Acessibilidade / Reportar erro

AFINIDADES PERIFÉRICAS: SCHWARZ ENCONTRA GRAMSCI

PERIPHERAL AFFINITIES: SCHWARZ MEETS GRAMSCI

Resumo

Dentre as várias fontes de inspiração mobilizadas por Roberto Schwarz ao longo de sua trajetória, salta aos olhos a ausência de Antonio Gramsci, intelectual italiano responsável por uma reflexão acurada — ainda que fragmentada — sobre o problema do funcionamento do mundo intelectual e das ideias em países periféricos, questão que, como sabemos, atravessa o pensamento do crítico brasileiro. Partindo desta aproximação geral, a ser elaborada nos seus argumentos mais circunstanciados nos três primeiros tópicos, o artigo desenvolve — nas duas últimas seções — hipótese sobre os condicionantes intelectuais e políticos que, no Brasil dos anos 1970 e 1980, explicariam o desinteresse de Schwarz pelo pensamento de Gramsci, reticência que não anula, porém, as afinidades até aqui inauditas entre ambas as articulações entre ideias, nação e classe em contextos periféricos.

Palavras-chave
Intelectuais; Periferia; Nação; Povo; Democracia

Abstract

Notable among the various sources of inspiration mobilized by Roberto Schwarz throughout his trajectory is the absence of Antonio Gramsci, the Italian intellectual responsible for an accurate—albeit fragmented—reflection on the functioning of the intellectual world and of ideas in peripheral countries, a problem that, as we know, cross the Brazilian critic’s thinking. Based on this general approach, to be elaborated in its most detailed arguments in the first three topics, this article develops—in the last two sections—a hypothesis about the intellectual and political conditions of Brazil in the 1970s and 1980s that would explain Schwarz’s lack of interest in Gramsci’s thought, a reticence that does not cancel out, however, the hitherto unheard of affinities between their approaches to the articulation between ideas, nation and class in peripheral contexts.

Keywords
Intellectuals; Periphery; Nation; People; Democracy

SCHWARZ E GRAMSCI: PRÉ-HISTÓRIA DE UM DESENCONTRO

Roberto Schwarz não é um autor cujas fontes de inspiração são imediatamente localizáveis, ainda que vez ou outra elas sejam explicitadas — sobretudo em entrevistas e/ou depoimentos. Em sua vasta trajetória intelectual, Schwarz dialogou explícita ou implicitamente com distintas vertentes do pensamento crítico — e mesmo, como se verá, do pensamento conservador brasileiro, cujo antiliberalismo encontrou um ponto de apoio para a “nacionalização” ou “tradução” da crítica à esquerda.

É bem verdade que, nessa constelação heterogênea, a ancoragem marxista — na sua pluralidade — revela-se central: ela é o ponto de partida em cujos fundamentos epistemológicos Schwarz assenta o horizonte intelectual e político de sua atividade crítica. No entanto, mesmo aí as filiações não são antevistas senão no próprio ato da crítica, sem explicitação prévia no corpo dos ensaios. Aqui já temos, então, um dos traços que melhor caracterizam a crítica schwarziana: a resistência à promulgação por ofício de uma filiação teórica determinada, como se a petição de princípio pudesse garantir de antemão uma legitimidade que, de fato, reside antes na elaboração crítica em si, assim como nos seus eventuais desdobramentos intelectuais ou políticos.

Entre os intelectuais do marxismo europeu referenciados por Schwarz — Adorno, Lukács, Benjamin e Brecht — salta aos olhos a ausência de um autor que, na tradição do marxismo crítico europeu, foi justamente aquele que mais avançou na reflexão sobre o processo de tradução de um aparato conceitual “universal” para as condições específicas de um país situado na periferia do capitalismo: Antonio Gramsci. Assim como faria Schwarz décadas depois, o intelectual italiano dedicou-se com afinco, notadamente nos anos 1930, à reflexão sobre o modo como as ideias modernas foram mobilizadas num país em que estas, à primeira vista, não se vinculavam “organicamente” aos interesses das classes ditas “fundamentais” no capitalismo moderno. Estamos diante, portanto, nos dois casos, da elaboração de um programa materialista de apreensão do mundo das ideias em contexto periférico, no qual estas são tomadas como especificação simbólica da vida social e, ao mesmo tempo — e por isso mesmo — como porta de entrada para a compreensão da sociedade a cuja existência devem a sua razão de ser.

O objetivo deste artigo é explicitar alguns aspectos centrais desse “programa”, argumentando que, a despeito do mencionado desencontro, cuja explicação reside na cena intelectual e política dos anos 1970 e 1980 no Brasil, é possível observar na reflexão schwarziana sobre os desafios ligados à aclimatação de teorias europeias no Brasil notáveis similaridades com a perspectiva gramsciana a respeito do papel dos intelectuais no processo de modernização da sociedade italiana. Sem descuidar das diferenças (contextuais e de abordagem) não menos relevantes, trata-se de argumentar que, tanto para o filósofo italiano quanto para o crítico literário brasileiro, o desajuste entre ideias do centro e realidades da periferia ganhou proeminência no século XIX, em meio à ausência de vocação hegemônica dirigente, em sentido burguês, por parte das elites nativas.

Na ausência de uma ambição nacional efetiva, o que implicaria em algum nível de incorporação das classes populares, tais elites (ao lado dos intelectuais “tradicionais” que se colocavam ao seu reboque), antenadas que estavam na atmosfera ideológica do centro do capitalismo (França e Inglaterra), não raro recaíram numa espécie de cosmopolitismo (ver Gramsci, 2007Gramsci, Antonio. (2007). Quaderni del carcere. Torino: Einaudi (vol. 4). ) fora do lugar (Schwarz, 2000aSchwarz, Roberto. (2000a). As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, p. 9-32. ), com as ideias aventadas permanecendo imunes às particularidades de sociedades que, em tese, deveriam ajudar a explicar.

O afastamento de Schwarz de qualquer perspectiva nacional-popular a partir da virada para os anos 1990 — quer dizer, em meio ao desenlace nada alvissareiro do processo de abertura democrática —, apenas realça a afinidade improvável que podia ser observada nas décadas de 1970 e, principalmente, de 1980. À luz da perspectiva gramsciana, torna-se possível, portanto, compreender por um outro caminho — subestimado pelos estudos sobre o autor — a posição singular ocupada por Schwarz na cena intelectual paulista e, por conseguinte, brasileira.

O NACIONAL-POPULAR NA CONTRAMÃO DO COSMOPOLITISMO FORA DO LUGAR

Feita quase inteiramente sob o regime fascista, a reflexão gramsciana sobre o nacional-popular não pode ser abstraída da preocupação do autor em compreender os desafios históricos e os efeitos político-intelectuais que resultavam do caráter retardatário do capitalismo italiano, quando comparado, por exemplo, ao caso francês. Por certo — e esse é um dos supostos deste texto —, a reflexão de Gramsci, em particular aquela das notas redigidas no cárcere, não se reduz a esse enquadramento contextual, mas a própria possibilidade de sua universalização passa pela compreensão dos desafios e problemas diante dos quais elaborou suas perspectivas sobre os assuntos mais diversos. Estamos diante, sem dúvida, de uma inteligência formidável, hors norme , mas de uma inteligência que se formou sob um espírito do tempo específico, vivenciado por uma ótica também específica: aquela do intelectual comunista situado num país (a Itália) onde a perspectiva das classes subalternas exigia a compreensão da singularidade do processo de modernização — singularidade relativa, bem entendido, porque inserida no quadro mais amplo do capitalismo internacional.

Nesse sentido, a aproximação aqui esboçada merece, desde já, ser nuançada. Afinal, a Itália periférica de Gramsci é muito diferente da ex-colônia ainda dependente de Schwarz. E o capitalismo monopolista da época de Gramsci tampouco guarda muita semelhança com o das últimas décadas. Além disso, o autor italiano refletia como intelectual, mas também como militante político comunista, razão pela qual, aliás, fora mandado para o cárcere fascista. Não por acaso, Gramsci se refere mais explicitamente ao “proletariado”, um ator importante na Itália “periférica” (no contexto europeu) do século XIX e início do XX. Schwarz, por sua vez, embora jamais tenha se apartado da cena política brasileira, a pensa acima de tudo como intelectual — mais “crítico” do que “orgânico”, diga-se. As ressonâncias propriamente políticas de suas reflexões, sem dúvida existentes, aparecem sempre balanceadas pela mediação da forma estética e/ou cultural.

Por isso mesmo, à diferença de Gramsci, interessado em escavar as contribuições da cultura popular italiana, que contrastavam com o cosmopolitismo das classes dominantes, Schwarz se concentra na análise de formalizações artísticas que, como as de Machado de Assis, sem romper as linhas mestres do cânone, transfiguram no plano literário as origens da nossa modernidade — no século XIX — pela ótica das elites, em torno das quais se fazia literatura no Brasil. O horizonte do crítico, como se verá mais adiante, são os de baixo, mas o objeto tematiza — e, assim, descortina — os de cima 1 1 Exceção que confirma a regra é o dossiê sobre “literatura e pobreza”, organizado por Schwarz ( 1982: 27-47) para o segundo número da Novos Estudos Cebrap e depois transformado — em versão ampliada — em livro (Schwarz, 1983 ). No seu próprio ensaio para o dossiê, Schwarz, retomando a personagem Dona Plácida, das Memórias Póstumas de Brás Cubas , argumenta que, em Machado, em meio à escravidão e à desvalorização do trabalho livre (“trabalho abstrato, mas sem reconhecimento social”), “a situação dos pobres define-se complementarmente” (Schwarz, 1982: 36) à “situação história das camadas dirigentes brasileiras no século XIX” (Schwarz, 1982: 37). São estas que, segundo as suas conveniências e interesses, “ universalizam as suas incongruências” (Schwarz, 1982: 38). . É em particular no nível dessa crítica ao cosmopolitismo fora do lugar das elites que Gramsci e Schwarz se encontram. As diferenças mencionadas, sem dúvida importantes, não anulam essa afinidade de fundo em torno da relação entre classes dominantes e ideias modernas em dois países “periféricos”, ainda que cada um a seu tempo e ao seu modo.

Como argumenta Gramsci, enquanto a França tinha vivenciado uma revolução burguesa em sentido forte, não prescindindo do elemento nacional-popular, presente na perspectiva jacobina, a Itália padecia, no século XIX, de uma burguesia incapaz de organizar em torno de si um projeto hegemônico , em que se colocasse como a classe dirigente , incorporando pelo menos parcialmente as demandas das “massas populares”. Nas palavras de Gramsci: “A burguesia italiana não soube unificar em torno de si o povo, e esta foi a causa de suas derrotas e das interrupções de seu desenvolvimento. Também no Risorgimento, tal egoísmo estreito impediu uma revolução rápida e vigorosa como a francesa” ( 2002Gramsci, Antonio. (2002). Cadernos do cárcere: o Risorgimento, notas sobre a história da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (vol. 5).: 141).

Nesse cenário, alijadas do projeto burguês à italiana, materializado no Risorgimento, as classes populares tornam-se as verdadeiras depositárias da construção nacional, em oposição à tendência cosmopolita e antipopular das elites do país. É nesse sentido que o proletariado é, para Gramsci, a “classe nacional” por excelência na sociedade italiana. Nota-se, portanto, já aqui, o contraste entre a perspectiva gramsciana e a manifestação brasileira do “nacional-popular” nas décadas de 1950 e 1960. Para Gramsci, sob a ordem capitalista global, num país marcado pela fragilidade hegemônica da burguesia, somente o proletariado pode se tornar classe dirigente, mas agora não mais para impulsionar a formação nacional nos limites da dominação burguesa, e sim em prol da construção de uma outra hegemonia (socialista) a partir das condições concretas da sociedade em questão.

Ainda jovem na época, Schwarz começou a acertar contas com a perspectiva nacional-desenvolvimentista-popular a partir do final dos anos 1960, não por acaso quando tomou o caminho do exílio francês. Professor de Teoria Literária na Universidade de São Paulo (USP), sob a liderança de Antonio Candido, Schwarz era também um dos editores da revista Teoria e Prática , cujo último número havia sido confiscado pela polícia política do Regime Militar, o que o motivou a deixar o país em 1969, na esteira do que ficaria conhecida como a segunda onda dos exilados brasileiros. Instalado em Paris depois de um tempo no Uruguai, com o distanciamento da efervescência política, que vinha desde 1961, o jovem crítico refletiu sobre os impasses do projeto hegemônico da esquerda brasileira, derrotado em 1964.

O primeiro esboço vem com o ensaio “Remarques sur la culture et la politique au Brésil”, publicado na revista Les Temps modernes em 1970. O argumento geral é conhecido: apesar do revés político, a esquerda continuou culturalmente hegemônica, numa espécie de desdobramento tardio das forças liberadas na radicalização da vaga nacional-desenvolvimentista-popular (Schwarz, 1970Schwarz, Roberto. (1970). Remarques sur la culture et la politique au Brésil, 1964-1969. Les Temps modernes, 288, p. 37-73.: 37) . Mas se o país parecia “irreconhecivelmente inteligente”, como diz ele em tom intelectualista, essa prolongação da hegemonia cultural da esquerda retardou — e aqui o reverso negativo do argumento — o necessário balanço crítico das ilusões de um projeto afinal derrotado.

Nesse sentido, o ciclo pós-golpe, que se fecha em 1968-1969, vivenciado in loco por Schwarz, mais do que ruptura, significou um prolongamento, ao menos no plano intelectual, do período anterior. Os pressupostos dualistas da esquerda desenvolvimentista ainda gozavam de credibilidade, tal como, por exemplo, o de que a ditadura, em função de ausência de um projeto de desenvolvimento nacional socialmente integrador, levaria o país a uma regressão “pastoril”, para lembrar a imagem consagrada por um Celso Furtado ( 1967Furtado, Celso. (1967). De L’Oligarchie à l’État militaire. Les Temps modernes, 257, p. 578-601. ) ainda atordoado com a derrota de 1964. Ao contrário do que se imaginava à primeira vista, porém, argumenta Schwarz, a ditadura era economicamente modernizadora, ainda que também “atrasada” e tradicionalista. A mera reivindicação do desenvolvimento nacional contra as forças “arcaicas” já não era, portanto, uma saída politicamente plausível à esquerda. Diante do impasse, Schwarz termina o ensaio com um chamado indireto (pegando carona em Quarup , romance de Antônio Callado) à luta armada, à qual a própria cultura deve ser subordinada (Schwarz, 1970Schwarz, Roberto. (1970). Remarques sur la culture et la politique au Brésil, 1964-1969. Les Temps modernes, 288, p. 37-73.: 73).

O cenário muda de figura com o ensaio “As ideias fora do lugar”, publicado no Brasil e na França em 1972, e pensado como introdução à pesquisa finalmente posta em prática sobre a relação entre os romances de Machado de Assis e o processo social no Brasil oitocentista (Schwarz, 2000aSchwarz, Roberto. (2000a). As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, p. 9-32. ). Neste ensaio, redigido num momento em que, no Brasil, sobretudo em São Paulo, já surgiam revisões críticas sobre as (doravante vistas como) ilusões do pré-1964 2 2 Como se verá mais adiante, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) (1969) teve papel importante nesse processo de revisão crítica. Aliás, foi a afirmação de que, apesar de tudo, existiam condições para a expansão capitalista no Brasil sob a ditadura militar, que deu unidade ao Cebrap na primeira metade da década de 1970, no âmbito do que Daniel Pécaut ( 1990 ) chamou de “Partido Intelectual”. O ensaio de José Serra e Maria da Conceição Tavares ( 2000 [1971]), Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento recente no Brasil , discutido no Cebrap, lançou a primeira pedra em 1970-1971. , Schwarz arrisca pela primeira vez uma explicação sociológica para o problema do descompasso entre as ideias modernas, apropriadas pelas elites pátrias, e a realidade efetiva do país, ainda às voltas com o escravismo e com a pessoalidade pré-moderna do favor. Sem deixar de ser nacional, o problema é também — e sobretudo, em certa medida — de classe: o cosmopolitismo fora do lugar das elites se explica pela fragilidade de suas disposições hegemônicas, sob os efeitos do modo como o país se tornou politicamente independente. Tanto quanto as suas ideias, eram as próprias elites que estavam um pouco “fora do lugar”.

Como escreveria o autor em “Nacional por subtração”:

A feição “copiada” de nossa cultura resulta […] de formas de desigualdade brutais a ponto de lhes faltarem mínimos de reciprocidade — o denominador comum ausente — sem os quais a sociedade moderna de fato só podia parecer artificiosa e “importada”. O descaso impatriótico (adotada a ideia de nação que era norma) das classes dominantes pelas vidas que explorava e tornava estrangeira em seu próprio juízo… A origem colonial e escravista destas causas salta aos olhos (Schwarz, 1987Schwarz, Roberto. (1987). Nacional por subtração. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29-48.: 46).

Nesse contexto, em que o nacional não pode ser definido senão “por subtração”, quer dizer, como aquilo que é em contraste com o que não é, a formação democrática da nação não pode ser confiada às elites: ela será popular ou não será. À diferença do universalismo abstrato das elites, o ponto de vista das classes populares está enraizado na problemática local, e, por isso mesmo, estaria potencialmente apto à propulsão de uma universalização concreta. Para Schwarz, se às classes dominantes interessava absorver e imitar as ideologias modernas ao mesmo tempo em que se mantinham intactas a vida social no “Brasil real”, é do interesse das classes dominadas “se aferrar à problemática local e fazer com que ela apareça” (Schwarz, 1987Schwarz, Roberto. (1987). Nacional por subtração. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29-48.: 39).

Em entrevista concedida à revista Movimento , em 1976, Schwarz reconhece que “as próprias ideologias libertárias”, entre elas o marxismo, aparecem, à primeira vista, como ideia fora do lugar:

Ideias estão no lugar quando representam abstrações do processo a que se referem, e é uma fatalidade de nossa dependência cultural que estejamos sempre interpretando a nossa realidade com sistemas conceituais criados noutra parte, a partir de outros processos sociais. Neste sentido, as próprias ideologias libertárias são com frequência uma ideia fora do lugar, e só deixam de sê-lo quando se reconstroem a partir de contradições locais (Schwarz, 2008Schwarz, Roberto. (2008). Cuidado com as ideologias alienígenas. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, p. 136-145.: 143).

No plano intelectual, viria daí o “lado forte do nacionalismo”, ou seja, dessa disposição “em apanhar as experiências e contradições brasileiras tais quais elas se apresentam aqui, e não através de uma categorização elaborada noutra parte” (Schwarz, 1987Schwarz, Roberto. (1987). Nacional por subtração. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29-48.: 38, 39).

É nesse contexto que se torna possível compreender o desvio schwarziano por um tópico característico do pensamento nacionalista conservador brasileiro — ou do “idealismo orgânico”, segundo a designação de Gildo Marçal Brandão ( 2005Brandão, Gildo (2005). Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados, 48/2, p. 231-269. ), tomada de empréstimo de Oliveira Viana ( 1939Viana, Francisco José de Oliveira (1939). O idealismo da constituição. São Paulo: Companhia Editora Nacional. ): a afirmação do caráter algo ilusório do liberalismo no país, cuja eloquência era inversamente proporcional à falta de “organicidade” em relação ao Brasil realmente existente. Se nos referenciarmos às “formas de pensar” identificadas por Brandão, é possível dizer que Schwarz retomou uma problemática típica do “idealismo orgânico”, com sua fixação na singularidade nacional, mas o fez a partir do horizonte mais “cosmopolita” do “pensamento radical de classe média”, em oposição tanto ao “idealismo constitucional” quanto ao “marxismo de matriz comunista”.

Por isso mesmo, se, para o pensamento conservador, o problema estava nas ideias liberais em si (no seu “idealismo utópico”, para dizer como Oliveira Viana [1939]), como se estas fossem invariavelmente artificiais num país ainda à procura da modernidade, para Schwarz a explicação estava na estrutura social brasileira, sob os efeitos da “obra” da escravidão, para dizer como Joaquim Nabuco ( 2005Nabuco, Joaquim. (2005). Campanha abolicionista no Recife: eleições 1884. Brasília, DF: Senado Federal.: 58). Enquanto os nacionalistas conservadores “concentra[m] a crítica na relação entre elite e modelo”, a ser corrigida pelo Estado autoritário, o núcleo do problema se encontra, segundo Schwarz, “na segregação dos pobres, excluídos do universo da cultura contemporânea” (Schwarz, 1987Schwarz, Roberto. (1987). Nacional por subtração. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29-48.: 47). É dessa situação “objetiva” que derivaria a contradição entre a prática e o conceito do liberalismo moderno no Brasil. Em suma, “o sentimento aflitivo da civilização imitada não é produzido pela imitação, presente em qualquer caso, mas pela estrutura social do país, que confere à cultura uma posição insustentável, contraditória com o seu autoconceito” (Schwarz, 1987Schwarz, Roberto. (1987). Nacional por subtração. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29-48.: 46).

A referência, aqui, é adorniana, ou melhor, o modelo adorniano da crítica imanente: se a prática das classes dominantes não está à altura do “conceito” (das ideias) que enunciam, é função da crítica explicitar essa contradição “imanente”, saindo em defesa, ao mesmo tempo, do projeto moderno anunciado, mas nunca cumprido. Salvo que, sob o capitalismo consolidado, não são mais as classes dominantes as que poderiam levar a cabo o projeto inacabado da modernidade. De agora em diante — e aí o impulso “progressista” (e, no limite, revolucionário) da crítica imanente —, são as classes subalternas as depositárias do “conceito” de uma nação moderna democrática, tanto mais em países de capitalismo retardatário como a Itália e, sobretudo, o Brasil. Não por acaso, embora de origem burguesa, o “conceito” ganha agora implicações democrático-radicais que, em condições periféricas, apontam para o socialismo. É nesse sentido que, se Gramsci fala no proletariado como “classe nacional”, Schwarz sugere “redimensionar a questão nacional do ponto de vista dos oprimidos” (ver Schwarz, 1979Schwarz, Roberto. (1979). [Entrevista cedida a] Gildo Marçal Brandão e O. C. Louzada Filho. In: Encontros com a Civilização Brasileira, 15., Rio de Janeiro. ).

Para Gramsci, vale lembrar, a solução para a cisão entre “Itália real e Itália legal”, tema do catolicismo clerical no pós-unificação, estava na criação de uma “reforma intelectual-moral” nacional-popular capaz de forjar uma nova articulação entre sociedade e Estado, entre povo e elites — em outras palavras, uma nova “vontade coletiva”, preâmbulo de uma nova hegemonia. O fascismo significou, nesse sentido, já no século XX, uma tentativa totalitária de superar esse hiato, apelando para a identificação totalitária entre o real e o legal, “porque a sociedade civil, em todas as suas partes, estava enquadrada por uma só organização política de partido e estatal”, como escreve no décimo terceiro Caderno do cárcere (Gramsci, 2000Gramsci, Antonio. (2000). Cadernos do cárcere: Maquiavel, notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (vol. 3).: 109). Para dizer como Ernst Bloch, o fascismo se apropriou das tradições populares “não-contemporâneas” a fim incutir-lhes um significado “nacional” inexistente nas elites “orgânicas”, ao mesmo tempo em que atendia aos reclamos do grande capital. A ascensão fascista é inversamente proporcional, portanto, ao fracasso do encaminhamento socialista da questão do nacional-popular.

DO NACIONAL AO INTERNACIONAL E VICE-VERSA

O tema da nação, assim, permanece central tanto em Gramsci quanto em Schwarz, já que estamos diante de países cuja hegemonia burguesa nacional era mais um ideal do que um fato. Mas a construção nacional não é mais identificada à modernização capitalista: a via burguesa da construção nacional se mostrou bloqueada, ou melhor, passivizada , e, por isso mesmo — numa espécie de retomada mais nuançada do argumento trotskista a respeito do caráter permanente das revoluções democrático-burguesas nos países da periferia —, a verdadeira revolução “nacional”, se fosse o caso, seria dirigida pelas classes subalternas, em marcha para deixar de sê-lo.

Sob o primado do nacional, o horizonte metodológico é, porém, também internacional, pois os dilemas da formação nacional de países periféricos como a Itália de Gramsci ou o Brasil de Schwarz estão estreitamente ligados à posição subalterna que ocupam no âmbito do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. Escreve Gramsci: “Se é verdade que a vida concreta dos Estados é fundamentalmente vida internacional, também é verdade que a vida dos Estados italianos até 1870, isto é, a ‘história italiana’, é mais ‘história internacional’ do que história ‘nacional’” ( 2002Gramsci, Antonio. (2002). Cadernos do cárcere: o Risorgimento, notas sobre a história da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (vol. 5).: 152). É dessa subalternidade “global” que decorre a fragilidade hegemônica das burguesias locais dos países periféricos, o que faz com que o ponto de partida nacional seja também, e ao mesmo tempo, internacional.

Como escreve Gramsci:

A relação “nacional” é o resultado de uma combinação “original” única […], que deve ser compreendida e concebida nesta originalidade e unicidade se se quer dominá-la e dirigi-la. […] O desenvolvimento é no sentido do internacionalismo, mas o ponto de partida é “nacional”, e é deste ponto de partida que se deve agir (Gramsci, 2000Gramsci, Antonio. (2000). Cadernos do cárcere: Maquiavel, notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (vol. 3).: 314).

Nem nacionalismo nem cosmopolitismo abstrato. Eis o eixo metodológico da perspectiva gramsciana. Ora, não era senão essa a antinomia contra a qual se voltou Schwarz, por exemplo, em “Nacional por subtração”. Nem exclusivismo localista, pois o horizonte universal/cosmopolita/internacionalista está sempre presente, mas tampouco cosmopolitismo “globalista”, já que o trabalho conceitual se subordina à matéria local, e não o contrário. A crítica é periférica porque reconhece o primado do objeto, quer dizer, o primado da matéria social brasileira. Mas ela é universal porque interpela a totalidade do sistema a partir não apenas de uma posição social, mas também de uma posição geopolítica específica, na qual as ideologias europeias funcionam em outro diapasão.

Observa-se, assim, nos dos dois autores, uma preocupação comum com o problema da “tradução” das ideias para um lugar (periférico) que não é o seu de origem. As ideias não emergem diretamente de outras ideias, e tampouco “circulam” como equivalentes num espaço internacional homogêneo (ver Bianchi, 2014Bianchi, Alvaro. (2014). Circulação e tradução: para uma história global do pensamento político. Encontro da ABCP, 4., 4 a 7 ago. 2014, Brasília, DF. ). O que tanto Gramsci quanto Schwarz sugerem é que, na Itália ou no Brasil, essa tradução só pode ser operada, de fato, quando os responsáveis pela elaboração das ideias — os intelectuais, “orgânicos” ou “tradicionais” — se colocam do ponto de vista das classes populares. O ponto é tanto mais importante porque, em países de capitalismo retardatário, na ausência de projeto hegemônico efetivo por parte das elites oitocentistas, o peso do Estado e das “classes médias” intelectualizadas revelou-se sobrevalorizado (ver Chaui, 2013Chaui, Marilena. (2013). Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Belo Horizonte; São Paulo: Autêntica; Fundação Perseu Abramo. ).

Nota-se aí, portanto, ressalvada a desconfiança de Gramsci para com as implicações positivistas da disciplina, uma espécie de “sociologia” materialista (histórica e dialética, bem entendido) das ideias em contexto periférico, na qual mediação nacional e mediação de classe se encontram entrelaçadas. A possibilidade ou não de que as ideias estejam “adequadas” ao lugar (nacional) em que estão inseridas depende da posição social (de classe) a partir da qual elas são elaboradas. Ainda que relativamente autônomos, tempo (e espaço) histórico e tempo (e espaço) lógico formam, portanto, uma só unidade dialética, soldada pelo primado do “objeto real” sobre o “objeto de conhecimento” que o define em termos conceituais. Se as ideias não se confundem com o real, elas não podem ser apreendidas senão como desdobramentos específicos (reflexivos) da realidade da qual extraem a sua razão de ser, e diante da qual reagem de modo ativo, contribuindo, então, para formatar as práticas que a definem como tal. Em outras palavras, se o conceito de cachorro não morde, o conceito da prática social (humana) interfere direta ou indiretamente na maneira como os sujeitos atuam no mundo, e é dessa expectativa, aliás, que surgiu uma teoria social crítica como o marxismo.

No caso específico de Gramsci, é por esta via que o filósofo italiano propõe a superação da antinomia entre materialismo (Bukharin) e idealismo (Croce), com a objetividade sendo vista como “universal subjetivo”, isto é, como objetividade “histórica” e “humana” composta pela “base”, mas também pela “superestrutura”, numa distinção que é antes metodológica do que empírica (ver Bianchi, 2008Bianchi, Alvaro. (2008). O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda.: 85, 86). Em Gramsci, política, filosofia e história formam uma unidade dialética, com o primeiro dos termos atuando como mediação entre os outros dois — entre a filosofia (concepção de mundo) e a história (vida prática). Pensar as ideias implica, portanto, em entendê-las na sua dimensão prática, como elaboração implícita ou explícita de normas de conduta que, sob condições objetivas determinadas, incidem sobre a ação dos grupos e classes sociais em luta pela hegemonia. Ora, e não é exatamente esse, ainda que por uma via adorniana, o esforço de Schwarz de pensar o Brasil à luz das ideias (da “cultura”) sobre o país, desdobrando-as como expressão simbólica do que ele chama de “processo social”? Nesse sentido, pode-se dizer que tanto Gramsci quanto Schwarz estão sempre pensando “ao quadrado” (ver Querido, 2019aQuerido, Fabio Mascaro. (2019a). Pensamento ao quadrado: Roberto Schwarz e o Brasil. Lua Nova, 107, p. 235-261. ).

NAÇÃO, POVO E DEMOCRACIA

Esse “encontro” improvável entre Schwarz e Gramsci é ainda mais significativo quando se leva em conta o modo como se deu a “tradução” dos argumentos gramscianos para a compreensão da sociedade brasileira nos anos 1970 e 1980, quer dizer, no mesmo momento em que o crítico paulista pensava os dilemas da formação nacional pela ótica da cisão entre as ideias das elites e a realidade vivida pelas massas populares. Sob as injunções da agenda política e intelectual do Brasil à época, Gramsci foi acolhido no país pelas mãos de intelectuais ligados à corrente renovadora do Partido Comunista Brasileiro (PCB) 3 3 Até então, Gramsci era conhecido no Brasil por alguns intelectuais socialistas como Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido e o ainda jovem Michael Löwy — este último responsável, segundo Bianchi (2008: 41), por um “uso mais consistente [de Gramsci] pela primeira vez”, em artigo de 1962, publicado na revista Brasiliense , sobre a questão dos partidos políticos. Ver Löwy ( 1962 ). . Paradigmático a esse respeito foi o conhecido ensaio de Carlos Nelson Coutinho, “A democracia como valor universal”, publicado em 1979. Nele, valendo-se de Lukács e Gramsci, entre outros, Coutinho ( 1974Coutinho, Carlos Nelson. (1974). O significado de Lima Barreto na literatura brasileira. In: Coutinho et al. (orgs.). Realismo e antirrealismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 37) sustentou a necessidade que o movimento socialista tinha de uma defesa sem meias palavras da democracia política, entendendo-a como “valor estratégico permanente”, e não apenas como mero instrumento tático. Era por esse caminho que as forças populares deveriam enfrentar o desafio da “renovação democrática” que se avizinhava, concentrando-se na “guerra de posição” e na busca pelo consenso e pela unidade dos defensores das liberdades democráticas.

Nos anos 1980, a perspectiva defendida por Coutinho ganhou contornos coletivos, e gradativamente mais moderados, com a criação da revista Presença , em 1983, sob a liderança de David Capistrano Filho, por um grupo dissidente do “Partidão”. Com dezoito números publicados, sediada a princípio em São Paulo e, a partir de 1986, no Rio de Janeiro, a revista durou 9 anos, até ser dissolvida em 1992, tornando-se, assim, mais um capítulo da história dos intelectuais que fizeram das revistas um instrumento para a intervenção pública. À diferença dos livros, cuja temporalidade é longa, voltada para a duração no futuro, as revistas são atravessadas pelos conflitos do presente (ver Sarlo, 1992Sarlo, Beatriz. (1992). Intelectuales y revistas: razones de una práctica. América: Cahiers du CRICCAL, 9-10, p. 9-16. ), tanto mais quando se organizam em torno de uma plataforma coletivamente compartilhada, como era o caso da Presença.

Em Gramsci, os intelectuais da revista Presença — dentre os quais se destacavam, além de Coutinho, Marco Aurélio Nogueira, Luiz Werneck Vianna, Milton Lahuerta e Maria Alice Rezende Carvalho — encontraram aportes tanto para a leitura da questão democrático-nacional no presente, sob a ditadura militar, quanto para a reavaliação crítica (embora sem ambição de ruptura) da tradição autoritária da política brasileira, já que seríamos o país das conciliações, “o lugar por excelência”, portanto, “da”revolução passiva” (Vianna, 2004Vianna, Luiz Werneck. (2004). A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan.: 43).

Nos seus trabalhos dos anos 1970, tanto Coutinho ( 1974Coutinho, Carlos Nelson. (1974). O significado de Lima Barreto na literatura brasileira. In: Coutinho et al. (orgs.). Realismo e antirrealismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra. ) quanto Luiz Werneck Vianna (1976), este último membro do Cebrap na época, também tinham se utilizado — ao lado do conceito gramsciano de revolução passiva — da noção leninista de “via prussiana”, a fim de designar processo brasileiro de modernização conservadora. No contexto de abertura democrática, porém, a partir do final da década de 1970, o conceito gramsciano lhes parecia mais adequado em função da ênfase posta pelo filósofo italiano no momento político e estatal do processo histórico “que levou à afirmação do capitalismo autoritário no Brasil” (Vianna, 2004Vianna, Luiz Werneck. (2004). A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan.: 40), chave pela qual se tornava possível entender o presente e o passado da política brasileira.

À diferença do “filósofo da práxis”, não raro assimilado ao populismo radicalizado dos anos 1960, ou do crítico literário interessado na cultura popular, tinha-se agora um Gramsci teórico da política e, mais precisamente, um Gramsci teórico da democracia, fonte de inspiração para uma nova cultura política, em oposição tanto ao leninismo das organizações vanguardistas (o “golpismo de esquerda”, no dizer de Coutinho, 1979Coutinho, Carlos Nelson. (1979). A democracia como valor universal. In: Silveira, Ênio et al. (orgs.). Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.33-47 (vol. 9).: 45) quanto às versões estadocêntricas do nacional-desenvolvimentismo-popular, hegemônicas nas décadas de 1950 e 1960.

Para os gramscianos brasileiros da revista Presença , bem ou mal (em uma observação não minuciosa) o Brasil já havia se tornado, a partir dos anos 1970 e 1980, um país moderno e “ocidental”, o que implicava na reavaliação das estratégias de luta das classes subalternas em sentido democrático. Ainda que a questão nacional tenha permanecido como um dos eixos da agenda política e intelectual, ela foi sendo cada vez mais deslocada pelo problema da democracia. Não por acaso, também os gramscianos se voltavam contra a versão brasileira do nacional-popular, mas o faziam sem aderir totalmente ao culto (antiestatista) de parte dos intelectuais paulistas à recém-chegada sociedade civil.

Esse “apostolado de sociedade civil” — como o denominaria Vianna ( 2004Vianna, Luiz Werneck. (2004). A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan. ) nos anos 1990 — estaria na origem da incapacidade dos intelectuais de São Paulo e do Partido dos Trabalhadores (PT), esse partido paulista por excelência, de se transformarem em “atores” politicamente afinados ao andamento dos “fatos”, quer dizer, em sintonia com as transformações moleculares (“passivas”) pelas quais passou e passava a sociedade brasileira. Ao apostar na ruptura com a tradição (política e intelectual) nacional, em nome dos interesses e da identidade autônoma da classe trabalhadora, o PT — notadamente as suas correntes mais “basistas” — teria abdicado da luta pela direção da revolução passiva à brasileira, despojando-se da tarefa de encaminhá-la em chave “positiva” (como “critério de interpretação”), a fim de acelerar, sem voluntarismo, o processo de democratização social, processo para o avanço do qual, nos anos 1980, seria imprescindível a consolidação e ampliação da democracia política.

De fato, sejam alguns dos ligados ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), fundado em 1969, ou, sobretudo, aqueles que se engajaram na formação do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), em 1976, os intelectuais paulistas se colocaram como intérpretes participantes da nova dinâmica social que se gestava no país, a qual exigia — assim pensavam — uma mudança de foco: da centralidade do Estado como instrumento privilegiado do desenvolvimento em sentido nacional-popular aos movimentos que emanavam da própria sociedade, os famosos “novos personagens que entravam em cena” (Sader, 2001Sader, Eder. (2001). Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra. ).

Nas suas versões mais radicalizadas à esquerda, como aquela que vai do Cedec ao coletivo Desvios, grupo de intelectuais autonomistas próximos do PT e do qual Sader fazia parte, essa valorização da “sociedade civil” se desdobrou numa visão francamente anti-institucional, com a democracia sendo pensada quase que exclusivamente a partir do social, ou melhor, dos novos movimentos sociais, nos quais se jogava a esperança de ruptura com a tradição autoritária da política (e do pensamento político) brasileira. Para esses intelectuais paulistas, a democracia deveria ser popular, socialmente popular, ou não seria democracia.

Em outras palavras: a chave da democratização radical do país estava na sociedade, nas classes sociais em movimento, cuja existência era então afirmada, na contramão da obsessão da intelligentsia nacional com a incompletude da formação nacional (o “nacional por subtração”, como diria Schwarz, 1987Schwarz, Roberto. (1987). Nacional por subtração. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29-48. ). Paulo Arantes ( 1992Arantes, Paulo. (1992). Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo. In: D’incao, Maria Angela & Folo, Eloisa Faria (orgs.). Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia das letras.: 229) chamou atenção para a recorrência do termo “formação” nos títulos de vários “ensaios” de interpretação da realidade brasileira, obsessão que, para ele, pode ser vista como “cifra de uma experiência intelectual básica”. Em certa medida, é contra essa “experiência intelectual” que se voltam os paulistas do Cedec. Bem ou mal formada, diziam eles, o fato é que a sociedade brasileira existia, portanto a sua dinâmica deveria ser analisada em si mesma, e não a partir da teleologia de uma construção nacional que nunca se completa.

Personagem pioneiro dessa linhagem intelectual paulista é Francisco Weffort, principal responsável pela formação do Cedec em 1976. Seja com seus estudos sobre o populismo ainda na década de 1960, ou, sobretudo, com seus trabalhos sobre o novo movimento operário que emergia nos anos 1970, Weffort sinalizou uma ruptura com a tendência da sociologia uspiana dos anos 1950 e 1960 em destacar a “ausência” de classes fundamentais plenamente constituídas. Em 1970, Weffort acusou a “teoria da dependência” de Fernando Henrique Cardoso de colocar água no moinho do nacionalismo, desviando-se do que deveria estar no centro de qualquer análise marxista: as relações de produção e, por conseguinte, a luta de classes (Weffort, 1971Weffort, Francisco. (1971). Nota sobre a “teoria da dependência”: teoria de classe ou ideologia nacional? Estudos Cebrap, 1, p. 1-24. ). Explicitava, assim, a abertura de uma divergência à esquerda no âmbito da nebulosa marxista paulista. Em seu ensaio sobre as greves de Osasco e de Contagem, por exemplo, publicado em 1972 na revista do Cebrap — onde chegou a coordenadar um grupo sobre movimento operário com Boris Fausto —, Weffort delimitou uma nova perspectiva de análise da política das classes trabalhadoras, na esteira de uma dinâmica social que se aceleraria a partir de meados da década. O espelho negativo, em contraste com o qual as novidades eram destacadas, era evidentemente a tradição nacional-populista, que por tanto tempo hegemonizou as lutas dos trabalhadores, canalizando-as para o Estado e, portanto, para o horizonte hegemônico das classes dominantes 4 4 No plano da crítica aos discursos intelectuais que deram guarida à tradição nacional-populista mesmo nas fileiras da esquerda, vale mencionar as teses igualmente pioneiras de Caio Navarro Toledo ( 1977 ) sobre o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), de Carlos Guilherme Mota ( 1977 ), sobre as construções ideológicas da noção de cultura brasileira, e de Edgar de Decca ( 1988 ) acerca da cristalização de uma “história dos vencedores” em torno da chamada “Revolução de 1930”. .

A trajetória de Roberto Schwarz não pode ser entendida fora dessa constelação intelectual paulista, cujas origens remontam ao chamado Seminário de O Capital, no fim dos anos 1950. Mas ele ocupa aí um lugar singular, como se estivesse dentro e fora dessa tradição, e é exatamente essa singularidade que o aproxima do tópico gramsciano do “nacional-popular”. A partir da literatura e da cultura brasileiras, Schwarz jamais aderiu por completo ao “cosmopolitismo” dos intelectuais paulistas, recusando-se a abandonar a reflexão sobre o problema da formação nacional. Em Schwarz, como se viu, a questão nacional — inescapável num país periférico — não prescinde da questão da democracia e, nessa chave, da questão popular, o que nos reenvia mais uma vez ao intercâmbio gramsciano entre nação, povo (classe) e democracia.

À primeira vista, Schwarz parece, portanto, nos anos 1980, mais próximo dos gramscianos do que dos seus colegas paulistas do Cedec e do Desvios. No entanto, ao fazer do nacional-popular um eixo do horizonte democrático, Schwarz retoma, na verdade, ainda que por outro caminho, o espírito do projeto do próprio Gramsci em defesa de uma hegemonia socialista num país periférico. Daí, possivelmente, a sua opção pelo PT, e não pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) (fundado em 1988 por colegas de Cebrap) ou pelo Partido Popular Socialista (PPS) — este último um dos desdobramentos da renovação do PCB, decerto porque no PT encontrou a esperança de um socialismo democrático e popular, ainda que o partido menosprezasse, na época, a dimensão propriamente nacional.

Em entrevista recente, Roberto Schwarz se mostrou a um só tempo surpreso e instigado quando colocado diante das duas principais hipóteses deste artigo, a saber: a de que haveria uma afinidade improvável entre a sua perspectiva e a de Gramsci em torno da compreensão do mundo das ideias em países “periféricos”, e a de que essa afinidade possivelmente nunca foi explicitada em função do tipo de leitura do autor italiano à época realizada por intelectuais brasileiros formados na órbita (euro)comunista (ver Schwarz, 2023Schwarz, Roberto. (2023). Entrevista com Fabio Mascaro Querido. Margem Esquerda, 40, p.11-34.: 27-28). Na recordação de Schwarz, Gramsci era visto por ele como um dos álibis utilizados por parte da esquerda para circunscrever o debate à dimensão política da democracia, em detrimento dos problemas ligados à democratização social e econômica e à formação nacional.

Observe-se, por exemplo, a posição do autor nos debates intelectuais no período da abertura democrática. Enquanto colegas de Cebrap como Fernando Henrique Cardoso e José Arthur Giannotti, assim como os gramscianos eurocomunistas (herdeiros da tradição aliancista do PCB) saudavam o processo que deu origem à chamada Nova República, Schwarz lamentava o desinteresse no debate político e intelectual por temas como socialismo ou anti-imperialismo, temas cujo “fundamento real”, porém, ainda estariam vigentes, segundo ele. Para Schwarz ( 1984Schwarz, Roberto. (1984). Ausências. Novos Estudos Cebrap, 9, p. 71-71.: 1), essas “ausências” indicavam os limites do horizonte político e intelectual da época: “E se além de descrença no socialismo houver também descrença no alcance da redemocratização?”, pergunta de forma retórica.

Para o autor, se o Brasil já era, de fato, “ocidental” e moderno, como sustentavam tanto os gramscianos eurocomunistas quanto os intelectuais paulistas próximos do classismo petista nos anos 1980, nem por isso tinha deixado de ser um país dependente e periférico no concerto global das nações 5 5 Ver, por exemplo, a posição de Schwarz ( 1987: 35-38) no debate com Silviano Santiago sobre a dependência cultural em “Nacional por subtração”. . É nesse flanco periférico que ele se encontra com Gramsci: afinal, por vias diferentes, foi justamente a posição subalterna dos países “ocidentais” a partir dos quais ambos falam que lhes facultou uma visão mais sofisticada — dentro da tradição marxista — da relação entre sociedade e política, entre interesses e ideias, ou entre povo e elites (políticas e intelectuais). Gramsci e Schwarz reatam, assim, em chave materialista, com as origens “periféricas” da dialética moderna, forjada na racionalização do “ressentimento” dos intelectuais (os filósofos idealistas alemães) com o caráter retardatário do capitalismo na Alemanha dos séculos XVIII e XIX (ver Arantes, 1996Arantes, Paulo. (1996). O fio da meada. São Paulo: Paz e Terra. ).

CRÍTICA, IDEOLOGIA E PERIFERIA

Não foi um acaso o fato de Schwarz ter sido diretamente criticado por uma expoente do “universalismo” dos intelectuais paulistas, a socióloga e filósofa Maria Sylvia de Carvalho Franco, que não hesitou em revelar o seu incômodo com o desmistifica subjacente à fórmula das “ideias fora do lugar”. Para Franco ( 1976Franco, Maria Sylvia de Carvalho. (1976). As ideias estão no lugar. In: Cadernos de Debate 1: História do Brasil. São Paulo: Brasiliense, p. 61-64. ), em tal concepção o dualismo rejeitado voltaria pelas portas do fundo, encarnando-se na contraposição entre “as ideias e razões burguesas europeias” e “o favor e escravismo brasileiro, incompatíveis com elas”, como se fossem modos diferentes de produção.

Já em seu clássico Homens livres na ordem escravocrata — título do livro originalmente defendido como tese de doutorado em 1964, sob orientação de Florestan Fernandes, e fonte de inspiração para a reflexão schwarziana sobre “as ideias fora do lugar” —, Carvalho Franco havia destacado o primado do capitalismo como “conceito inclusivo” a partir do qual se deveria analisar as peculiaridades da sociedade brasileira. Longe de ser o “outro” do capitalismo, a escravidão é vista, então, como “instituição submetida a outras determinações que lhe imprimiram seu sentido” (Franco, 1974Franco, Maria Sylvia de Carvalho. (1974). Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática.: 13), determinações oriundas do próprio modo de produção capitalista em ascensão.

Nessa chave de leitura, ao tomar para si a contraposição depedentista (de matriz cepaliana) entre centro e periferia, Schwarz teria recaído na obsessão do pensamento social e político brasileiro com a especificidade nacional, obsessão cujo pressuposto é o de que, embora desde sempre subordinado ao capitalismo, o Brasil não logrou — no século XIX, mas tampouco no XX, por limitações de origem —constituir-se como sociedade propriamente moderna, nem material nem ideologicamente falando 6 6 Já para o gramsciano Carlos Nelson Coutinho ( 2000: 47-50), o problema da abordagem schwarziana das ideias fora do lugar estava não na tentativa de apreender a especificidade da formação social brasileira, tarefa que também era a sua, mas sim na extensão da tese para o século XX, quando, na verdade, as ideias já haviam começado a “entrar no lugar”, na mesma medida em que o país se modernizava, tornando-se propriamente “ocidental”. . Para Franco, porém, não só o Brasil é capitalista — sem mais —, como as suas ideias são aquelas que correspondem (ou se opõem) aos interesses do seu capitalismo. Se as ideias estão sempre historicamente situadas — dentro do seu lugar , portanto —, a tarefa da crítica é desmistificá-las naquilo que têm de ideológicas, ou seja, de acobertamento da realidade da luta de classes, tal como em qualquer outro país capitalista, cada qual com suas singularidades relativas.

Assim, aos olhos de Carvalho Franco, é como se a simples menção à disjunção entre centro e periferia levasse a uma glorificação dos modelos de nação dos países centrais e a um recuo nacionalista exclusivista, em meio a uma sociedade tida como ainda pouco desenvolvida. Para dizer nos termos da crítica filosófica de Marilena Chaui, com quem Carvalho Franco fazia bloco no acerto de contas com as tradições nacionalistas, é como se a preocupação com o problema da formação nacional levasse, necessariamente, à legitimação do Estado como ator fundamental e, portanto, à adoção tácita do horizonte ideológico das classes dominantes (Chaui, 2013Chaui, Marilena. (2013). Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Belo Horizonte; São Paulo: Autêntica; Fundação Perseu Abramo. ).

Embora interessante, a crítica de Carvalho Franco decorre de um certo mal-entendido, característico da tendência de uma parte dos intelectuais paulistas da época de rejeitar em bloco o pensamento social e político brasileiro, assimilando-o à tradição autoritária e/ou nacionalista. Ocorre que, se cabe ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), ou mesmo parcialmente à sociologia marxista da modernização de Cardoso, a perspectiva não se encaixa totalmente em Schwarz, já que, como se argumentou aqui, a posição periférica se revela em relação ao desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, e é pela ótica dessa subalternidade — cuja realidade é objetiva, por assim dizer — que o pensamento (e/ou a literatura) elaborado em países como o Brasil pode chegar a um alcance universal, muitas vezes até mesmo superior àquele elaborado no centro do sistema. O caso de Machado de Assis é, a esse respeito, exemplar (Schwarz, 2000bSchwarz, Roberto. (2000b). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras. ).

De fato, como se pôde observar, não há dúvida de que, no âmbito da antinomia entre nacionalismo e cosmopolitismo globalista, Schwarz está mais próximo do primeiro do que do segundo polo, ainda que as suas referências teóricas provenham em sua maioria do marxismo europeu. Quando fala em “comédia ideológica particular” ou em “ideologia de segundo grau”, Schwarz não está tão distante do modo como alguns isebianos viam o problema da imitação de teorias dos países centrais nos países periféricos. Para Álvaro Vieira Pinto ( 1960Pinto, Álvaro Vieira. (1960). Consciência e realidade nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura (vol. 3).: 390), por exemplo, a consciência nacional se reduz, nessa imitação, a um “reflexo do reflexo”, no sentido de que reflete uma consciência alheia, originalmente “refletida” em outro contexto. A diferença é que, se para os isebianos a solução estava na adequação (ou na “redução”, como diria Guerreiro Ramos) das ideias à singularidade da nação tomada como uma unidade, o que exigia a elaboração de uma ideologia do desenvolvimento nacional, para Schwarz essa adequação passava pela especificação das relações de classe internas ao país.

O ponto é que, como temos visto, à diferença do que defende Maria Sylvia de Carvalho Franco, para Schwarz o enfoque de classe não prescinde da abordagem da questão nacional (periférica). A originalidade schwarziana, nesse contexto, reside na apreensão desse entrelaçamento classe/nação por meio da relação entre realidade e ideias, em cujas dissonâncias encontra aspectos significativos da primeira. É isso o que explica a sua especificidade mesmo em relação à vertente dos intelectuais paulistas na qual se inspira, e para a qual o problema da dependência continuava relevante, tal como aquela representada, por exemplo, por Cardoso. Isso porque, se Cardoso ainda trabalhava na chave da sociologia da modernização herdada do Florestan Fernandes da virada para os anos 1960, preocupando-se notadamente com o “atraso” da consciência dos agentes sociais em relação à situação objetiva do país, em Schwarz o desajuste entre ideias ou consciência e realidade “material” não aparece como desvio ou como incompletude, e sim como porta de acesso privilegiada para a compreensão mais nuançada da (má) formação social brasileira.

A crítica ideológica permanece relevante, mas deve ser redefinida, a fim de captar o funcionamento específico do mundo das ideias num país de matriz colonial como o Brasil, em que ideias e interesses sociais nem sempre, ou apenas excepcionalmente, mantêm vínculo orgânico. É nesse sentido que, em “As ideias fora do lugar”, Schwarz ( 2000aSchwarz, Roberto. (2000a). As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, p. 9-32. ) trata o liberalismo do Brasil oitocentista como “ideologia de segundo grau”, na medida em que “não descreve sequer falsamente a realidade, e não gravita segundo uma lei que lhe seja própria”. Se na Europa o liberalismo era uma ideologia que, como tal, encobria um momento fundamental da realidade — a exploração do trabalho e, portanto, a divisão da sociedade em classes sociais —, no Brasil o ideário liberal, sob a vigência do escravismo e de seus efeitos subsequentes, não acobertava muita coisa, tornando-se replicação ideológica de uma doutrina já ideológica no seu solo de origem. Nesse cenário, aplicar a crítica “tradicional” das ideologias não seria senão escancarar uma porta aberta.

Mesmo porque, o que é desvantagem de um lado — o das elites sem vocação hegemônica — se torna, porém, vantagem crítica de outro, o daqueles que se colocam na perspectiva das classes populares. “Ao se tornarem despropósito, estas ideias [liberais”fora do lugar”] deixam de enganar” (Schwarz, 2000aSchwarz, Roberto. (2000a). As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, p. 9-32.: 28), de onde surge um certo ceticismo diante das ideologias em geral. Ainda nas palavras do autor:

Largamente sentidas como defeitos, bem conhecido mas pouco pensado, esse sistema de impropriedades decerto rebaixava o cotidiano da vida ideológica e diminuía as chances da reflexão. Contudo facilitava o ceticismo em face das ideologias, por vezes bem completo e descansado, e compatível aliás com muito verbalismo (Schwarz, 2000aSchwarz, Roberto. (2000a). As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, p. 9-32.: 28).

Trocando em miúdos, trata-se de uma compensação periférica que, afinal, explica a força crítica do próprio Schwarz, mas também de Gramsci.

O BLOQUEIO DA DIALÉTICA PERIFÉRICA DO ESCLARECIMENTO: SCHWARZ DESENCONTRA GRAMSCI

No itinerário schwarziano, a esperança em algum tipo de via popular de acesso à modernidade nacional sofreu sensível abalo a partir da virada para os anos 1990, quando já se tornava claro que o horizonte de expectativas forjado na década anterior estava se estreitando. O ímpeto neoliberal do governo de seu ex-professor e colega de Seminário de O Capital e de Cebrap, Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1995, apenas escancarou o que já se vinha insinuando, com o agravante de que, agora, era a nata dos intelectuais paulistas — os mesmos que tinham investido contra o legado autoritário e estatista da política brasileira — que estava no comando. Doravante, a liquidação da Era Vargas, obsessão dos intelectuais paulistas, rimava com a racionalização neoliberal do Estado e da política brasileiras.

Nesse cenário, diante do que chamou de “desmanche” neoliberal, Schwarz diagnosticou o bloqueio daquele impulso progressista, que está no cerne da perspectiva nacional-popular, em cuja dinâmica a crítica imanente cumpria papel relevante. O nacional agora só pode ser “por negação”, quer dizer, um indício de uma crise mais ampla do “sistema produtor de mercadorias” (ver Querido, 2019bQuerido, Fabio Mascaro. (2019b). Nacional por negação: ensaio e “critica independente” no último Roberto Schwarz. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 74, p. 233-249. ). Ao colapso real da modernização se segue, portanto, a debacle da esperança intelectual e política numa resolução popular e democrática (e, nesse sentido, socialista) da questão nacional (ver Schwarz, 1999Schwarz, Roberto. (1999). Nunca fomos tão engajados. In: Seqüências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 172-177. ).

É nesse momento que, sem nunca ter de fato incorporado a letra do pensamento gramsciano, talvez por associá-lo, unilateralmente, ao nacional-desenvolvimentismo-popular dos anos 1960 ou, sobretudo, ao eurocomunismo dos 1980, Schwarz se afasta também do espírito de Gramsci. O impulso iluminista popular-socialista ao qual Gramsci era tributário já não se colocava mais na ordem do dia, e tudo indicava que jamais o seria, o que exigia — assim defendeu Schwarz — uma reavaliação do próprio papel do intelectual crítico.

Quando tudo parece “orgânico” ao sistema, caberia ao intelectual o recuo em direção à retaguarda da crítica radical, sem concessões “positivas”, o que, em termos gramscianos, significaria um indesculpável retorno à figura “tradicional” dos intelectuais (ver Schwarz, 1999Schwarz, Roberto. (1999). Nunca fomos tão engajados. In: Seqüências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 172-177. ). Quando o horizonte é sombrio, Adorno (e Machado) suplanta Gramsci: a hora seria a do retorno à torre de marfim materialista (Adorno, 1991Adorno, Theodor. (1991). Engagement. In: Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 51-71. , 2003Adorno, Theodor. (2003). A filosofia muda o mundo ao manter-se como teoria. [Entrevista cedida a Spiegel]. Lua Nova, 60, p. 131-138. ; Arantes, 1996), sem complexo de culpa, à maneira de uma espécie de iluminismo negativo . Resta saber, então, de onde essa crítica radical poderá retirar a força social sem a qual está arriscada a recair, mesmo que à revelia, num cosmopolitismo elitista new age . Mesmo porque, ao jogar fora a “água suja” do “marxismo tradicional” (aquele da luta de classes), talvez se esteja descartando também, ao mesmo tempo, o horizonte alternativo de expectativas (o “bebê”) necessário à vitalidade de todo trabalho intelectual crítico.

REFERÊNCIAS

  • Adorno, Theodor. (1991). Engagement. In: Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 51-71.
  • Adorno, Theodor. (2003). A filosofia muda o mundo ao manter-se como teoria. [Entrevista cedida a Spiegel]. Lua Nova, 60, p. 131-138.
  • Arantes, Paulo. (1992). Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo. In: D’incao, Maria Angela & Folo, Eloisa Faria (orgs.). Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia das letras.
  • Arantes, Paulo. (1996). O fio da meada. São Paulo: Paz e Terra.
  • Bianchi, Alvaro. (2008). O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda.
  • Bianchi, Alvaro. (2014). Circulação e tradução: para uma história global do pensamento político. Encontro da ABCP, 4., 4 a 7 ago. 2014, Brasília, DF.
  • Brandão, Gildo (2005). Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados, 48/2, p. 231-269.
  • Cardoso, Fernando Henrique. (1971). “Teoria da dependência” ou análises concretas de situações de dependência? Estudos Cebrap, 1, p. 25-45. Disponível em: https://bibliotecavirtual.cebrap.org.br/arquivos/teoria_da_dependencia_ou_analises_concretas_b.pdf . Acesso em: 10 jan. 2024.
    » https://bibliotecavirtual.cebrap.org.br/arquivos/teoria_da_dependencia_ou_analises_concretas_b.pdf
  • Chaui, Marilena. (2013). Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Belo Horizonte; São Paulo: Autêntica; Fundação Perseu Abramo.
  • Coutinho, Carlos Nelson. (1974). O significado de Lima Barreto na literatura brasileira. In: Coutinho et al. (orgs.). Realismo e antirrealismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Coutinho, Carlos Nelson. (1979). A democracia como valor universal. In: Silveira, Ênio et al. (orgs.). Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.33-47 (vol. 9).
  • Coutinho, Carlos Nelson. (2000). Cultura e sociedade no Brasil. In: Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideais e formas. Rio de Janeiro: DP & A Editora.
  • De Decca, Edgar. (1988). 1930: o silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense.
  • Franco, Maria Sylvia de Carvalho. (1974). Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática.
  • Franco, Maria Sylvia de Carvalho. (1976). As ideias estão no lugar. In: Cadernos de Debate 1: História do Brasil. São Paulo: Brasiliense, p. 61-64.
  • Furtado, Celso. (1967). De L’Oligarchie à l’État militaire. Les Temps modernes, 257, p. 578-601.
  • Gramsci, Antonio. (2000). Cadernos do cárcere: Maquiavel, notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (vol. 3).
  • Gramsci, Antonio. (2002). Cadernos do cárcere: o Risorgimento, notas sobre a história da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (vol. 5).
  • Gramsci, Antonio. (2007). Quaderni del carcere. Torino: Einaudi (vol. 4).
  • Löwy, Michael. (1962). Consciência de classe e partido revolucionário. Revista Brasiliense, 41/1, p.138-160.
  • Mota, Carlos Guilherme. (1977). Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo: Ática.
  • Nabuco, Joaquim. (2005). Campanha abolicionista no Recife: eleições 1884. Brasília, DF: Senado Federal.
  • Pécaut, Daniel. (1990). Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática.
  • Pinto, Álvaro Vieira. (1960). Consciência e realidade nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura (vol. 3).
  • Querido, Fabio Mascaro. (2019a). Pensamento ao quadrado: Roberto Schwarz e o Brasil. Lua Nova, 107, p. 235-261.
  • Querido, Fabio Mascaro. (2019b). Nacional por negação: ensaio e “critica independente” no último Roberto Schwarz. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 74, p. 233-249.
  • Sader, Eder. (2001). Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Sarlo, Beatriz. (1992). Intelectuales y revistas: razones de una práctica. América: Cahiers du CRICCAL, 9-10, p. 9-16.
  • Schwarz, Roberto. (1970). Remarques sur la culture et la politique au Brésil, 1964-1969. Les Temps modernes, 288, p. 37-73.
  • Schwarz, Roberto. (1972). Dépendance nationale, déplacement d’idéologies, littérature: sur la culture brésilienne au XIXème siècle. L’Homme et la société, 26, p. 99-110.
  • Schwarz, Roberto. (1979). [Entrevista cedida a] Gildo Marçal Brandão e O. C. Louzada Filho. In: Encontros com a Civilização Brasileira, 15., Rio de Janeiro.
  • Schwarz, Roberto. (1982). A velha pobre e o retratista. Novos Estudos Cebrap, 2, p. 35-38.
  • Schwarz, Roberto (org.). (1983). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense.
  • Schwarz, Roberto. (1984). Ausências. Novos Estudos Cebrap, 9, p. 71-71.
  • Schwarz, Roberto. (1987). Nacional por subtração. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29-48.
  • Schwarz, Roberto. (1999). Nunca fomos tão engajados. In: Seqüências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 172-177.
  • Schwarz, Roberto. (2000a). As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, p. 9-32.
  • Schwarz, Roberto. (2000b). Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Schwarz, Roberto. (2008). Cuidado com as ideologias alienígenas. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, p. 136-145.
  • Schwarz, Roberto. (2023). Entrevista com Fabio Mascaro Querido. Margem Esquerda, 40, p.11-34.
  • Serra, José & Tavares, Maria da Conceição. (2000 [1971]). Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento recente no Brasil. In: Bielschowsky, Ricardo (org.). Cinquenta anos de pensamento da CEPAL. Rio de Janeiro: Record, p. 589-608.
  • Toledo, Caio Navarro. (1977). ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática.
  • Viana, Francisco José de Oliveira (1939). O idealismo da constituição. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
  • Vianna, Luiz Werneck. (2004). A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan.
  • Weffort, Francisco. (1971). Nota sobre a “teoria da dependência”: teoria de classe ou ideologia nacional? Estudos Cebrap, 1, p. 1-24.
  • Weffort, Francisco. (1972). Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco, 1968. São Paulo: Cebrap. (Caderno Cebrap, 5).
  • 1
    Exceção que confirma a regra é o dossiê sobre “literatura e pobreza”, organizado por Schwarz ( 1982Schwarz, Roberto. (1982). A velha pobre e o retratista. Novos Estudos Cebrap, 2, p. 35-38.: 27-47) para o segundo número da Novos Estudos Cebrap e depois transformado — em versão ampliada — em livro (Schwarz, 1983Schwarz, Roberto (org.). (1983). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense. ). No seu próprio ensaio para o dossiê, Schwarz, retomando a personagem Dona Plácida, das Memórias Póstumas de Brás Cubas , argumenta que, em Machado, em meio à escravidão e à desvalorização do trabalho livre (“trabalho abstrato, mas sem reconhecimento social”), “a situação dos pobres define-se complementarmente” (Schwarz, 1982Schwarz, Roberto. (1982). A velha pobre e o retratista. Novos Estudos Cebrap, 2, p. 35-38.: 36) à “situação história das camadas dirigentes brasileiras no século XIX” (Schwarz, 1982Schwarz, Roberto. (1982). A velha pobre e o retratista. Novos Estudos Cebrap, 2, p. 35-38.: 37). São estas que, segundo as suas conveniências e interesses, “ universalizam as suas incongruências” (Schwarz, 1982Schwarz, Roberto. (1982). A velha pobre e o retratista. Novos Estudos Cebrap, 2, p. 35-38.: 38).
  • 2
    Como se verá mais adiante, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) (1969) teve papel importante nesse processo de revisão crítica. Aliás, foi a afirmação de que, apesar de tudo, existiam condições para a expansão capitalista no Brasil sob a ditadura militar, que deu unidade ao Cebrap na primeira metade da década de 1970, no âmbito do que Daniel Pécaut ( 1990Pécaut, Daniel. (1990). Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática. ) chamou de “Partido Intelectual”. O ensaio de José Serra e Maria da Conceição Tavares ( 2000Serra, José & Tavares, Maria da Conceição. (2000 [1971]). Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento recente no Brasil. In: Bielschowsky, Ricardo (org.). Cinquenta anos de pensamento da CEPAL. Rio de Janeiro: Record, p. 589-608. [1971]), Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento recente no Brasil , discutido no Cebrap, lançou a primeira pedra em 1970-1971.
  • 3
    Até então, Gramsci era conhecido no Brasil por alguns intelectuais socialistas como Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido e o ainda jovem Michael Löwy — este último responsável, segundo Bianchi (2008: 41), por um “uso mais consistente [de Gramsci] pela primeira vez”, em artigo de 1962, publicado na revista Brasiliense , sobre a questão dos partidos políticos. Ver Löwy ( 1962Löwy, Michael. (1962). Consciência de classe e partido revolucionário. Revista Brasiliense, 41/1, p.138-160. ).
  • 4
    No plano da crítica aos discursos intelectuais que deram guarida à tradição nacional-populista mesmo nas fileiras da esquerda, vale mencionar as teses igualmente pioneiras de Caio Navarro Toledo ( 1977Toledo, Caio Navarro. (1977). ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática. ) sobre o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), de Carlos Guilherme Mota ( 1977Mota, Carlos Guilherme. (1977). Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo: Ática. ), sobre as construções ideológicas da noção de cultura brasileira, e de Edgar de Decca ( 1988De Decca, Edgar. (1988). 1930: o silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense. ) acerca da cristalização de uma “história dos vencedores” em torno da chamada “Revolução de 1930”.
  • 5
    Ver, por exemplo, a posição de Schwarz ( 1987Schwarz, Roberto. (1987). Nacional por subtração. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29-48.: 35-38) no debate com Silviano Santiago sobre a dependência cultural em “Nacional por subtração”.
  • 6
    Já para o gramsciano Carlos Nelson Coutinho ( 2000Coutinho, Carlos Nelson. (2000). Cultura e sociedade no Brasil. In: Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideais e formas. Rio de Janeiro: DP & A Editora.: 47-50), o problema da abordagem schwarziana das ideias fora do lugar estava não na tentativa de apreender a especificidade da formação social brasileira, tarefa que também era a sua, mas sim na extensão da tese para o século XX, quando, na verdade, as ideias já haviam começado a “entrar no lugar”, na mesma medida em que o país se modernizava, tornando-se propriamente “ocidental”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2021
  • Aceito
    07 Nov 2022
  • Revisado
    18 Out 2022
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo do São Francisco de Paula, 1, sala 420, cep: 20051-070 - 2224-8965 ramal 215 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistappgsa@gmail.com