Open-access O terecô (Maranhão) como “religião ordinária”

AHLERT, Martina. . Encantoria. Uma etnografia de pessoas e encantados. São Luís/ Curitiba: EDUFMA/ Kotter, 2021, 246pp.

O livro de Martina Ahlert, Encantoria. Uma etnografia de pessoas e encantados, resulta de uma pesquisa realizada entre 2010 e 2011 em Codó, centrada no terecô (a designação mais comum dada à religião afro-brasileira prevalecente no leste do estado de Maranhão). De “provável matriz banto, com elementos jeje e nagô” (:22) e com influências da umbanda, o terecô - também conhecido como tambor da mata - está orientado para o culto de entidades espirituais conhecidas como encantados - humanos que, depois da sua morte, encantaram-se e vivem nas matas. Entre essas entidades, ocupam lugar de relevo os encantados da família de Légua. À semelhança de outras religiões brasileiras de matriz africana, o terecô organiza-se em torno de locais de culto conhecidos como tendas, dirigidos por uma mãe ou um pai de santo (também conhecido como mestre) e integrados por um número variável de filhas e filhos de santo (também conhecidas como brincantes).

Como Martina Ahlert sublinha na “Introdução”, o seu livro insere-se em uma genealogia de que fazem nomeadamente parte dos capítulos que, nos anos 1940, Octávio Eduardo dedicou a Santo António dos Pretos (povoado do município de Codó) na monografia The negro in northern Brazil. A study in acculturation (1948) e mais recentemente as pesquisas de Mundicarmo Ferretti, com destaque para Encantaria de Barba Soeira. Codó, capital da magia negra? (2001). Trata-se de uma genealogia curta, resultante da preferência dada pelos antropólogos ao tambor de mina como a religião de matriz africana mais emblemática do Maranhão. Como Martina Ahlert escreve, uma das consequências dessa preferência foi a marginalização de outros gêneros religiosos, entre os quais o terecô. O seu livro é um contributo importante para inverter essa situação. Dada a influência relevante do terecô no próprio tambor de mina, Encantoria tem a vantagem suplementar de enriquecer substancialmente o nosso conhecimento sobre este último gênero religioso, tanto mais que muitas das análises disponíveis tendem a sobrevalorizar o seu lado jeje (Casa das Minas) ou nagô (Casa de Nagô e a grande maioria dos terreiros de São Luís), em detrimento de outras suas componentes religiosas.

O livro está organizado em cinco capítulos, antecedidos por uma “Introdução” e seguidos de uma conclusão (“Considerações finais”). Na “Introdução”, Martina Ahlert apresenta o seu trabalho de campo e as três principais preocupações do seu livro. Em primeiro lugar, “a não separação entre as experiências religiosas e os outros domínios da vida social” (:42) designadamente domésticos, familiares e económicos. Em segundo lugar, a substituição da busca de significado por uma “aposta na emergência pragmática das coisas” (:45). E, por fim, a valorização da “cadeia associativa entre religião e pobreza” (:42). É também na “Introdução” que a autora procede a uma caracterização geral do terecô e passa em revista a escassa bibliografia que o tem analisado.

O primeiro capítulo (“As matas de seu Légua”) inicia-se com uma apresentação das diferentes tendas estudadas pela autora para se centrar depois no processo que conduziu o terecô da mata para a tenda, isto é, dos povoados rurais de onde proveem os pais e mães de santo para a cidade de Codó, onde se estabeleceram, empurrado(a)s, nomeadamente, pela ofensiva contra as “terras de preto” iniciada nos anos 1970.

O segundo capítulo (“Um guia para zelar”) é uma muito completa apresentação dos encantados e dos seus múltiplos relacionamentos com o(a)s brincantes. Um dos traços importantes do terecô (como também do tambor de mina) é o fato de os brincantes habitarem um mundo que - evocando Fernando Pessoa - se caracteriza pela “heteronímia espiritual”, uma vez que cada terecozeiro recebe um elevado número de encantados, com nomes e atributos diferentes. Ahlert está atenta a esse aspecto, provavelmente responsável pelo grande número (500) de encantados da família de Légua conhecidos em Codó. É também neste capítulo que se começa a tornar mais claro um aspeto central da análise proposta por Ahlert: o seu foco no modo como brincantes, seus familiares e encantados se enredam uns nos outros e se constituem mutuamente. Como fica claro, qualquer análise que tentasse separar aquilo que é dado em conjunto, estaria condenada ao fracasso.

O capítulo 3 (“O pé do meu tambor”) concentra-se nas tendas e no que lá se passa e coloca-se sob o signo do espaço: não apenas o espaço interior das tendas, mas também o modo como estas, por meio de procissões e outros festejos, se conectam entre si e se projetam no espaço público. Como Ahlert sublinha no final do capítulo, são em consequências, indecisas as fronteiras entre os domínios religioso, doméstico e público.

O Capítulo 4 (“Fazendo experiência”) concentra-se nos “trabalhos” realizados pelos pais e mães de santo e o Capítulo 5 (“Vida cheia”) é uma comovida reflexão sobre o “fim”: sobre a cessação (ou diminuição) da atividade dos pais e mães de santo, sobre o medo da solidão e os modos de evitá-la, sobre a morte e os seus rituais. Nas “Considerações Finais”, Martina Ahlert regressa a algumas ideias que teve ocasião de desenvolver mais detalhadamente ao longo do livro, relacionando-as com o modo como realizou a sua própria etnografia.

São vários os méritos de Encantoria. Do ponto de vista do objeto, trata-se de uma monografia que faz um duplo deslocamento: a) das grandes cidades litorais mais presentes na literatura antropológica para os menos abordados municípios do interior, ainda fortemente ancorados no hinterland rural; b) das variantes mais conhecidas das religiões afro-brasileiras para modalidades religiosas - como o terecô - que têm ocupado um lugar marginal na reflexão antropológica. Fica assim duplamente enriquecido o conhecimento antropológico sobre religiões de matriz africana no Brasil (e, em geral, nas Américas).

Quanto ao método, são também inovadoras algumas das opções de Martina Ahlert. De fato, ao mesmo tempo que troca o clássico estudo de caso centrado em um só terreiro por uma etnografia multissituada que abrangeu mais de uma dezena de tendas, é também clara a sua opção pelo movimento: não apenas do etnógrafo que circula entre várias tendas, mas também das tendas e das suas múltiplas deslocações (do campo para a cidade, e, dentro da cidade, entre o espaço religioso e doméstico e o espaço público, entre tendas etc.). A sua atenção ao “êxodo rural” dos terecozeiros para Codó assim como às suas deslocações diárias entre a cidade - onde habitam - e o entorno rural - onde trabalham - revelam grande sensibilidade sociológica. Deve ser também sublinhado o destaque dado pela autora às intervisitas entre tendas (descritas localmente como pagar noite) por ocasião da realização dos festejos mais importantes de cada tenda: muitos brincantes de outras casas participam neles, como forma de os prestigiar, devendo, mais tarde, essas visitas ser retribuídas. É assim enfatizada a importância - que se reencontra também no tambor de mina de São Luís - da reciprocidade entre tendas na sua projeção e prestígio.

Do ponto de vista das linhas de interpretação, é bastante produtivo o acento que Ahlert coloca na “não separação entre as experiências religiosas e os outros domínios da vida social” e na substituição da busca de significado por uma “aposta na emergência pragmática das coisas”. Embora esse autor não seja citado, Martina Ahlert desenvolve por aí uma reflexão muito próxima das propostas de Albert Piette (2003) sobre a “religião ordinária”. Não é que a autora não se debruce sobre os conteúdos cosmológicos e/ou rituais do terecô. A sua apresentação dos encantados e, em particular, dos encantados da família de Légua é muito cuidadosa e completa. Mas aquilo que mais interessa Ahlert é o “fazer” dos brincantes, dos encantados e das tendas. Não tanto o que o terecô é, mas o que o terecô faz (e como faz). E não apenas o que faz em termos dos grandes momentos rituais, mas o que faz no dia a dia e nos momentos menos “heroicos”.

O modo como a análise de Ahlert se recusa a separar analiticamente entidades - humanas e não humanas - e “coisas” - imagens, rituais, rezas - que na realidade estão enredadas entre si deve ser também sublinhado. Os sujeitos da sua monografia são por isso múltiplos e estão multiplamente interligados: são os brincantes, mas são também os encantados, são os brincantes e os encantados, mas são também os familiares dos brincantes e os clientes das tendas. Os encantados, em particular são tratados com o mesmo cuidado que para com eles têm os terecozeiros.

Deve ser também enfatizada a escrita sensível e muito colada às falas de brincantes e encantados que caracteriza a monografia. Desse ponto de vista, Encantoria está mais próxima do tipo de monografias publicadas na célebre coleção Terre Humaine (da editora francesa Plon) - que privilegia livros que combinam o relevo dado à experiência individual do investigador com uma acentuada atenção às falas e vivências dos seus interlocutores - do que das mais solenes monografias a que é dada preferência na universidade. Não é que Martina Ahlert não domine a bibliografia relevante e não faça dela bom uso, mas o tom contido a que recorre garante que o espaço é ocupado não tanto por uma argumentação conceitual demasiado cerrada, mas pelos fazeres e dizeres de brincantes e encantados e pelos caminhos analíticos que eles indicam.

Duas observações finais devem ser feitas. Embora a autora refira como uma suas linhas principais de análise a “cadeia associativa entre religião e pobreza” (:42), sente-se a falta de um tratamento mais sistematizado do tópico. Eventualmente, ele poderia ter sido aprofundado nas “Considerações Finais”, contribuindo para que esse último capítulo beneficiasse de forma mais clara da energia que percorre o livro de Martina Ahlert.

Referências

  • EDUARDO, Otávio da Costa. (1948), The negro in northern Brazil. A study in acculturation Seattle - London: University of Washington Press.
  • FERRETTI, Mundicarmo. (2001), Encantaria de Barba Soeira. Codó, capital da magia negra? São Paulo: Siciliano.
  • Piette, Albert. (2003), Le fait religieux. Une théorie de la religion ordinaire Paris: Economica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2021
  • Aceito
    01 Nov 2021
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