ou de ações comunitárias como apregoa o discurso neo- conservador defendido pelos autores citados.

Nesse contexto, cresce a miséria e com ela o número de pessoas vivendo nas ruas, a mortalidade infantil, as doenças infecto-contagiosas, a criminalidade, a prostituição infantil e adulta, a violência generalizada, a depressão, a fome, o trabalho infantil e o trabalho em locais degradantes. Portanto, desmistificar o fetichismo oculto pelo discurso neoconservador e compreender a "questão social" no atual estágio de acumulação capitalista se torna um dos grandes desafios aos profissionais do Serviço Social. Esta desmistificação envolve um olhar sobre a "questão social" não como um elemento "novo", mas como resultado exclusivo do movimento contraditório do modo de produção capitalista que promove a desigualdade social de um lado e apropriação da riqueza de outro. Nessa situação, pode-se superar a crítica mecânica e simplista e adotar uma intervenção que caminhe na consolidação da emancipação humana, inibindo ações paliativas que só tendem a minimizar as condições de vida da classe trabalhadora sem alterar a dinâmica da acumulação de capital.

Conclusão

Diante do exposto, podemos perceber que a "questão social" está sendo analisada como um problema externo às relações sociais de produção capitalista. Sua natureza tem sido atribuída a processos naturais e individuais sem qualquer crítica à questão do trabalho, da acumulação capitalista, da exploração do trabalho. Sugerem medidas que apontam para o retorno ao comunitarismo e a ações filantrópicas, que desoneram o Estado e permitem que o processo de acumulação siga seu curso perfeito. Nestas abordagens, o papel do Estado e o do fundo público sequer são mencionados. Os problemas sociais são apontados como consequências naturais e inevitáveis deste processo, reforçando a culpabilização dos mais pobres e colocando o trabalho (ou melhor dizendo, a falta dele) como sendo um problema de ordem individual.

O não reconhecimento de seu elemento político e da sua relação com o processo de acumulação e concentração/centralização no interior das relações sociais de produção capitalista é importante como componente ideológico para evitar um debate maior que incida sobre o questionamento deste modo de produzir. Este discurso conservador favorece a livre acumulação e permite a condenação de milhares de pessoas ao genocídio, à morte violenta, à fome, à desesperança. Por outro lado, retira a luta em prol de uma nova ordem, pois faz crer que o caminho é irreversível, incontrolável, intangível.

Notas

Recebido em 04.03.2010. Aprovado em 09.06.2010.

oliveiraedneia@ig.com.br Doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Professora tutora no curso de Especialização a Distância - Cfess/Abepss/CEAD/UnB

Em: <http://www.cfess.org.br/noticias_res.php?id=91>

UFOP - Curso de Serviço Social

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  • OLIVEIRA, E. A. O atual estágio de acumulação capitalista: destruição criativa ou criação destrutiva? Revista Serviço & Sociedade, São Paulo: Cortez, v. 26, n. 82, p. 22-45, 2005.
  • ______. A política de emprego no Brasil e na Itália: entre a precarização protegida e a precarização desprotegida. 2008. 300 p. Projeto de Tese (Doutorado em Serviço Social) -Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, 2008.
  • PAULO NETTO, J. Cinco notas a propósito da questão social. Revista Temporalis, Abepss, Brasília, n. 3, p. 41-45, 2001.
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  • TELLES V. da S. A nova questão social brasileira. Revista Praga de Estudos Marxistas, São Paulo: Hucitec, n. 6, p. 106-117, 1998.
  • Superpopulação relativa e "nova questão social": um convite às categorias marxianas

    Relative Over Population and the "New Social Question": an Invitation to Marxian Categories
  • 1
    Paulo Netto (2001, p. 20-21) assinala que o monopólio possui algumas características que incluem a fusão de empresas, passando pelo
    pool, o cartel e o truste, o aumento dos preços das mercadorias e serviços, aumento das taxas de lucro, elevação da taxa de acumulação, acentuando a tendência descendente da taxa média de lucro e a tendência ao subconsumo, economia de trabalho vivo com a introdução de novas tecnologias etc.
  • 2
    Na nota de rodapé citada por Marx, retirada dos censos da Inglaterra e País de Gales, relativos aos anos de 1851 e 1861, ou seja, um período de 10 anos, está evidente a expulsão de trabalhadores de diversos ramos da produção. Esta expulsão constante de trabalhadores em alguns ramos da produção é atribuída pelo autor ao advento de inovações técnicas como a introdução de máquinas que reduzem o número de trabalhadores na fabricação de pregos. Por outro lado, o autor ressalta o aumento da força de trabalho em outros ramos da produção como, por exemplo, na confecção de tecidos, serradores etc. Ao final, conclui que "[...] desde 1851, o aumento de trabalhadores é, em regra, maior nos ramos onde até agora não se aplicou maquinaria com sucesso" (MARX, 1988, p. 732).
  • 3
    O conceito de grupo implica a diversificação que, por sua vez, pode ser de origem produtiva de investimentos de capital, ou seja, investimentos de base industrial como também de investimentos improdutivos de caráter especulativo e, consequentemente, parasitário (CHESNAIS, 1996, p. 76).
  • 4
    Os grifos são meus.
  • 5
    Rifkin (1995, p. 263) aponta o comunitarismo como a terceira força, independente do mercado e do Estado, na reconstrução de milhares de comunidades locais. Considera que o avanço do comunitarismo é o caminho inevitável para vencer a crise do emprego. Salienta, ainda, o fato de que com a diminuição da importância do Estado e do mercado na vida pública, o terceiro setor se constitui uma verdadeira possibilidade de criação de uma era pós-mercado.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Recebido
      04 Mar 2010
    • Aceito
      09 Jun 2010
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