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A questão da qualidade revisitada

No dia 18 de abril de 2015, sábado, parti de minha casa, num taxi, em direção a um grande hospital em São Paulo. Era cedo e ia em busca do resultado de um Holter de 24 horas. O exame, um eletrocardiograma de longa duração, requer a instalação de um equipamento medidor no corpo. Esse incômodo objeto fora instalado, pelo laboratório de exames clínicos do hospital, no dia 10 de abril, pela manhã. Era uma 6ª feira com uma defesa de tese de Doutorado na PUC-SP, na parte da tarde. Presidiria a banca de quatro doutores examinadores e estava curioso para saber como o meu coração (órgão) iria se comportar durante as cerca de cinco horas de duração da cerimônia. Passei o dia de trabalho e a noite de suposto descanso acompanhado por esse medidor cardíaco instalado em meu corpo.

Voltei ao hospital no dia 11 de abril, sábado, e retirei, sem maiores problemas, o medidor instalado em meu peito. A enfermeira entregou um protocolo que dizia, entre outras coisas: “Forma de entrega: Retirada no Hospital. Data final dos resultados: 17/04/2015”.

Uma semana depois, no dia 18 de abril, pela manhã, voltei ao hospital, antes de coordenar um Seminário Clínico de duas horas. Estava, portanto, dentro do prazo. No balcão de entrega de envelopes com exames, uma lindinha atendente procurou pelo meu e, depois de cuidadosa busca numa vasta série de envelopes, ligou o telefone interno e teve conversa com enfermeira do setor de exames de cardiologia. Disse-me, então, de forma sorridente e simpática, que o médico responsável pelo exame esteve ausente durante toda a semana, devido a uma doença da filha, e não assinara o laudo do exame, que não poderia ser liberado.

Respondi, de forma nem tão simpática e sorridente, que a vida particular do médico não era de minha alçada, que estava ali no prazo constante no protocolo e queria saber quem iria pagar o taxi que me trouxe inutilmente ao hospital.

Perguntei, em seguida, quando o exame estaria disponível. Disse-me, então, ainda sorridente e simpática, que não saberia dizer quem iria pagar o taxi e nem indicou a instância responsável. Disse, também, que o laudo só seria liberado com a assinatura do médico ausente. Insisti em perguntar qual seria a instância responsável e ela me passou duas. Imediatamente pensei: se há duas instâncias responsáveis, então não há nenhuma. Agradeci a gentileza da simpática lindinha e parti, pois sabia que, num sábado, qualquer instância administrativa do hospital responsável por falhas estaria desativada.

Caminhando em direção a uma das excelentes padarias existentes em São Paulo, onde pretendia tomar um típico café da manhã — média e pão integral light quente no forno, com pouca manteiga — pensava na questão da qualidade do atendimento hospitalar.

Esse não foi o primeiro episódio ocorrido comigo. Há algum tempo havia recebido o resultado de um exame de sangue com valores completamente fora da curva possível. Reclamei e fui informado que havia ocorrido um erro.

Essas ocorrências são completamente rotineiras no Brasil e qualquer um reconhece isso. Elas vêm quase sempre acompanhadas de sorrisos e simpatia por parte dos atendentes, dizendo, dessa forma, que não tem nada a ver com isso. Procedimentos que os norte-americanos chamam de sloppy, ou seja, sujos, lodosos, malfeitos são tão frequentes na sociedade brasileira que ninguém considera problemas requerendo reclamação e protesto. Mesmo porque, reclamar e protestar é considerado inútil, já que nenhuma providência corretora acontece.

Fazer bem feito, com cuidado para evitar o malfeito, não é uma prática institucionalizada na sociedade brasileira, ainda que exista um crescente número de ilhas de competência. Não há, na cultura, uma valorização do bem-feito nem ele é um ideal a ser alcançado pela via do trabalho sistemático e persistente. Os que se empenham em ser competentes, muitas vezes são considerados excêntricos, elitistas, excessivamente exigentes e severos.

Uma das consequências dessa situação é que o bem-feito passa a ser recurso autoritário e é imposto por organizações que precisam da qualidade para seus produtos. Evita-se, dessa maneira, a autonomia e a criatividade voltada para o bem-feito.

Fazer bem-feito é um ideal. Todo ideal é cultural. A cultura brasileira tem dificuldades em reconhecer o ideal do bem-feito; trata-se de um traço cultural presente, porém fraco, não é institucionalizado. Nós, brasileiros, sabemos muito bem dar um jeitinho, improvisar, quebrar um galho. Porém, somos pobres em fazer o bem-feito.

No início dos anos 1960, David C. McClelland, professor de Psicologia Social da Universidade de Harvard e chefe do Departamento de Psicologia daquela Universidade durante cerca de 20 anos, publicou um livro denominado The Achieving Society e, concomitantemente, Everett E. Hagen, professor da Universidade de Illinois (Urbana/Champaigne) publicou How Economic Growth Begins: A Theory of Social Change. Tanto McClelland quanto Hagen realizaram uma abordagem de inspiração freudiana para conceber aquilo que denominaram “need theory”, ou seja, teoria da necessidade, referindo-se ao que estava ocorrendo naquele momento em sociedades agrícolas tradicionais, como o Brasil.

Segundo Hagen, assim como McClelland, indivíduos alienados e criativos frequentemente dedicam-se a romper padrões sociais tradicionais depois de serem marginalizados pelas sociedades onde vivem, por serem diferentes. Como resultado, eles se dedicam a projetos que utilizarão seus talentos criadores dando a eles poder e a retribuição que almejam em oposição à sociedade elitista.

Esses indivíduos não ficam capturados por uma identificação com a perda causada pelo rompimento dos padrões tradicionais e pela marginalização que sofrem. Também não ficam capturados por uma eterna crítica sem qualquer outro movimento criador. Eles se dedicam a projetos construtivos almejando alterar a estrutura social. São inovadores.

Segundo McClelland, esses sujeitos possuem características obsessivas, mas não são neuróticos obsessivos. Foram, muito cedo, treinados a valorizar o controle de seus esfíncteres, ao contrário do que ocorre nas sociedades tradicionais.

Karl Abraham, o mais conhecido estudioso do erotismo oral e anal, em “Contribuição à teoria do caráter anal” (1921/2005) afirma que esses indivíduos, muito cedo, desenvolveram certas características. São distantes, reservados, conservadores em relação às mudanças, perseverantes, persistentes, hesitantes, teimosos, meticulosos, limpos, ordeiros e o controle esfincteriano, nesses casos, não é vivido como uma perda, como ocorre com personalidades melancólicas. É vivido como uma conquista. Talvez a primeira conquista da civilização. Ernest Jones, outro estudioso do erotismo anal, em “Caráter e erotismo anal” (1924) afirma que esses indivíduos possuem três principais traços de caráter: são ordeiros, parcimoniosos e obstinados.

Esses traços são responsáveis pela valorização da civilização que, por sua vez, baseia-se no bem-feito.

O bem-feito é, nessa perspectiva, uma combinação de uma rica imaginação compreensiva com uma perseverança prática que combate o desleixo, o descuidado, a superficialidade.

A cultura do bem-feito possui uma dimensão estética (Berlinck, 2014Berlinck, M.T. (2014). A questão da qualidade: desafio para a ciência. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, ). Ela é elegante por não ser excessiva. É precisa sem ser autoritária. Contém o necessário e o suficiente e, por isso, é valorizada.

Esses são valores e normas almejados pelo conhecimento científico que contribuem para a compreensão da natureza sendo, por isso, elementos fundamentais da civilização.

Referências

  • Abraham, K. (1921). Contribuição a teoria do caráter anal. In M.T. Berlinck (Org.) (2005), Obsessiva neurose. São Paulo: Escuta.
  • Berlinck, M.T. (Org.) (2005). Obsessiva neurose. São Paulo: Escuta.
  • Berlinck, M.T. (2014). A questão da qualidade: desafio para a ciência. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental,
  • Hagen, E.E. (1963). How Economic Growth Begins: A Theory of Social Change. Journal of Social Issues, 19(1), 20-34.
  • Jones, E. (1924). Caráter e erotismo anal. In M.T. Berlinck (Org.) (2005), Obsessiva neurose. São Paulo: Escuta.
  • Jones, E. (1948). Traços de caráter anal-sádico. In M.T. Berlinck (Org.) (2005), Obsessiva neurose. São Paulo: Escuta.
  • McClelland, D.C. (1961). The Achieving Society. New York: The Free Press.
  • Citação/Citation: Berlinck, M.T. & Magtaz, A.C. (2015, junho). Editorial. A questão da qualidade revisitada. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 199-203.
Editores do artigo/Editors: Manoel Tosta Berlinck e Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2015
  • Aceito
    25 Abr 2015
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