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Realidade e utopia em pessoa(s)

Utopia and reality in pessoa(s)

RESENHA

Realidade e utopia em pessoa(s)

Utopia and reality in pessoa(s)

Renata Florentino

Mestranda do PPG em Sociologia da UnB

RESUMO

As ideologias que se propõem a transformar ou explicar o mundo, por vezes esquecem (intencionalmente ou por ingenuidade) as contradições do mundo prático. O conto de Fernando Pessoa, O Banqueiro Anarquista, ilustra a maleabilidade de ideologias sociais entre seus próprios defensores, construindo um personagem que, ao mesmo tempo em que se diz anarquista em teoria e prática, é dono de uma poderosa instituição financeira: um banco. O aparente paradoxo é explicado com refinado discurso sociológico.

Palavras-chaves: Ideologia. Utopia. Anarquismo. Anarco-capitalismo. Fernando Pessoa.

ABSTRACT

The ideologies that aim to transform or explain the world sometimes forget (intentionally or naively) the contradictions of the practical world. Fernando Pessoa's short story "The Anarchist Banker" demonstrates the flexibility of the social ideologies among its own supporters, presenting a character that even though he says he is an anarchist in theory and practice, he owns a powerful financial institution: a bank. The apparent paradox is explained in a sophisticated sociological discourse.

Keywords: Ideology. Utopia. Anarchism. Anarcho-capitalism. Fernando Pessoa.

O Banqueiro Anarquista PESSOA, Fernando. Rio de Janeiro, José Olympio (Coleção Sabor Literário), 2006. 86 páginas.

O conto sobre o banqueiro anarquista recebeu a primeira e merecida edição brasileira de sua auto-explicação. O personagem de Fernando Pessoa (1888-1935), que carrega em si uma existência, à primeira vista quase impossível tem, numa conversa informal de fim de jantar, o palco para revelar sua trajetória recheada de nuances e soluções de um dilema: como se libertar das ficções sociais sem criar novas. O conto foi publicado inicialmente em 1922, mesmo tempo em que o italiano Errico Malatesta escrevia cartas e panfletos defendendo a criação de inusitados Partidos Anarquistas mundo afora. O paradoxo da ação real não tem o charme do paradoxo do conto literário, mas evidencia um tempo extremado de contradições e inquietações ideológicas, acompanhadas com atenção por Fernando Pessoa.

O lançamento do conto "O Banqueiro Anarquista", que conta com instigante apresentação feita por Francisco Maciel Silveira, ocorre no mesmo momento em que são relançados seus escritos econômicos, organizados pelo economista e ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, "A Economia em Pessoa - Verbetes Contemporâneos". Parte do interesse editorial por Fernando Pessoa atualmente deve-se ao fato de que suas obras já são de domínio público, mas parte ainda mais relevante deve-se ao fato de que os assuntos abordados por Pessoa se fazem presentes ainda hoje, e o tratamento recebido continua diferenciando-se em termos de habilidade e condução de palavras e idéias.

Nesse conto, Pessoa tece a história de um ex-militante operário que, frustrado com os rumos da ação política de seu grupo e outros, procura fazer a revolução social que lhe é possível, a sua própria. Percebendo lucidamente que, entre os discursos que visavam e prometiam um mundo sem tiranias, havia espaço para práticas de dominação entre os próprios membros da luta anarquista, ele parte para um exercício mental de procurar entender por que a ação política coletiva não se desenvolvia como era desejado. Este exercício, que resulta numa irônica provocação à realidade empírica na qual as utopias se encontram, atrai pela sedução aparentemente lógica seguida pelos argumentos.

Todavia, há que se ter cuidado com alguns pontos que podem passar despercebidos numa primeira leitura. Pessoa criou um personagem que estaria legitimado a analisar com propriedade o anarquismo, afinal, é um próprio anarquista a apontar falhas da doutrina, enquanto seu interlocutor (e nosso narrador) seria um leigo, sem força para contra-argumentar a exposição feita. O banqueiro encontra-se numa posição confortável para se explicar, até conseguir (nos) convencer, de que ele é ainda mais anarquista que seus antigos camaradas (p.27). Intitula-se anarquista na teoria e na prática, enquanto os outros só o seriam em teoria.

Vale perguntar, por que Pessoa classificou este conto como "conto de raciocínio"? Quem ele faz raciocinar? E que questões coloca em xeque? Claramente é feita uma crítica pertinente à realidade de diversos movimentos sociais e organizações políticas, com questões que continuam sem soluções, embora possam ter mudado de forma. É também uma provocação para os 'homens de carne e osso' que defendiam e tentavam realizar suas utopias tão perfeitas, e é ainda um libelo sobre as potencialidades da ação individual bem calculada (p.58 e 73).

O conto foi escrito na mesma época em que Robert Michels lamentava a oligarquização de diversos partidos operários na Europa (1914). Há que se ressalvar que a obra é um conto narrativo, não um tratado sociológico, mas traz uma abordagem altamente ideologizada sobre a realidade, com riqueza de idéias, até mesmo superior a alguns artigos de cientistas sociais. E, como o próprio poeta fala – por meio de seu banqueiro – a propaganda é das formas mais proveitosas de colaborar para uma luta política, quando realizada por grandes oradores, capazes de eletrizar multidões e arrastá-las atrás de si, ou os grandes escritores, capazes de convencer e fascinar com seus livros (p.63). Embora o personagem se furte desses caminhos, percebendo-se como alguém de perfil prático e operacional, mais adequado para a ação direta, não há margem de dúvida de que Pessoa trafega, neste conto, no caminho da propaganda.

E, antes de se acreditar nas promessas de peças de propaganda, não importando quão bem feitas estas sejam, faz-se necessário refletir antes de se deixar seduzir. Por exemplo, seria mesmo o ideal do anarquismo liberdade sem igualdade, conforme afirma nosso expositor? Claro que o anarquismo, em comparação com outras ideologias operárias de sua época, socialismo e comunismo, configura-se como o projeto de sociedade que se pretende mais generoso, mais radical, e, talvez por isso, mais romântico e pouco apegado aos limites deste mundo, oferecendo lacunas que são bem aproveitadas por Pessoa em suas tiradas. Ao longo do texto, será possível perceber que o banqueiro, é sim, mais anarquista que seus colegas, em teoria e prática, mas com indícios de um tipo especial de anarquismo, que seria chamado mais tarde de anarco-capitalismo.

Analista com olhar especialmente sofisticado, Pessoa antecipa de maneira formidável as discussões teóricas sobre a moderna organização social. Nas falas de seu banqueiro, poderiam encontrar-se trechos de obras escritas posteriormente e que hoje são reverenciadas por economistas, sociólogos e cientistas políticos, como Hayeck, David Friedman, Murray Rothbard e, no Brasil, José Guilherme Merquior e Roberto Campos.

Há, ao longo da conversa, a opção de relacionar liberdade na concepção de liberdade econômica, num sentido de permitir que as ações dos indivíduos, dentro de uma esfera de mercado, sigam seu rumo sem obstáculos, sem coerções externas para a emergência de seus talentos naturais (dons), conforme frisa ao longo da obra. Nesse momento, há quase um pecadilho de fatalismo cristão na abordagem:

O processo visa ao conseguimento da liberdade; ora, eu, tornando-me superior à força do dinheiro, isto é, libertando-me dela, consigo liberdade. (...) O ponto concreto é este: viso liberdade, consigo liberdade; consigo a liberdade que posso, porque, é claro, não posso conseguir a que não posso... [referindo-se ao fim das ficções sociais] (p. 69).

Há ainda a opção de enfatizar que a injustiça maior são as desigualdades socialmente constituídas, mas a desigualdade natural nem seria um problema a ser tratado, pois seria, afinal de contas, natural (p.55). Tal laissez-faire ganha destaque ímpar dentro do discurso de seu defensor, dizendo que cada um deveria sempre libertar-se sozinho, rejeitando a idéia de cooperação entre indivíduos, afirmando que combate a tirania do auxílio, que encara como uma espécie de tutela à liberdade alheia (p.53), numa demonstração de antipaternalismo. E também, não sem propósito, o personagem escolhe a ocupação de banqueiro (e não qualquer outro substituto da profissão de operário, como profissional liberal ou burguês mercantil) para se libertar da opressão financeira da sociedade capitalista, percebendo lucidamente que esta é das posições sociais mais privilegiadas na organização econômica de sua (e nossa) sociedade (p.67). Este seria o verdadeiro caminho anarquista (p.69), adquirir dinheiro em quantidade suficiente para que não se sentisse sua opressão.

Entretanto, não se menciona que este mesmo caminho seria, logicamente, inviável para todos os outros ex-militantes e, menos ainda, para todos os indivíduos de uma mesma comunidade. Ainda, há o discurso de desvalorizar as características associativas dos indivíduos, como se a vida em grupo não fosse tão natural quanto o instinto individual de preservação:

... a mesma lógica que me mostra que um homem não nasce para ser casado, ou para ser português, ou para ser rico ou para ser pobre, mostra-me também que ele não nasce para ser solidário, que ele não nasce para ser senão para ser ele próprio, e portanto o contrário de altruísta e solidário, e portanto exclusivamente egoísta. (p.45)

Há grande semelhança entre o que é apresentado no conto e nos discursos atuais de desacreditar na democracia enquanto sistema político (enquanto as falhas causadas pelos sistemas econômicos são sistematicamente omitidas) e a traduzi-la enquanto sistema de garantias econômicas para a emergência de talentos individuais (igualdade de oportunidade), omitindo a origem e reprodução das desigualdades do debate político.

Sem dúvida, o livro é leitura recomendada especialmente para antigos militantes de utopias já desconstruídas ou novos militantes de utopias ainda por tomarem corpo, como uma crítica fundamental à dificuldade operacional de implementação de projetos de novas sociedades que se esquecem de considerar falhas de seus próprios defensores. Esquecem e omitem da pauta de discussão de seus projetos políticos. Pessoa provoca essa discussão, elaborando-a com ironia e acidez. Haveria necessidade de um outro Fernando Pessoa, para escrever um conto satirizando os males da democracia liberal que, por vezes, mais concentra que distribui instâncias de decisões políticas, contrariando sua promessa original, tal qual o anarquismo.

Recebido: 07/03/2007

Aceite final: 04/07/2007

  • Texto disponibilizado gratuitamente no site: www.cfh.ufsc.br/~magno/bancanarco.htm
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  • Projeto de digitação voluntária das obras de Fernando Pessoa para serem disponibilizadas virtualmente como domínio público: http://antiga.bibvirt.futuro.usp.br/participe/digitacao.html
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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