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MAURÍCIO DE SOUSA E A NATUREZA DO RECONHECIMENTO ARTÍSTICO

MAURÍCIO DE SOUSA AND THE NATURE OF ARTISTIC RECOGNITION

Resumo

Interessada na compreensão do reconhecimento artístico de Maurício de Sousa, parto da análise da cidade de São Paulo como um locus de produção artística importante para o desenvolvimento de uma comunidade de artistas dedicados aos quadrinhos. O mapeamento urbano da atuação de Maurício de Sousa matiza as formas com as quais a sua atuação dentro da imprensa paulista foi enriquecida pelo convívio com jovens profissionais que, engajados na ampla defesa dos quadrinhos como forma de arte, encabeçaram iniciativas de incentivo à produção de quadrinhos brasileira. Nesse sentido, também tenho como enfoque a forma com a qual os círculos sociais de Maurício de Sousa deram novo sentido à cidade de São Paulo, animando o estabelecimento de uma vivência artística coletiva.

Palavras-chave
Maurício de Sousa; Reconhecimento; História em quadrinhos; Sociologia da arte

Abstract

Interested in understanding Maurício de Sousa’s artistic recognition, I begin by analyzing the city of São Paulo as an important locus of artistic production for the development of an artistic community dedicated to comic books. The urban mapping of Maurício de Sousa’s trajectory illustrates the ways in which his performance within the São Paulo press was enriched by his contact with young professionals who, engaged in the broad defense of comics as an art form, tentatively spearheaded initiatives to encourage production of Brazilian comics. In this sense, I also focus on the way in which Maurício de Sousa’s social circles gave new meaning to the city of São Paulo, encouraging the establishment of a collective artistic experience.

Keywords
Maurício de Sousa; Recognition; Comics; Sociology of art

Maurício de Sousa, um dos mais conhecidos quadrinistas brasileiros da atualidade, teve a oportunidade de recontar sua história de vida em diversas ocasiões, muitas das quais deram palco à ideia de gênio criativo, bem cara a ele. A narrativa autorizada por suas entrevistas, biografias e autobiografias em quadrinhos encarna na figura de Maurício a imagem do artista desbravador e do empreendedor astuto, usando, de modo bem convincente e carismático, sua infância interiorana e, depois, sua própria vida familiar como matéria-prima para seus quadrinhos, dando-lhes notável importância no seu conjunto de obras 1 1 Nas biografias em quadrinhos comercializadas pela Maurício de Sousa Produções, assim como nas muitas entrevistas concedidas pelo artista, a sua vida familiar, a despeito de servir anunciadamente como inspiração para suas criações, é grandemente relegada a um papel acessório, presente em seu dia a dia somente enquanto fonte de inspiração. É importante ter essa questão em mente na medida em que revela o duplo papel de Maurício no seu fazer artístico, tanto de criador quanto de criatura. . A narrativa de superação pessoal impressa em seu trabalho, apesar de encantadora, é perigosa para um estudo sociológico.

O interesse pela vida de grandes artistas não é algo novo, ele aparece tradicionalmente na sociologia como um caminho para a compreensão das relações entre o indivíduo e a sociedade (Elias, 1993Elias, Norbert. (1993). Mozart: Portrait of a Genius. Los Angeles: University of California Press. ), que, sob a ótica da sociologia da arte, ganha nova vida com o questionamento da natureza da criação artística e do seu reconhecimento 2 2 A virada compreensiva introduzida por Nathalie Heinich ( 2001 [1998]), teorizada em seu livro Ce Que L’Art feit à la sociologie (1998), pôs em evidência a recepção do público em oposição ao estabelecimento profissional, o que, na busca pela significância do reconhecimento artístico, confere uma perspectiva menos preocupada com a reinstituição dialética do mundo e mais atinada à compreensão da dóxica social, que procura compreender por meio dos regimes paradigmáticos da vida em sociedade as dinâmicas de valoração e significação da vida artística. A partir daí, Alan Bowness se torna um importante interlocutor da esquematização dos processos de reconhecimento artístico. Então diretor do Tate Museum, Bowness tratou do sucesso artístico em sua famosa palestra The Conditions of Success: How the Modern Artist Rises to Fame , proferida em 1989 à Universidade de Londres. Lá o historiador britânico denotou quatro importantes etapas do sucesso artístico, as quais Nathalie Heinich usa em sua análise: o reconhecimento pelos pares; o reconhecimento crítico; o patronato por comerciantes e colecionadores; e a consagração do público. . Repensada por meio do paradigma pragmático 3 3 Apesar de podermos vislumbrar o esquema conceitual de Alan Bowness nas asserções de Nathalie Heinich, é notável a escolha da autora em permanecer usando a palavra reconhecimento em vez de sucesso, frequentemente usado pelo historiador. Assumo que a sua escolha por essa palavra tenha a ver com a ênfase à reciprocidade manifesta no relacionamento entre o artista e seu público. Um indivíduo reconhece o outro, fazendo do reconhecimento um ato conectivo e destacando a indispensabilidade da aceitação da legitimidade do artista pelo público, coisa que o uso da palavra sucesso não conseguiria exprimir, já que ela remete à fortuna unilateral, à conquista de popularidade. Um indivíduo tem sucesso, portanto essa é uma ação de apossamento, em que o indivíduo toma para si a glória que lhe é devida. O principal problema com o uso do termo sucesso é a indefinição da natureza dessa ventura. Será o retorno financeiro que dita o que é bem-sucedido? Ou será a popularidade? Enquanto o reconhecimento de Heinich não deixa dúvidas quanto à natureza de sua boa ventura, a aceitação do artista, o sucesso de Bowness deixa margem para diversas interpretações do que é um indivíduo bem-sucedido. , as trajetórias artísticas dinamizam o clássico conflito indivíduo versus sociedade de modo inovador, não mais enfocando nas condições de uma pressuposta ordem social, mas nos contínuos processos de sua ordenação. Dentro desse quadro, os caminhos percorridos pelo indivíduo tornam-se mais ambíguos, fugidios até, pois a linha de sua vida não mais apresenta-se com um final a vista, ou mesmo com uma forma clara. Ela, diferentemente, apresenta-se a partir de um movimento flâneur (Ingold, 2011Ingold, Tim. (2011). Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description. London: Routledge.: 46), que não conecta pontos, mas busca apenas “continuar seguindo”. E, seguindo a vida, como se faz, o artista se move de modo criativo e improvisado através dos tempos, e, assim sendo, sua itinerância, sempre dialogada com as expectativas do futuro, tenta percorrer o caminho de maior recompensa diante do que lhe é apresentado.

Revisitando a história de vida de Maurício de Sousa com mais atenção, trato aqui de mapear sua trajetória na cidade de São Paulo, pensando principalmente na dinâmica itinerante da sua vida artística. Volto-me à reimaginação sociológica de sua carreira, procurando entender os processos por trás do seu estabelecimento no mercado de histórias em quadrinhos, contemplando o período desde a publicação de sua primeira tirinha, Bidu & Franjinha , em 1959, até a exposição Mônica no MASP , feita em 1979. Tomando como fio condutor as duas primeiras décadas de sua atuação profissional, investigo as maneiras a partir das quais suas histórias em quadrinhos conquistaram cada vez mais espaço dentro dos jornais brasileiros, assim como fora deles, objetivando entender além do por que , e investigando com mais afinco como Maurício de Sousa consagrou-se como símbolo do poderio criativo brasileiro.

Claro que, tendo dito isso, o problema persiste: como mapear a trajetória de um artista que exerce total controle sob sua imagem pública? Como escapar da narrativa acachapante construída por Maurício de Sousa? Ao contrário do que propôs Pierre Bourdieu ( 2006Bourdieu, Pierre. (2006 [1986]). A ilusão biográfica. In: Figueiredo, Janaina; Ferreira, Marieta (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 183-191. [1986]), não irei à procura das estruturas estruturadas estruturantes que definem as colocações e deslocamentos do indivíduo no espaço social. Por mais que Bourdieu não pensasse na história de vida como uma unidade coerente, única e lógica, ele ainda pensava no indivíduo como tal, e é somente a partir da destruição da própria noção unitária do indivíduo que será possível fugir da armadilha expressa pela ilusão (auto)biográfica. O conceito de “pessoa fractal”, assim cunhado por Roy Wagner ( 2011Wagner, Roy. (2011 [1991]). A pessoa fractal. Ponto Urbe, 8. [1991]), oportuniza justamente essa fuga, a consideração do indivíduo não enquanto entidade singular, junto do qual outras entidades singulares podem tornar-se um coletivo, mas, diferentemente, aquiesce seu entendimento enquanto produto das relações por ele estabelecidas, relações essas parentais, profissionais, materiais, e até relações com a arte e com o público. A imagem pública de Maurício de Sousa, construída arduamente até os dias atuais, torna-se, a partir disso, irrelevante para uma análise como a proposta aqui, mais interessada nos círculos sociais com os quais esse quadrinista convivia e a partir dos quais ele projetava seu alcance na cidade. São nos constantes e móveis cruzamentos de diferentes círculos sociais, assim conceituados por Georg Simmel ( 1908Simmel, Georg. (1908). Soziologie. Leipzig: Duncker und Humblot. ), que penso estar a chave para o entendimento do reconhecimento artístico de Maurício de Sousa, e nesse sentido é minha intenção mostrar o processo no qual esse artista firmou-se como um dos principais expoentes dos círculos profissionais relacionados aos quadrinhos da cidade de São Paulo, não como um esforço de conectar pontos, de mapear um caminho, uma linha, mas, como propôs Tim Ingold ( 2011Ingold, Tim. (2011). Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description. London: Routledge. ), com o movimento flâneur , com a intenção de desvelar os vários fluxos, as derivas e devires (Perlongher, 2008Perlongher, Néstor. (2008 [1986]). O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. [1986]), presentes na vida artística de Maurício. São nos seus vários caminhos e descaminhos, sucessos e fracassos, que esse artista foi se construindo no que hoje conhecemos como Maurício de Sousa.

MAURÍCIO DE SOUSA SEGUNDO ELE MESMO 4 4 Há de se notar que utilizarei a partir daqui ambos, sucesso e reconhecimento, para descrever a trajetória de Maurício de Sousa. Minha intenção em mobilizar essas duas palavras é simples: creio que haja espaço para ambas. Se eu me ativer somente ao reconhecimento, como imaginado por Nathalie Heinich ( 2001 [1998]), a ênfase que dou ao espírito empreendedor de Maurício, assim como ao seu enorme sucesso comercial, seria perdido; e se eu utilizasse somente o sucesso de Alan Bowness ( 2011 [1989]), relegaria dois importantes aspectos da trajetória de Maurício, as suas relações profissionais e a projeção carismática da sua figura pública. De um lado uso sucesso para referenciar o ato de conquista financeira, de outro uso reconhecimento para tratar do modo mútuo como sua aceitação e popularização se deu.

Maurício Araújo de Sousa nasceu no município de Santa Isabel, em São Paulo, em 27 de outubro de 1935. Passou a maior parte de sua infância em Mogi das Cruzes com seus pais, Petrolina Araújo de Sousa e Antônio Maurício de Sousa, e seus irmãos, Marisa, Márcio Araújo e Yara Maura Silva (Sousa, 2017Sousa, Maurício de. (2017). Maurício: a história que não está no gibi. São Paulo: GMT.: 53). Ali, no Alto Tietê, seus primeiros anos de vida foram, de acordo com o próprio, pacatos, repletos de leituras das revistas Suplemento Infantil , O Globo Juvenil , Mirim e O Gibi , cujas versões trissemanais e mensais traziam quadrinhos como Mandrake , Flash Gordon e O Espírito (Sousa, 2017Sousa, Maurício de. (2017). Maurício: a história que não está no gibi. São Paulo: GMT.: 40) ao alcance de crianças como Maurício, que expressamente as tomava como grande fonte de inspiração. Além dessas revistas ilustradas, os jornais também tinham um grande papel no divertimento cotidiano do público infantil, veiculando histórias em quadrinhos e passatempos rotineiramente.

Com uma “típica vida interiorana”, em que passava jogando bola em campinhos da região, rodando pião, jogando bolinha de gude, soltando pipa e lendo quadrinhos, Maurício de Sousa foi muito influenciado pela artisticidade de sua família, dentro da qual seu avô era um conhecido “contador de lorotas”, seu pai sonhava em ser poeta, enquanto sua mãe já era poeta e sua irmã cantora (Sousa, 2009b Sousa, Maurício de. (2009b). Maurício de Sousa comemora 50 anos de carreira com documentário e atrações. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/ult10082u587206.shtml . Acesso em 24 jan. 2024.
https://www1.folha.uol.com.br/folha/livr...
). Em meio aos poemas, canções, pinturas e estórias de sua família, Maurício conta ter crescido contemplando as muitas maneiras em que o mundo poderia ser transformado em arte. A vida familiar narrada por ele parece ter aberto o caminho para o seu espírito artístico. Seu pai, em particular, aparece como seu principal instigador, um guia para as matrizes artísticas de Maurício, algo bem evidenciado no discurso assumido pelo quadrinista nas últimas décadas de sua carreira. Na sua Biografia em quadrinhos: edição comemorativa de 80 anos , o quadrinista apresenta um painel de seu pai, no qual lista suas muitas inclinações artísticas em diferentes quadros, o primeiro nomeando-o poeta, o seguinte escritor, em seguida pintor, radialista, compositor, cronista de jornal e, finalmente, barbeiro. Jotalhão, personagem criado por Maurício, chega a chamá-lo de “multi-homem”, tamanha sua versatilidade (Sousa, 2015bSousa, Maurício de. (2015b). Biografia em quadrinhos: Edição comemorativa de 80 anos. São Paulo: Panini. ). Esse tipo de representação, comum à narrativa de Maurício, conecta sua arte diretamente à sua experiência familiar, sem a qual o quadrinista não teria sido capaz de transformar sua paixão em quadrinho.

Pouco depois da contratação de Antônio Maurício em uma rádio na capital paulista, a família Sousa se mudou, levando Maurício a frequentar o Externato São Francisco, localizado ao lado da Faculdade Nacional de Direito, no centro da cidade. O colégio era mantido pela Ordem Terceira de São Francisco nas dependências de sua igreja, a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco. Logo ao final de seu ginasial, entretanto, o jovem Maurício retornou a Mogi das Cruzes 5 5 Dentro do campo da Sociologia da Arte, Nathalie Heinich tornou-se a mais importante defensora da abordagem pragmática, como pôs a autora: “Aux deux sens du terme: pragmatique au sens épistémologique, puisqu’il s’agit d’analyser les phénomènes artistiques en situation, dans leur contexte, et non pas de façon abstratite; et pragmatique au sens étymologique, puisqu’il s’agit d’analyser ce que font les oeuvres — et non pas, encore une fois, ce qu’elles valent, ou ce que’elles signifient” ( 2002: 134). a fim de trabalhar em algumas rádios locais, ainda realizando alguns trabalhos na capital. Sem nunca esquecer das alegrias de sua infância, Maurício desejava se tornar um quadrinista, algo que só era experimentado por meio dos pequenos trabalhos de ilustração que realizava em paralelo a seus estudos (Sousa, 2007Sousa, Maurício de. (2007). Biografia em quadrinhos. São Paulo: Panini.: 36).

Em 1959, Maurício vai a algumas redações de jornal da cidade de São Paulo levando seus desenhos na esperança de conseguir vender suas histórias em quadrinhos a algum editor. Maurício narra sua ida à redação da Folha de S.Paulo em sua Biografia em quadrinhos: edição comemorativa de 80 anos . Lá, Mário Cartaxo, ao dar uma olhada em seus desenhos, o estimulou a se candidatar a um emprego no jornal para que ali pudesse aprimorar sua técnica enquanto se aclimatava ao cotidiano editorial. O episódio é rememorado de forma que o jovem Maurício de Sousa, bem-disposto e sorridente, faz de tudo para conseguir a chance de trabalhar como quadrinista, e, bem-afortunado, consegue o cargo ao chegar na Folha de S.Paulo, onde Mário Cartaxo o aconselha a ficar enquanto não tem perícia o suficiente para seguir com seus planos artísticos. Seguindo seu conselho, Maurício candidata-se ao cargo de repórter policial na Folha da Manhã , edição matutina da Folha de S.Paulo , de onde, em seu tempo livre, passa a desenvolver e publicar a tirinha Bidu & Franjinha logo depois. Ao longo do tempo, e com a sua eventual saída do posto de repórter policial, o quadrinista foi alargando seu universo quadrinístico, publicando, além de Bidu & Franjinha , tirinhas como Horácio , Cebolinha , Papa-Capim , Piteco , Raposão , Chico Bento , Penadinho , Tina e Astronauta 6 6 Antes de ater-me nos pormenores da trajetória artística de Maurício de Sousa, há de se lembrar que as informações acerca de sua vida se limitam, quase que exclusivamente, às narrativas comercializadas pela sua própria empresa, a Maurício de Sousa Produções. Por essa razão, investigações a seu respeito pouco fogem das fontes oficiais fornecidas por ele próprio, podendo chegar a procurarem respaldo em outros registros, como é o caso das poucas entrevistas realizadas com seus funcionários, editores e colegas de trabalho, assim como das reportagens e biografias não autorizadas disponibilizadas ao público. Contudo, mesmo nestes registros outros o rigoroso controle exercido sobre a imagem pública de Maurício pode ser sentido, o que acaba tornando a romântica narrativa do self-made man vendida por ele um constructo quase inescapável. .

No ano de 1958, o quadrinista deu início à sua própria vida familiar ao se casar com Marilene de Souza, com quem teve suas primeiras filhas, Mariângela Spada e Sousa, em 1959, Mônica Spada e Sousa, em 1960, e Magali Spada e Sousa, em 1961 (Sousa, 2017Sousa, Maurício de. (2017). Maurício: a história que não está no gibi. São Paulo: GMT.: 59-60). Foi a partir dos nascimentos de Mônica e Magali que a temática familiar passa a ser explorada de forma ainda mais direta no seu conjunto de obras, que já em 1963 passa a dispor de personagens de mesmo nome. O amadurecimento narrativo do projeto artístico de Maurício está ligado à integração de temáticas familiares (e, futuramente, educativas e mesmo cívicas 7 7 Segundo Maurício, a família morou em São Paulo por dois anos, nos quais “Meu pai não sossegava. Um dia se cansou da capital e decidiu voltar para Mogi” (Sousa, 2017: 32), onde conseguiu um emprego como diretor da rádio Marabá. Durante essa época, “de manhã e em parte da tarde ele trabalhava na barbearia. Depois ia para a rádio e saía de lá quase de madrugada”. ) por meio de personagens como Mônica e Magali, que servem de elo entre as experiências reais do artista e as suas fabricações fictícias. Anos depois, em 1970, com a publicação da sua mais famosa revista em quadrinhos 8 8 Somente após a assinatura de seu contrato com a Editora Abril Maurício seccionou suas criações em “turmas”, publicando estórias de duas a três páginas de diferentes núcleos temáticos dentro de Mônica . Todas as suas criações regularmente publicadas em formato de tirinha foram reaproveitas nessa revista em quadrinhos, sendo reintituladas como turma. A “turma da Mônica”, agrupamento principal do quadrinista, era composta pelos personagens presentes nas tirinhas do Cebolinha, enquanto a “turma do Bidu” era derivada das tirinhas Bidu & Franjinha , a “turma da Mata” foi criada com base no agrupamento de personagens explorados nas tiras do Raposão , a “turma do Chico Bento”, por sua vez, foi criada com base nas tirinhas de Hiroshi e Zézinho , posteriormente reformulada e intitulada de Chico Bento. A “turma do Piteco” era advinda de Piteco , a “turma do Papa-Capim” era originária das tiras do Papa-Capim, a “turma do Astronauta” era proveniente da tirinha Astronauta , a “turma do Horácio” foi criada a partir do personagem Horácio, primeiro explorado nas tirinhas de Piteco e depois desenvolvido em tirinhas próprias chamadas Horácio, a “turma do Penadinho”, cujos personagens foram primeiramente criados para as tirinhas do Cebolinha, vieram das tiras intituladas Penadinho , a “turma da Tina”, cuja personagem principal nasceu das tiras do Cebolinha, foi posteriormente explorada nas tiras de Tina, e, ainda, a “turma do Pelezinho”, nascida das tirinhas do Pelezinho , criadas em 1979 exclusivamente para o Diário de Pernambuco e a editora Abril. , Mônica e sua turma (mais conhecida hoje como Turma da Mônica ), seu projeto narrativo lúdico já aparece consolidado. Acho válido pontuar, no entanto, que esse encaminhamento artístico não surgiu de improviso, de súbito, mas foi sendo esquadrinhado ao longo dos anos. O afastamento de Maurício de empreendimentos de natureza sindical, principalmente após o Golpe Civil-Militar de 1964, pautou a mudança de tonalidade em Cebolinha , antes uma tirinha dedicada a um humor mais adulto e cosmopolita. Com novas formas de controle sendo exercidas no mercado editorial, a agenda de nacionalização e profissionalização da produção quadrinística principiada por associações de desenho e editoras independentes apresentou alguns desafios para seus membros 9 9 Já consolidado comercialmente no mercado, Maurício de Sousa passou a colaborar com diversas agências governamentais paulistas, dentre elas a Prefeitura de São Paulo, a Companhia Energética de São Paulo (CESP), a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), para criar histórias com fins de promoção de projetos de conscientização pública, aumentando o espectro de influência de seus quadrinhos a partir da distribuição gratuita em escolas públicas do estado de São Paulo. A ativa participação em programas públicos voltados ao incentivo da educação, saúde e mesmo consciência cívica infantil tem grande relevância na qualificação do projeto artístico de Maurício de Sousa, já que a livre colaboração com órgãos estatais paulistas em plena Ditadura Militar designa a união de duas instituições, a Maurício de Sousa Produções e o governo do estado, sob uma bandeira comum: os projetos de conscientização infantil. As histórias presentes nas revistas em quadrinhos da Mônica, preocupadas em tratar a dinâmica familiar, em comunicar práticas de higiene e em educar o público leitor em questões de civilidade e etiqueta, denotavam uma correspondência entre o projeto estético de Maurício de Sousa e o projeto ideológico levado à frente pelas instituições públicas que se associaram a ele. .

O afastamento de seu passado sindical acabou reforçando o estilo cada vez mais didático de Maurício, levando-o a desenvolver uma fórmula própria, reconhecível em todas as suas obras. A valorização da família tradicional, suas relações de carinho, seus desentendimentos, seu uso de referências musicais, televisivas e cinematográficas mais atuais, a forte presença da tônica esportiva e escolar, o divertimento descomplicado da vida interiorana e o debate de questões domésticas, como higiene e bons modos, são comuns ao projeto aplicado por Maurício de Sousa 10 10 É importante diferenciar as tirinhas criadas por Maurício de Sousa de suas revistas em quadrinhos. Enquanto publicações inalienáveis da estrutura jornalística, as tirinhas são consumidas junto a toda uma rica, e variada gama de obras, ligadas ao universo cotidiano do jornal diário, enquanto as revistas em quadrinhos são publicações independentes, exclusivamente dedicadas ao universo quadrinístico específico de seu criador. . Antes do Golpe Civil-Militar, muitos dessas questões, que se deu, em grande parte, nos primeiros anos das tirinhas de Cebolinha e, mais tarde, em Nico Demo (1966-1970) e Os Sousa (1968-1989), foi lentamente abandonada. É essa natureza incerta do projeto estético de Maurício de Sousa que alimenta a concepção de trajetória flâneur levantada aqui.

A figura de Maurício provoca várias reações, talvez uma das mais significativas aqui esteja ligada ao seu apelo à memória sentimental (Pollak, 1989Pollak, Michael. (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 2/3, p.3-15. ) do público brasileiro, cujos julgamentos a seu respeito giram em torno da noção nostálgica de infância. Maurício de Sousa, ao mesmo tempo artista, educador e empresário, urdiu-se como uma espécie de patrono da infância e, justamente por conta do seu domínio sobre a sua própria imagem, o nosso entendimento do seu reconhecimento depende de uma mudança de abordagem. Creio que seja a partir da consideração de sua fractalidade (Wagner, 2011Wagner, Roy. (2011 [1991]). A pessoa fractal. Ponto Urbe, 8. [1991]: 4) que poderemos translocar o foco dos esforços memoriais e discursos enaltecedores a seu respeito para o convívio do qual Maurício de Sousa fez parte. Por meio das relações encadeadas de Maurício compreendemos como ele é convertido e reproduzido para os outros. Tratando-se das relações que compuseram a vida de Maurício, a sua (con)vivência com os profissionais da imprensa que trabalhavam em São Paulo são, talvez, as mais relevantes aqui, já que é a partir da sua energética participação em diferentes redações, associações e editoras que o quadrinista é capaz de dar cabo aos seus mais variados projetos artísticos, e é a partir da sua presença ali que Maurício é capaz de ir explorando diferentes vias temáticas e estéticas. Trocando por miúdos, é só enquanto elo de uma cadeia de círculos que Maurício de Sousa é capaz de se movimentar por diferentes estúdios, associações e eventos enquanto artista, e por diferentes negócios enquanto empresário e parceiro comercial.

Um ponto merece ser melhor detalhado aqui: o destacado papel da cidade de São Paulo na confluência de uma comunidade quadrinística. Sociedades maiores e mais dispersas, como era a sociedade paulista em meados do século passado, apresentam menos intercruzamentos de círculos sociais distintos, na medida em que a sua hiperespecialização do trabalho faz com que os papéis sociais de uma dada pessoa tendam a se divergir mais drasticamente uns dos outros, tornando difícil a constância em vários círculos. O que significa dizer que a cidade grande, de maneira um tanto quanto contraintuitiva, oportuniza o distanciamento, apesar da maior quantidade e diversidade de oportunidades ali presentes. Maurício de Sousa, indo na contramão dessa tendência, firmou-se como elo conector de vários círculos sociais, muitos dos quais interessaram-se, mesmo que pontualmente, pelo mercado das histórias em quadrinhos no Brasil, fato esse que não acredito ser mera coincidência. A cada nova adição (direta ou indireta) aos círculos já estabelecidos, um novo fluxo de possibilidades abria-se à sua frente. Olhando o fluxograma de relações podemos dimensionar o largo escopo de ação dentro do qual Maurício de Sousa atuou e matizar a natureza dessas relações, algo que será esquadrinhado ao longo das próximas páginas.

DOMINÂNCIA PAULISTA

Os deslocamentos de Maurício de Sousa à capital paulista em busca de oportunidades de emprego no ramo quadrinístico pontuam bem um importante elemento da sua trajetória: a cidade de São Paulo. Lugar de convergência de novos empreendimentos, muitos de estirpe estrangeira, São Paulo magnetizou muitos indivíduos com sua paisagem urbana. Maurício de Sousa demarca somente um dos 1.094.741 milhões de indivíduos que migraram para a cidade à procura de trabalho durante os anos 1950 (Brant, 1989Brant, Vinícios Caldeira (org.). (1989). São Paulo: trabalhar e viver. São Paulo: Comissão Justiça e Paz.: 29). Os grandes fluxos migratórios, responsáveis por 73% do crescimento demográfico da cidade (Brant, 1989Brant, Vinícios Caldeira (org.). (1989). São Paulo: trabalhar e viver. São Paulo: Comissão Justiça e Paz.: 29), ampararam as tendências modernizadoras que afetavam o mercado da época, que animaram, de uma forma ou de outra, todos os setores de produção, tendo um especial impacto no setor de serviços. A cidade aumentou sua participação na produção industrial nacional, indo dos 16% do começo do século para 49% na metade do período (Brant, 1989Brant, Vinícios Caldeira (org.). (1989). São Paulo: trabalhar e viver. São Paulo: Comissão Justiça e Paz.: 29), configurando, a partir de então, uma nova ordem espacial nomeadamente urbana bastante sedutora. O crescimento da população, acompanhado por essa ampliação mercadológica, afetou diretamente o setor de atuação de Maurício de Sousa.

Apesar do setor [terciário] crescer sistematicamente no Brasil como um todo, atingindo cerca de 49% da população economicamente ativa em 1985, tanto o estado como a capital de São Paulo têm mantido taxas de participação do terciário em suas economias sempre superiores à média nacional (Brant, 1989Brant, Vinícios Caldeira (org.). (1989). São Paulo: trabalhar e viver. São Paulo: Comissão Justiça e Paz.: 29).

A ampliação da população citadina, assim como a sua internacionalização, serviu como força motriz para inúmeras inovações técnicas da área, engendrando a criação de diversos empreendimentos e parcerias que dinamizaram o mercado competitivo. O encontro dos recém-chegados, seduzidos pelo corrente fervor da cidade, com o quadro de industrialização empresarial paulista marcou o nascimento de uma vasta revitalização da imprensa brasileira, o que fez com que 28,21% da atuação no setor de comunicação pertencesse ao estado de São Paulo até a década de 1970, 37,3% dos quais localizadas estritamente na sua capital. O único outro ramo que superou tamanha presença foi o de administração pública, no qual São Paulo figurou participação de 41,11%. De acordo com Juarez Bahia ( 2009Bahia, Juarez. (2009). Jornal, história e técnica: história da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X (vol. 1). ), esse processo de modernização do setor de comunicações estava em fase de renovação expansiva, que se ajustava ao novo regime de concorrência por meio da adesão com o público e da parceria com anunciantes (Bahia, 2009Bahia, Juarez. (2009). Jornal, história e técnica: história da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X (vol. 1).: 250).

O poderio paulista sob o setor terciário, em especial das áreas administrativa e de comunicação, deu-se, assim, em meio à modernização empresarial, que, a partir da metade do século XX, visava a ampliação do potencial comercial dos jornais e a ampliação de suas bases midiáticas. O modelo administrativo paternalista, cujas raízes republicanas voltavam-se à pregação política, foi assim dando lugar aos conglomerados telecomunicativos, que se envolviam com o rádio e a televisão, além dos próprios jornais, em busca da diversificação de seus conteúdos. Tal modernização, contudo, não assumiu o desmanche das empresas de cunho familiar. Longe disso, o novo apreço pela ética, burocracia e rentabilidade dos jornais não alterou no mínimo os tão tradicionais arranjos familiares que serviam como proprietários dessas empresas. A grande imprensa diária, representada por dois dos maiores jornais de São Paulo ( O Estado de S. Paulo e a Folha de S.Paulo ) e dois grandes jornais do Rio de Janeiro (o Jornal do Brasil e O Globo ) (Bahia, 2009Bahia, Juarez. (2009). Jornal, história e técnica: história da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X (vol. 1).: 262), continuou tendendo ao controle familiar. O que mudou, todavia, foi a forma com que, a partir do pós-guerra, essa imprensa se viu diante de um novo paradigma competitivo.

A questão da modernidade, bastante relevante aqui, se impõe sob as reformas (dentro e fora do setor) sendo realizadas na cidade. Como afirmam Glaucia Villas Bôas ( 1997Villas Bôas, Glaucia. (1997). A recepção da sociologia alemã no Brasil: notas para uma discussão. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, 44, p.73-80. ), tratando da consolidação da disciplina da Sociologia no Brasil, “o transplante de ideias, padrões científicos, hábitos e costumes ‘racionais’ passa a constituir um dos focos polêmicos da atenção dos sociólogos”, entretanto não eram só os sociólogos que “aceitavam este desafio como uma exigência histórica, política e intelectual” e apostavam “na universalidade dos processos de racionalização, industrialização e padronização do mundo, abandonando definitivamente as diferenças culturais, consideradas resquícios de um passado indesejável” (Bôas, 1997Villas Bôas, Glaucia. (1997). A recepção da sociologia alemã no Brasil: notas para uma discussão. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, 44, p.73-80.: 75). Maurício de Sousa e tantos outros quadrinistas também acreditavam numa estruturação similar do meio de produção das histórias em quadrinhos, da criação de leis de reserva de mercado, da regulamentação da categoria, ou da criação de centros de ensino e associações, como veremos. A padronização da produção dos quadrinhos, contudo, não apareceu como processo decisivo, inevitável e arrebatador, pelo contrário, parecia vir como fruto do constante esforço de profissionais como o quadrinista, que, tentados pelo clima geral de mudanças nessa direção, procuravam ativamente inserir-se no grande fluxo de transformações.

Maurício de Sousa, jovem e inexperiente, obteve seu primeiro emprego na cidade de São Paulo em uma das maiores redações do Brasil, a Folha de S.Paulo, nesse momento em amplo crescimento. Em 1958, ano em que Maurício foi empregado pelo Grupo Folha, a sede do jornal já havia sido transferida ao bairro Campos Elíseos, na região central de São Paulo, lugar esse que atraía outras grandes redações ao seu entorno, uma delas pertencente ao O Estado de S. Paulo . Parcialmente instigadas pelo boom imobiliário, a região central da cidade logo tornou-se o local onde funcionavam os principais jornais da cidade, cimentando-se também como um território importante para Maurício.

O estúdio de criação fundado por Maurício em 1961, Bidulândia Serviços de Imprensa 11 11 Gonçalo Junior ( 2004: 377-378) descreve esse momento da seguinte maneira: “Não só Ziraldo como todos os artistas que lutaram pela Lei de Cotas passaram a ser vistos como suspeitos de comunismo e subversão. Muitos ficaram afastados do mercado de quadrinhos por longos anos e até mudaram de profissão por absoluta falta de trabalho. Outros sobreviveram com dificuldade como colaboradores das pequenas editoras de São Paulo e com colaborações avulsas em livros didáticos e agências de publicidade. Júlio Shimamoto e Flávio Colin, por exemplo, só voltariam a fazer quadrinhos doze anos depois. Nesse meio-tempo, sobreviveram na publicidade. O medo de serem presos e de terem seus direitos políticos cassados diante o expurgo que marcou os primeiros meses do Golpe de 1964 levou muitos artistas ao pânico. A repressão deixaria sequelas em nomes como Maurício de Sousa, cuja competência empresarial e talento criativo começaram a projetá-lo, no final da década, quando lançou pela Abril a revista Turma da Mônica. Maurício, que presidira a ADESP durante a luta pela reserva de mercado, tornou-se o membro mais visado da entidade. Durante o regime militar, temeroso, ele passou a medir todas as 54 palavras que pronunciava sobre seu envolvimento com a associação de desenhistas. Temia que a referência à sua participação no movimento de nacionalização levasse os militares a considerá-lo comunista. Esse cuidado acabaria por levá-lo a demonstrar publicamente um juízo a respeito dos companheiros. Ao fazer uma revisão de seu papel, procurou inicialmente amenizar sua importância na campanha. Numa das poucas vezes em que falou sobre o assunto, disse que se decepcionou com os colegas porque havia interesse político-partidário por trás da campanha pela reserva de mercado, entre 1961 e 1964. Afirmou que havia sido um dos criadores da ADESP, mas que, contra sua vontade, a entidade ganhara”cores políticas um pouco radicais”, o que teria provocado sua saída da associação. Contemporâneos de Maurício no movimento, como Ziraldo e Shimamoto, discordam de que as associações de São Paulo e do Rio de Janeiro tivessem propósitos políticos que não os de realmente profissionalizar e nacionalizar a produção de quadrinhos no Brasil. Ziraldo reconheceu que ele próprio, o desenhista José Geraldo e alguns outros membros tinham suas preferências políticas de esquerda, como era comum naqueles tempos de polarização ideológica, mas insistiu que as reuniões em defesa da lei não tinham propósitos nesse sentido”. esteve, em um primeiro momento, localizado na cidade de Mogi das Cruzes, onde o quadrinista reunia sua equipe de criação (que incluía roteiristas, desenhistas, arte-finalistas, coloristas e letristas) enquanto dedicava-se majoritariamente à parte administrativa e empresarial do trabalho, indo negociar com editoras, redações, possíveis parceiras comerciais etc. (Sousa, 2013Sousa, Maurício de. (2013). Depoimento. [Entrevista concedida à revista Zupi], São Paulo, 8/37, p.11-20. ). O deslocamento de uma cidade à outra, contudo, não durou muito tempo. Logo o estúdio foi transferido para o Campos Elíseos, tendo ainda, dois anos depois, mudado para um andar no edifício do jornal Notícias Populares , propriedade do Grupo Folha. Mesmo com uma mudança significativa em seus anos iniciais trabalhando para o jornal Folha de S.Paulo , Maurício logo pôde montar seu estúdio no centro comercial de São Paulo, onde se beneficiou de uma imediação repleta de iniciativas da comunidade jornalística. Ainda, nos entremeios da rua Helvétia — sede da Maurício de Sousa Produções —, da rua Major Quedinho, número 28 — sede de O Estado de S. Paulo —, e da alameda Barão de Limeira, número 425 — sede da Folha de S.Paulo — estava a sede da Associação dos Desenhistas do Estado de São Paulo (ADESP), localizada no edifício Martinelli, na rua São Bento, número 405. Localizado, portanto, em um ponto de convergência para os que ambicionavam, como ele, um futuro profissional na imprensa paulista, seja como jornalista, quadrinista ou empresário.

Maurício de Sousa em muito foi subvencionado pelo momento e pelo espaço no qual se encontrava no início de sua carreira. São Paulo foi um importante ambiente de formação para uma comunidade voltada à profissionalização do mercado quadrinístico. Não à toa, analisando o fluxograma de relações apresentado anteriormente é possível identificar somente dois círculos de fora da cidade, o de quadrinistas cariocas, muitos dos quais eram membros da Associação Brasileira de Desenho (ABD), na qual estão listados Ziraldo, Júlio Shimamoto, Jorge Kato, Nico e Luís Rosso, e Gedeone Malagola; e o círculo de quadrinistas norte-americanos, alguns dos quais vieram ao Brasil para o 1º Congresso Internacional de Histórias em Quadrinhos, em 1970, outros que compareceram ao American International Congress of Comics, de 1972, em Nova York, onde estão Stan Lee, Hugo Pratt, Will Eisner, Hergé e Brant Parker.

O êxito dos quadrinhos estrangeiros no mercado editorial brasileiro sobrepujou as acanhadas tentativas locais de participar criativamente deste, principalmente a partir da década de 1920, momento em que a importação cultural alcançou novas escalas por meio do cinema. Os grandes beneficiários da exploração cinematográfica dos quadrinhos foram os personagens da Disney, em particular o Pato Donald . Como bem colocou Álvaro de Moya:

A atividade da Disney não se circunscreve às revistinhas, mas às tiras diárias dos jornais, aos suplementos coloridos dos jornais de domingo, dos filmes de animação de longa e curta metragens, dos filmes com personagens “vivos”, dos filmes curtos “educativos”, dos documentários de longa metragem para o cinema, dos programas semanais de televisão, dos áudios-visuais, discos, vendas de “originais”, merchandise, e os parques de diversões que obtiveram um levantamento econômico por Wilson Velloso na extinta revista PN. Foi divulgado recentemente que depois da morte de Walt Disney, em 1966, o faturamento havia crescido de 116 milhões de dólares para 329 milhões, e os lucros de 12 milhões passaram a 40 milhões de dólares. (Moya, 2001Moya, Álvaro de. (2001). Anos 50: São Paulo 1951/2001: edição comemorativa da primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Opera Graphica. apud Dorfman & Mattelart; 2010Dorfman, Ariel & Mattelart, Armand. (2010 [1975]). Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo. São Paulo: Paz e Terra. [1975]: 8-9)

A concorrência competitiva e pouco harmônica mercadológica com obras desse tipo levou à criação de mecanismos de legitimação dos círculos locais. Esses “movimentos sindicais embrionários” (Junior, 2004Júnior, Gonçalo. (2004). A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras.: 176) serviram como congregadores de pessoas interessadas em compor uma comunidade voltada à produção de quadrinhos no Brasil. O estado de São Paulo, com a ADESP — fundada em 1953 12 12 Curiosamente, ao mesmo tempo em que é esse olhar arrebatador e promissor direcionado ao futuro que traz Maurício de Sousa à cidade de São Paulo, é no olhar nostálgico e romântico direcionado ao passado que ele constrói seu projeto narrativo, alimentando-se de dualismos — cidade versus campo, local versus estrangeiro, moderno versos tradicional, passado versus futuro — para contrapor-se, ao menos nas páginas de seus quadrinhos, à intensa inconstância e contradição dos novos tempos, dos quais o próprio Maurício de Sousa servia como arauto. —, o Rio de Janeiro, com a ABD — fundada em 1947 —, e o Rio Grande do Sul, com a Cooperativa Editora e de Trabalho de Porto Alegre (CETPA) — fundada em 1961 —, abrigaram algumas das mais significativas iniciativas no campo artístico das histórias em quadrinhos, surgidas de um posicionamento crítico à entrada desmedida das histórias em quadrinhos norte-americanas no mercado brasileiro. Em termos práticos, a luta pela institucionalização profissional, assim como por uma legislação regulatória 13 13 Entre os anos de 1961 e 1964, o seu trabalho de criação foi feito dentro de um pequeno estúdio em Mogi das Cruzes, Bidulândia Serviços de Imprensa, que, com a expansão do universo quadrinístico de Maurício de Sousa, não deu conta do crescente fluxo na produção (Ribeiro et al., 2007 ). Em 1966, então, foi criado outro estúdio na capital paulista, dentro de uma sala no prédio da Folha de S.Paulo, chamado Maurício de Sousa Produções, que objetivava seguir os moldes de produção dos sindicatos de distribuição norte-americanos, criando histórias em massa que se adequariam a diferentes tipos de jornais (Sousa, 2013: 18). , fizeram parte da pauta de algumas dessas organizações, que também serviram como redes de sociabilidades importantes (Gomes, 2016aGomes, Ivan Lima. (2016). Os sentidos dos quadrinhos em contexto nacional-popular (Brasil e Chile, anos 1960 e 1970). Tese de Doutorado em História Social. PPGH/Universidade Federal Fluminense.: 64). A ADESP fazia reuniões periódicas no edifício Martinelli para seus sócios, dos quais uma taxa de manutenção era cobrada para que “ações em defesa da bandeira da nacionalização, tais como a inserção na imprensa e em programas de TV e o pagamento de viagens aéreas para a divulgação da causa da associação, além da manutenção da própria sede” (Gomes, 2015: 120) fossem realizadas. Administrada por “estudantes, homens públicos e parte da imprensa, rádio e televisão” (Desenhistas…, 1961Desenhistas lutam pelas historietas. (1961). Última Hora, p. 2, 14 jul. ), a organização propulsionou-se publicamente por meio da figura de seu presidente, Maurício de Sousa, que, “por ser considerado um nome bem articulado entre artistas e a imprensa, foi eleito presidente da ADESP e liderou o grupo de desenhistas paulistas em intervenções na imprensa e na TV, logo sinalizando para a importância de ‘concatenar uma ofensiva conjunta — São Paulo-Guanabara — contra a influência ideológica e a deformação da mentalidade infantil’”. Bem articulada com sua contraparte carioca, a ADESP teve uma de suas visitas ao Rio de Janeiro registradas pelo jornal Última Hora , na qual o encontro de Maurício de Sousa com José Geraldo Barreto promoveu um cartum em apoio ao que foi chamado de “Operação Quadrinhos”, referente à negociação, então em curso, de uma lei de reservas com Jânio Quadros, consubstanciada no Decreto-lei nº 52.497/1963 (Kulitz, 2019Kulitz, Layssa Bauer von. (2019). A disputa sobre os quadrinhos: infância, arte e censura na imprensa brasileira. Teoria e Cultura, v. 14, p. 52-69. ).

Presente no lugar que oportunizou o nascente movimento em favor de uma comunidade quadrinística brasileira, Maurício de Sousa foi favorecido pela posição de dominância da cidade de São Paulo no setor de comunicações e no meio empresarial como um todo (Bowness, 2011Bowness, Alan. (2011 [1989]). Les Conditions du succès: comment l’artiste moderne devient-il célèbre? Paris: Allas. [1989]). O deslocamento de sua cidade natal, Mogi das Cruzes, ao centro de São Paulo dotou Maurício de Sousa de experiências muito enriquecedoras ligadas ao mundo dos negócios e das artes. O acelerado crescimento industrial da imprensa paulista, cujo locus central era o bairro Campos Elíseos, circunscreveu os desenvolvimentos relacionados às histórias em quadrinhos, em que a ideia de progresso, tão cara à visão moderna, energizou o emaranhado de círculos ali presentes, interessados em usar esse novo espírito transformador em favor da consolidação do meio criativo dos quadrinhos. Seduzidos pela promessa da cidade moderna, eram artistas como Maurício de Sousa que se empenhavam em modernizá-la.

LABIRINTOS SOCIAIS

Além da mobilização em favor de medidas legislativas mais restritivas para os quadrinhos estrangeiros, tais organizações, em especial a ADESP, impulsionavam uma defesa pública do valor artístico e educacional dos quadrinhos. A intensificação de debates acerca dos malefícios trazidos pela leitura de quadrinhos, iniciados no final dos anos 1940, propulsionou a criação de círculos voltados à criação de um lugar de prestígio para o gênero no Brasil. Alimentados pela veiculação de um crescente número de publicações voltadas à desclassificação do gênero quadrinístico, esses grupos tentavam pensar as histórias em quadrinhos dentro do domínio da arte (Kulitz, 2019Kulitz, Layssa Bauer von. (2019). A disputa sobre os quadrinhos: infância, arte e censura na imprensa brasileira. Teoria e Cultura, v. 14, p. 52-69. ). A I Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos, inaugurada em 18 de junho de 1951 no Centro Cultura e Progresso, em São Paulo, foi pioneira em sua tentativa de promover os quadrinhos à sua condição de arte, engendrando um vigoroso debate expendido nos jornais e revistas da época acerca do papel formador desse gênero. O pequeno grupo paulista composto por Miguel Penteado, Jayme Cortez, Álvaro de Moya, Syllas Roberg e Reinaldo de Oliveira tomou para si a luta de “convencer a imprensa paulistana a cobrir uma exposição sobre quadrinhos e lhes dar tratamento de ‘arte’” (Júnior, 2004Júnior, Gonçalo. (2004). A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras.: 176) a fim de combater sua constante condenação pública. Esse foi o grupo que ajudou a fundar a ADESP.

O crescente interesse pelas histórias em quadrinhos, surgido das redações de jornais, estações de rádio e estúdios de televisão, esferas intimamente interconectadas nesse momento de ampliação do setor comunicativo, urdiu teias de compartilhamento caras à vivência artística de Maurício de Sousa. A começar por seus colegas, que, imbuídos da vontade de (a)firmar artisticamente a produção brasileira de quadrinhos, estiveram à frente de uma mobilização em favor desse gênero, temos o seu núcleo mais notável, composto por personalidades já mencionadas aqui, como Jayme Cortez, Miguel Penteado, Álvaro de Moya e Syllas Roberg, que, por meio I Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos, foram capazes de instituir uma espécie de trincheira para a comunidade quadrinística paulista, desgastada pelas condições de trabalho oferecidas pelas editoras, como bem denota Gonçalo Junior:

Tanto em São Paulo quanto no Rio, crescia a insatisfação por parte dos desenhistas e roteiristas, que não tinham respeitados alguns direitos trabalhistas elementares, como carteira assinada, por exemplo. Todos trabalhavam como colaboradores e recebiam de acordo com a produção do mês. Nem mesmo a pressão da ADESP e ABD produziu efeito. Apesar da postura mais sindical das associações na defesa dos interesses dos artistas, a mobilização não mostrou força suficiente para que as reivindicações fossem atendidas. As editoras, claro, insistiam em não ceder às exigências individuais dos desenhistas, e os atritos se tornaram cada vez mais frequentes. Por causa da política de preços baixos, as relações da La Selva, por exemplo, com os artistas nunca chegaram a ser muito saudáveis, apesar das famosas macarronadas de fim de semana, que continuavam a ser servidas pela família e seus funcionários (Júnior, 2004Júnior, Gonçalo. (2004). A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras.: 313).

Tendo fundado a ADESP alguns anos após a exposição, o grupo colaborou no capitaneamento de empreendimentos editoriais em favor da maior visibilidade de produções locais, como foram os casos das editoras La Selva, Continental e Cruzeiro (Júnior, 2004Júnior, Gonçalo. (2004). A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras. ; Moya, 2001Moya, Álvaro de. (2001). Anos 50: São Paulo 1951/2001: edição comemorativa da primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Opera Graphica. ). O caso da editora Continental é especialmente interessante aqui, pois foi ela a responsável pela publicação das revistas do Bidu 14 14 Os autores Ivan Lima Gomes e Gonçalo Júnior reportaram cronologias distintas referentes ao tempo de atuação da ADESP. Gonçalo Júnior afirmou que a organização foi criada no ano de 1953 e dissolvida em 1964, denotando o Golpe Civil-Militar como um grande contribuidor para a sua desagregação (Junior, 2004 , p.377). Diferentemente, Ivan Lima Gomes, a partir de entrevistas com antigos membros da organização, nomeadamente Júlio Shimamoto, reporta que o término de suas atividades é incerto, dissolvendo em fins de 1961 (Gomes, 2015: 119). , primeira grande oportunidade editorial de Maurício de Sousa. A primeira capa de Bidu apresenta uma vibrante disposição de cores e a combinação de traços arredondados, finos e grossos, um descomplicado retrato de um bairro rural qualquer, sem referências óbvias à geografia ou mesmo à nacionalidade. Maurício ali dispôs um convite a um quadrinho menos interessado na apreciação da cultura brasileira do que sua contraparte, o Pererê .

A primeira capa da revista em quadrinhos de Ziraldo, Pererê , publicada em 1960, demarca bem um projeto estético outro: com cores igualmente vibrantes e contrastantes, a capa apresentava em seu primeiro plano o protagonista, Pererê, delineado de forma arredondada e simples, e em segundo plano suas malas de viagem, cheias de adesivos multicoloridos. De Pelotas a Macapá, os adesivos mapeiam o território nacional, convidando os leitores a visitarem o Brasil junto a ele. A simplicidade romântica dessa primeira capa, preocupada com a representação da geografia e do folclore brasileiros, alude à preocupação ideológica que dialoga “simbolicamente com valores e noções caros ao imaginário social das esquerdas da época, ao apresentar leitura própria da realidade brasileira a partir de temas como nação, cultura popular, folclore e infância” (Gomes, 2010Gomes, Ivan Lima. (2010). O Brasil imaginado em quadrinhos na revista Pererê (1960-1964). Dissertação de Mestrado em História Social. PPGHS/IFCS/Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 6). A editora Continental, como já foi mencionado, nasceu da comunidade quadrinística paulista engendrada pela I Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos, ajuntando ainda mais profissionais do meio, conseguindo reunir em pouco tempo “aproximadamente cinquenta profissionais, entre roteiristas, letristas, desenhistas e capistas. Entre eles, destacaram-se artistas estrangeiros que migraram para o país” (Júnior, 2004Júnior, Gonçalo. (2004). A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras.: 314).

Um curioso paralelo pode ser feito a partir da conflagração desses dois projetos. Ziraldo e Maurício de Sousa compartilham pontos em comum em suas vidas profissionais, nenhum dos quais os equipara, mas os aproxima e os distancia dependendo do ângulo. Ambos iniciaram suas carreiras no início dos anos 1960, Ziraldo publicando o Pererê pela editora Cruzeiro e Maurício publicando suas tirinhas na Folha de S.Paulo . Enquanto devotaram-se à criação de quadrinhos direcionados ao público infantil, ambos quadrinistas participaram de associações sindicais locais, Ziraldo na ABD e Maurício na ADESP. As vidas profissionais de Maurício e Ziraldo, apesar de semelhantes em vários sentidos, diferem enormemente em termos artísticos, dado que Ziraldo e Maurício encabeçaram projetos estéticos bastante diferentes um do outro.

Os anos iniciais da ditadura militar circunscreveram um momento de intensa efervescência artística, cuja “cisão fáustica entre desenvolver sua ocupação específica ou participar do processo de transformação social mais amplo” (Ridenti, 2007Antunes, Ricardo & Ridenti, Marcelo. (2007). Operários e estudantes contra a Ditadura: 1968 no Brasil. Mediações, 12/2, p. 78-89.: 186) permeou a trajetória de ambos os artistas. As novas restrições traçadas pela censura militar ao mercado editorial tornavam esse dilema ainda mais premente a tipos como Maurício de Sousa e Ziraldo, que até o Golpe Civil-Militar integravam associações amadoras cuja luta pela nacionalização do mercado de quadrinhos os aproximaram da cena sindical da época, principalmente Ziraldo, que encarnou no Pererê uma luta ideológica por um nacionalismo tipicamente de esquerda. A cisão denotada aqui tornou-se ainda mais evidente após o cancelamento da revista em quadrinhos deste artista, momento a partir do qual o quadrinista passou a atuar em publicações alternativas, atendendo a leitores mais maduros e politizados. Maurício de Sousa, por outro lado, distanciou-se desse tipo de engajamento.

Analogamente ao universalismo concretista 15 15 O Decreto-lei nº 52-497/1963, referente à Lei de Reserva de Mercado, foi uma exigência movimentada pela ADESP e pela ABD, que previa cotas para histórias em quadrinhos nacionais em jornais brasileiros. As cotas seriam de 30% a partir de 1964, 60% em 1965 e 90% em 1966. Com o Golpe Civil-Militar, o Decreto-lei, previamente aprovado pelo presidente João Goulart, foi enterrado. , seguidor de uma estética abstrata quase ecumênica — irrestrita a um estilo nacional —, Maurício de Sousa se alicerceou em estilos estéticos outros, os quais seguiam uma lógica visual bastante estandardizada, uniformizando seu traço e, com a ajuda de sua equipe, tornando seus personagens cada vez mais nivelados, passando de desenhos mais detalhados e caóticos a desenhos mais simples e genéricos. Somando-se ao anunciado investimento na homogeneidade visual, Maurício mirou também num pretenso conteúdo universalista. O tratamento clichê dado por meio da imersão na rotina de seus personagens tipificou as experiências vividas no quadrinho da Mônica e sua turma , tornando-as, mais do que qualquer coisa, um símbolo da infância, e, nesse sentido, uma representação icônica do real.

Entretanto, o diálogo com a pintura moderna, sobretudo com a pintura concreta, por mais que enriqueça a reflexão acerca desses antagonismos artísticos, profundamente enraizados em proposições político-ideológicas, não diz muito sobre a natureza cotidiana dos quadrinhos. A arte concreta não se dispõe a discutir diretamente com o cotidiano, ela não burila suas dores e contradições, muito menos dialoga com as resoluções nascidas delas, ao passo que os quadrinhos, enquanto formas artísticas inalienavelmente ligadas à imprensa diária, se contrapõem a esse silêncio abstracionista, vocalizando o cotidiano de forma sui generis.

O universalismo concreto e o universalismo quadrinístico de Maurício de Sousa não são o mesmo. Um busca representações de formas objetivas a partir do entendimento universalista da capacidade humana, e o outro busca representações de experiências objetivas comuns, por meio das quais constrói um entendimento universalista da infância. Ainda, o universalismo concretista surge mais como uma resposta às práticas academicistas do que como uma reação a influências artísticas internacionais (Bôas, 2008Villas Bôas, Glaucia. (2008). A estética da conversão: O ateliê do Engenho de Dentro e a arte concreta carioca (1946-1951). Tempo Social, 20/2, p. 197-219.: 198), ao contrário do universalismo quadrinístico de Maurício, surgido diretamente dos estímulos das obras norte-americanas.

Em meio ao grupo de profissionais da editora Continental, Maurício de Sousa conheceu figuras importantes para a sua própria produção artística, dentre eles Paulo Hamassaki, que assumiria a direção de arte da Maurício de Sousa Produções; Waldir Igayara de Souza, seu futuro editor e roteirista na editora Abril; e, ainda, Claudio Souza, futuro diretor do setor de quadrinhos da editora Abril. A editora Continental, com a ADESP e a ABD, foi o berço de parcerias significativas e longevas no meio dos quadrinhos, tendo especial significância na geração de um coletivo de profissionais que frequentava as mesmas redações de jornal, os mesmos escritórios editoriais e, por vezes, os mesmos estúdios de criação. A fotografia de Maurício de Sousa, Paulo Hamassaki, Júlio Shimamoto e Lygio Aragão Dias no escritório da Folha de S.Paulo retrata bem a convergência de pessoas da comunidade quadrinística em determinados espaços. Logo após ter assinado um contrato com a Folha de S.Paulo para a publicação dominical de seu quadrinho O Gaúcho , Júlio Shimamoto foi fotografado conversando com Maurício, Paulo e Lygio, cujos estúdios também ficavam na sede da Folha de S.Paulo.

Referente a esses círculos, contudo, Álvaro de Moya merece destaque. Parte de círculos televisivos vanguardistas emergidos dos tradicionais arranjos radiofônicos, Moya iniciou seu trabalho na TV Tupi por meio de Walter George Durst, crítico de cinema da Rádio Tupi que entre 1952 e 1953 fez parte da migração de profissionais dela para a recém-inaugurada TV Tupi. Com Demerval Costa Lima, Sarita Campos, Yara Lins, Wálter Forster, Hebe Camargo, Antonino Seabra e, claro, Walter George Durst, Álvaro de Moya compôs o nascente círculo de profissionais da área televisiva, ainda restrita ao Rio de Janeiro e a São Paulo. Sua atuação variada tornou-o uma figura central, com vínculos importantes no setor de telecomunicações, o que possivelmente facilitou a migração de Maurício de Sousa à televisão, em sua visita ao programa Hebe Comanda o Espetáculo , em 1965 16 16 Compilando histórias inéditas e histórias já veiculadas pela Folha da Manhã , em que as tirinhas de Bidu e Franjinha foram originalmente publicadas a partir de dezembro de 1959, as revistas de Bidu adotaram o formato de 21 × 28 cm, acomodando tirinhas e histórias maiores, geralmente de 2 ou 3 páginas. .

Claro que não basta nos retermos em como os círculos sociais são basilares para a circulação de Maurício de Sousa no meio editorial. A metáfora dos círculos sociais refere-se a uma esfera de atividade intersubjetiva compartilhada, concernente tanto a interações profissionais, familiares, de amizade e mesmo românticas, que, por meio do entrelaçamento de indivíduos, constitui-os em sua autodeterminação. A rotinização das formas de relacionamento correntes numa comunidade, claro, assumindo a sua mutabilidade, interessa para a compreensão da sociação 17 17 Similarmente, no mundo das artes plásticas, enquanto o programa estético da primeira metade do século XX ambicionava representar a nação brasileira, dando-a um rosto e, quem sabe, uma história, o final da Segunda Guerra Mundial radicalizou o perfil realista do modernismo, trazendo a reboque de toda sua angústia e comoção um enérgico ímpeto pela experimentação estética, em que cores vibrantes e formas sólidas passaram a fazer parte de um repertório imagético pouco estimulado pela reprodução mimética do mundo. Como afirma Glaucia Villas Bôas, tal mudança programática, responsável pelo surgimento do entusiasmo concretista, teve menos a ver com as influências da vanguarda internacional na prática artística brasileira e mais a ver com a sua oposição ao academicismo e ao modernismo figurativo (Bôas, 2008: 198). A transformação de artistas plásticos figurativos, preocupados em retratar a realidade ao seu redor, em artistas concretos, mais interessados em explorar maneiras diferentes de se fazer arte a partir da abstração de formas privilegiadas, fez nascer novos modos de se retratar a vida. daí gerada. Maurício de Sousa realizou-se profissionalmente como um indivíduo expandido, no sentido de que o quadrinista se lançou a novos ambientes com maior facilidade graças ao alcance concedido a ele por seus colegas, com os quais a convivência frequente ajudou no firmamento de uma comunidade quadrinística potencializadora bastante relevante.

A circulação de Maurício de Sousa pelo panorama editorial, oportunizado pela proximidade das redações, estúdios e escritórios no centro de São Paulo, espelhava-se na mobilidade própria às práticas presidenciais da ADESP, associação em constante contato com a ABD, no Rio de Janeiro, sem mencionar o próprio governo federal (Ingold, 2012: 46), principal mediador de negociações no setor editorial. Assim como muitos de seus colegas do meio, Maurício acostumou-se a frequentar esses espaços profissionais, como bem exemplifica Mino Carta, então diretor de redação do Jornal da Tarde , onde o artista passou a publicar sua obra Nico Demo a partir de 1966: “quando eu fiz o convite [a Maurício de Sousa] eu já o conhecia sim. Porque eu, antes de ir para o Jornal da Tarde, fui o primeiro diretor de redação da revista Quatro Rodas [da editora Abril]. Ele andava muito pela editora Abril” (Carta, 2015Carta, Mino. (2015). Entrevista com Mino Carta. [Entrevista cedida à Layssa Bauer von Kulitz]. São Paulo. Ainda não publicada. ). Curiosamente, Luís Carta, irmão de Mino, tomou o posto de diretor editorial da editora Abril em 1959 e, com Victor Civita, fundador da editora, e Cláudio Souza, futuro diretor do setor de quadrinhos e roteirista da editora Continental, ajudou a direcionar alguns quadrinistas, desenhistas, roteiristas e capistas à nascente editora Abril, onde Maurício de Sousa assinaria um contrato em 1970 18 18 Conforme as obras de Maurício de Sousa foram ganhando popularidade sua presença foi também transpassando os limites da mídia impressa. Já em 1965, Maurício vai ao programa da Hebe Camargo, chamado Hebe Comanda o Espetáculo , e lá, sentado no sofá do set ao lado de sua filha Mônica, que segurava um coelho de pelúcia — que pelo, que tudo indica, devia ser azul —, o quadrinista aparece à frente de um enorme banner de Cebolinha, ilustrando sua posição dupla ao público, de artista e pai. Sua aparição em uma entrevista com Hebe, uma das, se não a maior, apresentadora televisiva da época, firmou Maurício publicamente como um exemplo de sucesso no meio quadrinístico. . Os constantes encontros e apresentações desses diferentes e inter-relacionais círculos de conhecidos acarretavam uma emaranhada trama de relações, em que indivíduos davam espaço a instituições e instituições davam espaço a indivíduos.

Em meados dos anos 1960, Maurício de Sousa já havia conquistado diversos espaços de publicação, atuando regularmente em O Estado de S. Paulo ( Nico Demo ), na Folha de S.Paulo ( Bidu & Franjinha , Cebolinha , Raposão , Piteco e Penadinho ) e no Diário de S. Paulo ( Astronauta , Chico Bento , Hiro e Zé da Roça ). O quadrinista havia também publicado na revista Zaz Traz e seus gibis do Bidu na editora Continental, e, ainda, em 1965 a editora FTD lançou três livros ilustrados por ele, tudo por conta de um amigo “chamado Moacir, que morava em Mogi das Cruzes e era advogado da FTD” (Sousa, 2015aSousa, Maurício de. (2015a). Bidu e Zaz Traz!: coleção histórica Maurício. São Paulo: Panini.: 199), que havia o apresentado à editora. Sua trajetória dentro do meio editorial já havia lhe rendido numerosas oportunidades de veicular suas próprias criações, engenhosamente interconectadas umas com as outras, encaminhando-o para um crescente reconhecimento público.

A razão pela qual Maurício de Sousa foi capaz de valer-se de tantas aberturas foi, sem dúvidas, seu estúdio. A Maurício de Sousa Produções, com seu esquema de produção setorizada, serviu como uma grande distribuidora de quadrinhos, alcançando 300 jornais no país (Sousa, 2013Sousa, Maurício de. (2013). Depoimento. [Entrevista concedida à revista Zupi], São Paulo, 8/37, p.11-20.: 20). Recrutando uma ampla gama de profissionais dos quadrinhos (desenhistas, coloristas, letristas, roteiristas, arte-finalistas, entre outros), Maurício, beneficiando-se de seu amplo alcance na comunidade quadrinística, contratava conhecidos, amigos e até recém-chegados no meio editorial, faziam as editoras da época, e, como elas, o seu estúdio recebeu muita resistência dos demais artistas, críticos não só da instabilidade empregatícia promovida pelas colaborações ocasionais desses artistas, mas também da própria autoria artística dos quadrinhos, produzido a muitas mãos e, portanto, mais produto do que arte.

As teias de compartilhamento presentes na trajetória artística de Maurício de Sousa são interessantes de serem pensadas como labirintos:

em meio ao labirinto, não me parece apropriado falar em estruturas, pois que o labirinto é de fato sem forma, ou tem todas as formas, e não aceita uma estrutura que, de algum modo, qualquer que seja ele, o enquadrasse. […] Buscando interações, de uma a outra, desta outra a uma próxima e assim infinitamente, delineando a cada momento um desenho que pede para ser investigado, mas que no momento seguinte já se desfez em uma nova configuração (Waizbort, 2000Waizbort, Leopoldo. (2000). O indivíduo como ponto de cruzamento dos círculos sociais. In: As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, p. 489-504.: 489).

Da mesma maneira, puxar os fios do todo tecido por Maurício de Sousa vivifica certos instantes de seu passado. O cruzamento das configurações móveis das relações sociais mantidas nesse momento de sua vida, nos anos 1960 e 1970, potencializa o nosso entendimento da sua trajetória, já que é a partir da sua circulação entre os círculos sociais dispostos a ele nesses anos que Maurício de Sousa tem sua individualidade garantida (Simmel apud Waizbort, 2000Waizbort, Leopoldo. (2000). O indivíduo como ponto de cruzamento dos círculos sociais. In: As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, p. 489-504.: 489). A procura pelo esclarecimento de um mito de origem, enraizado por certezas de genialidade e capacidade pura, finda-se com a figura do indivíduo que se construiu, tanto quanto foi construído, pela (con)vivência da qual fez parte. É no labirinto que os encontros de Maurício revelam os seus caminhos e é na teia fornecida pela tessitura dessas conexões que esses caminhos fazem sentido.

A coletividade é natural à criação artística, até mesmo essencial. Mesmo a criação quadrinística, bastante diferenciável de outras formas de criação artística, propela-se por meio de seus emaranhados de relações. O cruzamento dessas relações vivifica a trajetória de Maurício de Sousa, mais que em outros campos artísticos, servindo como porta de entrada para a sua experiência como quadrinista paulista recém-chegado ao mercado editorial. O fluxograma dos círculos sociais de Maurício de Sousa presente aqui tenta urdir as teias de relações do quadrinista de modo a dispor visualmente, mesmo que de maneira incompleta, as complexas e volúveis conexões que dão sentido e direção às suas experiências profissionais. Seus encontros cada vez mais frequentes com os membros da ADESP, e posteriormente com a ABD, e sua familiaridade com os funcionários das redações de jornal onde trabalhava, consolidaram-no numa comunidade quadrinística nascente, cujas resoluções subvencionaram seus projetos profissionais.

WALT DISNEY À BRASILEIRA

Em 1979, após duas décadas de atuação no mercado editorial de histórias em quadrinhos, Maurício de Sousa realizou no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) sua primeira exposição, organizada em comemoração ao dia das crianças e ao Ano Internacional da Criança, elegido pela Assembleia Geral das Nações Unidas como marco do vigésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959. A exposição, chamada Mônica no MASP , demarcou, de certa forma, a consolidação comercial de Maurício de Sousa no imaginário brasileiro, expondo estátuas, bonecos, lancheiras e discos com um estúdio de criação operando ao vivo na sala de exposição. Curiosamente, o poderio artístico disposto ali deixou em segundo plano os originais das tirinhas e revistas em quadrinhos de Maurício. Não fica claro nos comunicados de imprensa e reportagens informativas a respeito do evento quantos, ou mesmo como “os originais” presentes ali foram expostos. O sucesso da exposição, bem divulgada e comentada pela imprensa diária, serve para demarcar a relevância cultural daquele universo quadrinístico, independente, naquele ponto, das tirinhas e revistas em quadrinhos que lhe deram origem. Desde o lançamento de uma linha de bonecos de vinil em 1965, em parceria com a Trol, Maurício de Sousa passou a diversificar cada vez mais sua produção, explorando as possibilidades comerciais de licenciamento nas áreas da animação cinematográfica, do teatro, da produção musical, de parques temáticos e diversas outras. Enquanto a conquista de uma base de leitores foi essencial durante os anos de publicação de suas tiras de jornal, a comercialização de produtos com o rosto de seus personagens deu-lhe novo alcance. O valor simbólico de seus personagens, tão indicativos do seu poderio criativo, embebeu-se da comoção com o desenvolvimento econômico do país. A popularização das imagens do universo quadrinístico de Maurício de Sousa engendrou um largo reconhecimento da sua competência empresarial por parte do público geral, que, combinada ao milagre econômico, reforçava o crescente otimismo com o futuro financeiro do país. O alargamento das suas bases mercadológicas, somado ao fato de que, desde sua assinatura com a editora Abril, em 1970, o quadrinista foi capaz de se estabelecer como verdadeiro adversário comercial dos comics norte-americanos, Maurício de Sousa passou a ser conhecido como “o Walt Disney brasileiro” por outros profissionais do meio (Hamassaki, 2011 Hamasaki, Paulo. (2011). Entrevista com Paulo Hamasaki, o homem que conviveu com Maurício de Sousa e sabe tudo sobre a trajetória profissional dele! [Entrevista concedida a] Tony Fernandes. Pegasus, São Paulo, 25 dez. 2011. Disponível em http://tonyfernandespegasus.blogspot.com/2011/09/entrevista-com-paulo-hamasaki-o-homem.html . Acesso em 24 jan. 2024.
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).

A ideia do reconhecimento é transversal à trajetória de Maurício de Sousa, não por que ele alcançou um sucesso comercial nunca antes visto no mercado editorial nacional, mas por que ele foi se construindo socialmente como um arquétipo do self-made man brasileiro. E, nesse sentido, a figura do self-made man de Maurício aproxima-se da figura do great man de Wagner ( 2011Wagner, Roy. (2011 [1991]). A pessoa fractal. Ponto Urbe, 8. ). Ao contrário do que faz o big man , “um imperador do atrito social que usa a sociedade contra ela mesma para restaurar o indivíduo essencial ao ápice” (Wagner, 2011Wagner, Roy. (2011 [1991]). A pessoa fractal. Ponto Urbe, 8. [1991]: 3), o great man não é utilitarista, ele não se vale do atrito social para conquistar e manter sua posição, pois ele é um ser cultural que trabalha em prol da cultura da qual faz parte de forma fractal. Maurício de Sousa empreendeu criativamente os seus projetos artísticos almejando a criação de algo novo e apreciado (Towse & Blag, 2011Towse, Ruth & Blaug, Mark. (2011). Cultural Entrepreneurship. In: Towse, Ruth (ed.). A Handbook of Cultural Economics. Northampton: Edward Elgar.: 154), algo coletivo, comunal, o que fez com que ele procurasse se inserir, da melhor maneira possível, no meio dos quadrinhos, seja por parte dos debates reivindicatórios da ADESP, seja trabalhando diretamente para a Folha de S.Paulo como repórter policial, seja criando sua distribuidora e implantando seu esquema de distribuição, seja institucionalizando a prática do licenciamento como principal fonte de rendimentos, seja assinando contrato com a editora Abril e assim por diante. Mesmo com seus inevitáveis fracassos — os mais notáveis sendo a publicação da revista em quadrinhos do Bidu e as tirinhas do Nico Demo, ambas canceladas —, Maurício seguiu tentando, caminhando pelo emaranhado das suas relações mirando na criação de um quadrinho brasileiro, seja lá o que isso significasse.

Tendo pouca experiência com a produção quadrinística, Maurício tomou proveito dos conhecedores à sua volta, montando sua equipe com base nos profissionais que encontrava. A institucionalização da sua produção de quadrinhos nasceu de suas observações do funcionamento dos sindicatos de distribuição norte-americanos e das editoras brasileiras, servindo como um grande facilitador para os seus negócios futuros. O processo de modelação para uma configuração empresarial, apresentada tão cedo em sua vida profissional, fez com que o quadrinista se familiarizasse com o manejo administrativo de seu negócio, o que, sem dúvidas, o beneficiou durante sua negociação com a editora Abril, e durante sua incorporação da prática licencial na Maurício de Sousa Produções. De sua primeira publicação Bidu & Franjinha , em 12 de dezembro de 1959 à feitura de sua primeira exposição museológica no MASP, em outubro de 1979, Maurício passou de um recém-chegado ao mundo profissional dos quadrinhos a quadrinista mais conhecido do Brasil. Vale notar, também, que o rápido reconhecimento de Maurício de Sousa, matizado por todas essas conveniências relativas ao seu lugar de atuação, à sua companhia, e mesmo às suas estratégias comerciais, está concatenado à forma com que o seu projeto estético modificou-se com “os ventos conservadores que assolaram o país” (Braga & Patati, 2006Braga, Flávia & Patati, Carlos. (2006). Almanaque dos quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. São Paulo: Ediouro.: 184), principalmente depois da mudança autoritária de governo.

Adiciona-se à rede fractal de relações de Maurício o fato de que, durante os anos 1960, foi ganhando forma um intenso debate de natureza ideológica, em que novas perspectivas de vida, nomeadamente urbanas, ensejavam hábitos e costumes diferentes dos concebidos pelas antigas morais arraigadas em boa parte do país, ligadas às crenças tradicionais da fé católica e aos seus modos de vida patriarcais. O chamado nacional-desenvolvimentismo tentava recriar a seus moldes um novo tipo de brasilidade, mais respeitosa com sua história e mais consciente do seu potencial. O otimismo com essa nova forma de nacionalismo, contudo, temia a intensificação da resistência conservadora que se apossava cada vez mais dos espaços públicos. Era aí que estavam localizados os círculos sociais de Maurício de Sousa e é daí que o seu já mencionado projeto estético universalista toma forma. A energização do projeto conservador após o Golpe Civil-Militar sem dúvidas articulou-se com a fazedura de um quadrinho como a Mônica e sua turma. Foi necessário o afastamento de Maurício de alguns nós presentes em seus círculos, assim como sua aproximação de outros, para o seguimento da sua relação com o grande público.

Ao mesmo tempo em que a postura assumida pelas revistas em quadrinhos Mônica e sua turma aproximava Maurício de um público preocupado com a formação moral e educacional de seus filhos em uma época em que tudo se confundia com subversão, a sua proximidade com a comunidade quadrinística paulista o familiarizou também com alguns círculos de profissionais de imprensa, responsáveis pelas colunas e artigos que divulgaram seu nome ao público anos mais tarde. A acentuada presença do quadrinista na mídia impressa, claro, não pode ser entendida somente por meio da sua forte presença na imprensa: sua constante promoção ao grande público servia a um propósito bem mais específico do que a sua simples promoção pessoal. A consolidação da sua figura nas páginas dos jornais dizia respeito à divulgação dos importantes avanços sendo feitos dentro do mercado editorial da época. O pioneirismo de Maurício de Sousa pontuava uma vitória nacional sobre a invulnerável competição norte-americana. A rápida progressão a partir da qual sua produção foi capaz de conquistar um espaço no mercado era uma questão de orgulho. A longa luta de setores da imprensa, assim como das comunidades quadrinísticas regionais, em benefício do incentivo à produção de quadrinhos nacional, havia finalmente achado o seu campeão, corporificado por Maurício de Sousa.

O prenúncio do reconhecimento de Maurício no mercado editorial brasileiro acabou consolidando-o na imprensa nacional como artista reputado, um pouco como uma profecia autorrealizada. O acolhimento do quadrinista por parte de seus pares e de seus críticos, materializados pela comunidade de artistas com quem atuava, e pelos jornalistas acadêmicos que debatiam com ele em muitos dos eventos sobre quadrinhos no qual esteve presente, suscitou uma ampla mobilização pública do seu trabalho, o que, a partir das práticas de licenciamento comerciais, alastrou-se para além da imprensa e atingiu a população brasileira como um todo. A ausência de um símbolo da vida criativa nacional no mercado editorial por muito tempo foi compreendida como resultado direto das injustas condições de trabalho dos profissionais locais, mas com Maurício de Sousa tudo mudou. Apesar de diretamente envolvido com as reivindicações referentes a essas condições assimétricas, Maurício simbolizou uma conquista do mercado editorial brasileiro, o que abriu caminho para o seu reconhecimento mais generalizado.

As aspirações de Maurício de Sousa, assim como as do great man , são ao mesmo tempo individuais e coletivas, afinal, “a tarefa do great man não seria, portanto, aumentar a escala dos indivíduos para gerar agrupamentos, mas manter uma escala que é pessoa e agregado ao mesmo tempo, solidificando uma totalidade em acontecimento” (Wagner, 2011Wagner, Roy. (2011 [1991]). A pessoa fractal. Ponto Urbe, 8. [1991]: 11). É essa totalidade conceitual, vista por meio de Maurício, representada pela comunidade de artistas, acadêmicos e empresários interessados no estabelecimento de um locus de produção de quadrinhos nacional, que deve ser observada aqui, pois são suas motivações que guiam as relações fractais ali envolvidas. Foi a partir da vontade de modernizar a produção de quadrinhos no Brasil, de construir algo novo, próprio e verdadeiramente brasileiro, que a trama de relações presentes e interconectadas pelos muitos círculos sociais mantidos (e por vezes sustentados) por Maurício de Sousa oportunizou o seu reconhecimento artístico, e foi projetando-se na sua imagem de great man que esses círculos conseguiram sustentar-se enquanto coletivo em muitos casos. É possível afirmar, por essa chave, que o reconhecimento artístico não se configura como fenômeno matemático, de crescimento exponencial de celebridade ou de conquista numérica de um público, mas, diferentemente, se desenha como um tipo de relação, um laço conectivo vivo, nem singular nem plural, que é mantido entre diferentes tramas, e cuja existência exige manutenção e reciprocidade. 19 19 Como Adelia Maria Miglievich Ribeiro pôs muito bem em nota, em seu artigo Marina Vasconcellos e as ciências sociais cariocas: a perspectiva dos círculos sociais: “A melhor tradução de Vergellschaftung parece ser ‘sociação’, adotando a tradução dos simmelianos norte-americanos, tal como explica Evaristo de Moraes Filho (1983), a fim de não confundir esse conceito com socialização, sociabilidade ou associação, que têm significados distintos. ‘Sociação’ é sinônimo de ‘forma social’, isto é, a unidade em que os indivíduos realizam seus interesses, pulsões, inclinações, objetivos, entre outros. São exemplos de formas de ‘sociação’: dominação e subordinação; competição; imitação, divisão do trabalho; formação de partidos; representação; isolamento; cooperação; centralização; descentralização. Para Simmel, é necessário identificar as formas puras de ‘sociação’, estudá-las em seu desenvolvimento histórico para que se afirme tal procedimento como o problema por excelência da sociologia (Simmel, 1939)” (Ribeiro, 2008: 38). 20 20 Em 1970, Maurício de Sousa deslanchava comercialmente com a firmação de seu contrato com a editora Abril, que transformou as tirinhas do Cebolinha em revistas em quadrinhos, intituladas nesse primeiro momento de Mônica e sua turma . A partir daí a circulação das obras do quadrinista aumentou significativamente, chegando em seus primeiros anos de publicação a tiragens de 250 mil exemplares todo mês, equiparando-se a revistas em quadrinhos de sucesso como Luluzinha e Pato Donald . O sucesso comercial de Mônica e sua turma veio acompanhado do seu reconhecimento internacional por parte do Congresso Internacional de Históricas em Quadrinhos de Lucca, na Itália, que lhe aferiu o prêmio Gran Guinigi e o prêmio Yellow Kid, grandes honrarias na comunidade quadrinística internacional.

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  • Waizbort, Leopoldo. (2000). O indivíduo como ponto de cruzamento dos círculos sociais. In: As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, p. 489-504.
  • 1
    Nas biografias em quadrinhos comercializadas pela Maurício de Sousa Produções, assim como nas muitas entrevistas concedidas pelo artista, a sua vida familiar, a despeito de servir anunciadamente como inspiração para suas criações, é grandemente relegada a um papel acessório, presente em seu dia a dia somente enquanto fonte de inspiração. É importante ter essa questão em mente na medida em que revela o duplo papel de Maurício no seu fazer artístico, tanto de criador quanto de criatura.
  • 2
    A virada compreensiva introduzida por Nathalie Heinich ( 2001Heinich, Nathalie. (2001 [1998]). Ce Que La Sociologie fait à l’art contemporain. Sociétés et Représentations, 11/1, p. 311-323. [1998]), teorizada em seu livro Ce Que L’Art feit à la sociologie (1998), pôs em evidência a recepção do público em oposição ao estabelecimento profissional, o que, na busca pela significância do reconhecimento artístico, confere uma perspectiva menos preocupada com a reinstituição dialética do mundo e mais atinada à compreensão da dóxica social, que procura compreender por meio dos regimes paradigmáticos da vida em sociedade as dinâmicas de valoração e significação da vida artística. A partir daí, Alan Bowness se torna um importante interlocutor da esquematização dos processos de reconhecimento artístico. Então diretor do Tate Museum, Bowness tratou do sucesso artístico em sua famosa palestra The Conditions of Success: How the Modern Artist Rises to Fame , proferida em 1989 à Universidade de Londres. Lá o historiador britânico denotou quatro importantes etapas do sucesso artístico, as quais Nathalie Heinich usa em sua análise: o reconhecimento pelos pares; o reconhecimento crítico; o patronato por comerciantes e colecionadores; e a consagração do público.
  • 3
    Apesar de podermos vislumbrar o esquema conceitual de Alan Bowness nas asserções de Nathalie Heinich, é notável a escolha da autora em permanecer usando a palavra reconhecimento em vez de sucesso, frequentemente usado pelo historiador. Assumo que a sua escolha por essa palavra tenha a ver com a ênfase à reciprocidade manifesta no relacionamento entre o artista e seu público. Um indivíduo reconhece o outro, fazendo do reconhecimento um ato conectivo e destacando a indispensabilidade da aceitação da legitimidade do artista pelo público, coisa que o uso da palavra sucesso não conseguiria exprimir, já que ela remete à fortuna unilateral, à conquista de popularidade. Um indivíduo tem sucesso, portanto essa é uma ação de apossamento, em que o indivíduo toma para si a glória que lhe é devida. O principal problema com o uso do termo sucesso é a indefinição da natureza dessa ventura. Será o retorno financeiro que dita o que é bem-sucedido? Ou será a popularidade? Enquanto o reconhecimento de Heinich não deixa dúvidas quanto à natureza de sua boa ventura, a aceitação do artista, o sucesso de Bowness deixa margem para diversas interpretações do que é um indivíduo bem-sucedido.
  • 4
    Há de se notar que utilizarei a partir daqui ambos, sucesso e reconhecimento, para descrever a trajetória de Maurício de Sousa. Minha intenção em mobilizar essas duas palavras é simples: creio que haja espaço para ambas. Se eu me ativer somente ao reconhecimento, como imaginado por Nathalie Heinich ( 2001Heinich, Nathalie. (2001 [1998]). Ce Que La Sociologie fait à l’art contemporain. Sociétés et Représentations, 11/1, p. 311-323. [1998]), a ênfase que dou ao espírito empreendedor de Maurício, assim como ao seu enorme sucesso comercial, seria perdido; e se eu utilizasse somente o sucesso de Alan Bowness ( 2011Bowness, Alan. (2011 [1989]). Les Conditions du succès: comment l’artiste moderne devient-il célèbre? Paris: Allas. [1989]), relegaria dois importantes aspectos da trajetória de Maurício, as suas relações profissionais e a projeção carismática da sua figura pública. De um lado uso sucesso para referenciar o ato de conquista financeira, de outro uso reconhecimento para tratar do modo mútuo como sua aceitação e popularização se deu.
  • 5
    Dentro do campo da Sociologia da Arte, Nathalie Heinich tornou-se a mais importante defensora da abordagem pragmática, como pôs a autora: “Aux deux sens du terme: pragmatique au sens épistémologique, puisqu’il s’agit d’analyser les phénomènes artistiques en situation, dans leur contexte, et non pas de façon abstratite; et pragmatique au sens étymologique, puisqu’il s’agit d’analyser ce que font les oeuvres — et non pas, encore une fois, ce qu’elles valent, ou ce que’elles signifient” ( 2002Heinich, Nathalie. (2002). Sociologie de l’art contemporain: questions de méthode. Espaces Temps, 78-79, p. 133-141.: 134).
  • 6
    Antes de ater-me nos pormenores da trajetória artística de Maurício de Sousa, há de se lembrar que as informações acerca de sua vida se limitam, quase que exclusivamente, às narrativas comercializadas pela sua própria empresa, a Maurício de Sousa Produções. Por essa razão, investigações a seu respeito pouco fogem das fontes oficiais fornecidas por ele próprio, podendo chegar a procurarem respaldo em outros registros, como é o caso das poucas entrevistas realizadas com seus funcionários, editores e colegas de trabalho, assim como das reportagens e biografias não autorizadas disponibilizadas ao público. Contudo, mesmo nestes registros outros o rigoroso controle exercido sobre a imagem pública de Maurício pode ser sentido, o que acaba tornando a romântica narrativa do self-made man vendida por ele um constructo quase inescapável.
  • 7
    Segundo Maurício, a família morou em São Paulo por dois anos, nos quais “Meu pai não sossegava. Um dia se cansou da capital e decidiu voltar para Mogi” (Sousa, 2017Sousa, Maurício de. (2017). Maurício: a história que não está no gibi. São Paulo: GMT.: 32), onde conseguiu um emprego como diretor da rádio Marabá. Durante essa época, “de manhã e em parte da tarde ele trabalhava na barbearia. Depois ia para a rádio e saía de lá quase de madrugada”.
  • 8
    Somente após a assinatura de seu contrato com a Editora Abril Maurício seccionou suas criações em “turmas”, publicando estórias de duas a três páginas de diferentes núcleos temáticos dentro de Mônica . Todas as suas criações regularmente publicadas em formato de tirinha foram reaproveitas nessa revista em quadrinhos, sendo reintituladas como turma. A “turma da Mônica”, agrupamento principal do quadrinista, era composta pelos personagens presentes nas tirinhas do Cebolinha, enquanto a “turma do Bidu” era derivada das tirinhas Bidu & Franjinha , a “turma da Mata” foi criada com base no agrupamento de personagens explorados nas tiras do Raposão , a “turma do Chico Bento”, por sua vez, foi criada com base nas tirinhas de Hiroshi e Zézinho , posteriormente reformulada e intitulada de Chico Bento. A “turma do Piteco” era advinda de Piteco , a “turma do Papa-Capim” era originária das tiras do Papa-Capim, a “turma do Astronauta” era proveniente da tirinha Astronauta , a “turma do Horácio” foi criada a partir do personagem Horácio, primeiro explorado nas tirinhas de Piteco e depois desenvolvido em tirinhas próprias chamadas Horácio, a “turma do Penadinho”, cujos personagens foram primeiramente criados para as tirinhas do Cebolinha, vieram das tiras intituladas Penadinho , a “turma da Tina”, cuja personagem principal nasceu das tiras do Cebolinha, foi posteriormente explorada nas tiras de Tina, e, ainda, a “turma do Pelezinho”, nascida das tirinhas do Pelezinho , criadas em 1979 exclusivamente para o Diário de Pernambuco e a editora Abril.
  • 9
    Já consolidado comercialmente no mercado, Maurício de Sousa passou a colaborar com diversas agências governamentais paulistas, dentre elas a Prefeitura de São Paulo, a Companhia Energética de São Paulo (CESP), a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), para criar histórias com fins de promoção de projetos de conscientização pública, aumentando o espectro de influência de seus quadrinhos a partir da distribuição gratuita em escolas públicas do estado de São Paulo. A ativa participação em programas públicos voltados ao incentivo da educação, saúde e mesmo consciência cívica infantil tem grande relevância na qualificação do projeto artístico de Maurício de Sousa, já que a livre colaboração com órgãos estatais paulistas em plena Ditadura Militar designa a união de duas instituições, a Maurício de Sousa Produções e o governo do estado, sob uma bandeira comum: os projetos de conscientização infantil. As histórias presentes nas revistas em quadrinhos da Mônica, preocupadas em tratar a dinâmica familiar, em comunicar práticas de higiene e em educar o público leitor em questões de civilidade e etiqueta, denotavam uma correspondência entre o projeto estético de Maurício de Sousa e o projeto ideológico levado à frente pelas instituições públicas que se associaram a ele.
  • 10
    É importante diferenciar as tirinhas criadas por Maurício de Sousa de suas revistas em quadrinhos. Enquanto publicações inalienáveis da estrutura jornalística, as tirinhas são consumidas junto a toda uma rica, e variada gama de obras, ligadas ao universo cotidiano do jornal diário, enquanto as revistas em quadrinhos são publicações independentes, exclusivamente dedicadas ao universo quadrinístico específico de seu criador.
  • 11
    Gonçalo Junior ( 2004Júnior, Gonçalo. (2004). A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras.: 377-378) descreve esse momento da seguinte maneira: “Não só Ziraldo como todos os artistas que lutaram pela Lei de Cotas passaram a ser vistos como suspeitos de comunismo e subversão. Muitos ficaram afastados do mercado de quadrinhos por longos anos e até mudaram de profissão por absoluta falta de trabalho. Outros sobreviveram com dificuldade como colaboradores das pequenas editoras de São Paulo e com colaborações avulsas em livros didáticos e agências de publicidade. Júlio Shimamoto e Flávio Colin, por exemplo, só voltariam a fazer quadrinhos doze anos depois. Nesse meio-tempo, sobreviveram na publicidade. O medo de serem presos e de terem seus direitos políticos cassados diante o expurgo que marcou os primeiros meses do Golpe de 1964 levou muitos artistas ao pânico. A repressão deixaria sequelas em nomes como Maurício de Sousa, cuja competência empresarial e talento criativo começaram a projetá-lo, no final da década, quando lançou pela Abril a revista Turma da Mônica. Maurício, que presidira a ADESP durante a luta pela reserva de mercado, tornou-se o membro mais visado da entidade. Durante o regime militar, temeroso, ele passou a medir todas as 54 palavras que pronunciava sobre seu envolvimento com a associação de desenhistas. Temia que a referência à sua participação no movimento de nacionalização levasse os militares a considerá-lo comunista. Esse cuidado acabaria por levá-lo a demonstrar publicamente um juízo a respeito dos companheiros. Ao fazer uma revisão de seu papel, procurou inicialmente amenizar sua importância na campanha. Numa das poucas vezes em que falou sobre o assunto, disse que se decepcionou com os colegas porque havia interesse político-partidário por trás da campanha pela reserva de mercado, entre 1961 e 1964. Afirmou que havia sido um dos criadores da ADESP, mas que, contra sua vontade, a entidade ganhara”cores políticas um pouco radicais”, o que teria provocado sua saída da associação. Contemporâneos de Maurício no movimento, como Ziraldo e Shimamoto, discordam de que as associações de São Paulo e do Rio de Janeiro tivessem propósitos políticos que não os de realmente profissionalizar e nacionalizar a produção de quadrinhos no Brasil. Ziraldo reconheceu que ele próprio, o desenhista José Geraldo e alguns outros membros tinham suas preferências políticas de esquerda, como era comum naqueles tempos de polarização ideológica, mas insistiu que as reuniões em defesa da lei não tinham propósitos nesse sentido”.
  • 12
    Curiosamente, ao mesmo tempo em que é esse olhar arrebatador e promissor direcionado ao futuro que traz Maurício de Sousa à cidade de São Paulo, é no olhar nostálgico e romântico direcionado ao passado que ele constrói seu projeto narrativo, alimentando-se de dualismos — cidade versus campo, local versus estrangeiro, moderno versos tradicional, passado versus futuro — para contrapor-se, ao menos nas páginas de seus quadrinhos, à intensa inconstância e contradição dos novos tempos, dos quais o próprio Maurício de Sousa servia como arauto.
  • 13
    Entre os anos de 1961 e 1964, o seu trabalho de criação foi feito dentro de um pequeno estúdio em Mogi das Cruzes, Bidulândia Serviços de Imprensa, que, com a expansão do universo quadrinístico de Maurício de Sousa, não deu conta do crescente fluxo na produção (Ribeiro et al., 2007 Ribeiro, Antônio Luíz et al. (2007). Maurício de Sousa. Disponível em http://www.guiadosquadrinhos.com/artista/mauricio-de-sousa/1172 . Acesso em 26 nov. 2015.
    http://www.guiadosquadrinhos.com/artista...
    ). Em 1966, então, foi criado outro estúdio na capital paulista, dentro de uma sala no prédio da Folha de S.Paulo, chamado Maurício de Sousa Produções, que objetivava seguir os moldes de produção dos sindicatos de distribuição norte-americanos, criando histórias em massa que se adequariam a diferentes tipos de jornais (Sousa, 2013Sousa, Maurício de. (2013). Depoimento. [Entrevista concedida à revista Zupi], São Paulo, 8/37, p.11-20.: 18).
  • 14
    Os autores Ivan Lima Gomes e Gonçalo Júnior reportaram cronologias distintas referentes ao tempo de atuação da ADESP. Gonçalo Júnior afirmou que a organização foi criada no ano de 1953 e dissolvida em 1964, denotando o Golpe Civil-Militar como um grande contribuidor para a sua desagregação (Junior, 2004Júnior, Gonçalo. (2004). A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras. , p.377). Diferentemente, Ivan Lima Gomes, a partir de entrevistas com antigos membros da organização, nomeadamente Júlio Shimamoto, reporta que o término de suas atividades é incerto, dissolvendo em fins de 1961 (Gomes, 2015: 119).
  • 15
    O Decreto-lei nº 52-497/1963, referente à Lei de Reserva de Mercado, foi uma exigência movimentada pela ADESP e pela ABD, que previa cotas para histórias em quadrinhos nacionais em jornais brasileiros. As cotas seriam de 30% a partir de 1964, 60% em 1965 e 90% em 1966. Com o Golpe Civil-Militar, o Decreto-lei, previamente aprovado pelo presidente João Goulart, foi enterrado.
  • 16
    Compilando histórias inéditas e histórias já veiculadas pela Folha da Manhã , em que as tirinhas de Bidu e Franjinha foram originalmente publicadas a partir de dezembro de 1959, as revistas de Bidu adotaram o formato de 21 × 28 cm, acomodando tirinhas e histórias maiores, geralmente de 2 ou 3 páginas.
  • 17
    Similarmente, no mundo das artes plásticas, enquanto o programa estético da primeira metade do século XX ambicionava representar a nação brasileira, dando-a um rosto e, quem sabe, uma história, o final da Segunda Guerra Mundial radicalizou o perfil realista do modernismo, trazendo a reboque de toda sua angústia e comoção um enérgico ímpeto pela experimentação estética, em que cores vibrantes e formas sólidas passaram a fazer parte de um repertório imagético pouco estimulado pela reprodução mimética do mundo. Como afirma Glaucia Villas Bôas, tal mudança programática, responsável pelo surgimento do entusiasmo concretista, teve menos a ver com as influências da vanguarda internacional na prática artística brasileira e mais a ver com a sua oposição ao academicismo e ao modernismo figurativo (Bôas, 2008Villas Bôas, Glaucia. (2008). A estética da conversão: O ateliê do Engenho de Dentro e a arte concreta carioca (1946-1951). Tempo Social, 20/2, p. 197-219.: 198). A transformação de artistas plásticos figurativos, preocupados em retratar a realidade ao seu redor, em artistas concretos, mais interessados em explorar maneiras diferentes de se fazer arte a partir da abstração de formas privilegiadas, fez nascer novos modos de se retratar a vida.
  • 18
    Conforme as obras de Maurício de Sousa foram ganhando popularidade sua presença foi também transpassando os limites da mídia impressa. Já em 1965, Maurício vai ao programa da Hebe Camargo, chamado Hebe Comanda o Espetáculo , e lá, sentado no sofá do set ao lado de sua filha Mônica, que segurava um coelho de pelúcia — que pelo, que tudo indica, devia ser azul —, o quadrinista aparece à frente de um enorme banner de Cebolinha, ilustrando sua posição dupla ao público, de artista e pai. Sua aparição em uma entrevista com Hebe, uma das, se não a maior, apresentadora televisiva da época, firmou Maurício publicamente como um exemplo de sucesso no meio quadrinístico.
  • 19
    Como Adelia Maria Miglievich Ribeiro pôs muito bem em nota, em seu artigo Marina Vasconcellos e as ciências sociais cariocas: a perspectiva dos círculos sociais: “A melhor tradução de Vergellschaftung parece ser ‘sociação’, adotando a tradução dos simmelianos norte-americanos, tal como explica Evaristo de Moraes Filho (1983), a fim de não confundir esse conceito com socialização, sociabilidade ou associação, que têm significados distintos. ‘Sociação’ é sinônimo de ‘forma social’, isto é, a unidade em que os indivíduos realizam seus interesses, pulsões, inclinações, objetivos, entre outros. São exemplos de formas de ‘sociação’: dominação e subordinação; competição; imitação, divisão do trabalho; formação de partidos; representação; isolamento; cooperação; centralização; descentralização. Para Simmel, é necessário identificar as formas puras de ‘sociação’, estudá-las em seu desenvolvimento histórico para que se afirme tal procedimento como o problema por excelência da sociologia (Simmel, 1939)” (Ribeiro, 2008Ribeiro, Adelia Maria Miglievich. (2008). Marina de Vasconcellos e as ciências sociais cariocas: a perspectiva dos círculos sociais. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, 15/supl., p. 17-41.: 38).
  • 20
    Em 1970, Maurício de Sousa deslanchava comercialmente com a firmação de seu contrato com a editora Abril, que transformou as tirinhas do Cebolinha em revistas em quadrinhos, intituladas nesse primeiro momento de Mônica e sua turma . A partir daí a circulação das obras do quadrinista aumentou significativamente, chegando em seus primeiros anos de publicação a tiragens de 250 mil exemplares todo mês, equiparando-se a revistas em quadrinhos de sucesso como Luluzinha e Pato Donald . O sucesso comercial de Mônica e sua turma veio acompanhado do seu reconhecimento internacional por parte do Congresso Internacional de Históricas em Quadrinhos de Lucca, na Itália, que lhe aferiu o prêmio Gran Guinigi e o prêmio Yellow Kid, grandes honrarias na comunidade quadrinística internacional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2021
  • Aceito
    07 Jun 2022
  • Revisado
    09 Maio 2022
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