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Saúde, cultura e desenvolvimento

Health, culture and development

PARTE I - CONFERÊNCIAS DO X CONGRESSO PAULISTA DE SAÚDE PÚBLICA

Saúde, cultura e desenvolvimento1 1 Conferência no X Congresso Paulista de Saúde Pública, outubro de 2007.

Health, culture and development

Sozinho Francisco Matsinhe

Professor do Departamento das Línguas Africanas, Universidade da África do Sul. Endereço: Centre for Pan African Languages & Cultural Development, TvW 7-41, University of South Africa, PO box 392, UNISA, 0003. E-mail: hiswonazool@yahoo.co.uk

Eu queria, em primeiro lugar, agradecer o convite que me foi formulado para estar aqui convosco. E também agradecer as palavras que acha que eu sou um especialista. E isso pode ser que seja verdade, mas eu, acima de tudo, sou um simples africano, que tenta viver a sua época e pagar a sua dívida ao seu povo. Essas são as palavras do grande líder da Guiné-Bissau, Amílcar Cabral, e faço delas minhas palavras. Portanto, eu também queria agradecer aqui a presença dos vários colegas.

Como se sabe, os jogadores de futebol aqui do Brasil - o produto de exportação do Brasil, que na minha terra é muito conhecido - só jogam bem quando há plateia. Os dançarinos de samba também se mexem mais quando alguém está presente na plateia. Portanto, o que eu vou dizer aqui não teria nenhum sentindo se não tivesse alguém sentado do outro lado para ouvir.

Como disse o professor Marco Akerman2 2 Presidente do X Congresso Paulista de Saúde Pública. , a língua não é só um instrumento de comunicação, mas também permite nos relacionarmos com a natureza. A nossa percepção do mundo, a expressão da nossa cultura faz-se via língua. Eu, às vezes, costumo dizer que no caso do colonialismo português, de todos os males que fizeram às colônias, a única coisa de bom que deixaram foi a língua - a língua portuguesa. É por causa disso que conseguimos agora nos comunicar e entender o mundo, é graças ao português. Isso é discutível, mas eu acredito que é uma coisa que apareceu no mundo, mesmo no meio de tanta desgraça, para nos deixar um pouco felizes. É a língua com que nos comunicamos.

A língua, como eu estava a dizer, é um veículo da cultura, mas ao mesmo tempo é um depositor da cultura. Portanto, são essas duas funções: por um lado, veicula a cultura; por outro, deposita-a - é o depositório da cultura de qualquer povo. E eu penso que isso é muito importante. Através da língua, nós podemos entender o mundo e nos relacionarmos de uma forma produtiva e coerente. A língua é o ponto de partida para compreendermos o relacionamento do seres humanos com o seu meio ambiente.

Entrando na componente saúde. A saúde - estou a falar na saúde de uma forma geral, mais abrangente; não estou a falar da saúde como faria o professor Marco Akerman: "Quando está doente, toma uma aspirina de manhã, à tarde ou ao meio-dia e a dor de cabeça vai desaparecer". Não é nesse sentido. Eu estou a falar da saúde aqui de um modo geral, portanto, como parte integrante do desenvolvimento comunitário, que exige a participação comunitária, para que de fato seja um elemento, um ingrediente necessário para o desenvolvimento. A participação da comunidade depende da língua e quando se trata de uma língua que ela domina, a comunicação torna-se mais efetiva e produtiva - isto é: participativa e horizontal.

E isso tem a ver com outra questão: se pensarmos na história do colonialismo, a visão dos povos - tanto moçambicano, brasileiro, angolano e tantos outros que foram colonizados -, para se libertarem, era a vontade de ser dono do seu próprio destino; queriam ser donos do seu próprio destino. É ter um compasso, uma espécie de bússola e fontes de referência próprias, que dissessem: "Olha, o nosso destino é este aqui".

E eu, quando falo dessas coisas aqui - da comunidade ser dona do seu próprio destino, em pensar nas lutas contra o colonialismo -, a própria história que me contavam quando eu era miúdo lá na minha aldeia, quando se dançava ao som do tambor. O meu avô dizia: "Olha, meu filho, para que a festa do tambor tenha algum sentido, tem que ser feita em casa, não pode ser feita na casa do vizinho. Porque quando animar, o vizinho vai pedir para você se retirar porque ele quer dormir".

Então, a ideia do movimento comunitário e da saúde tem que estar ligada ao objetivo da comunidade ser dona do seu próprio destino, ter uma participação muito ativa no desenvolvimento da sua própria saúde e isso só pode ser possível quando é feito através de uma língua que é do domínio de todos, que incorpora e veicula elementos culturais com os quais a comunidade se identifica. Mais tarde eu voltarei a falar sobre essa questão, quando falo da ligação entre o conhecimento indígena, a língua e a vontade de trazer um objetivo, de trazer um desenvolvimento sustentável. Voltarei a falar sobre esse ponto.

Como disse, o termo saúde, aqui, é utilizado de uma forma geral, mas olhando para a saúde como um componente necessário e positivo para o desenvolvimento da comunidade. É importante também dizer que só poderá se desenvolver uma comunidade que tenha boa saúde. Isso também é importante, mas num sentido amplo, temos que olhar para a saúde como um processo necessário para o desenvolvimento sustentável da comunidade.

O ponto a seguir que eu queria trazer é o desenvolvimento. Quando falamos de desenvolvimento, o que é isso aqui, desenvolvimento? Ontem eu estava lendo um jornal que dizia que há um país africano - eu não vou mencionar o nome porque pode ser que alguém que esteja aqui venha de lá - que tem a economia mais dinâmica do mundo, e que por ano registra 23% de crescimento. Mas a imagem que acompanhava a notícia trazia uma senhora, com um cesto à cabeça, que andava pelas ruas da cidade a vender uma fruta qualquer. A pergunta que se coloca é: qual é o conceito de desenvolvimento aqui? É numérico, é micro, ou macro?

Eu estou a sugerir que o desenvolvimento tem que ser sustentável; para que seja sustentável, tem que ser participativo e tem que haver uma relação horizontal, e não vertical, entre os vários elementos que participam do processo de desenvolvimento.

Quando eu falo de uma relação horizontal, os médicos que me perdoem, eu me lembro que uma vez estive num hospital, e o médico disse que eu deveria ficar lá um ou dois dias porque ele queria me observar. Mas uma das coisas que ele me disse é que eu nunca deveria ler o que estava no meu processo. Eu fiquei atrapalhado e disse: "Olha, senhor doutor, se descobrir qualquer coisa que mata, é bom que me diga para que eu possa me despedir". E ele disse: "Não, o médico sou eu". Portanto, havia uma relação vertical entre um doente e um especialista. Não interessa se o doente sabe ler ou tem ótimos títulos em seu nome, mas "Eu sou o sabichão, você...". Tem que haver uma relação horizontal para que haja um desenvolvimento sustentável. E isso traz outra componente no conceito que estou a utilizar aqui para o desenvolvimento - a ideia de troca de experiências -, quer dizer, há uma fertilização de diferentes ideias, opiniões e experiências para que se consiga o desenvolvimento de que estamos a falar aqui.

Agora, uma coisa que tem um papel muito importante aqui é a língua. Como eu já disse, a língua é um veículo e um depositor da cultura. As pessoas relacionam-se; nós, os seres humanos, nos relacionamos com o nosso meio ambiente, com os outros elementos desse meio ambiente, através da língua.

Quando eu era pequeno, disseram que eu nunca devia falar com estranhos. Sempre me diziam, quando eu saía de casa, para nunca falar com estranhos, nunca falar com ninguém, nem que esteja perdido pela estrada. E eu dizia: "Olha, nesse caso todo mundo vai ser estranho". E diziam: "Se você falar uma língua que esses estranhos entendem, eles deixam de ser estranhos". Portanto, a língua tem um papel muito importante.

A língua tem um papel muito importante porque nos permite ter um discurso comum e coletivo. Isso é muito importante quando debatemos questões relacionadas com a saúde comunitária. É preciso que haja pontos de referência comuns. Esse é um conceito - quando eu falo aqui em desenvolvimento é considerando vários elementos, mas o elemento-chave é a língua. Eu voltarei mais tarde a falar disso.

Estou a tentar estabelecer uma relação entre cultura, língua, saúde e desenvolvimento. Eu estava a contar essa história em jeito de introdução, e agora eu vou tentar dar alguns exemplos disso que eu estou a falar. Colocam-se problemas, desafios e talvez algumas possibilidades para ultrapassarmos esses desafios.

Eu estava em um grupo de pesquisa esta manhã que falava sobre os problemas de saúde num movimento negro em São Paulo e no Brasil em geral, e eu vi alguns denominadores comuns entre o trabalho que o grupo de pesquisa fez e a história que eu estou tentando contar aqui. Aqui, trago a experiência africana da luta contra a malária e o HIV/SIDA, para ver como essa dinâmica da língua, cultura e desenvolvimento se passa na prática, a ponto de sabermos que a África tem registrado algumas das mais altas taxas de infecções do HIV/SIDA. E isso aqui tem criado histórias fictícias - algumas verdadeiras, em relação à África - porque às vezes a África é sinônimo de desgraça, sofrimento e morte.

Há esses mitos todos em relação à África, mas o ponto que eu queria trazer aqui é a que a África tem registrado algumas das mais altas taxas de infecções. A África é muito grande, não é? Quando eu falo da África, estou a falar mais da África subsaariana, da África Austral, onde vivo, trabalho e conheço melhor.

Mas para ser mais específico, eu vou falar de Moçambique. Eu venho de Moçambique e trabalho na África do Sul. Então vou usar Moçambique como exemplo para verem como é essa coisa e o que se passa na prática.

Eu não estou aqui a duvidar do vosso conhecimento sobre a geografia da África, mas é um contexto da minha história, não é? Essa é a localização de Moçambique: fica na costa Sul da África, no Sudeste da África ao longo do Oceano Índico, entre o Norte da Tanzânia e a África do Sul, mais para o Sul.

Em termos de população, temos cerca de 20 milhões de habitantes - estes são os números que saíram do último censo populacional, realizado em 1997. Em termos da taxa de prevalência do HIV/SIDA, Moçambique está entre os dez países do mundo que têm a taxa mais alta.

O que se fez para estancar a epidemia? Criou-se um Conselho Nacional de SIDA, através de um decreto ministerial no ano 2000. Agora, quais são as estratégias que se utiliza para o combate ao SIDA, em termos de prevenção? Quando a gente fala de prevenção, é a mudança de comportamento e a utilização do preservativo. Isso é muito complicado porque, como veremos mais tarde, por causa de um casamento um pouco turbulento entre o português e as outras línguas que se falam em Moçambique, isso não tem tido muito sucesso. Há muitos problemas com isso, mas essas são as quatro estratégias.

E a segunda é o tratamento para as pessoas através dos antirretrovirais. Por exemplo, Moçambique está a tentar criar uma fábrica em colaboração ou com a ajuda do Brasil. Também há os cuidados domiciliares, as pessoas que estão muito doentes, que não podem ir ao hospital receber um tratamento, recebem o tratamento e aconselhamento no seu local de domicílio. Também há várias organizações que apoiam as pessoas infectadas. Isso é uma estratégia que faz parte do plano de desenvolvimento em geral do país.

Mas vocês podem perguntar: o que isso tem a ver com a língua, o que isso tem a ver com desenvolvimento? Como eu disse, isso se passa através da utilização dos meios de comunicação, que utilizam uma determinada língua e que veremos logo a seguir.

Os meios de comunicação estão a utilizar os dados que saíram do censo populacional. Utiliza-se o rádio, mas numa população de 20 milhões de habitantes dizem-nos que havia 730 mil aparelhos de rádio em todo o país, então para 20 milhões acho que isso não é muito. E televisão - tínhamos 67.600 aparelhos para todo o país. Esses são os meios que se utilizam para implementação da estratégia de que eu falei para o combate ao HIV/SIDA.

Então isso traz alguns problemas. Lembrem-se de que eu falei: há um casamento não muito harmonioso, um pouco turbulento, entre o português e as línguas livres que são faladas pela maioria. É isso que veremos a seguir.

O português é a língua oficial, é a língua utilizada para fazer passar as mensagens sobre o HIV/SIDA. Mas essa língua, dos 20 milhões de habitantes, apenas 6,5% a falam como primeira língua - ou como língua materna. E temos 25,2% que falam o português como segunda língua. Aqui vocês podem perguntar: o que significa falar? É dizer bom dia, é cumprimentar, é dizer que se chama São Pedro? O que as estatísticas nos dão é que 68% da população não fala português. O que é importante dizer aqui é que o português está confinado às zonas urbanas, nas capitais provinciais e nas capitais distritais. Portanto, logo à partida, temos um desafio para fazer com que a saúde comunitária faça parte da grande estratégia para o desenvolvimento do país, porque a língua é uma espécie de motor de arranque que não nos ajuda muito, porque todas as mensagens são feitas em português, que é a língua oficial.

As estratégias ou mensagens de combate ao HIV/SIDA não passam por causa da língua portuguesa que exclui a maior parte da comunidade. Um dos méritos do Brasil é o fato de ter conseguido descolonizar a Língua Portuguesa - falam um português que não lhes lembra nada da antiga metrópole, é um português seu e muito brasileiro. Portanto, se eu escrevo coisas aqui que vocês não entendem, é porque eu sou ainda mentalmente colonizado, muito próximo da metrópole. Ainda não consegui me descolonizar da metrópole.

Mas eu estava a dizer que as mensagens aparecem sob forma de dísticos e letreiros em português, e utilizam-se mais o rádio e a televisão. Há algumas ONGs (Organizações Não Governamentais) e confissões religiosas que procuram utilizar as línguas indígenas, mas isso é um problema, porque não há coordenação entre elas; uma faz uma coisa em termos do nível de discurso ou do tipo de linguagem que utiliza e a outra faz outra coisa totalmente diferente.

Isso traz outro tipo de desafio. E quais são os desafios que se colocam em Moçambique, tendo em conta o cenário que tentei descrever aqui? É que os resultados não são comensuráveis com os esforços, há muita coisa que se faz, em termos da utilização da língua, para melhorar a saúde e o desenvolvimento da comunidade. Mas, por causa das barreiras socioculturais, incluindo a língua, a cultura e a abordagem vertical de que eu falei, não tem havido muito sucesso. E uma das coisas que acontece aqui é a criação de nós e eles. O que eu estou dizendo com nós? Nós somos nós - os profissionais da saúde - que temos o conhecimento e queremos ir à comunidade fazer uma intervenção. A abordagem é vertical. Isso cria um problema muito sério e é aqui onde a língua desempenha um papel muito importante.

O outro desafio é a confusão entre o ser analfabeto e o ser ignorante. Muitas comunidades não falam o português e muitas vezes pensam que elas são ignorantes. Mas são simplesmente analfabetas, não são ignorantes porque eles possuem um conhecimento, um sistema de conhecimento muito elaborado que está depositado nas suas línguas indígenas, e que não é aproveitado porque se utiliza uma língua que não é falada por essas comunidades, não é o veículo desse conhecimento. Então as mensagens que se tenta transmitir, ou são culturalmente irrelevantes, ou são estranhas à própria comunidade.

Eu vou contar aqui duas histórias para ilustrar isso. Essas são histórias verdadeiras, eu não as inventei. Havia um grande jurista, um grande advogado, uma pessoa que decide sobre as penas das pessoas no tribunal - eu não sei como é que falam aqui no Brasil -, mas ele saiu da sua comunidade e foi a outra cidade fazer doutorado, para trazer teorias e evidências. O fizeram famoso, em todo o mundo falavam dele, e ele voltou a sua terra para trabalhar. Ocorreu um incidente em que, numa casa, alguém foi roubar um cabrito. E, nessa aldeia, o que normalmente se faz é ver as pegadas. Ninguém tem sapatos lá. Então veem as pegadas e dizem: "É o fulano que veio aqui roubar". Tapam as pegadas e chamam os anciãos da aldeia, para de fato testemunharem o que estão a ver - as pegadas. Esse é um conhecimento indígena que existe na aldeia, as crianças quando voltam da escola, por exemplo, sabem se a mamãe está em casa, ou não, olhando para as pegadas que existem no caminho.

Mas o grande doutor tem a última palavra; é ele que decide quem é o culpado, quem roubou o cabrito. Ele perguntou: "Mas quem que viu este senhor a roubar o cabrito?". Destamparam a pegada. "A pegada está aqui...Não, temos que ter testemunhas..". Toda a aldeia ficou "quase maluca" porque um senhor estava a negar um conhecimento secular utilizado para mediar disputas na aldeia. Não que a pegada fosse, de fato, a prova, mas era uma coisa que tínhamos que reconhecer, porque toda a comunidade vive disso.

Outro incidente, que existe em um livro que foi escrito por um escritor angolano. O livro chama-se Luanda. Ele tem várias histórias e uma delas é a da "galinha e o ovo" - a galinha voou, foi ao quintal do vizinho, comeu o milho que lá estava e deixou um ovo. O vizinho diz que o ovo lhe pertence, mas a outra vizinha disse: "Não, a galinha que deixou o ovo é minha, portanto o ovo também é muito meu!". E a vizinha diz: "Não, mas é o meu milho que fertilizou a tua galinha...A galinha ganhou o ovo aqui". Eles discutem e chamam várias pessoas para testemunhar e darem a sua opinião.

Chamaram um moço, um rapaz, que vivia com os padres. Ele era muito dedicado, lia muitos livros, e, por isso, era muito respeitado na comunidade. Quando o moço chega lá, as senhoras contam o que se passou e ele quando abre a boca diz: "Olha, a bíblia diz que todos nós seremos tentados. Vocês estão a tentar-me. Isso é uma tentação, não é uma história verdadeira". Enxotaram o moço e o mandaram embora. Chamaram várias pessoas; um deles era um soldado colonial, que quando chegou lá disse: "As senhoras devem contar a história como aconteceu!". Elas contaram a história e o soldado disse: "Olha, vocês podem mesmo comer o ovo, têm o direito de comer o ovo; eu vou levar o ovo para o quartel". Todas as senhoras caíram em cima dele e ele acabou fugindo. Um moço que trabalhava na cidade com os advogados e saiu dessa comunidade, nesse bairro onde se deu o incidente da "galinha e do ovo", foi chamado. Novamente contaram a história da "galinha e do ovo", quando é que a galinha foi não sei para onde - o que se fez lá até deixar o ovo. O menino ficou muito pensativo e disse: "Ah, diz-se que a galinha é sua"; respondeu: "Sim, sim. A galinha é minha"; O moço pergunta: "Diz que o milho é seu também?"; respondeu: "Sim, sim...". E ele vira-se para a senhora que dizia que a galinha era sua: "Mas a senhora tem título de propriedade que prova que a galinha é sua?". Então pegaram num pau e correram com o moço: "Olha, antes de ir trabalhar com os advogados, nós guardávamos galinhas aqui e nunca ninguém pediu título de propriedade".

O que se passa aqui? O conceito ocidental de propriedade choca-se com o conceito local. Nunca ninguém teve títulos de propriedade para certificar que a galinha, um cabrito, ou seja lá o que for, é seu. Isso é um exemplo do que pode acontecer quando o conhecimento indígena não é aproveitado. O mais importante é o que eu estou a contar aqui, sobre o conhecimento indígena que deve ser integrado aos projetos da saúde comunitária e aos projetos de desenvolvimento em geral.

No caso concreto da saúde, de que estamos a falar aqui, há sistemas ricos indígenas que são úteis para a gestão de doenças e a medicação do sofrimento das comunidades. Com todo o respeito às enfermeiras que estão aqui - antes da enfermeira ou da parteira chegar a um bairro africano ou a uma comuna, há senhoras lá que sabem assistir ao parto, e as crianças nascem com muita saúde. Mas por causa dessa abordagem vertical nas questões da saúde, da cultura e do desenvolvimento, raras vezes na África alguém vai consultar essas senhoras. Pelo contrário, essas senhoras são personas não gratas porque vão complicar toda a história.

Falei das Organizações Não Governamentais que têm feito muito trabalho. O problema é a forma como estão organizadas. A forma de coordenação traz muitos problemas. Eu dou um exemplo aqui, como o preservativo. Há uma ONG que o chama xivikelo, do verbo ku viça na minha língua materna, que significa proteger. Então aqui, em termos linguísticos, há uma nominalização, e temos xivikelo que é o protetor. Mas outra ONG utiliza a palavra xitlangu, na mesma língua, que significa escudo. Quando a gente lê na mitologia do D. Afonso Henriques que derrotou os cinco reis mouros com um escudo e uma espada. Estão a entender de que estou a falar?

Embora as organizações tentem utilizar as línguas das comunidades onde operam, há falta de coordenação. Isso traz alguns problemas e confunde a população.

Eu sugiro que em termos de abordagem à problemática da saúde comunitária e desenvolvimento, haja uma mudança paradigmática. Tem de haver, por exemplo, uma abordagem horizontal em vez de ser vertical. Temos que ter um relacionamento horizontal, e isso exige uma nova agenda para a pesquisa aplicada na área do HIV/SIDA. E eu falo do HIV/SIDA como um exemplo, mas uma agenda para a pesquisa aplicada na área de saúde comunitária.

No caso da África, em geral, e de Moçambique, em particular, eu sugiro a utilização efetiva das línguas indígenas, que é para se ter acesso ao conhecimento depositado nessas línguas.

E por que eu conto isso tudo? Isso é o que eu tenho como conclusão. A pesquisa biomédica já registrou avanços significativos que têm melhorado o nosso conhecimento sobre o HIV/SIDA. Por exemplo, para o médico se pede: "Olha, eu quero saber..o meu estatuto, a minha posição: sou soropositivo ou não?". Ele vai me dar as várias opções de teste que existem e vai me dizer quando é que eu devo voltar para saber os resultados. Portanto, aqui há avanços muitos significativos. Dependendo do meu estatuto, se eu sou um soropositivo, vai sugerir aquilo que aqui no Brasil chama-se "coquetel" - uma combinação de vários comprimidos para prolongar o meu estado de saúde e vida.

Mas não obstante esses avanços, ainda existem multienigmas sobre os aspectos socioculturais do HIV/SIDA. Portanto, requerem-se mais pesquisas interdisciplinares, que explorem a ligação existente entre língua, cultura, saúde e desenvolvimento. Se nós tentarmos explorar e utilizar essa abordagem numa pesquisa interdisciplinar, penso que a parte enigmática, que é a parte social do HIV/SIDA, vai ter uma certa luz - eu estou a falar utilizando uma outra colonização, mas acho que vocês entendem o que quero dizer; vamos trazer mais luz sobre as questões socioculturais, que podem fazer uma contribuição positiva para o melhoramento da saúde da comunidade e para o desenvolvimento sustentável dos nossos países.

  • 1
    Conferência no X Congresso Paulista de Saúde Pública, outubro de 2007.
  • 2
    Presidente do X Congresso Paulista de Saúde Pública.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
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