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O caso Schreber: a expressão da escrita do trabalho clínico

Henriques, Rogério Paes. Freud e a narrativa paranoica: Schreber revisitado. 2014. Edusp, São Paulo: 196

Henriques, ao revisitar o caso Schreber sob a ótica de Freud, nos convida a um mergulho na articulação de questões clínicas relacionadas aos conteúdos que se expressam através da escrita. Escrita do fazer clínico e do paciente, em que ambos, ao se utilizarem do recurso de linguagem para transmitir o que se propõem, nos oferecem algo além. Em outras palavras, deixa-se escapar também a realidade psíquica pela qual o processo discursivo e suas reflexões sobre o caso são afetados.

Talvez, exatamente por isso, esse texto constitui-se como fundamental pesquisa para aqueles que se interessam pela transmissão da clínica sob os preceitos psicanalíticos do método clínico. E, ao pensarmos sobre a tradição da Psicopatologia Fundamental na qual prima o pathos em sua manifestação particular, no que se refere à subjetividade, esse fenômeno da escrita se confirma como um rico material de estudo.

O caminho percorrido pelo autor em torno de suas reflexões se dá com maestria. Com cuidadosa atenção para com o leitor, Henriques organiza o texto construindo um percurso esclarecedor, enlaçando-nos em uma leitura acessível e agradável. Propõe, por meio de um esboço de divisão cronológica para a escrita de Schreber e para o ensaio de Freud, um diálogo com os principais conceitos referentes às psicoses.

Inicialmente é apresentada a autobiografia de Schreber — Memórias de um doente dos nervos — salientando-se os conteúdos relevantes dessa obra que são tratados no decorrer do livro, com especial enfoque para a discussão acerca do estilo literário e o posicionamento de Schreber como autor, associando-se aos temas que envolvem a psicose e a literatura. Pela sua autobiografia, Schreber encontra na escrita um apaziguamento dos fenômenos psicóticos reduzindo a “invasão do Outro a seu corpo”.

Em um segundo momento, Henriques evoca as interpretações de Freud, Lacan e de outros comentadores analisando metodologicamente esses textos que versam sobre Schreber e sobre o ensaio de Freud. Questões de maior complexidade teórica com relação à metapsicologia freudiana e a concepção de Lacan acerca das psicoses são discutidas. Sobre este último, o autor dedica uma parte significativa do texto apresentando a compreensão linguístico-estrutural do fenômeno da psicose centrando-se na releitura lacaniana do caso Schreber.

Mais adiante, de forma bastante interessante, o autor expõe o estilo literário do ensaio de Freud. Nesse ponto, Henriques destaca o caráter mimético expresso na escrita do caso Schreber, revelando que tanto Freud quanto Schreber “pareciam temer o fantasma do plágio que ronda seus escritos”. Tal manifestação é abordada pelo autor considerando-se o contexto socio-histórico no qual Freud se encontrava enquanto formulava esse ensaio. Trata-se de um momento em que o plágio foi motivo de desavenças teóricas entre Freud e Alfred Adler, e, logo em seguida, com Carl Gustav Jung. A angústia referente à sua voz autoral e a originalidade no campo das psicoses traz características marcantes para o texto freudiano.

Ao longo de todo o livro de Henriques, apreende as principais questões teóricas referentes às psicoses o que permite construir o aporte necessário para a compreensão do funcionamento psíquico que se expressa pela escrita de Schreber e de como esta afeta o estilo literário de Freud.

Abordando desde os temas relacionados à escrita de Schreber, aos conceitos metapsicológicos acerca das psicoses somados às leituras freudianas, lacanianas e de alguns outros autores, somos direcionados para a compreensão de seu objeto de estudo: o ensaio de Freud sobre Schreber.

Pelas revelações deste estudo, torna-se pertinente a transposição destas questões referentes à escrita para nossas próprias vivências clínicas. Afinal, como indica o autor citando Miller, uma sessão de análise é sempre um esforço de poesia. Somado a isto, podemos pensar a escrita como sintoma e expressão do psiquismo, do clínico e do paciente, especialmente quando retratamos um estudo de caso. Logo, somos levados a considerar o “contar-se”, e a transmissão deste ato para o leitor, um processo de dar palavras ao pensar, tratando-se de um dos motivos que tornam a escrita de Henriques uma proveitosa leitura.

Em suma, a nós, leitores, apresenta-se um percurso instigante que contempla a escrita sobre a clínica e nos convoca de forma sublime a pensar a respeito do que se manifesta, muitas vezes de forma inconsciente, através da narrativa. Como coloca Giacóia Jr. (2013)Giacóia Jr., O. (2013). Heidegger urgente: introdução a um novo pensar. São Paulo: Três Estrelas., o pensamento é um propósito que só se atinge em diálogo com a poesia. E, se a poesia possibilita a articulação com outros significantes, este texto semeia tantos outros deslizamentos reflexivos.

Referências

  • Giacóia Jr., O. (2013). Heidegger urgente: introdução a um novo pensar São Paulo: Três Estrelas.
Editor do artigo/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2015
  • Aceito
    29 Jan 2016
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