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O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição: o suspeito é o culpado

Resumo

Autoridade máxima do Tribunal do Santo Ofício, o inquisidor acumulava as funções de investigador e juiz, encerrando em suas mãos um enorme poder. Os estudos sobre o processo inquisitorial têm ressaltado que o arbítrio do juiz era muito mais amplo nesta justiça do que noutras de sua época, devido ao grande número de questões subjetivas, não resolvidas normativamente ou tratadas de forma ambígua pela legislação. Este trabalho apresenta uma análise do papel do inquisidor, suas atribuições e prerrogativas, em um tribunal que sempre primou por orientar seus processos no sentido de confirmar suas suspeitas iniciais e culpabilizar o réu.

Inquisição portuguesa; inquisidores; atribuições legais; investigações criminais; produção de verdades no espaço público


DOSSIÊ CIDADANIA E VIOLÊNCIA

O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição: o suspeito é o culpado1 1 Comunicação apresentada na 21ª reunião anual da Asso-ciação Brasileira de Antropologia, grupo de trabalho "Pro-cessos institucionais de administração de conflitos e pro-dução de verdades no espaço público: mediações formais e informais", sessão "Produção de verdades, mediações e administração de conflitos no espaço público".

Lana Lage da Gama Lima

Universidade Estadual do Norte Fluminense

RESUMO

Autoridade máxima do Tribunal do Santo Ofício, o inquisidor acumulava as funções de investigador e juiz, encerrando em suas mãos um enorme poder. Os estudos sobre o processo inquisitorial têm ressaltado que o arbítrio do juiz era muito mais amplo nesta justiça do que noutras de sua época, devido ao grande número de questões subjetivas, não resolvidas normativamente ou tratadas de forma ambígua pela legislação. Este trabalho apresenta uma análise do papel do inquisidor, suas atribuições e prerrogativas, em um tribunal que sempre primou por orientar seus processos no sentido de confirmar suas suspeitas iniciais e culpabilizar o réu.

Palavras-chave: Inquisição portuguesa; inquisidores; atribuições legais; investigações criminais; produção de verdades no espaço público.

Parece-me fundamental ressaltar aspectos da legislação e das práticas processuais do Tribunal do Santo Ofício Português, no intuito de caracterizá-lo como uma justiça que oferecia aos réus chances mínimas de defesa, transformando assim, via de regra, suspeitos em culpados.

Dentre as peculiaridades que tornavam os tribunais do Santo Oficio mais temidos do que quaisquer outros de seu tempo, tem sido destacada a não distinção entre a fase de instrução e a fase probatória. O processo iniciava-se desde que se faziam as primeiras diligências para averiguação da culpa, podendo o acusado ser submetido à prisão preventiva, com ou sem seqüestro de bens, assim que se acumulavam indícios contra ele, portanto antes de qualquer acusação formal.

Sobre a culpabilização do réu nos tribunais inquisitoriais afirma Tomás y Valiente: "O processo é orientado para comprovar a veracidade de umas suspeitas iniciais. À margem de qualquer declaração de princípios, o funcionamento do processo inquisitorial parece dirigir-se a comprovar uma espécie de tácita presunção de culpabilidade daquele contra quem existam indícios de conduta delituosa" (TOMÁS Y VALIENTE, 1980, p. 57-8).

Em outras justiças, após a acusação formal, o réu tinha acesso aos traslados dos autos onde constavam os nomes dos depoentes e os delitos de que era acusado. No Santo Ofício isso nunca acontecia, pois não havia praticamente diferença entre a primeira e a segunda fase, sendo o processo permanentemente alimentado com a inclusão de novas acusações, permanecendo os autos em segredo até o final.

Outra característica marcante do processo inquisitorial era a reiterada busca da auto-acusação do réu, expressada na pregação constante para que confessasse suas culpas e no uso da tortura como forma de extrair confissões. Não se pode esquecer de que esse estilo de processo de origem romana, conhecido por inquisitio, elevou a confissão à categoria de "rainha das provas".

Por outro lado, como explica Edward Peters, "uma vez que a confissão se tornara essencial para o próprio julgamento, os métodos utilizados para a obter tinham que ser considerados como fazendo parte do processo jurídico [...]" (PETERS, s/d, p. 62). Daí a tortura do réu "pelo crime não estar provado ou pelas diminuições de sua confissão" (SANTO OFÍCIO, 1640, Livro II, Título XIII, parágrafo XIII), estar prevista nos regimentos da Inquisição, bem como as regras para sua aplicação (Idem, Título XIV).

No Santo Ofício, o peso concedido à confissão era ainda maior do que em outras justiças baseadas na inquisitio pois, embora fazendo parte de um processo judiciário, a confissão "mantinha sua conotação sagrada, continuando a ser meio de salvação da alma [...]." Daí a insistência levada até o último momento, muitas vezes à beira da fogueira, para que o réu confessasse (LIMA, 1986, pp. 73-77).

Finalmente, a quarta peculiaridade do processo inquisitorial, apontada por Tomás y Valiente, diz respeito à amplitude do arbítrio do juiz, muito maior nos tribunais da Inquisição do que nas outras justiças suas contemporâneas, fato devido à existência de um grande número de questões não resolvidas normativamente ou tratadas com ambigüidade pela legislação que orientava as suas ações. É sobre essa questão que tratarei neste trabalho: o papel atribuído ao inquisidor no Santo Ofício.

Do ponto de vista jurídico, uma das conseqüências da larga margem de arbítrio pessoal concedida ao inquisidor era a variação do ritmo processual, apontada por Tomás y Valiente como quinta peculiaridade do processo inquisitorial. Em sua essência, o Santo Ofício não era uma justiça rápida nem lenta, dependendo inteiramente do arbítrio do inquisidor. Nos processos que examinei – todos dizendo respeito ao mesmo tipo de delito: a solicitação de mulheres para "atos torpes" por parte de clérigos durante a confissão sacramental – o tempo de duração variou de um mês a dois anos, com exceção de um caso em que o solicitante foi condenado em apenas treze dias no terceiro processo em que foi réu.

A figura do inquisidor se delineia desde o primeiro Regimento do Santo Ofício português (1552) como emblemática da própria instituição, cujo lema, gravado em seus estandartes, era "misericórdia e justiça".

Os escolhidos deviam ser: "letrados, de boa consciência, prudentes, constantes, e os mais altos e idôneos que se puderem haver, cuja vida e honesta conversação dê exemplo de sua pureza e bondade [...]" (SANTO OFÍCIO, 1552. cap. 1).

É interessante lembrar que a imagem considerada fundadora da iconografia laudatória do Santo Ofício na Espanha, a chamada "tábua" de Pedro Berruguete (c. 1450-1503), mostra São Domingos (1170-1221) como inquisidor. Trata-se de uma representação anacrônica, em que o santo aparece presidindo uma cerimônia de auto-de-fé nos moldes característicos do século XV, com o objetivo evidente de legitimar a implantação do tribunal, de origem medieval, na Espanha. A figura do santo/inquisidor destaca-se por sua posição central no quadro e por seu tamanho, desproporcional em relação aos outros personagens, indicação inequívoca, pelos códigos pictóricos da época, de sua importância.

O modelo concebido para o inquisidor se inspira nos do pai e do sacerdote. Cabe a ele, além de punir, consolar e animar os réus, fazendo admoestações "com boas palavras" para que confessem e peçam perdão por suas culpas (SANTO OFÍCIO, 1552, cap. 26). Recomenda-se aos inquisidores que percorram os cárceres ao menos de quinze em quinze dias e sempre que necessário, para ouvirem os presos acerca de suas necessidades e provê-las, procurando saber se sofrem algum mal tratamento (id., cap. 30). Há também recomendações explícitas para que não "escandalizem com suas palavras aos presos nem a outras pessoas que requeiram sua justiça" (id., cap. 32). Devem representar não a justiça implacável, que na prática caracterizava a ação do tribunal, mas uma justiça misericordiosa, que se condói da sorte do réu e lamenta ter que puni-lo para sua própria salvação.

Várias situações previstas no regimento evidenciam o grande espaço concedido às decisões pessoais do inquisidor. Apesar de proibir a prisão de alguém denunciado por uma única testemunha, faculta aos inquisidores ordenar tal procedimento se lhes parecer conveniente (id., cap. 24). Se durante o processo os acusados viessem com apelações e suspeições, permite-se que os inquisidores não as recebam se as acharem "frívolas", procedendo na causa "em diante como lhes parecer justiça". Somente se as julgassem procedentes deviam enviá-las ao Inquisidor Geral ou ao Conselho da Inquisição (id. Cap. 33).

A justiça inquisitorial admitia que os presos tivessem advogados ou procuradores para suas causas. Mas, apesar de serem indicados pelo próprio tribunal, eles também não tinham acesso aos autos completos, e sim à versão vaga, usada também no libelo acusatório e na prova de justiça, em que o nome dos denunciantes ou das vítimas, e as circunstâncias (local, data, ocasião) que permitissem identificar exatamente o delito de que o réu era acusado, não apareciam, substituídos por fórmulas do tipo: "havera 14 para 15 anos se achou em certo lugar aonde ouvindo de confissão sacramental a certa pessoa do sexo feminino lhe disse no mesmo ato da confissão que lhe queria muito [...]" (ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Inquisição de Lisboa, cód. 5175).

A sabida ineficácia de tais defensores levava muitos réus a dispensá-los, mas nesse caso, o inquisidor podia indicá-los à revelia do acusado, se julgasse "que é o negócio de qualidade para lhe ser dado" (SANTO OFÍCIO, 1552, cap. 39). Portanto, ao inquisidor cabia tomar decisões arbitrárias que podiam prejudicar ou, ao menos teoricamente, beneficiar o réu.

Era atribuição do inquisidor geral julgar as petições para comutação das penas. Nesses casos devia considerar "quanto tempo há que [o réu] cumpre sua penitência e com que humildade e sinais de contrição" (id., cap. 62). Assim, ter a pena atenuada dependia de fatores subjetivos interpretados pelo inquisidor. Não se pode esquecer de que nos tribunais da Inquisição os delitos são também pecados e o julgamento das causas é influenciado diretamente pelo grau de arrependimento demonstrado pelo réu.

Os inquisidores decidiam muitas questões a partir de julgamentos pessoais, sem nenhuma regra que garantisse a igualdade no tratamento dispensado aos presos. Podiam, por exemplo, permitir àqueles que necessitassem, deixar o cárcere para negociar algum bem de modo a garantir seu sustento (é bom lembrar que as custas do processo eram debitadas do réu). Essa dispensa era concedida pelo Inquisidor "como e quando lhe parecer ser serviço de Nosso Senhor" (id., cap. 64). Aliás, o regimento determina que os inquisidores devem cumprir seu ofício "sem consideração de outro respeito humano senão servirem a Nosso Senhor" (id., cap. 66), fórmula que submete todos os direitos dos homens aos interesses da Igreja. Vale lembrar que, ao se instalar em um território, o tribunal do Santo Ofício obtinha jurisdição universal sobre todos os cristãos que ali estivessem, independentemente de quaisquer privilégios de foro que sua condição social implicasse, incluindo a nacionalidade.

É interessante notar que apesar de todo esse poder e da extensão de seu arbítrio, o inquisidor é um funcionário do tribunal, que tem, por exemplo, horário estabelecido regimentalmente. Tive ocasião de encontrar em alguns processos anotações informando que a sessão de interrogatório havia sido interrompida por ser "dada a hora". Trabalhavam os inquisidores todos os dias que não fossem "de guarda", isto é, feriados religiosos. De quinze de março a quinze de setembro, de sete às dez da manhã. Havia um intervalo para a refeição e voltavam às quinze, permanecendo até as dezoito horas. De quinze de setembro a quinze de março (meses de inverno) o horário era corrigido em função da claridade, começavam o trabalho às oito e iam até às onze; retornavam às quatorze, permanecendo até as dezessete (id., cap. 72).

O Santo Ofício português teve, ao longo de sua história quatro regimentos gerais (1552, 1613, 1640 e 1774), que refletiram conjunturas diversas. O de 1640 é o mais completo, demonstrando a consolidação da estrutura inquisitorial. O de 1774 foi fruto da intervenção do Marquês de Pombal, que instituiu mudanças radicais, descaracterizando a Inquisição e transformando-a em tribunal régio, totalmente submetido aos interesses da Coroa.

O Regimento de 1640 é organizado em livros e títulos. O livro I é dedicado justamente aos ministros e oficiais do Santo Ofício e às "coisas que nele há de haver". O perfil das autoridades inquisitoriais é delineado de forma muito mais minuciosa do que no regimento de 1552. Além das genéricas condições morais exigidas anteriormente, enumeram-se outras, que refletem a experiência da ação inquisitorial na sociedade portuguesa durante praticamente um século: "serão naturais do Reino, cristãos velhos de limpo sangue, sem raça de mouro, judeu, ou gente novamente convertida a nossa Santa Fé, e sem fama em contrário; que não tenham incorrido em alguma infâmia pública de feito, ou de direito, nem fossem presos, ou penitenciados pela Inquisição, nem sejam descendentes de pessoas que tivessem algum dos defeitos sobreditos: serão de boa vida e costumes, capazes para se lhes encarregar qualquer negócio de importância e de segredo [...]" (SANTO OFÍCIO, 1640, Livro I, Título I, parágrafo II).

É bom marcar que continua nesse regimento a proibição de que haja parentesco entre os funcionários que sirvam num mesmo tribunal (SANTO OFÍCIO, 1552, cap. 4; SANTO OFÍCIO, 1640, Livro I, Título I, parágrafo III), evidentemente como forma de impedir algum tipo de proteção ou cumplicidade que atrapalhe a aplicação da justiça.

No título I do primeiro livro recomenda-se a obediência ao regimento por todos os funcionários e também a obediência às ordens dos inquisidores, cujo comportamento é alvo de cuidados detalhados, ao contrário do que ocorre com o primeiro regimento, que se limita a enunciar algumas qualidades requeridas para o exercício do cargo: "Procederão em tudo de maneira que dêem de si bom exemplo; tratar-se-ão com a modéstia e decência conveniente ao seu estado; não farão agravo ou vexação a pessoa alguma com o poder de seus ofícios, ou com pretexto dos privilégios que gozam, nem consentirão que a façam seus familiares ou criados" (id., ibid., parágrafo VIII).

Pode-se perceber por trás dessa recomendação uma longa história de exações e abusos de autoridade por parte dos ministros do Santo Ofício, de suas famílias e mesmo de seus criados, evidenciando o grande poder que foram acumulando na sociedade portuguesa, marcada pela hierarquização estamental característica do Anti-go Regime2 2 Bartolomé Bennassar realizou interessante estudo sobre o papel das prerrogativas sociais concedidas aos funcio-nários do Santo Ofício espanhol nas disputas entre clãs na Andaluzia, destacando-se o privilégio de foro (BENNASSAR, 1976). . A tentativa de coibir abusos se manifesta ainda na seguinte admoestação: "Falarão com tal advertência na gente de nação [judeus e cristãos-novos], que nunca deles se possa cuidar que o ódio de que todos devem ter ao delito se estende também às pessoas, que antes se compadecerão quanto é justo das fraquezas daqueles que cometerem culpas contra nossa santa fé" (SANTO OFÍCIO, 1640, Livro I, Título I, parágrafo VIII).

A constituição, ao longo do tempo, de um terreno fértil para a corrupção nos tribunais inquisitoriais, bem como as práticas de suborno mais comuns, são evidenciadas nas outras determinações do mesmo parágrafo: "Não terão trato ou comunicação particular com pessoas de suspeita, que tenham ou possam ter negócios no Santo Ofício, nem delas se servirão, nem aceitarão dádivas ou presentes, ainda que sejam de pouca valia, nem a título de compra tomarão mercadorias ou mantimentos a pessoa alguma por menos do preço ordinário, nem pedirão emprestado a gente de nação, pelos inconvenientes que podem resultar do contrário, e procurarão quanto for possível não contrair dívidas que possam causar queixas ou diminuir a autoridade que a suas pessoas e ofícios é devida" (id., ibid.).

A menção aos "negócios" com "gente de nação" é mais um sinal das práticas de extorsão levadas a efeito pelas autoridades eclesiásticas e inquisotoriais contra os cristãos-novos, que muitas e muitas vezes pagaram para garantir alguns direitos ou salvar suas vidas. Esses mecanismos são fartamente conhecidos dos historiadores e envolviam desde os mais baixos funcionários até o papado. A própria implantação do tribunal em Portugal foi acompanhada por negociações que retardaram o processo à custa de muito ouro recolhido aos cofres do Vaticano.

A determinação dos horários de trabalho dos inquisidores é mantida no regimento de 1640 (Livro I, Título I, parágrafo XI), atestando a estrutura burocrática dos tribunais. Como aponta Bernard Vincent, a Inquisição Ibérica "funcionarizou" inclusive sua prisão, regulamentando minuciosamente a ação do pessoal envolvido com a carceragem, constituindo uma máquina de controle que punha em prática mecanismos marcados pela modernidade (VINCENT, 1983, p. 89)3 3 Sobre essa questão ver também FOUCAULT, 1977. . Não se pode esquecer que, paralelamente, procedia-se na Europa ocidental à montagem das estruturas burocráticas que viabilizaram os Estados Modernos4 4 Segundo José Mattoso: "Os primórdios do Estado Mo-derno só se iniciam quando se despersonaliza o exercício do poder, se uniformizam os direitos e deveres dos súdi-tos, e se põe em prática um direito público baseado em princípios universais". Ver "Condicionantes básicos", em MATTOSO, 1993, p. 371. .

O aumento do poder interno do inquisidor é atestado pelas recomendações relativas à Câmara do Secreto, onde se guardavam os papéis da Inquisição. Enquanto o Regimento de 1552 permitia que os dois notários e o procurador que guardavam as três chaves que abriam simultaneamente suas portas tivessem acesso aos documentos, desde que estivessem os três presentes, o Regimento de 1640 determina que a Câmara só se abra na presença de um inquisidor (SANTO OFÍCIO, 1552, cap. 82; SANTO OFÍCIO, 1640, Livro I, título II, parágrafo IV).

O terceiro título do livro I trata exclusivamente dos inquisidores. Além das qualidades requeridas para todos os funcionários do Santo Ofício, apontadas no primeiro título, exigem-se para o inquisidor outras, que delineiam seu perfil profissional propriamente dito: "É necessário que se-jam licenciados por exame privado em alguma das Faculdades de Teologia, Cânones ou Leis, e que tenham ao menos trinta anos de idade, pessoas nobres, clérigos de ordens sacras, e que primeiro hajam servido no cargo de deputado, e nele tenham dado mostras de prudência, letras e virtude, assim para saberem resolver e decidir as causas que hão de julgar, como também para nelas se haverem com grande inteireza e igualmente livres de toda paixão e respeitos que costumam perturbar o ânimo dos juízes, de maneira que nem o favor e piedade cheguem a ofender a justiça, nem o rigor exceda os termos da temperança, e sobretudo serão pessoas de tal procedimento e de tanta autoridade, que com ela possam bem corresponder ao muito que deles confiamos" (id., parágrafo I).

Não estamos mais diante do modelo de pai ou sacerdote, mas de um funcionário modelo, um profissional com conhecimentos específicos adequados à sua função, que deveria comportar-se de maneira impessoal no exercício de seus deveres e ater-se ao âmbito de seus direitos.

No entanto, as próprias recomendações no sentido de coibir os abusos demonstram que o poder decorrente do cargo ainda extrapolava em muito os limites do tribunal, espraiando-se pela sociedade como um todo. A profissionalização não diminuiu as amplas prerrogativas sociais do inquisidor, e sua margem de arbítrio pessoal durante o processo permanecia grande. Na verdade, a dimensão simbólica de que se revestia o combate à heresia no imaginário popular, alimentado pelos espetáculos públicos dos autos-de-fé, fazia do inquisidor mais do que um funcionário graduado do tribunal, transformava-o num representante da justiça divina.

OUTRAS FONTES

ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Inquisição de Lisboa.

Recebido para publicação em novembro de 1998.

Lana Lage da Gama Lima é Professora Titular de História da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).

  • BENNASSAR, B. 1976. Aux origines du caciquisme : les familiers de l'Inquisition en Andalouise au XVII siècle. Caravelle, n. 27, p. 63-71.
  • FOUCAULT, M. 1977. Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Petrópolis : Vozes.
  • LIMA, L. L. da G. 1986. Aprisionando o desejo : confissão e sexualidade. In: VAINFAS, R. (org.). História e sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro : Graal.
  • MATTOSO, J. 1993. História de Portugal. Lisboa : Editorial Estampa, vol. II.
  • PETERS, E. s/d. História da Inquisição Lisboa: Teorema.
  • SANTO OFÍCIO 1640. Regimento. Lisboa : Oficina de Manoel da Silva.
  • SANTO OFÍCIO 1552. Regimento. In: BAIÃO, A. 1906. A Inquisição em Portugal e no Brasil Lisboa : s/ed.
  • TOMÁS Y VALIENTE, F. 1980. Relaciones de la Inquisición con el aparato institucional del Estado. In : VILLANUEVA, J. (comp.). La Inquisición Española. Nueva visión, nuevos horizontes. Madrid : Siglo XXI.
  • VINCENT, B. 1983. Un espace d'exclusions : la prison inquisitorial aux XVI siècle. In: Les problèmes d'exclusions en Espagne (XVI-XVII siècles). Ideologie et discours. Paris : Publications de la Sorbonne.
  • 1
    Comunicação apresentada na 21ª reunião anual da Asso-ciação Brasileira de Antropologia, grupo de trabalho "Pro-cessos institucionais de administração de conflitos e pro-dução de verdades no espaço público: mediações formais e informais", sessão "Produção de verdades, mediações e administração de conflitos no espaço público".
  • 2
    Bartolomé Bennassar realizou interessante estudo sobre o papel das prerrogativas sociais concedidas aos funcio-nários do Santo Ofício espanhol nas disputas entre clãs na Andaluzia, destacando-se o privilégio de foro (BENNASSAR, 1976).
  • 3
    Sobre essa questão ver também FOUCAULT, 1977.
  • 4
    Segundo José Mattoso: "Os primórdios do Estado Mo-derno só se iniciam quando se despersonaliza o exercício do poder, se uniformizam os direitos e deveres dos súdi-tos, e se põe em prática um direito público baseado em princípios universais". Ver "Condicionantes básicos", em MATTOSO, 1993, p. 371.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Nov 1999

    Histórico

    • Aceito
      Nov 1998
    • Recebido
      Nov 1998
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