Lemos com interesse o artigo Efeito da renda sobre a incidência acumulada de COVID-19: um estudo ecológico1, que evidencia até abril de 2020 maiores taxas de incidência em bairros com elevada renda per capita, apontando como hipóteses o maior isolamento social nos bairros mais ricos no início da pandemia e a subnotificação nas regiões pobres.
Compartilhamos da preocupação dos autores1 sobre a gravidade da vulnerabilidade social de grupos minorizados, especialmente da população negra, que historicamente é a mais atingida por doenças de transmissão respiratória e possui menor acesso a serviços de saúde. Estudos mais recentes, conduzidos a partir dos dados de junho e julho, confirmam as iniquidades raciais nos desfechos de COVID-19 na pandemia brasileira: foi identificado que a cor/raça negra é o segundo fator de risco para óbito2) e que a letalidade para mulheres pretas gestantes é quase o dobro quando comparada às brancas3. As disparidades étnicas também foram reportadas em localidades dos Estados Unidos da América4 com concentração de maior incidência e mortalidade por COVID-19 na população afro americana.
O conceito de vulnerabilidade em saúde5 é complexo e engloba as dimensões individual, social e política, de maneira que a chance de adoecimento é resultante de um conjunto de fatores contextuais, que se relacionam à falta ou acesso reduzido a direitos fundamentais. Os Determinantes Sociais de Saúde (DSS)5 expressam os graus de vulnerabilidade dos diferentes grupos, a partir das condições sociais e econômicas, com prejuízo para as populações mais pobres e periféricas. Soma-se a essa conjuntura o racismo como DSS estrutural que acentua o quadro de exclusão da população negra brasileira ao acesso a direitos3.
Em estudo pioneiro liderado por enfermeiras no Brasil, a disparidade observada nos desfechos de COVID-19 entre gestantes e puérperas brancas e pretas não foi associada a fatores biológicos3. Na ausência de diferenças clínicas de maior risco para COVID-19, o racismo estrutural enquanto DSS foi apontado como explicação para a chegada tardia das mulheres negras nos serviços, em piores condições de saúde, resultando em desfechos duplamente mais trágicos para essas mulheres3.
Para a Enfermagem, analisar o processo saúde-doença com o novo coronavírus pela lente dos DSS3, em um país com graves disparidades sociais e étnicas, implica na elaboração de políticas e práticas de enfrentamento com foco na vulnerabilidade em saúde. O desafio é ainda maior quando se acrescenta a alta taxa de subnotificação2, em que os grupos vulneráveis são os mais omitidos1.
Importa ressaltar que 2020 foi considerado o Ano Internacional da Enfermagem, com lançamento da campanha global Nursing Now pela Organização Mundial da Saúde. No contexto de pandemia, em que as disparidades se acentuam, enfatizamos o papel fundamental da Enfermagem na formulação de políticas públicas compromissadas com a redução das iniquidades em saúde, considerando sua capacidade para trabalho colaborativo e interprofissional, ação intersetorial e uso da educação permanente para transformação do trabalho, em contexto de mudanças intensas que requerem sensibilidade e capacidade criativa e relacional, atributos historicamente desenvolvidos pela Enfermagem.
Referências bibliográficas
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1 Rafael RMR, Neto M, Depret DG, Gil AC, Fonseca MHS, Souza-Santos R. Effect of income on the cumulative incidence of COVID-19: an ecological study. Rev. Latino-Am Enfermagem. 2020;28:e3344. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.4475.3344
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2 Baqui P, Bica I, Marra V, Ercole A, Schaar M. Ethnic and regional variations in hospital mortality from COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. Lancet. 2020;8:e1018-e1026. doi: https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30285-0
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3 Santos DS, Menezes MO, Andreucci CB, Nakamura-Pereira M, Knobel R, Katz L, et al.. Disproportionate impact of COVID-19 among pregnant and postpartum Black Women in Brazil through structural racism lens J Clin Infect Dis. 2020;30:ciaa1066. doi: https://doi.org/10.1093/cid/ciaa1066
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4 Milam AJ, Furr-Holden D, Edwards-Johnson J, Webb B, Patton III JW, Ezekwemba NC, et al. Are Clinicians Contributing to Excess African American COVID-19 Deaths? Unbeknownst to Them, They May Be. Health Equity. 2020;4(1):139-41. doi: https://10.1089/heq.2020.0015
» https://10.1089/heq.2020.0015 - 5 Castelaneli IKM, Vilela MFG, Bedrikow R, Santos DS, Figueira MCS. In the absence of an address, where does health live? Social determinants and occupation populations. Rev Saúde Debate. 2019;43(8):11-24.
Editado por
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Editora Científica Chefe: Regina Aparecida Garcia de Lima
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Jul 2021 -
Data do Fascículo
2021