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A saúde na região do Médio Solimões no estado do Amazonas: a centralidade de Tefé

Health in the Middle Solimões region, state of Amazonas: the centrality of Tefé

RESUMO

Em um cenário de várzea amazônica com fluxos fluviais, o estudo analisa a articulação da Atenção Básica com a Atenção Especializada, buscando discutir as condições políticas e geográficas que impactam na conformação da rede assistencial em uma região de saúde na Amazônia Ocidental. Adotouse uma combinação de estratégias metodológicas: levantamento de indicadores de morbidade e da rede de saúde, mapeamento dos trajetos intermunicipais, levantamento de despesas em Ações e Serviços Públicos de Saúde e entrevistas com gestores. O município de Tefé concentra serviços bancários, poder judiciário, educacional, órgãos de controle e segurança que lhe conferem uma centralidade de funções. Contudo, a saúde não considera os fluxos existentes no território para definição de quais municípios têm Tefé como referência. A defasagem dos dados nos sistemas de informação em saúde, aliada a ausência do ente estadual no planejamento regional de saúde, apoio para provimento de profissionais especializados, pagamento de insumos e organização do fluxo de referência-contrarreferência na rede têm sido desafios para planejar integralidade da atenção na região, sobrecarregando o município-polo. Apesar do aumento progressivo de despesas em saúde nos municípios analisados, a oferta de serviço para além da Atenção Básica permanece sendo um desafio para o Sistema Único de Saúde (SUS) na Amazônia.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde da população rural; Política de saúde; Ecossistema amazônico

ABSTRACT

In an Amazonian floodplain scenario with river flows, the study analyzes the articulation of Primary Care with Specialized Care, seeking to discuss the political and geographical conditions that impact on the formation of the care network in a health region in the Western Amazon. A combination of methodological strategies was adopted: survey of morbidity indicators and the health network, mapping of intercity routes, survey of expenses in Public Health Actions and Services and interviews with managers. Tefé concentrates banking services, judiciary branch, education and security bodies that give it a centrality of functions. However, health does not consider existing flows in the territory to define which municipalities have Tefé as a health reference. Outdated data in the health information systems, combined with the absence of the state government in the regional health planning, support to provide specialized professionals, payment for supplies and the organization of referral-counter-referral flow in the network have been challenges for integrality of the attention in the region, overloading the hub municipality. Despite the progressive increase in health expenses in the analyzed municipalities, the provision of services beyond Primary Care remains a challenge for the Unified Health System (SUS) in the Amazon.

KEYWORDS
Rural health; Health policy; Amazonian ecosystem

Introdução

Por definição constitucional, o Sistema Único de Saúde (SUS) deve ser descentralizado ao mesmo tempo que deve buscar integrar uma rede hierarquizada e regionalizada de ações e serviços, assegurando integralidade na assistência em saúde. É grandioso o desafio de operacionalizar um sistema único que seja capaz de atender as necessidades de 5.570 municípios, 27 sistemas estaduais e várias políticas centrais11 Santos L, Campos GWS. SUS Brasil: a região de saúde como caminho. Saúde Soc. 2015; 24(2):438-46.. No Brasil, cerca de 45% dos municípios apresentam baixo grau de urbanização, e são nesses em onde 1/4 da população nacional reside22 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, organizador. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: IBGE; 2017. 78 p. (Estudos e pesquisas, informação geográfica).. A região Norte concentra 65% do total de municípios rurais do País, embora 66,3% de sua população ocupe principalmente os espaços urbanos nas sedes dos municípios.

No mundo, as populações rurais têm mais dificuldade para acessar cuidados de saúde, o que tem exigido o desenho de políticas específicas para redução de iniquidades do acesso à saúde entre regiões metropolitanas e áreas mais remotas33 Haggerty JL, Roberge D, Lévesque JF, et al. An exploration of rural-urban differences in healthcare-seeking trajectories: Implications for measures of accessibility. Health Place. 2014; 28:92-8.. Nos países da América do Sul, apesar de terem registrado melhorias crescentes nas condições de saúde, principalmente a partir da década de 1990, com expansão da atenção primária, permanece sendo um desafio a integração desse nível de assistência com demais níveis de atenção em áreas remotas e menos favorecidas44 Giovanella L, Almeida PF. Atenção primária integral e sistemas segmentados de saúde na América do Sul. Cad. Saúde Pública. 2017; 33:e00118816.. Áreas rurais apresentam piores condições de saúde como resultado da dificuldade no financiamento diferenciado, fixação de profissionais especialistas, alocação de equipamentos55 Strasser R. Rural health around the world: challenges and solutions. Fam Pract. 2003; 20(4):457-63.,66 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção primária à saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(7):e00310520. e, principalmente, a ausência ou inadequação de políticas públicas ou estratégias coerentes para esses territórios.

Nos municípios do interior da Amazônia, com frequência as Unidades Básicas de Saúde (UBS) são o primeiro contato dos usuários, mas a falta de regulação, oferta insuficiente e dificuldade de comunicação e transporte têm sido apontados como os principais entraves para o acesso à Atenção Especializada77 Lima JG, Giovanella L, Bousquat A, et al. Barreiras de acesso à Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos do Oeste do Pará. Trab Educ E Saúde. 2022; 20:e00616190.,88 Sousa A, Fonseca F, Bousquat A. Invisibilidade das singularidades amazônicas na organização e oferta de serviços de Atenção Primária à Saúde (APS): Estudo de caso na área rural ribeirinha de Manaus (AM). Saúde Soc. 2023; 32:e220612pt.. Via de regra, os espaços metropolitanos concentram não só serviços especializados, mas também a rede de urgência e emergência.

Vale destacar que a ‘ruralidade’ dos municípios amazônicos que são interligados por via terrestre, principalmente na porção oriental da região, pode ser bem diversa dos municípios da Amazônia ocidental, cuja conexão é predominantemente fluvial. Essa diferença nas vias de acesso impacta no tempo e no custo para deslocamento de usuários, assim como na demanda por serviços de saúde99 Kadri MR, Schweickardt JC, Freitas CM. Os modos de fazer saúde na Amazônia das Águas. Interface (Botucatu). 2022 [acesso em 2023 fev 14]; 26. Disponível em: https://doi.org/10.1590/interface.220056.
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.

Este estudo analisa a complexa articulação da Atenção Básica (AB) com a Atenção Especializada no uso da rede a partir da lógica regional, que nem sempre se limita ao traçado de fronteiras municipais em uma região rural peculiar de várzea amazônica com fluxos fluviais, buscando discutir as condições políticas e geográficas que impactam na conformação da rede assistencial.

Metodologia

Como um estudo de caso, elegemos uma região localizada na porção central do Estado do Amazonas que bem representa a dinâmica de um território de várzea: ligações intermunicipais exclusivamente por via fluvial, população dispersa em grandes extensões territoriais, limitada oferta de serviços especializados públicos e privados, incluindo saúde. Por sua posição central na Amazônia Ocidental e que apresenta certa concentração de pessoas, informação, equipamentos e infraestrutura, selecionamos nesse estudo a região conhecida como Triângulo (confluência dos rios Japurá, Juruá e Solimões-Amazonas), tendo a cidade de Tefé como polo dinamizador e luminoso regional (figura 1). A partir de Manaus, o acesso à cidade pode ser feito em voo comercial (1h de viagem) ou por via fluvial em lancha a jato (14h30min subindo o rio, 13h descendo). A partir de Tefé, todos os municípios do entorno só são acessíveis por via fluvial.

Figura 1
Região do estudo

Para entender a complexidade do uso da rede a partir da lógica regional que nem sempre é circunscrita no traçado de fronteiras municipais, foi necessária uma combinação de estratégias qualitativas e quantitativas. Os dados de campo foram coletados em duas viagens realizadas em setembro de 2020 (período da seca) e em abril de 2021 (período da cheia).

Para descrição da rede assistencial, utilizou-se os dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), sendo que a confirmação do funcionamento ativo de cada serviço foi realizada nas viagens de campo. Para identificação dos agravos predominantes na região, foi feito um levantamento na base de dados do Sistema de Informação Ambulatorial (SIA) e Sistema de Informação Hospitalar (SIH), ambos disponíveis publicamente na plataforma do Datasus, entre os anos de 2015 e 2019, o que evidenciou Tefé como polo de referência para serviços dos municípios de Alvarães, Fonte Boa, Japurá, Juruá, Jutaí, Maraã e Uarini.

Para mapeamento dos trajetos percorridos, definindo distâncias e tempos entre Tefé e as sedes dos demais municípios da região, nas viagens de barco, utilizou-se o aplicativo Wikiloc, à exceção de Juruá e Fonte Boa que não foram visitados.

Para entendimento dos arranjos formais e informais para referência de pacientes entre os serviços da rede no fluxo intrarregional, foram analisadas as informações sobre despesas e repasses coletadas no Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), do Ministério da Saúde. Foram realizadas, também, entrevistas com 18 gestores de saúde com um roteiro semiestruturado em três blocos: organização da AB no município, acesso à assistência hospitalar e ambulatorial regional e impacto da sazonalidade fluvial no acesso à rede sanitária. A partir da análise de conteúdo, as entrevistas ajudaram a revelar os arranjos locais na transferência de usuários, bem como a esclarecer os dados encontrados nos sistemas de informação. Foram entrevistados 5 secretários municipais, 5 coordenadoras de AB, 5 diretores hospitalares e 3 coordenadores da vigilância em saúde. As entrevistas foram individuais, realizadas por dois pesquisadores e duraram em média 40 minutos. Todas foram gravadas em áudio, transcritas na íntegra e analisadas com auxílio do software MaxQDA 2020.

Na sessão seguinte, os resultados e discussão foram organizados em dois tópicos: o primeiro reúne os dados obtidos na análise e descrição da rede sanitária (CNES), identificação dos agravos (SIA, SIH) e do mapeamento dos trajetos (Wikiloc); o segundo reúne os dados obtidos na análise dos arranjos para referência de usuários (Siops e entrevistas).

Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa ‘Território no Planejamento da Saúde na Região Amazônica’ e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, sob o CAAE 27567219.2.0000.5240, em 21 de fevereiro de 2020.

Resultados e discussão

A rede de serviço e a situação de saúde da regional

A área territorial do estudo abrange oito municípios, totalizando 213.603,766 km2 onde residem 163.897 pessoas (densidade de 0,77 hab./km2) com certa paridade entre população rural e urbana, 45% e 55% respectivamente, a exceção de Tefé, que soma 81% pessoas vivendo na sede do município1010 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática - SIDRA. Banco de tabelas estatísticas. 2019. [acesso em 2023 fev 14]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br.
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. Exemplificando o desafio que essa questão da escala representa para organização de um sistema universal, em extensão territorial a área do estudo equivale a quase 5 vezes o estado do Rio de Janeiro, contudo toda a população da região equipara-se àquela residente no bairro de Copacabana, na capital fluminense. Não se trata apenas da diferença de números e escala, mas principalmente do uso e ocupação muito distintos dos respectivos territórios: um notadamente urbano com concentração de pessoas e serviços e outro com uma ruralidade orientada a partir de fluxos fluviais e dispersão de serviços e pessoas. Nesses cenários tão distintos, as necessidades de saúde das populações, assim como os desafios para prover serviços de saúde, exigem arranjos organizativos do SUS que sejam igualmente diferenciados.

Xavier et al.1111 Xavier DR, Oliveira RAD, Barcellos C, et al. As Regiões de Saúde no Brasil segundo internações: método para apoio na regionalização de saúde. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(supl2):e00076118. apontam que pensar numa política regionalizada requer estabelecer conexões entre as necessidades de saúde, características dos usuários e a distribuição dos equipamentos sanitários em uma região, enfatizando que a lógica de uso dos serviços de saúde é orientada mais pela oferta de transporte intrarregional do que simplesmente pelos limites intermunicipais. Segundo esse estudo, a média de distância percorrida pelos usuários que buscam atendimento no SUS na região Norte é a maior do País, estimada em 235 km, sendo que no Amazonas é ainda maior, com cerca de 300 km. No entanto, destacamos que a locomoção em regiões de várzea segue o curso do rio e por isso varia a depender da sazonalidade do período de seca ou cheia. Em nosso estudo, tomando Tefé como ponto de origem, a distância entre o polo regional e os demais municípios que compõe a região variou entre a maior, de 433 km (Tefé-Japurá), ou 10h47min, e a mais próxima, de 32 km (Tefé-Alvarães) ou 1h10min percorridos por lancha a jato (motor com potência de 500 a 650 hp). Com essas enormes distâncias, considerando que o tempo é crucial para desfechos positivos, faz-se uso de aeronaves para transporte de casos urgentes, embora sejam operações de alto custo. Os municípios solicitam a remoção via Sistema de Regulação da UTI aérea (Sister), serviço ofertado pela Secretaria Estadual de Saúde (SES) que inclui também a regulação do leito para internação na capital Manaus.

A investigação das causas de internação a partir dos dados do SIH mostrou que, entre 2015 e 2019, os leitos de maternidade responderam por 48% do total de 40.583 internações, sendo a primeira causa em todos os municípios. Os demais agravos tiveram distribuição similar, sendo doenças do aparelho digestivo (8,2%), respiratório (7,7%), geniturinário (7%), causas externas (6,5%) e doenças infecciosas e parasitárias (6%). A tabela 1 mostra a distribuição dos principais agravos por município, com destaque para internações por lesões (acidentais ou intencionais) e outras causas externas que aparecem dentre as mais prevalentes, principalmente por causa das ocorrências em Tefé, situação característica de uma dinâmica mais urbana.

Tabela 1
Principais causas de internação região do Médio Solimões 2015 - 2019

Reconhecer a situação sobre agravos prevalentes por município é fundamental para definir prioridades em termos de alocação de profissionais especialistas, pactuar tipo e volume de procedimentos a serem ofertados para os municípios mensalmente e, estimar progressão da demanda para expansão atempada da rede. Contudo, a defasagem dos dados informados no SIA e SIH relatada pelos gestores prejudica o uso dessas informações para planejamento da rede assistencial. Segundo eles, com frequência são registrados apenas os procedimentos pactuados na Programação Pactuada Integrada (PPI), cuja última atualização é de 2005, e não de fato todos os procedimentos realizados no município. Além disso, há o problema de procedimento não reconhecido no processamento da produção (glosa) tais como: erros de digitação, procedimento não programado no CNES ou não compatível para o Código Brasileiro de Ocupações (CBO), dados do Cartão Nacional de Saúde inválidos, procedimento ultrapassa o teto financeiro programado, duplicação da produção no sistema.

Por outro lado, como há repasse federal regular e automático para financiamento da Média e Alta Complexidade, o recebimento de recurso não está atrelado ao reporte de dados via sistema de informação e isso faz com que haja municípios da região sem nenhum registro de atendimento por vários meses ou anos seguidos, inviabilizando análises e planejamento da oferta de serviços. Para Duarte et al.1313 Duarte LS, Mendes ÁN, Louvison MCP. O processo de regionalização do SUS e a autonomia municipal no uso dos recursos financeiros: uma análise do estado de São Paulo (2009-2014). Saúde debate. 2018; 42(116):25-37., essa lógica de financiamento tem limitado a autonomia do ente municipal, que passa a priorizar ações financiáveis em detrimento de uma assistência mais adequada às necessidades de seus territórios.

Os gestores municipais entrevistados destacaram que as unidades hospitalares realizam um número de atendimentos superior ao que consta nos bancos oficiais, contudo o baixo volume de dados informados prejudica análises mais refinadas, inviabilizando comparações, estimativas e desagregação dos dados, além de prejudicar cálculo de estimativas de demanda - tipo e volume de procedimentos necessários - para um mais apurado planejamento dos serviços necessários.

Quanto à rede sanitária, devido à grande extensão territorial, no Amazonas todos os 62 municípios possuem pelo menos uma unidade hospitalar, embora com frequência estas enfrentem dificuldades para ofertar procedimentos de maior complexidade, principalmente devido à falta de profissionais especializados e disponibilidade de serviços de diagnósticos. A exceção do município-polo Tefé, que conta com oferta de vários serviços particulares, nos demais municípios toda a rede sanitária é exclusivamente pública.

O que determina o uso dos serviços sanitários é a necessidade de saúde de uma população e como o serviço está organizado para ofertar a assistência quanto ao acolhimento, disponibilidade de equipamentos, definição e facilitação de fluxos1111 Xavier DR, Oliveira RAD, Barcellos C, et al. As Regiões de Saúde no Brasil segundo internações: método para apoio na regionalização de saúde. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(supl2):e00076118.. Isso significa que o acesso vai ficando mais restrito quando a necessidade de saúde exige intervenções de maior densidade tecnológica, ou seja, à medida que se distancia de centros urbanos concentradores de profissionais, equipamentos e serviços. Nesses casos, a existência e facilidade para circular pelos fluxos que ligam os nós da rede de assistência é fundamental na garantia do direito à saúde.

Embora em 2019 a cobertura da AB nos municípios analisados tenha sido muito alta (cerca de 98%), essa média deve ser relativizada pois não necessariamente significa acesso à assistência adequada, uma vez que muitas são áreas cobertas por equipes baseadas na sede dos municípios que atendem a essa população rural, comprometendo assim o acompanhamento regular pelas equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF)1414 Garnelo L, Lima JG, Rocha ESC, et al. Acesso e cobertura da Atenção Primária à Saúde para populações rurais e urbanas na região norte do Brasil. Saúde debate. 2018; 42(esp1):81-99..

Segundo Soares Filho et al.1515 Soares Filho AM, Vasconcelos CH, Dias AC, et al. Atenção Primária à Saúde no Norte e Nordeste do Brasil: mapeando disparidades na distribuição de equipes. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27:377-86., uma característica de municípios muito extensos no Brasil é que, embora metade da população resida na zona rural em uma maior porção territorial, geralmente as zonas urbanas concentram mais da metade das unidades sanitárias. Tal situação também foi verificada em nosso estudo, pois considerando a rede de AB e Hospitalar, a região toda conta com 31 unidades em zona urbana, 15 em zona rural e 5 Unidades Básicas de Saúde Fluviais (tabela 2). Ponderando a extensão territorial dos municípios e concentração de equipamentos na sede municipal, grande parte do território permanece desassistido de equipamentos de saúde. Vale destaque para as UBS fluviais presentes em cinco dos oito municípios da região, sendo que em Fonte Boa e Juruá não há unidades de saúde fixas nas zonas rurais e a população ribeirinha conta exclusivamente com assistência da UBS fluvial. Este é um potente equipamento para superar iniquidades do acesso a populações que historicamente são excluídas da atenção à saúde1616 Kadri MR, Debra RW, Julio CS, et al. The Igaraçu fluvial mobile clinic: Lessons learned while implementing an innovative primary care approach in Rural Amazonia, Brazil. Int J Nurs Midwifery. 2017; 9(4):41-5., contudo a pesquisa constatou que a sazonalidade do rio tem inviabilizado viagens durante o período da seca. As UBS fluviais e a implantação das Equipes de Saúde da Família Ribeirinhas são estratégias que têm contribuído para o aumento da cobertura da AB, sobretudo no último triênio1717 Lima RTS, Fernandes TG, Martins Júnior PJA, et al. Saúde em vista: uma análise da Atenção Primária à Saúde em áreas ribeirinhas e rurais amazônicas. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(6):2053-64..

Tabela 2
Área, população rural e distribuição de unidades sanitárias na região

Quanto aos serviços disponíveis na rede hospitalar dos municípios do entorno de Tefé, os gestores afirmaram que os procedimentos realizados são pequenas e médias cirurgias (de hérnia, vesícula, cálculos, abcessos, partos) e estabilização em caso de agravamento de condição crônica (pico hipertensivo ou diabetes principalmente). Em casos urgentes, como traumas complexos, parto de risco e agravamento de condição clínica, os municípios transferem pacientes para o Hospital Regional de Tefé. Exceção é Japurá que, embora tenha um mais novo, equipado e amplo prédio hospitalar, a referência é feita primeiramente para Maraã devido à proximidade, apesar deste ter uma estrutura física mais precária. Já no caso de Jutaí, Juruá e Fonte Boa, as urgências são encaminhadas principalmente para Manaus, embora Tefé tenha registrado atendimentos de pacientes provenientes desses municípios em todos os meses do período analisado (figura 2). No entendimento dos gestores, isso acontece principalmente porque as pessoas solicitam ser transferidas para Tefé por terem uma rede de suporte familiar neste município.

Figura 2
Mapa de fluxo de referências hospitalares em 2019

Apesar de Jutaí e Fonte Boa pertencerem normativamente a outra Região de Saúde (Alto Solimões), os gestores referiram que a população subverte o fluxo instituído, preferindo se deslocar à Tefé para acessar consultas especializadas, pois conciliam suas demandas de saúde com serviços bancários, assistência social, lazer ou comércio. Isso aponta para a necessidade de repensar as regiões de saúde a partir do que já existe no território, sendo contraproducente planejar fluxos que sejam exclusivos desse setor e que ignorem a rede de transporte e a relação entre populações desses municípios1919 Guimarães RB. Regiões de saúde e escalas geográficas. Cad. Saúde Pública. 2005; 21(4):1017-25..

Para acesso a serviços como saúde mental, fisioterapia, pediatria, exames etc., os municípios custeiam estadia e transporte da população à Tefé ou Manaus. Em caso de tratamentos de longa duração, como oncológico ou hemodiálise, o serviço está disponível apenas na capital, cabendo ao paciente e família custear a moradia ou deslocamento regular para Manaus.

As entrevistas evidenciaram que a referência para serviço de urgência e emergência é o que de fato é operacional na região. Outras referências para consultas especializadas ou exames de maior complexidade, são sempre encaminhadas para Manaus e custeadas majoritariamente pelos municípios. Essa concentração e dependência da capital é comum também em outros estados no País2020 Roese A, Gerhardt TE, Miranda AS. Análise estratégica sobre a organização de rede assistencial especializada em região de saúde do Rio Grande do Sul. Saúde debate. 2015; 39(107):935-47.. Os gestores de Tefé apontaram que o município reúne condições para atender outras especialidades, como ortopedia, cardiologia, oftalmologia e gastroenterologia dentre as mais demandadas, desde que houvesse maior apoio para contratação de pessoal especializado, pagamento de insumos e organização do fluxo de referência-contrarreferência na rede regional, o que não é possível sem pactuação intergestores e suporte principalmente da SES. Isso reduziria muito a necessidade de encaminhamento para capital e consequentemente o tempo de espera por consulta ou procedimento nestas especialidades.

A escassez de profissional médico, sem dúvida, é um limitador para expansão da assistência em qualquer nível da rede e, como consequência faz com que o mesmo profissional atenda a diferentes municípios2121 Schweickardt JC, Lima RTS, Kadri MR, et al. Cenário da Gestão do Trabalho no Amazonas: fixação e provimento de profissionais de saúde no SUS. Manaus: Fiocruz Amazônia, ILMD; 2016. (Relatório de Pesquisa).. Dada as distâncias a percorrer nos rios amazônicos, isso significa contar com profissional em poucos dias na semana e, assim, há concentração de pacientes e muitas consultas a serem realizadas no mesmo dia. Santos e Giovanella2222 Santos AM, Giovanella L. Estratégia Saúde da Família na coordenação do cuidado em região de saúde na Bahia. Saúde debate. 2016; 40(108):48-63.(55) apontam que esse duplo vínculo pode levar a degradação do trabalho clínico e fabricar “um médico produtor de demandas” que simplesmente atende a solicitação dos pacientes por exames e consultas especializadas, por não ter tempo de explicar sobre reais necessidades e riscos e tampouco realizar adequadas anamneses.

Arranjos interfederativos para efetivação da rede de saúde regional

A iniquidade territorial é um grande desafio para efetivação da integralidade do SUS. Não há como um único ente realizar solitariamente da vacina ao transplante, seja porque os recursos financeiros e capacidade técnica estão centrados desigualmente em alguns pontos, seja porque a garantia do direito à saúde é responsabilidade compartilhada pelos três entes subnacionais2121 Schweickardt JC, Lima RTS, Kadri MR, et al. Cenário da Gestão do Trabalho no Amazonas: fixação e provimento de profissionais de saúde no SUS. Manaus: Fiocruz Amazônia, ILMD; 2016. (Relatório de Pesquisa).. Nesse ponto, destaca-se o argumento sobre o SUS como garantidor de direito, mas também como agente de desigualdades2323 Albuquerque MV. O território usado e saúde: respostas do Sistema Único de Saúde à situação de metropolização em Campinas/SP. [dissertação]. [Campinas]: Universidade de São Paulo; 2006.. Nem todos os lugares receberam o SUS ao mesmo tempo e da mesma maneira e essa diferença se dá porque cada um tem combinação de técnicas diferentes num tempo específico2424 Santos M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: EDUSP; 2017. 384 p. (Coleção Milton Santos)., por isso o SUS é único como política, mas não como um objeto técnico que se distribui desigualmente nos diferentes lugares. O acesso universal é uma ferramenta de modernização ao trazer saúde como direito comum em todos os lugares, mas paradoxalmente é também seletivo à medida que só pode se desenvolver concentrando técnicas e recursos em alguns ‘pontos luminosos’ em detrimento de outros tornados opacos, exacerbando assim desigualdades.

No cenário de estudo, isso se verifica na tensão entre Tefé e os municípios do entorno e entre a região em relação a rede de serviços da capital. Regiões metropolitanas concentram equipamentos, profissionais, formação de competências e poder de decisão. O uso do território é orientado pela racionalidade do lucro e da produção; os lugares só valem à medida que produzem valor. Se não produzem, não são dignos de dispor de instrumentos e objetos técnicos que preservem e/ou recuperem a vida humana e do ambiente. Isso é fundamental para entender as relações intermunicipais no estudo. Estudar o uso do território pela saúde é evidenciar essa seletividade, reconhecendo que ela interfere na consolidação do SUS2323 Albuquerque MV. O território usado e saúde: respostas do Sistema Único de Saúde à situação de metropolização em Campinas/SP. [dissertação]. [Campinas]: Universidade de São Paulo; 2006..

Para assegurar a integralidade do cuidado, a AB precisa de serviços de diagnóstico e apoio de especialistas, cabendo ao ente federativo de maior porte a responsabilidade no financiamento, regulação de fluxos de referência e pactuações, de modo que cidadãos de municípios menores possam acessar essa rede de serviços especializados no município-polo regional2525 Santos L. Região de saúde e suas redes de atenção: modelo organizativo-sistêmico do SUS. Ciênc. saúde coletiva. 2017; 22(4):1281-9.. No entanto, como não há obrigatoriedade de um município ofertar serviços para além de suas fronteiras, é primordial que o ente federal e o estadual atuem assegurando que os serviços especializados estejam disponíveis em tempo oportuno no nível regional mais perto possível da população.

No caso analisado, Tefé concentra equipamentos e assume responsabilidade pelo atendimento de usuários de municípios vizinhos. Embora não haja regramento legal sobre a responsabilidade do gestor estadual no processo de regionalização, sem ele não há como conduzir o planejamento de uma rede de serviços regionalizada conforme determina a Constituição Federal e a omissão desse ente não tem contribuído para ampliação da rede regional. Quanto ao arranjo intermunicipal, os gestores dos demais municípios reconhecem a centralidade e solidariedade de Tefé no atendimento aos pacientes dos municípios do entorno, no entanto dizem desconhecer os mecanismos para financiamento dessa rede, evidenciando a inexistência de pactuações intermunicipais na gestão da rede regionalizada. Sem novos aportes para constituição dessas redes, o arranjo regional permaneceu condicionado aos recursos pactuados na PPI, tal como ocorre em outros estados2626 Bousquat A, Giovanella L, Fausto MCR, et al. A atenção primária em regiões de saúde: política, estrutura e organização. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(supl2):e00099118..

Segundo o Relatório de Gestão da Secretaria Estadual de Saúde2727 Amazonas SES. Relatório Anual de Gestão 2019. 3o quadrimestre. 2019. p. 143. [acesso em 2023 fev 14]. Disponível em: http://www.saude.am.gov.br/docs/rel_gest/gestao2019.pdf.
http://www.saude.am.gov.br/docs/rel_gest...
, em 2019 apenas 5% das despesas liquidadas foram para o Fundo Estadual de Saúde, valor que se dividido igualmente entre os municípios equivaleria a cerca de R$2 milhões/ano para cada um. Excetuando cinco unidades sob gestão estadual fora da capital, o pagamento de alguns profissionais lotados em unidades de saúde no interior e os medicamentos ofertados pela Central de Medicamento, todas as demais estruturas que recebem recursos diretamente da SES-AM estão na capital, revelando a superconcentração de ações e serviços em Manaus.

Essa situação evidencia a não priorização dos investimentos no fortalecimento das redes regionais não só na região analisada, mas também em todo o estado, o que tem sobrecarregado financeiramente principalmente os municípios-polo e restringido o acesso a serviços além da AB nos demais municípios.

No caso de Tefé, entre 2015 e 2019 os dados reportados no Siops mostram aumento progressivo nas despesas do município com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS), chegando a quase o dobro no período de 5 anos. Desagregando os valores por competência federativa evidencia-se o ônus do município em torno de 21,31%, porcentagem superior ao que determina a Lei Complementar nº 141/2012 (gráfico 1). É possível que a participação do ente estadual esteja subdimensionada, o que reafirma o problema da notificação para eficiente planejamento dos recursos e dos serviços da rede de saúde regional.

Gráfico 1
Valores empenhados em ações na Atenção Básica e assistência hospitalar* de Tefé com relação aos gastos por ente federado, 2015-2019

Apesar da importância para a região e da capacidade de sua rede especializada para atender outras demandas além das urgências, Tefé conta com insuficiente contribuição do governo estadual cuja responsabilidade limita-se ao pagamento de alguns poucos profissionais e 50% de medicamentos e insumos do hospital, conforme relato dos entrevistados. O ente federal permanece sendo o grande financiador do sistema junto com os recursos próprios do governo municipal. A exceção dos anos de 2015 e de 2019, o investimento na assistência hospitalar nos demais anos foi mais que o dobro do valor empenhado na AB. Considerando as despesas empenhadas no período acima, o município de Tefé alocou 57,42% em assistência hospitalar e ambulatorial e 33,66% na AB. O peso para o gestor municipal é um importante impeditivo para ampliação da oferta e abertura de novos serviços.

Nos demais municípios da região, o investimento foi maior na AB, sendo que a participação estadual em média não ultrapassou 5% das despesas em ASPS. No período de 5 anos2828 Brasil. Ministério da Saúde. Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde. [acesso em 2021 jul 14]. Disponível em: http://siops.datasus.gov.br/filtro_rel_ges_dt_municipal.php.
http://siops.datasus.gov.br/filtro_rel_g...
na região, a despesa federal reportada foi de R$ 245.715.613,34, despesa estadual R$ 22.296.315,94 e despesas dos municípios R$ 194.035.971,19.

A proposta preliminar que definiu as Regiões de Saúde no Estado, e por consequência definiu as Comissões Intergestores Regionais (CIR), foi aprovada pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) em 2011. Contudo as CIR só foram de fato implantadas a partir em 2013, quando a SES-AM empenhou esforços para efetivar os dispositivos da Regionalização conforme disposto no Decreto Federal nº 7.508/2011. Apesar da CIR ser a instância de articulação entre gestores estaduais e municipais para pactuação de serviços a serem ofertados em diferentes níveis de atenção dentro da região de saúde2323 Albuquerque MV. O território usado e saúde: respostas do Sistema Único de Saúde à situação de metropolização em Campinas/SP. [dissertação]. [Campinas]: Universidade de São Paulo; 2006., no Amazonas seu funcionamento tem sido muito irregular e está num processo progressivo de esvaziamento, em especial no último triênio.

Os entrevistados apontaram a inoperância da Comissão para articular melhor uma coordenação com a gestão estadual. Por vezes, as questões perdiam o foco sobre o planejamento estratégico regional por conta da ausência do ente estadual e as reuniões funcionavam como espaço de lamentação, uma vez que a CIR não tem poder de decisão e todas as demandas locais precisavam ser repassadas para deliberação na CIB. Isso comprometeu a credibilidade da instância regional até a total paralisação das atividades a partir de 2019.

Apesar do Ministério da Saúde ter definido de antemão algumas temáticas prioritárias para Redes de Atenção à Saúde2929 Magalhães Junior HM. Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade. Divulg saúde debate. 2014; (52):15-37., as responsabilidades sanitárias entre os entes subnacionais não podem ser reguladas a priori uma vez que é irreal prever a infinidade de cenários possíveis devido às desigualdades geográficas, sociais e políticas nos territórios2323 Albuquerque MV. O território usado e saúde: respostas do Sistema Único de Saúde à situação de metropolização em Campinas/SP. [dissertação]. [Campinas]: Universidade de São Paulo; 2006.. Se não existem regiões sem redes3030 Albuquerque MV, Viana ALd’Á. Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira. Saúde debate. 2015; 39(esp):28-38., quer sejam elas técnicas, sociais ou políticas, seria coerente que a saúde identificasse quais as redes e fluxos já existem nos territórios. A título de exemplo, nosso estudo identificou, como já exposto anteriormente, que Jutaí e Fonte Boa têm uma série de serviços financeiros e bancários, equipamentos do poder judiciário, educacional, órgãos de controle e segurança com sede regional em Tefé, no entanto o município de referência para saúde é Tabatinga. Nos dados do SIH, entre 2015 e 2019 na unidade hospitalar de Tabatinga, não há registro de nenhum paciente de Fonte Boa e apenas 2 de Jutaí. Na prática, como Tabatinga tem oferta de transporte mais difícil e como a norma não permite transferência para Tefé, os gestores optam por referir pacientes diretamente para Manaus, elevando custo de operação de todo o sistema estadual.

A falta de articulação regional e a acentuada assimetria fiscal e social agrava situações como disputa predatória por profissionais (principalmente médicos especialistas), demora para consultas e exames, sobrecarga de demanda de pacientes2626 Bousquat A, Giovanella L, Fausto MCR, et al. A atenção primária em regiões de saúde: política, estrutura e organização. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(supl2):e00099118. e custo elevado para o município-polo da região. Apesar das regulamentações e todo processo de incentivo do gestor federal, persistem dificuldades para planejamento e pactuação política, financeira e administrativa nos territórios. As entrevistas apontaram que a corresponsabilização no financiamento e gestão da rede requer um arranjo político sofisticado e principalmente solidário.

Tefé como dinamizador regional, atrai população de municípios vizinhos que aí fixam residência em busca principalmente de trabalho ou educação. Segundo os gestores, quando é necessário um serviço especializado, o usuário que tem condições de custear o deslocamento, procura por conta própria diretamente consultas e exames em Tefé, alegando ser residente na casa de parentes no município. Esse movimento, embora perfeitamente justificável do ponto de vista individual, gera dificuldades para quantificar a demanda e consequentemente planejar oferta de serviços e fluxos organizativos, com impacto mais grave principalmente na rede de saúde do município-polo.

Por outro lado, os usuários sem condições de bancar esse deslocamento por conta própria seguem o fluxo normativo estabelecido, contando com assistência das casas de apoio mantidas pelas prefeituras municipais em Tefé ou Manaus. As equipes das casas de apoio dão suporte de transporte e alojamento enquanto o usuário necessitar permanecer no município prestador de assistência. Nesse caso, a equipe da regulação do município de origem é a responsável por tal coordenação.

Santos e Giovanella2222 Santos AM, Giovanella L. Estratégia Saúde da Família na coordenação do cuidado em região de saúde na Bahia. Saúde debate. 2016; 40(108):48-63. descrevem ainda que profissionais usam do argumento da amizade com colegas em outros pontos de assistência para tentar resolver demandas que ficam paradas em algum ponto da rede. Contraditoriamente são os profissionais mais antigos e mais comprometidos com resolutividade que mais usam tal estratégia para desemperrar a burocracia dos fluxos assistenciais. Isso foi verificado tanto no encaminhamento de pacientes para Manaus quanto para a rede regional.

Destacamos como principais limites desta pesquisa a não inclusão de Manaus como ponto importante da rede para população residente na região do estudo e a baixa consistência dos dados disponíveis nos sistemas de informação, o que impossibilitou análises mais detalhadas sobre a situação de saúde dos municípios. Para contornar tais limites, as entrevistas com gestores foram fundamentais como fonte de informação para compreender os arranjos estabelecidos localmente e os desafios ainda não superados pelo SUS para assegurar a integralidade do cuidado aos brasileiros residentes nesta porção do País.

Conclusões

A articulação da AB para serviços de Atenção Especializada, seja ambulatorial ou de emergência, não se limita a análise de fluxos entre demanda e oferta no compartilhamento da rede de atenção em saúde, mas sobretudo em compreender sob que condições políticas, geográficas e sociais a rede é estabelecida.

A construção de um sistema de atenção integrado requer um nível de gestão que seja acima do municipal, pois legalmente este ente não tem responsabilidade de ofertar serviços para outros além de seus próprios munícipes, e abaixo do nível central, que não reúne condições de monitorar e propor soluções territorializadas adequadas para demanda peculiar da várzea amazônica. Desse modo, o estudo evidenciou o fundamental papel do gestor estadual como nível intermediário para planejamento e apoio a rede regionalizada quanto a: a) provisão de profissionais, principalmente especialistas, de modo a evitar competição desigual por médicos entre os municípios; b) assegurar rede de suporte diagnóstico para AB, seja pela implantação de serviços físicos ou via teleconsultas; c) pactuação entre os municípios que compõe a região de modo a estabelecer fluxos de encaminhamento de pacientes tanto na assistência ambulatorial, atualmente pouco operacional, quanto serviço de emergência, sendo necessária a redefinição de quais municípios de fato têm Tefé como referência, e por fim; d) orientação aos municípios para correto preenchimento dos sistemas de informação e base de dados, sem os quais não é possível planejar assertiva e atempadamente a rede de cuidado, as condições de saúde e agravos prevalentes em todos os municípios da região.

Apesar do aumento progressivo de despesas em saúde em todos os municípios analisados, mesmo nos cinco anos antes da pandemia, a oferta de serviço para além da AB permanece sendo um grande desafio para o SUS na ruralidade da várzea amazônica. A resposta às diversidades regionais exige criatividade e solidariedade entre os gestores dos três níveis federativos. Sem isso, a rede sanitária de Tefé continuará sobrecarregada e o rol de serviços necessários para a população da região permanecerá muito restrito, ofertando serviços abaixo do que é a demanda da região. Aumentar investimentos na rede de saúde de Tefé pode potencialmente melhorar o acesso à saúde para a população de toda Região do Triângulo.

  • Suporte financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas - Edital n. 001/2017 - PPSUS-AM. A primeira autora foi bolsista do Programa PROPG-Capes/Fapeam, Edital 006/2018

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Editora responsável: Jamilli Silva Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2023
  • Aceito
    18 Set 2023
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