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Soberania alimentar: uma perspectiva cética1 1 Este artigo é a versão integral de trabalho apresentado originalmente no Congresso "Food Sovereignty: a Critical Dialogue", 1-15 de setembro de 2013, na Universidade de Yale, EUA. Uma versão reduzida do mesmo foi publicada em inglês no Journal of Peasant Studies (JPS), 41(1-2), janeiro de 2014. A presente versão ampliada e traduzida para o português para Sociologias é publicada com a autorização do JPS. Não reivindico familiaridade com todo o quantum, ou extensão, da literatura gerada pela SA, ampliada pelos sites de internet das várias organizações dedicadas ao tema. Ao elaborar este artigo, apoiei-me em uma coletânea de conhecidos ensaios editados por Hannah Wittman, Annette Aurélie Desmarais e Nettie Wiebe (2010), em que os principais defensores norte-americanos, ou baseados na América do Norte, da SA estão bem representados e da qual extraí muitos dos meus 'casos emblemáticos' do debate e proposta da SA. O enfoque deste trabalho vincula-se, ou colide, com uma série de questões importantes, debates e literaturas conexas - por exemplo, relativas à acumulação primitiva, às bases teóricas das histórias do capitalismo, à ecologia política, a 'camponeses' e 'comunidade rural' - as quais, em geral, só posso referir, mas não tratar amplamente. ⧫Tradução: Regina Vargas. Revisão da técnica: Sergio Schneider (UFRGS) e Sergio Sauer (UNB).

Food Sovereignty: A Skeptical View2 2 Antecipando um pouco o que virá a seguir, trago um exemplo relacionado aos debates acerca da continuidade ou possível crescimento da fome e da desnutrição (item 10 da lista). Frequentemente, e com razão, ambas são atribuídas às dinâmicas da desigualdade e da pobreza: quem sofre a fome - e por que - é uma questão de crises de reprodução dentro daquilo que chamo 'classes de trabalho' (ver adiante), os milhões que 'não podem comprar ou produzir alimento suficiente' (OXFAM 2010, 2, grifo meu), dos quais os primeiros incluem muitos dos pobres rurais, assim como os urbanos. Além disso, a (in)capacidade de comprar alimentos é, muitas vezes e com razão, atribuída às relações de distribuição(quem recebe o quê) no mundo capitalista contemporâneo, e não resultado de algum déficit na produção mundial de alimentos (ALTIERI e ROSSET, 1999). A diferença entre comprar alimento e produzi-lo para o consumo próprio é, contudo, frequentemente omitida (com marcada preferência, na SA, pelo último). Um exemplo atual dos problemas de prova, aqui, é a avaliação crítica do último relatório da FAO State of Food Insecurity (2012) por parte de um grupo organizado por Small Planet (2013). A referida crítica cita como exemplo sete países que reduziram significativamente a fome - um grupo meio insólito que reúne Gana, Tailândia, Vietnã, Indonésia, Brasil, China e Bangladesh. Seu êxito é atribuído a políticas progressistas relacionadas à agricultura e/ou à proteção social. O documento cita a Oxfam (2010) como uma de suas fontes. Eis aqui parte do que diz a Oxfam (2010, 25-6) sobre o Vietnã: O processo iniciou-se com a reforma agrária, seguida do desenvolvimento de indústria intensiva em mão de obra e, mais recentemente, no fomento aos setores da eletrônica e de alta tecnologia, na esperança de tornar-se um país industrializado até 2020. A integração ao mercado global facilitou o aumento das exportações e do investimento externo. Antes importador de arroz, o Vietnã é hoje o segundo maior exportador mundial do mesmo. Como isto foi alcançado? O apoio público ao pequeno agricultor foi um fator importante. A descoletivização da propriedade e a abertura à importação de fertilizantes (cujo uso triplicou em razão dos baixos preços) possibilitaram um aumento exponencial da produção de alimentos. Como aponto adiante, os elementos que enfatizei frustram a perspectiva da SA.

Este trabalho busca identificar e avaliar alguns dos principais elementos que 'delimitam' a questão da Soberania Alimentar: (i) um ataque global à agricultura industrial e suas consequências ecológicas, no atual momento da globalização; (ii) a defesa de um (do) "modo camponês" como base de um sistema alimentar sustentável e socialmente justo; e (iii) um programa para concretizar esse objetivo mundial-histórico. Embora acolha o primeiro desses elementos, sou muito mais cético quanto ao segundo, pelo modo como a soberania alimentar concebe os "camponeses" e por seu postulado de que pequenos produtores adeptos da agricultura ecológica - de baixo consumo de insumos (externos) e intensiva em trabalho - podem abastecer o mundo. Daí meu argumento de que a soberania alimentar é incapaz de construir um programa viável (o terceiro elemento) para vincular as atividades de pequenos agricultores às necessidades alimentares de não agricultores, cujos números vêm crescendo tanto absolutamente quanto como proporção da população mundial.

Soberania alimentar; Agricultura capitalista; Camponeses; Relações de classe


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