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Intelectuais à prova das barricadas: Félix Guattari e a subjetivação militante de 68

Intellectuals beyond barricades: Felix Guattari and the militant subjectivation of 1968

Resumo

O legado do pensamento francês dos anos de 1970 não se resume ao conjunto de problemas teóricos e à inventividade conceitual de seus principais representantes. Sua disposição crítica dependeu de intensa interlocução com o contexto político da época, ponto de certa forma negligenciado pelos especialistas, na maioria das vezes excessivamente focados em abordagens monográficas ou apreciações internas às obras de um determinado autor. Exemplo disso, a militância de Félix Guattari tem sido analisada, sobretudo, a partir do conteúdo propositivo extraído de sua teoria, em detrimento da compreensão da conjuntura social na qual ela encontrou seus limites e seus espaços de significação. Uma de suas iniciativas políticas mais marcantes, o Centre d'études, de recherches et de formation institutionnelles (CERFI), vem merecendo pouca atenção e interesse. Nenhum estudo sistemático sobre a organização foi registrado até este momento entre os pesquisadores brasileiros, situação não muito diferente da observada na França. Com apoio de pesquisa documental realizada no arquivo pessoal do autor, depositado no Institut mémoires de l’édition contemporaine (IMEC), este artigo apresenta e analisa a proposta guattariana de constituição de um processo de subjetivação militante calcada nos valores de 68, colocado em curso, com todos os impasses e contradições, por meio do CERFI.

Palavras-chave:
Maio de 68; Engajamento; Subjetividade; Intelectuais; Pensamento francês

Abstract

The legacy of the French thought of the 1970s is not just the set of theoretical problems and conceptual inventiveness of its main representatives. Its critical ability drew on a strong dialogue with the political context of the time, an issue somewhat neglected by scholars, most often overly focused on monographic approaches or internal analysis of the works of a particular author. A good example, the militancy of Félix Guattari has been essentially analyzed with regard to the propositional content of his theory to the detriment of the comprehension of the social context within which it found its limits and its significance. One of his most significant political initiatives, the Centre d'études, de recherches et de formation institutionnelles (CERFI), has received scarce attention and interest. Based on documentary research using the French author's personal archives stored at the Institut mémoires de l'édition contemporaine (IMEC), this article presents and analyzes the Guattarian proposal to constitute a process of militant subjectification grounded in the values ​​of 68, put in motion, with all its dilemmas and contradictions by means of the CERFI.

Keywords:
May 68; Engagement; Subjectivity; Intellectuals; French thought

De um lado, alguns diziam: Agora que a guerra da Argélia terminou, adotemos uma posição antistalinista, apoiando os vietnamitas, chineses e cubanos. De outro, Félix Guattari dizia: Não, devemos tentar fazer a revolução na França, em nossas práticas. Inúmeras pessoas desejam transformar a pedagogia, a arquitetura, a música, a contracepção. Seria necessário um texto de ruptura. Eu propus escrevê-lo. Ele foi chamado de texto Salmão porque era a cor do papel e porque desejava retornar às nascentes. Criamos então um grupo, a F.G.E.R.I. Era o fim de 65. Criamos grupos de expressão livre entre os professores ou entre os artistas - sobre temas que eu acabo de evocar (Querrien, s/d, p. 5-6)1 1 Todas traduções são de minha autoria e responsabilidade. .

A face jurídica de uma Federação

Partiu de Félix Guattari a iniciativa de fundar, em 1967, uma instituição de pesquisa orientada pelos princípios da Psicoterapia Institucional (Tosquelles, 201243 TOSQUELLES, François. Le travail thérapeutique en psychiatrie. Toulouse: Éditions Érès, 2012.), adotada com sucesso na clínica La Borde, onde atendia como psicanalista. Local de afluência militante de psiquiatras de diferentes correntes contestatórias ao regime hospitalar de privação dos doentes mentais, La Borde será para a geração de jovens militantes um terreno ideal - e idealizado - de experimentação libertária. Sua presença acompanhará Guattari até o final da vida. Mas nos meses que antecederam a grande eclosão de 68, a preocupação do memorável arregimentador de paixões políticas era imediata: encontrar solução rápida para a dramática situação financeira a que a clínica em breve estaria submetida com a abrupta mudança dos critérios definidos pelo governo para a remuneração dos médicos. A partir da sugestão casual de um inspetor do Ministério da Saúde, Guattari vislumbrou a criação de uma organização à qual fosse atribuída a função de representar juridicamente as diferentes frentes militantes, notadamente aquelas que compunham a Fédération des groupes d’études et de recherches institutionnelles (F.G.E.R.I.), junto às agências estatais de financiamento (Querrien, s/d; 200241 QUERRIEN, Anne. CERFI 1965-1987: Centre d'Études, de Recherches et de Foration Institutionelles. Critical Secret.com, v. 8-9, Long After Kant, 2002. [https://www.criticalsecret.com/n8/quer/2en/]
https://www.criticalsecret.com/n8/quer/2...
; Mozere, 199233 MOZERE, Liane. Le printemps des crèches. Histoire et analyse d’un mouvement. Paris: L’Harmattan, 1992.; Fourquet, 198224 FOURQUET, François. L’accumulation du pouvoir. Recherches, n. 46, 1982.; Dosse, 200717 DOSSE, François. Gilles Deleuze et Félix Guattari. biographie croisée. Paris: Éd. La Découverte, 2007.). O Centre d'études, de recherches et de formation institutionnelles (CERFI) nasce com este objetivo.

Ainda que estivesse estreitamente vinculado ao nome de Guattari e circunscrito por uma finalidade inicial bem evidente, o CERFI resultou, sobretudo, da confluência de outras propostas políticas no campo da psiquiatria e no meio estudantil, em especial através das correntes críticas ao Partido Comunista Francês, na sua maioria formadas por trotskistas desiludidos, desde a posição de neutralidade assumida pela direção durante a guerra da Argélia. Antes do CERFI, alguns desses militantes já se haviam reunido ao redor de Guattari, no La Voie communiste, jornal de oposição interna ao Partido, que manteve suas atividades de 1958 a 1965. Sua dissolução esteve associada à formação da Opposition de gauche (1965-1968), organização fundada pelo psicanalista e antigos membros do grupo Hispano-Suiza (Cahiers livres, 1970), aguerridos operários adeptos dos princípios da autogestão. Nesse ponto, Guattari já havia tomado conhecimento de proposta semelhante, na década de 1950, por intermédio das experiências iugoslavas de organização horizontal do trabalho, promovidas pelo governo Tito e propagandeadas entre os círculos socialistas dos países da Europa ocidental como uma alternativa possível de sociabilidade democrática no âmbito mesmo da produção econômica das nações do bloco soviético (Mozère, 2004, p. 2).

A despeito de muitos de seus elementos e laços de pertinência não deixarem de revelar a morfologia do universo doutrinal e ideológico das instituições subordinadas, em última instância, ao PCF, a trajetória guattariana, enquanto vetor de uma geração cuja crença militante estava cada vez mais distante dos mecanismos tradicionais de produção do engajamento de esquerda (Guattari, 2012a27 GUATTARI, Félix. De Leros à La Borde. In: GUATTARI, Félix. Guattari, de Leros à La Borde, Paris : Nouvelles éditions Lignes/IMEC, 2012a.; Dosse, 200717 DOSSE, François. Gilles Deleuze et Félix Guattari. biographie croisée. Paris: Éd. La Découverte, 2007.), não poderia prescindir de mediações e formas de instrumentação capazes de engendrar uma outra subjetivação política. Daí a importância de se reconhecer a centralidade do “social”, campo prático de tratamento das desigualdades voltado, desde o século XIX, para promoção e garantia da coesão da sociedade (Donzelot, 199416 DONZELOT, Jacques. L’invention du social, essai sur le déclin des passions politiques. Paris: Éditions du Seuil, 1994.; Castel, 19984 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.). Foi somente a partir de suas dinâmicas próprias que se pôde, enfim, sedimentar no CERFI um novo modo de subjetivação militante, tendo em Guattari o intelectual incitativo e catalizador das tendências políticas que, de ponta a ponta, atravessavam o arco dos engajamentos da nova geração. Prova viva de suas prerrogativas e contradições, o CERFI encontrou condições para realização de pesquisas e atividades editoriais sistemáticas - estas últimas por meio da revista Recherches, canal de divulgação de suas investigações -, apenas a partir de 1970, com o aporte de recursos do governo francês em um projeto cuja finalidade era demarcar uma compreensão mais aprofundada da significação das manifestações de 68. Em comparação com os outros coletivos gauchistes, o CERFI não se restringiu a uma militância de grupo; sua ação era concretizada pelos programas de investigação concebidos, em boa parte, para responder a demandas de ministérios e outros setores da administração pública. Foi também um laboratório de novos processos de organização do trabalho, o que incluía a utilização da clínica esquizoanalítica, tendo influenciado alguns de seus mais ilustres apoiadores, como Michel Foucault e Gilles Deleuze (Defert, 200914 DEFERT, Daniel. Hétérotopie: tribulations d’un concept. In : FOUCAULT, Michel. Les corps utopiques, les hétérotopies. Paris: Nouvelles éditions Lignes, 2009.; Mozère, 2004).

Entretanto, os primeiros anos de existência do CERFI em nada lembrariam o funcionamento e as atividades do período caracterizado pela entrada sistemática de recursos governamentais, logo nos meses que se seguiram aos levantes de maio. Naquele momento, tratava-se, prioritariamente, de exercer a função jurídico-administrativa para a qual havia sido concebido. Recherches refletia, antes, a fisionomia desenhada pela variedade de coletivos que compunham a F.G.E.R.I. do que a posição assumida posteriormente, atrelada ao discurso construído a partir da extração de elementos das obras, sobretudo, de Guattari, Deleuze e Foucault. Mas, no início, ainda circunscrito ao universo prático-profissional dos problemas levados ao debate, o tom de Recherches era de afirmação identitária em defesa da gravitação das relações entre os grupos no âmbito do trabalho desenvolvido no “social”, posicionamento explicitado nos editoriais dos números inaugurais da revista. Como espaço de repercussão e politização de um movimento próprio e autônomo desse campo, a F.G.E.R.I. deveria, portanto, ser em tudo contrária aos protocolos reificados da conduta partidária e seus rituais de hierarquia e submissão, “nenhum comitê de redação”, “nenhuma teoria nem conceitos a defender” (CERFI, 1966a, p.1), promovendo o intercâmbio entre as disciplinas representadas e, mais ainda, o deslocamento do centro normativo de cada uma delas, o que as transformava em funções de alteridade e incompletude dos saberes nas instituições. Vocalizadas fortemente sob inspiração da Psicoterapia Institucional, as propostas veiculadas em Recherches expressavam o primado da politização do “social” no contexto de crítica aos planos governamentais de ampliação da rede de hospitais psiquiátricos, que eram pensados de acordo com as diretrizes modernizantes do discurso da “programação urbana”, mas nem por isso despojada das velhas concepções de isolamento segregacionista. Essa vocalização crítica dependia, certamente, das práticas disciplinares vigentes nos correspondentes setores, mas ela pretendia engendrar, ao mesmo tempo, os mecanismos de sua subversão, em chave sempre alopática. O “social” forneceria a matéria para a análise das questões do cotidiano profissional dos participantes da F.G.E.R.I., cuja produtividade poderia ser generalizada sob a condição de que, diferentemente dos grandes saltos teóricos, o seu veículo de transmissão fosse o saber do outro, a disciplina devendo ser, a cada um, antípoda ou estrangeira, o que explica o fato de a figuração que ganhava proeminência ter sido a da relação possível entre “sujeito” e “instituição”, da circulação de uma “fala plena”2 2 Noção lacaniana, mas aqui subvertida, porque coletivamente enunciada cf. Lacan (1966). :

A F.G.E.R.I. é o lugar onde a crítica literária pode ser colocada em causa pelo matemático, o etnólogo pelo cineasta, o psiquiatra pelo militante político, o anarquista pelo louco, o economista pelo poeta. Cada um podendo exprimir seus fantasmas, formular as demandas, dar conta do que se faz, tirar das falas e experiências dos outros o que pode lhe servir. (...). Os aparelhos de Estado, as organizações sindicais, as instituições universitárias etc. desconfiam muito da Fala plena para que ela não seja a sustentação de todas as transformações radicais, todas as mutações definitivas, de todas perturbações sociais (CERFI, 1966a, p. 1-2)

Por isso a noção de “instituição” e o conceito guattariano de “transversalidade” teriam ganhado repercussão, sendo vivamente acolhidos pelos trabalhadores das diversas áreas do “social”, que se reuniam na F.G.E.R.I. Em verdade, a própria semântica da palavra “instituição” designava matéria bem distinta do uso que lhe era corrente. Para dar maior precisão ao significado assumido pelos profissionais militantes naqueles dias de crítica e elaboração diuturnas, embora não se trate, aqui, de propor uma regulação terminológica retrospectiva, talvez por instituição fosse mais justo compreender o que, anos mais tarde, Jean Oury (200536 OURY, Jean. Le Collectif: Le Séminaire de Sainte-Anne. Paris: Champ Social Editions, 2005.) chamou de “coletivo”, o modo como se estruturavam as relações entre pessoas e grupos no campo terapêutico que a clínica La Borde havia desenvolvido. Tal como a “transversalidade” guattariana, o “coletivo” seria uma função de ligação entre as instâncias verticais da hierarquia e as bases horizontais que regem as normas do trabalho e ação de funcionários, pacientes, médicos e qualquer outra pessoa que participe ou que, mesmo indiretamente, esteja envolvida com as atividades terapêuticas (Dardot; Laval, 201413 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Commun : essai sur la révolution au XXIe siècle. Paris: La Découverte, 2014., p. 445). A constituição do “coletivo” seria a própria criação dos princípios de reprodução e inovação práticas, de “instituição” da “transversalidade”. Tempos de hegemonia da pactuação entre classes, sob a expansão das ações do Estado social francês, donde as formulações dos militantes da F.G.E.R.I. que, com frequência, reconheciam a necessidade de uma análise da totalidade da sociedade para a compreensão dos fenômenos particulares vivenciados no cotidiano do trabalho, mas isso sem qualquer concessão ou menção à fraseologia marxista ou ao imaginário revolucionário dos grupos de extrema esquerda. Nos seus registros documentais, nenhuma primazia aos conceitos, ainda que eles existissem e fossem trabalhados à exaustão por alguns dos seus integrantes; nenhuma cristalização autoral, embora nomes e obras comparecessem frequentemente nos boletins internos, nos textos e demais produções, nas falas durante as assembleias, nos testemunhos de rememoração da experiência: Tosquelles, Oury, Dolto, Deligny, Guattari. Os alicerces teóricos encontravam na Psicoterapia Institucional a sua base, sendo aplicados através da própria forma de trabalho dos grupos. Entretanto, o recurso aos mecanismos simbólicos de uma discursividade (Foucault, 2001c20 FOUCAULT, Michel. Qu’est-ce qu’un auteur ?. In: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II (1976 - 1988). Paris: Gallimard/Quarto, 2001c.) institucional era permanentemente constrangido. Por isso a única redundância de discurso permitida viesse sempre associada à exposição dos princípios da F.G.E.R.I. Redundância com inúmeras variações, mas todas elas na direção da figuração do cânone republicano do “social”, espaço instituído historicamente como intervalar entre as exigências econômicas e políticas, matriz do Estado social moderno e seus saberes, donde a morfologia militante da F.G.E.R.I. ter sido tanto estrutural quanto modular. Rigidamente estrutural no âmbito da produção e circulação dos discursos, intensivamente modular nos processos práticos de inovação e materialização dos novos saberes. A decalagem entre a economia das práticas e a política dos discursos era definitiva, mas nada que causasse dilemas organizacionais ou motivasse formulações teóricas em resposta, o que pode explicar a surpreendente simplicidade com que algumas de suas mais inventivas propostas eram divulgadas e a pouca visibilidade de determinados experimentos formais com a linguagem no trabalho clínico e educacional3 3 Responsável editorial dos Cahiers de la F.G.E.R.I., celebrado por seus trabalhos com crianças autistas, seu talento artístico como escritor e por sua heterodoxia no trato com a linguagem, Fernand Deligny poderia ter se tornado o agente da modulação experimental e vanguardista dos discursos no âmbito da produção da F.G.E.R.I., não fosse sua opção pela reclusão, iniciada logo após 68 (Toledo, 2007). .

Neste particular, a figura de Guattari foi estratégica, exercendo a função de catalizador de tendências políticas que se traduziam em disposições subjetivas para a ação militante. As prerrogativas de seu percurso sugerem os limites da politização do “social”, que se deu, no mesmo momento de maior produtividade da F.G.E.R.I., por um processo sem precedentes de mobilização e engajamento dos profissionais das suas diversas áreas disciplinares em relação à significação e à normatividade instituídas por seus respectivos trabalhos. Das disposições militantes do “social”, ou seja, do engajamento cujas fontes podem ser extraídas prioritariamente do trabalho, Guattari tomava a esfera organizacional das instituições, em especial psiquiátricas e educacionais, como objeto de uma teorização complementar às teses da Psicoterapia Institucional. Foi esse o contexto das primeiras formulações sobre “transversalidade”. Ainda à procura de uma angulação que permitisse atualizar criticamente a psicanálise, de acordo com a realidade própria das instituições, Guattari atribuíra existência conceitual para agentes que, como ele mesmo percebera no seu trabalho em La Borde, determinavam a rotina e as dinâmicas relacionais no cotidiano dos estabelecimentos e serviços do “social”, particularmente hospitais e clínicas psiquiátricas. A “transversalidade” guattariana, noção já prenunciada nos textos de Tosquelles, perderia sua pertinência institucional sem o conceito de “grupo-sujeito”, apresentado conjuntamente, em 1964. Ao contrário da futura produção guattariana marcada pelo estilo iconoclasta e de inspiração vanguardista, aqui, a formalização conceitual decorria de uma associação direta, da identificação de um ponto de aplicação na realidade material e simbólica da instituição submetida à análise e à intervenção. A “transversalidade” seria o princípio da mudança almejada, de comunicação máxima entre os diferentes níveis e, sobretudo, nos diferentes sentidos (Guattari, 2004, p. 111), sendo o “grupo-sujeito” seu agente. Estava dada, assim, a possibilidade de se imaginar um “coeficiente de transversalidade” dos diferentes agrupamentos e pessoas em uma rotina institucional, segundo o seu respectivo “grau de cegueira” (idem, p. 110). No quadro teórico da “transversalidade”, o referente era o conjunto prático-funcional da instituição e suas correspondentes disposições subjetivas, cujos conceitos eram, antes de tudo, noções operatórias transcritas, não raro, com a utilização de parábolas e analogias (ibidem, p. 110).

A conjuntura histórica que fez da Psicoterapia Institucional uma verdadeira “cultura” e um dos mais eficazes vetores de mobilização militante no “social” foi fortemente afetada e transformada com a irrupção das manifestações de maio. No plano biográfico, 68 também marcou um ponto de bifurcação em muitas trajetórias de militantes das gerações anteriores. Guattari foi um caso excêntrico e à parte. Com quase quarenta anos de idade, seus trabalhos assumiram outros rumos e foram ressignificados por uma recepção massificada de suas ideias, muito além dos círculos de então, dos quais é exemplo a composição da F.G.E.R.I., e no costado de um processo de politização da subjetividade que, a depender de onde tomava curso, poderia ganhar mais ou menos enraizamento nas práticas da Psicoterapia Institucional. Àquela época, o CERFI já iniciava um movimento gradativo de independência em relação à F.G.E.R.I., o que de fato somente foi concretizado com o início do financiamento público de suas atividades de investigação, em 1971 (Nadaud, 200337 NADAUD, Stéphane. Recherches (1966 - 1982) : histoire(s) d’une revue. La Revue des revues, n. 34, 2003.). Paradoxalmente, no momento em que o gauchisme problematizava a dimensão da subjetividade nas estratégias políticas de seus grupos militantes, as investigações do coletivo guattariano corporificavam a reorganização, conduzida pelo governo francês, de toda estrutura pública de pesquisa científica. Entretanto, a estreita aproximação do CERFI junto às agências estatais de fomento e segmentos do alto escalão da administração pública não constituiu uma exceção, como faz acreditar a percepção consagrada pelos poucos estudos realizados sobre o grupo guattariano4 4 Até hoje, o único estudo sistemático sobre o CERFI continua a ser o de Janet Morford, uma monografia baseada em entrevistas com os antigos integrantes, defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em 1985, ou seja, nos mesmos dias da extinção da organização guattariana. (Morford, 1985). . Ao contrário, a identidade do CERFI foi forjada a contrapelo do maciço apoio estatal à pesquisa em ciências sociais e, paralelamente, da ampla transformação do sistema de ensino, ainda que suas ações tenham encontrado repercussão nos espaços abertos pelos projetos encomendados pelas agências governamentais. A desconsideração dessas duas variáveis contextuais talvez possa explicar o acento excessivo dado, inclusive entre seus antigos membros, às contradições e aos conflitos gerados pelo fato de o trabalho, desde o início imaginado como político, ter sido financiado pelo Estado.

O Estado nas trilhas dos saberes militantes

A constelação contestatória do final dos anos 1960 foi uma composição heterogênea, com elementos que remetem a filiações políticas e a referências históricas muito mais diversificadas do que fez crer, à época, a cristalização discursiva subjacente ao intenso ataque realizado pelos grupos de esquerda contra a ortodoxia do PCF e sua afluência sobre um meio estudantil já fortemente sensível às profundas mudanças a que o sistema universitário estava cada vez mais submetido. Mudanças que envolviam incremento e a criação de unidades de ensino, implementadas imediatamente após o período, inaugurado na década anterior, de maciça articulação governamental de investimento na instituição e consolidação de uma estrutura pública de pesquisa. As orientações que a conformaram foram, em linhas gerais, as mesmas do então modelo hegemônico de administração estatal, calcado na planificação e na decisão técnica sobre a demanda de conhecimentos aplicáveis aos projetos de desenvolvimento econômico e social. Em particular, no que diz respeito ao planejamento e à orientação das modalidades de financiamento, o Comité d’organisation des recherches appliquées sur le développement économique et social (CORDES) ocupa lugar de destaque nesta história5 5 Sob o mesmo modelo coexistiam significativas variações da ação estatal e, assim, outras formas de interação com o campo científico puderam ganhar existência, como revela a trajetória da Délégation générale à la recherche publique (DGRST), órgão de inspiração mendeista, fundado em 1958 e extensamente promovido durante os primeiros anos da Va República (Chatriot; Duclert, 2006). , sobretudo porque constituiu um modelo de intermediação na definição das prioridades e na destinação dos recursos, mantendo estreita e contraditória afinidade com a ambiência sociocultural dos levantes de 68. Os objetivos e justificativas para a sua criação foram desenhados em 1966, em cujo documento-base lê-se o objetivo de estimular a “pesquisa aplicada”, mas diferentemente das modalidades já existentes de produção de saber, como os “estudos” (pensados como apoios à tomada de decisão) e as “pesquisas teóricas” (de duração mais longa e de escopo amplo, desenvolvidas nas universidades ou no Centre national de recherche scientifique/CNRS) (Bezes; Montricher , 20052 BEZES, Philippe; MONTRICHER, Nicole. Le moment CORDES (1966-1979), In : BEZES, Philippe et al. (dir.). L’état à l’éprouve des sciences sociales. La fonction recherche dans les administrations sous la Ve République. Paris: Ed. La Découverte, 2005., p. 40).

Desde sua concepção até 1969, ano de sua oficialização, o CORDES perdeu discretamente a configuração política e administrativa que lhe dava sustentação. Originalmente, ele fora proposto durante o apogeu do ideário da planificação estatal das atividades econômicas e sociais, o que teria implicado a adoção de uma abordagem “intervencionista” e, segundo seus idealizadores, a consequente necessidade de promover uma “aliança” entre sociólogos, economistas e planificadores (idem, p. 39). Contudo, sob o impacto das manifestações de 68 e do complexo e incerto cenário político que elas anunciavam, sua implantação já refletia uma retificação dos propósitos iniciais, efeito direto das transformações das relações entre os universos da administração pública, universidades e demais instituições de ensino e pesquisa. Daí o CORDES ter sido, no intervalo entre sua formulação e implementação, um “dispositivo de interface” (ibidem, p. 37) que pôde captar com intensidade a contestação de 68, não raro também compreendida sob o prisma da insurreição dos saberes. A pulverização do financiamento adotada pelo CORDES como princípio geral da destinação dos recursos refletia a urgência com que o Estado, suas instituições e seus servidores colocavam-se à procura de conhecimentos que explicassem os levantes e que dessem elementos para a instauração de medidas, de natureza profilática, capazes de evitar seu retorno. Projetos de média duração foram priorizados, o que garantia a multiplicidade das pesquisas e, assim, uma maior representatividade dos novos temas e objetos, impulsionados pelo surgimento de outras formas de crítica e organização políticas.

No entanto, essa orientação governamental entrou em conflito direto com a crescente profissionalização das ciências sociais. O financiamento realizado pelo CORDES contemplava grupos muito distintos, tanto os “mandarins”, renomados professores universitários bem situados na rede de relações privilegiadas com a administração pública, o que lhes garantia acesso regular às linhas de financiamento, quanto os pesquisadores contratados ad hoc, sem estatuto profissional, majoritariamente militantes não diplomados na área de atuação, embora com experiência prática. O CORDES incitava a diversificação dos trabalhos de investigação empírica, facilitando a adesão de profissionais com formações diferentes em um mesmo espaço institucional de debate. Particularmente, no contexto de politização do “social”, medidas como a contratação de pesquisadores sem estatuto profissional permitiram a inclusão, mesmo que precarizada, de jovens militantes em um setor validado e reconhecido pelos poderes públicos. O gauchisme não apenas perfilava-se ao lado dos amotinados contra as tradicionais instituições de ensino e pesquisa, mas igualmente se valia das “brechas” abertas pelas próprias agências públicas para intervir sobre a formação prático-discursiva do Estado (Mauger, 199431 MAUGER, Gerard. Gauchisme, contre-culture et néo-libéralisme : pour une histoire de la « génération de mai 68 ». In : CURAPP, L’identité politique, Paris: Puf, 1994.). Sem dúvida, no heterogêneo universo de iniciativas que se beneficiaram do “momento CORDES”, o CERFI foi a que talvez melhor expressou os impactos estatais sobre os grupos militantes, suas relações de força, seus compromissos e conflitos, como já deixavam entrever os objetivos estatutários da organização guattariana, antes, portanto, de sua dissociação da F.G.E.R.I.

A integração entre a direção governamental para a reestruturação científica e os objetivos de uma organização como o CERFI foi resultado de um inusitado encontro na história, de sinergia entre afinidades de campos cujas estratégias eram muito distintas e com finalidades opostas. Daí a presença, a um só tempo, tanto do ideário gaullista do “desenvolvimento econômico e social”, quanto da intervenção sobre a “gestão” do Estado por meio da prática coletiva da interdisciplinaridade e da metodologia participante, o que significava o imprescindível envolvimento das “comunidades locais” em todas as etapas da pesquisa. A centralização técnica, um dos principais mecanismos administrativos do modelo de planificação estatal, era assim revertida em favor dos valores históricos e das normas constitutivas do “social”, segundo uma dicção transitória situada entre as formas de cooperação já assumidas pela F.G.E.R.I. e aquelas anunciadas pelo ressurgimento da ação direta nos coletivos de extrema esquerda e durante as principais greves operárias de 68, muitas das quais acompanhadas por arranjos táticos inusitados e sem o mesmo protagonismo sindical de antes. Desde sua concepção e como registrado nos seus primeiros documentos, o CERFI foi cercado de ambiguidades e contradições, o que o tornava um dispositivo de engajamento que assimilava e interpretava, através das atividades de pesquisa junto à esfera prática do “social”, o espectro militante e a conjuntura político-institucional do país. Talvez a história retrospectiva do CERFI dê razão a uma das hipóteses mais contumazes sobre 68, segundo a qual os eventos disruptivos que se alastraram pela França carregariam a marca de uma inflexão histórica, signo da passagem entre dois regimes de governo, duas governamentalidades, traduzida pelo engajamento típico das barricadas na rua Gay-Lussac, pela nova paixão política que ganhava emergência por intermédio de uma conduta militante conciliada tanto com a defesa da “autonomização do social”, quanto com a “realização de si” (Donzelot, 199416 DONZELOT, Jacques. L’invention du social, essai sur le déclin des passions politiques. Paris: Éditions du Seuil, 1994., p. 247). O CERFI foi, para muitos de seus ex-integrantes, o espaço de experiência dessa conciliação (Morford, 198532 MORFORD, Janet. Histoire du CERFI. DEA, EHESS, oct. 1985.).

A existência de uma organização como o CERFI estava condicionada a uma hegemonia política que se caracterizava por um “social” impulsionado, no próprio âmbito do trabalho, pela militância de seus profissionais, constituindo-se, desse modo, em veículo de transmissão de saberes e instrumentações para setores tradicionalmente autônomos e preservados da influência imediata das movimentações políticas, como era o caso, à época, do campo científico. Até o advento do primado neoliberal de governo, iniciado no final dos anos 1970, as transformações da hegemonia foram, antes de tudo, modulações dos princípios republicanos do Estado social francês. Primeiras sinalizações do que viria definir o período político subsequente ao consenso em torno das teses do Estado social, a partir da segunda metade daquela década, os dispositivos de fomento e planejamento da pesquisa, instituídos no começo da Va República, passaram a alvo de constantes críticas e desqualificações, a maioria das quais dirigida à dispersão do financiamento por diferentes áreas, escopos e metodologias. Concebido como “ferramenta de incitação”, o “sistema CORDES” paulatinamente perdeu sua capacidade de investimento e articulação com a entrada de novas regras para a contratação e fomento de projetos, como a exigência de titulação para os pesquisadores na área de desenvolvimento da investigação (Bezes; Montricher, 20052 BEZES, Philippe; MONTRICHER, Nicole. Le moment CORDES (1966-1979), In : BEZES, Philippe et al. (dir.). L’état à l’éprouve des sciences sociales. La fonction recherche dans les administrations sous la Ve République. Paris: Ed. La Découverte, 2005., p. 62). Os riscos de proletarização através da extensão de contratos ad hoc, uma das modalidades mais utilizadas pelo CORDES e que, indiretamente, havia viabilizado inúmeras ações militantes de pesquisa, justificavam a formalização profissional e, consequentemente, a concentração dos projetos em poucas instituições, notadamente o CNRS. Nesse momento, o recém-eleito governo Giscard inscreve nesse processo de reestruturação as premissas ideológicas de um liberalismo que daria cada vez mais demonstrações de sua aversão ao peso até então conferido ao Estado. Institui-se lenta e insidiosamente um mecanismo de negação do prestígio e enfraquecimento das posições conquistadas pelas ciências sociais no “modelo Mendès France-de Gaulle” de “governo da pesquisa” (Chatriot; Duclert, 200612 CHATRIOT, Alain; DUCLERT, Vincent. Le gouvernement de la recherche. Histoire d’un engagement politique, de Pierre Mendès France à Charles de Gaulle (1953-1969). Paris: Ed. La Découvert, 2006.), nos tempos áureos da planificação. Rotuladas como excessivamente politizadas e pouco úteis à administração pública, as ciências sociais passam a refletir, pelo avesso de sua posição anterior, a nova configuração das relações entre Estado e campo científico. A proximidade entre técnicos dos órgãos públicos de fomento e pesquisadores havia promovido a interface entre oferta e demanda na criação e consolidação de uma estrutura nacional de pesquisa. Sua destituição decretou o fim da permeabilidade institucional entre Estado e campo científico que havia garantido a realização de trabalhos voltados à compreensão das irrupções culturais e societárias de 68 e que teria procurado acompanhar, consequentemente, suas novas temáticas de pesquisa. O impacto da reorientação giscardiana não tardou a chegar ao CERFI, alterando integralmente seu funcionamento, situação que motivaria a publicação, em 1977, do “manifesto pelo direito à pesquisa”, paradoxal defesa do modelo gaullista de interlocução e financiamento estatal feita por antigos militantes de 68:

Definitivamente, a questão pode se escrever assim: interessa à administração a existência de redes do estilo do CERFI, de grupos mais precários ou mais insólitos ainda, na pesquisa científica? Uma questão como esta transborda naturalmente os limites do CERFI e coloca o problema do direito à pesquisa em ciências sociais. Não é possível imaginar e favorecer a existência de centros numerosos e autônomos (coletivos, associações, fundações, departamentos de instituições, grupos diversos etc.) que, por um tempo dado, renovável eventualmente depois de acordo mútuo, engajar-se-iam nas pesquisas e experimentações sociais sobre a base, não de um ser-pesquisador, mas de sua existência social real (uma equipe médico-social, um grupo reunido por suas afinidades e seus objetivos, trabalhadores sociais, desempregados etc.). Não se trata de criar novos pesquisadores-futuros funcionários, mas de multiplicar os lugares, as ocasiões e os fundamentos da pesquisa em ciências sociais. Não se trata de simplesmente financiar a animação social, mas de encorajar a articulação de uma produção social e de uma pesquisa teórica. Não se trata de não mais interditar uma pesquisa puramente teórica que não seria inscrita no CNRS, mas de apoiar estruturas associativas, autogeridas, reunidas sobre um ou vários objetivos teóricos e/ou de produção social (Murard; Rostain, 197735 MURARD, Lion; ROSTAIN, Michel. Manifeste pour le droit à la recherche. Le Monde, 27 jui. 1977., p. 9)

Ao contrário das acusações de seus adversários, o CERFI não se beneficiava de excepcionais aportes governamentais e tampouco funcionava no estrito sentido da lógica de produção de mercadorias. Contudo, não há como ratificar completamente o discurso segundo o qual a organização de suas atividades corresponderia a uma autêntica autogestão do trabalho. No limite, seus processos internos não apresentavam grandes inovações, estas reservadas, de fato, ao desenvolvimento de metodologias que incluíam a perspectiva dos sujeitos pesquisados, provavelmente pela primeira vez nas ciências sociais francesas (Dosse, 200717 DOSSE, François. Gilles Deleuze et Félix Guattari. biographie croisée. Paris: Éd. La Découverte, 2007.), em um movimento coetâneo e simultâneo de problematização, construção teórica e proposição de ações. O perfil dos integrantes do CERFI aliava sólida formação universitária com precária formalização trabalhista e intenso ativismo militante. Ainda que, em sua maioria, fossem neófitos ou pouco habituados aos procedimentos que os contratos impunham, o trabalho de pesquisa transcorria sem grandes intercorrências. Gradativamente, uma coordenação informal foi estabelecida, assumindo a direção do conjunto das atividades, o que envolvia desde a gestão financeira até a definição dos responsáveis pela redação dos relatórios ou a decisão sobre os temas dos números de Recherches. Com o crescente distanciamento dos princípios que fundaram a F.G.E.R.I, a autogestão havia sido relativizada em favor da coesão desse grupo que, embora recusasse com veemência a hierarquização das funções, garantindo, por exemplo, a realização de assembleias semanais com todos os membros e interessados de ocasião, terminava ao fim e ao cabo por centralizar a tomada de decisões, incluindo a deliberação sobre a destinação do dinheiro mantido em um fundo comum de projetos. Certamente, os conflitos vivenciados no CERFI eram consequência dessas contradições, mas eles também constituíam o núcleo de uma modalidade inédita de subjetivação militante, baseada em uma conduta permanente de tradução e assimilação da externalidade normativa do Estado e do mercado através do trabalho científico. O “manifesto” não deixava de ser uma defesa dos efeitos, tanto aporéticos quanto carregados de dilemas, da permeabilidade produtiva com o poder público mediante os dispositivos de engajamento inventados pelo gauchisme em sua interação simbiótica com o “social”.

Com o adensamento da problematização sobre a relação entre ciência e poder ao longo da década de 1970, não sugere ser sem propósito que, no interior das práticas cerfianas, as tentativas de síntese do conjunto dos trabalhos tenham sido, sobretudo, iniciativas individuais.6 6 A autoria deste número que se propõe à síntese dos trabalhos do CERFI foi de François Fourquet (CERFI,1982). Mais ainda, que a narrativa escolhida, no início do estágio terminal do coletivo nos anos 1980, para subsumir a heterogeneidade da produção ao longo de quase quinze anos tenha sido estruturada pela noção de “acumulação do poder”, conjunção entre economia e Estado também cifrada no melhor estilo antiedípico, o “desejo de Estado” (CERFI, 1982). Tempo das soluções de compromisso sob a forma dos testemunhos teoricamente determinados, dos recuos e distanciamentos metodologicamente controlados por uma enunciação reveladora, somente válida porque profundamente arraigada no poder, materialidade última da história. Poder que, segundo essa narrativa, se acumula no Estado como capital e desejo. Daí a imanente cumplicidade do intelectual, personagem sempre preso aos silogismos de sua vontade: mais o intelectual denuncia o poder, mais ele o deseja, e mais ele desconhece o seu desejo (Idem, p. 10). A disposição cerfiana comungaria essa verdade material e dela retiraria seu saber estratégico. Assim como o intelectual engajado, o “homem de Estado” manteria a mesma cumplicidade, justificando sua orientação em direção a uma real aproximação com pessoas e grupos atuantes nas esferas governamentais. “Experiência” com o Estado e não uma “ideia dogmática” de Estado (Ibidem, p. 11). A relação com agentes estatais e o financiamento das pesquisas deixariam de fragilizar a identidade cerfiana, habilitando-a não somente a abandonar sua posição defensiva, mas também a projetar-se sobre a topologia estatal e seus pontos de tangência, onde subjetividades ancoradas pulsionalmente naquela “acumulação” se fizessem presentes e cristalizadas. O CERFI terminaria por instituir um novo campo de pesquisa, no qual as ideologias e a própria ação estatal seriam compreendidas como fenômenos do socius, de uma espécie de “transversalidade” codificada do inconsciente e, portanto, passível de intervenção clínico-política nos lugares mais insuspeitos da burocracia e do alto escalão da administração pública.

Desde o fim do CERFI, suas prerrogativas institucionais, tão criticadas à época, têm sido frequentemente justificadas a partir da inscrição dos objetivos estratégicos na formalização terapêutica da ação militante. A depender dessa leitura, o legado cerfiano se alinha ao que o gauchismo dos anos 1970 soube metamorfosear do “social”. De um lado, seus instrumentos de normatização e seus saberes práticos sobre os processos constituintes das modalidades cooperativas do trabalho em rede, seus engajamentos no nível da conduta profissional, e, de outro lado, a eficácia de seus formalismos e suas modulações discursivas no registro das sistematizações institucionais do Estado. A convergência entre o “social” e o gauchisme disseminou o vetor estratégico de politização da subjetividade na esfera extremamente regulada das relações profissionais entre poderes públicos e grupos da sociedade civil. A locução contestatória assumiu outras formas que aquelas identificadas ao que seria uma cultura de esquerda ou uma “contracultura”, muitas vezes reduzida ao estilo de vida de frações específicas das classes médias urbanas e intelectualizadas. No CERFI, a subjetivação militante se dava pelo trabalho com pesquisa (Mozère, 1992), o que facilitava a acolhida de manifestações que partiam de grupos distintos e cujos temas refletiam a emergência de novas frentes de luta: direitos de homossexuais, imigrantes, detentos, minorias étnicas etc.7 7 Recherches passou a assumir nova linha editorial ao incorporar esses temas, inclusive aqueles trazidos por grupos alheios e, algumas vezes, muito pouco afinados politicamente com o CERFI (Nadaud, 2003). Entre seus membros, foi com forte acento feminista que o questionamento sobre a rotina de trabalho ganhou força. Para as mulheres que pertenciam ao núcleo mais coeso de militantes, a divisão das funções e a distribuição dos dividendos do fundo comum não deixariam de revelar a dominação masculina subjacente aos discursos e posições que circulavam no cotidiano do CERFI, mesmo os politicamente mais radicais (Querrien, 200241 QUERRIEN, Anne. CERFI 1965-1987: Centre d'Études, de Recherches et de Foration Institutionelles. Critical Secret.com, v. 8-9, Long After Kant, 2002. [https://www.criticalsecret.com/n8/quer/2en/]
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). Entretanto, assim como outras reivindicações, a defesa da igualdade de gênero não era autônoma em relação ao restante dos debates, polêmicas e formulações do coletivo guattariano, sendo descoberta e mais bem delimitada no curso de uma problematização mais abrangente, apoiada no terreno normativo da interação com as práticas, saberes e instituições do “social”, primeiramente através da F.G.E.R.I e, depois, por meio das pesquisas desenvolvidas com estreita participação de agentes públicos.

A subjetivação militante na “genealogia dos equipamentos coletivos”

Longe de fugir do dinheiro ou da burocracia, desejávamos forçar por dentro, de tomar na marra os problemas de poder e de esclerose interna nos servindo do dinheiro ganho como um instrumento e também um princípio de realidade que nos liga a mecanismos reais da sociedade capitalista: essa ambição louvável, nós a chamamos “empresa analítica de grupo” e falávamos dela como um novo ingrediente do ideal militante, embora isso faça rir a maior parte dos militantes gauchistas: deixemo-los rir! (CERFI, 1973b, p. 5)

A militância no trabalho e pelo trabalho pôde subsumir, no CERFI, a significação cultural das outras expressões políticas que lhe eram contemporâneas porque, no limite e tal como já modulado historicamente no “social”, sua gravitação prática foi capaz de intensificar e unificar regimes distintos de engajamento e mobilização subjetiva. A Psicoterapia Institucional havia estabilizado um universo conceitual e de investigação empírica da relação entre “sujeito” e “instituição”, feito amplamente disseminado a ponto de a ciência formulada por Tosquelles ser percebida, por décadas, como uma verdadeira “cultura” militante (Toledo 200742 TOLEDO, Sandra. A. Cahiers de la F.G.E.R.I., Revue (extraits)/1968. In : DELIGNY, Ferdinand. Fernand Deligny. Œuvres. Paris: L’Arachnéen, 2007.). Em contrapartida, os saberes cerfianos, impulsionados pela crescente entrada de recursos públicos a partir de 1970, procuraram fundamento epistemológico no hiato entre a história das sedimentações estratégicas no “social” e a superfície das técnicas contemporâneas de normalização. Nessa ambiciosa proposta teórico-política, as atividades de investigação privilegiavam a interdisciplinaridade, valioso capital associativo acumulado durante os anos de centralidade da F.G.E.R.I., e a imersão territorial e levantamento de informações em primeira mão junto à comunidade local, como preconizava a sociologia crítica da época. Do conjunto de pesquisas, certamente a série de estudos sobre os “equipamentos coletivos” marcou o apogeu inventivo da produção cerfiana.

Encomendadas diretamente pelo Ministère de l’aménagement du territoire, de l’equipement, du logement, et du tourisme, as pesquisas foram iniciadas em 1971, com seguidas renovações durante aproximadamente cinco anos, cada qual com a proposição de objetos diferentes e com a direção científica atribuída a um dos próceres do CERFI: Gilles Deleuze, Michel Foucault, além do próprio Guattari. Embora as pesquisas fossem demandadas pelo Ministério, não havia nos seus contratos nenhuma menção à utilidade administrativa dos resultados, qualquer necessidade em vincular as suas interpretações a medidas práticas de interesse social. Os contratos revelavam o horizonte da aplicação da pesquisa exclusivamente no momento em que eram considerados os contextos da “programação urbana” e, mesmo assim, apenas no quadro de uma intervenção sobre “um processo de programação específica” e de maneira a fazer do estudo “um lugar de confrontação ‘transversal’”.8 8 IMEC. Fonds Félix Guattari. GTR 62.12. CERFI: contrat de recherches concernant l’émergence des équipements collectifs (1780-1850). Ao final, somente os tradicionais meios de certificação acadêmica eram exigidos: relatório, ficha-resumo e um artigo. Essa desconsideração do valor utilitário imediato que as pesquisas poderiam ter para o governo reforçou a personalização dos fatores determinantes da conjuntura favorável ao tipo de trabalho defendido por organizações como o CERFI, a ponto de um mecenato estatal ser vislumbrado, em clara demonstração de distorção perspectiva, muito provavelmente motivada pela construção clínico-política que justificava, no coletivo guattariano, a intervenção sobre a burocracia estatal, amenizando, assim, os efeitos da relativa perda de autonomia causada pelo fato de o trabalho ser remunerado e realizado sob a encomenda dos poderes públicos. (CERFI, 1982, p. 10).

Os contratos para as pesquisas sobre a emergência dos “equipamentos coletivos” dão indicações a respeito das referências adotadas pelos programas de trabalho, desvelam zonas de confluência com o contexto social e político da época, beneficiando uma abordagem crítica da pertinência epistemológica e da atualidade de algumas noções consagradas pelo pensamento francês da década de 1970, tais como as próprias categorias esquizoanalíticas utilizadas pelos estudos. O registro documental e a linguagem administrativa dos contratos se contrapõem, assim, à representação clínico-política da interpretação cerfiana e sua discursividade. Despojada da conversão teórica produzida por esta discursividade, a massa propositiva escrita no instrumento jurídico é composta por extratos desiguais, fragmentados pelo encontro entre duas racionalidades diferentes, cuja conflitualidade vê-se suspensa na passividade de um texto reificado, que não engaja e nem mobiliza. Mas é justamente no esteio de sua linguagem que será possível antever a objetivação teórica subliminar de sua posterior “moldagem autodeformante” (Deleuze, 200415 DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2004., p. 221). Da mesma maneira que o chão cooperativo da F.G.E.R.I. forçou seus intelectuais a adotarem um estilo discreto ou, no máximo e com parcimônia, apoiado em analogias e parábolas, o convencionalismo semântico do Direito garantia a escansão do argumento conceitualmente cifrado, traduzindo os problemas de pesquisa pela forma de enunciados simples e hipotéticos.

Foi por intermédio desse efeito imprevisto e contraproducente que algumas das prerrogativas da problematização do coletivo militante revelaram-se não apenas guattarianas ou de filiação foucaultiana, mas também e principalmente cerfianas. Daí o valor produtivo da hipótese, aventada em um dos contratos, de que o surgimento dos “equipamentos coletivos” constituiria uma “resposta empírica da burguesia ao aumento repentino das massas de desempregados e de vagabundos nas cidades”, o que implicava, consequentemente, a necessidade de uma dupla abordagem, presencial nos “territórios” e historiográfica nos arquivos, para promover uma interrogação sobre as “relações entre a longa duração dos equipamentos coletivos e a incidência da tomada de poder político pela burguesia”.9 9 IMEC. Fonds Félix Guattari. GTR 62.12. CERFI: contrat de recherches concernant l’émergence des équipements collectifs (1780-1850). Hipótese reveladora da convergência estratégica que definiria o nascimento de uma racionalidade política particular e que começava, aos poucos, a ser problematizada pelo pensamento francês da década de 1970, mas cujos parâmetros analíticos não poderiam ser dados nem por uma concepção historiográfica do tempo, nem pelo primado da descontinuidade estrutural. O conceito de “equipamentos coletivos” mantinha estreita afinidade com o althusseriano “aparelho ideológico de Estado” (Althusser, 20081 ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.) e, sobretudo, com a linha foucaultiana de investigação, desenvolvida naquele momento no Collège de France10 10 No curso de 1972-1973, ao contrário de Vigiar e Punir, Foucault reconhece a funcionalidade de classe dos “equipamentos” (Foucault, 2013, p. 154). Mas vale destacar que, com os pesquisadores do CERFI, Foucault se reservara uma concepção mais genealógica e, portanto, menos condicionada a uma abordagem funcionalista da significação de classe dos “equipamentos” (Foucault, 2001d, p. 1315). . Tanto na versão dos contratos, quanto na apresentada em Recherches, o programa cerfiano terminaria por operar uma disjunção substantiva entre as temporalidades da história (“longa duração” e “incidência” de classe) que, sedimentadas nos “equipamentos” investigados, objetivariam uma nova dimensão política, passível de produtividade e acumulação de poder. Foucault chamou de “ontologia do presente” (Foucault, 201423 FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir. Paris : Éditions Gallimard, 2014.) a atualidade crítica dessa realidade retirada do ponto bascular do poder, o que pressupunha uma perspectiva construtivista e posicional da história. É nesse sentido que a identidade do CERFI se definia, cada vez mais, por uma oferta inconciliável entre o ideal militante e a estratégia de intervenção direta sobre a imanência normativa do Estado, a de se propor ocupar, com a própria subjetividade dos seus integrantes, esse lugar intervalar suspeito e excessivo. Não à toa, o cotidiano das atividades da organização recolocava a todo instante o problema da incompatibilidade da autoria que se pretendia associar à enunciação coletiva, tentativa de conciliação reveladora dos impasses a que estavam submetidos os integrantes do grupo guattariano. A valorização do anonimato, postura corrente entre os grupos militantes da época, encontrava no CERFI grandes obstáculos para se concretizar, fato sem dúvida relacionado à responsabilização individual correlata, que se espraiava até nos detalhes da convivência e do trabalho. A versão cerfiana da politização soixante-huitarde da subjetividade envolvia um “conflito aparentemente intransponível entre uma sorte de verdade e justiça (dar a César...) e um ideal militante de anonimato pelo desaparecimento do grande inimigo: o Eu e seu nome próprio” (CERFI, 1973b, p. 11).

Os dilemas que acompanharam o CERFI, desde a sua fundação como personalidade jurídica da F.G.E.R.I. até sua transformação em entidade prestadora de serviços de pesquisa, também refletiam uma complexa, profunda e gradativa mudança da estrutura do Estado e suas relações com as instituições que compunham o campo científico e os diversos setores do “social”. A movimentação política que lhe foi consequente deixou seus sinais nos trabalhos sobre os “equipamentos coletivos”, caixa de ressonância da transição pelo qual passava o gauchisme francês. Talvez a manifestação mais elucidativa dos efeitos dessa conjuntura sobre o CERFI tenha se concentrado na ideia de “promotor institucional”, tomada por Guattari do contexto do projeto de intervenção que se seguiu à pesquisa sobre a “programação” dos “equipamentos de higiene mental” nas villes nouvelles (CERFI, 1972). Ideia extraída especificamente de uma “irrupção de desejo” (idem), de um reencontro, em 1972, à ocasião das atividades deste projeto, entre psiquiatras adeptos e participantes ativos das antigas discussões, sobretudo nos anos 1960, em torno da aplicação da Psicoterapia Institucional nos estabelecimentos hospitalares. O reencontro remetia a um trabalho muito bem-sucedido, de 1967, conduzido no âmbito da F.G.E.R.I por arquitetos, urbanistas, psicólogos, psiquiatras e pedagogos, de análise e crítica dos planos governamentais para os “equipamentos públicos da psiquiatria”, que contemplavam, entre outras medidas regressivas, a expansão do número de leitos dos grandes hospitais, reforçando ainda mais a diretriz histórica de segregação dos doentes mentais (CERFI, 1966b). A memória dessa cooperação inspiraria o CERFI a recolocar alguns dos pontos tratados em 1967, como, por exemplo, a premissa de que a promoção de espaços interdisciplinares, de composição funcional e hierárquica mista, dos quais participavam representantes do Ministério, “programadores” e profissionais dos “equipamentos”, poderia influir nas orientações e decisões em todas as instâncias responsáveis pelo planejamento e execução da política pública. Dessa premissa geral, fortemente baseada nos princípios da Psicoterapia Institucional, o projeto de 1972 desdobra a noção de “formador”, elaborada e proposta em 1967, na figura do “programador institucional”. Se, na primeira, o próprio “equipamento” seria transformado em “uma ferramenta formadora”, tanto entre seus funcionários, quanto na problematização dos assuntos pertinentes à saúde mental, na segunda, por sua vez, ele incorpora, no âmbito do modelo planificador do Estado, a realidade de todo o campo em que se insere, donde o “programador institucional” ser um espaço institucional ativo de fusão e confrontação de séries heterogêneas que subjazem as redes de higiene mental (CERFI, 1972, p. 55).

A figura coletiva do “programador institucional” carregaria uma sorte de saber sobre a “transversalidade”, estando em condições, portanto, de se posicionar frente a um dos principais problemas diagnosticados pela pesquisa, a decalagem entre os momentos do planejamento e da execução. O realismo conformista dos responsáveis pela implementação do que foi concebido na fase de planejamento dos “equipamentos” seria antecipado pela via de uma representação sobreposta ponto a ponto ao real, afetando os programadores, que se autocensuram e aplicam implicitamente as normas que tornam a coisa realizável (CERFI, 1972, p. 6). O escopo de intervenção do “programador institucional” seria justamente a dimensão representacional, em todos os níveis e realidades materiais e simbólicas contidas em seu domínio. Ressonâncias deleuzeanas da diferença e repetição, miragens cruzadas da desterritorialização antiedípica. Mas nos “equipamentos”, mesmo com a diversificação do poder de deliberação, o ato exige, contra as consequências deletérias do insulamento dos “organismos representativos”, a materialidade do trabalho, isto é, um

objeto de trabalho determinado, onde uma parte ativa seja dada aos praticantes (praticiens) da higiene mental e onde os representantes (das municipalidades, da Seguridade social, da administração) não intervenham senão em relação a esse trabalho (a programação dos equipamentos) e para aí se engajar realmente a autoridade da instância que eles representam (CERFI, 1972, p. 56).

Essas exigências, que caracterizariam uma crítica do sistema de representação (CERFI, 1972, p. 56), não teriam sido as causadoras do fracasso da proposta. Para Guattari, faltou ao próprio CERFI exercer sua função de articulação dos atores institucionais envolvidos e de acolher e responder às preocupações particulares dos interlocutores, ir ao encontro de seus problemas, em particular no domínio da programação.11 11 Avaliação registrada em texto inédito, disponível apenas no arquivo pessoal de Guattari. IMEC. Fonds Guattari. Texte sur l’action du Cerfi. L’idée de promoteur institutionnel a surgi d’un événement…, 1974. GTR 15.7. Faltou, na verdade, o cumprimento da tarefa que o CERFI preconizava, em grande parte, para o “programador institucional”, que seria, então, o responsável por atar as relações com a administração, a Seguridade social, as municipalidades e os conselhos gerais etc. (ibidem, p. 58). Essa surpreendente equivalência entre a posição analítica da pesquisa e a posição normativa da intervenção explicita a operação que suporta o imaginário político cerfiano, através do qual, como pontifica a tautologia de Guattari ainda no contexto da pesquisa de 1972, “a programação é a autogestão” e a “autogestão é a programação”.12 12 IMEC. Fonds Guattari. Texte sur l’action du Cerfi. L’idée de promoteur institutionnel a surgi d’un événement…

Por meio dessa espécie de gramática posicional, que institui a possibilidade de extensão e integração discursivas entre realidades normativas díspares, invenção por excelência do gauchisme francês dos anos 1970, o Groupe d’Information sur les Prisons (GIP) descobriu, no “intolerável” das prisões, a fonte de uma energia política represada na experiência dos detentos (GIP, 2003). Entretanto, em oposição ao coletivo guattariano, seus integrantes não se incluíam como parte dos mecanismos de subjetivação, cuja aplicação passava para o lado do detento, sujeito do sofrimento e privação, portador de uma experiência silenciosa para a qual era preciso dar voz. Há que se reconhecer o fato de Recherches também ter instaurado um espaço de expressão da pluralidade dos grupos gauchistes e das falas “infames” de sujeitos, como os detentos prisionais até então relegados à marginalidade invisível, o que custaria à revista a censura de um de seus números e a condenação de Guattari pela Justiça francesa.13 13 Publicado em Recherches de março de 1973, Trois milliards de pervers foi organizado pelo Front Homosexuel d'Action Révolutionnaire (FHAR), com a proposta de permitir uma enunciação direta, sem testemunhos, do saber sobre a homossexualidade produzido pelos próprios homossexuais. Todos os exemplares foram recolhidos por determinação da Justiça francesa (Nadaud, 2003; Guattari, 2012b). Mas, diferentemente das enquêtes-intolerance, Recherches pressupunha a organização política prévia dos segmentos marginalizados e em nenhum momento lhes preconizou ou estimulou mecanismos de subjetivação política. Talvez isso explique a longevidade do CERFI e a brevidade do GIP. Os vetores políticos instituídos pelos militantes dos anos 1970 ganhavam configuração pela construção de discursividades no registro da economia das práticas. Esta a razão por que o estudo de tais dispositivos de engajamento esteja em condições de decifrar a significação do estatuto ontológico construído e projetado, por muitos intelectuais, nas práticas do gauchisme. Do lado dos integrantes dos grupos militantes, a “espiritualidade da política”14 14 No sentido consagrado por Foucault (2001b). , tão expectada pela teoria crítica da época, era vivida como uma percepção maximizada da continuidade entre indivíduo e história, uma sensação de onipresença do desvio e cooptação pessoais. Nenhuma surpresa, portanto, com a presença permanente de um certo estado acusatório nos jogos internos a uma organização como o CERFI, que não funcionava mais segundo a lógica cooperativa entre profissionais reunidos em rede e nem se submetia à normatividade do trabalho no “social”:

Trabalho coletivo: Por que desejar isso? Depois de tudo, não é exatamente o que exige o desenvolvimento do capitalismo, a socialização dos meios de produção, o fortalecimento do “trabalhador coletivo”? O indivíduo termina por ser ultrapassado, tendencialmente: a sociedade anônima primeiro, e depois os gerentes, as equipes pluridisciplinares. Todos esses coletivos são somente aglomerações de indivíduos? O indivíduo é definitivamente o fundamento? Não está tão claro: a equipe de ateliê não tem grande coisa a fazer com o indivíduo, não mais que a equipe do setor... No CERFI, promover o trabalho coletivo é ainda ir no sentido da corrente, precipitar as melhorias necessárias ao capitalismo. É progressista, seja o que for. E defender o trabalho individual, o artesanato e as liberdades acadêmicas, reacionárias. Nada de muito encorajador de um lado, nem de outro. Coletivo, isso pode ser outra coisa? (CERFI, 1973b, p. 175)

Todas as tentativas e justificativas para a inclusão do ponto de vista do engajamento na produção do CERFI responderam a uma especularidade militante. A subjetividade como tópico a merecer tratamento privilegiado não qualificava um mero resultado da ascendência esquizoanalítica sobre o grupo; consistia no retorno da própria eficácia do dispositivo cerfiano. A exposição pública das rotinas de trabalho e das dinâmicas de convivência pessoal que atravessavam o cotidiano da organização não estimulava e tampouco dava mostras, não ao menos do modo pretendido pelo núcleo formado pelos integrantes mais antigos, de uma participação igualitária no debate e deliberação sobre os assuntos que cercavam a produção das pesquisas, como faziam acreditar Recherches e a resposta à acusação feita pelo maoísta Robert Linhart de que o CERFI seria um “gauchisme à venda”.15 15 Polêmica publicada nas páginas do Libération. Cf. Linhart (1974) e Centre d'études, de recherches et de formation institutionnelles (1974). Como tem revelado a sociologia dos partidos e instituições comunistas, a exacerbação personalista do indivíduo e seus eventos biográficos define uma modalidade clássica de controle do sujeito coletivo (Pudal; Pennetier, 200238 PUDAL, Bernard; PENNETIER, Claude. (dir.). Autobiographies, autocritiques, aveux dans le monde communiste. Paris: Éditions Belin, 2002.; 2014). No CERFI, ela reforçava a autonomização do discurso em torno das categorias e conceitos utilizados e postos em circulação pelos projetos de trabalho. À injunção militante da politização da subjetividade correspondeu a produção da discursividade teórica, um dos principais motivos para que o legado cerfiano tenha se perdido na opacidade das abstrações do estilo antiedípico, apesar de sua importância nas ciências sociais, particularmente na renovação das temáticas da sociologia urbana. Em verdade, um legado a ser decifrado nos interstícios dos discursos e no núcleo da experiência forjada coletivamente para além do próprio CERFI, a transversalidade real das estratégias à espera de outras gerações e de outras políticas.

Referências

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  • 43
    TOSQUELLES, François. Le travail thérapeutique en psychiatrie. Toulouse: Éditions Érès, 2012.
  • 1
    Todas traduções são de minha autoria e responsabilidade.
  • 2
    Noção lacaniana, mas aqui subvertida, porque coletivamente enunciada cf. Lacan (1966).
  • 3
    Responsável editorial dos Cahiers de la F.G.E.R.I., celebrado por seus trabalhos com crianças autistas, seu talento artístico como escritor e por sua heterodoxia no trato com a linguagem, Fernand Deligny poderia ter se tornado o agente da modulação experimental e vanguardista dos discursos no âmbito da produção da F.G.E.R.I., não fosse sua opção pela reclusão, iniciada logo após 68 (Toledo, 2007).
  • 4
    Até hoje, o único estudo sistemático sobre o CERFI continua a ser o de Janet Morford, uma monografia baseada em entrevistas com os antigos integrantes, defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em 1985, ou seja, nos mesmos dias da extinção da organização guattariana. (Morford, 1985).
  • 5
    Sob o mesmo modelo coexistiam significativas variações da ação estatal e, assim, outras formas de interação com o campo científico puderam ganhar existência, como revela a trajetória da Délégation générale à la recherche publique (DGRST), órgão de inspiração mendeista, fundado em 1958 e extensamente promovido durante os primeiros anos da Va República (Chatriot; Duclert, 2006).
  • 6
    A autoria deste número que se propõe à síntese dos trabalhos do CERFI foi de François Fourquet (CERFI,1982).
  • 7
    Recherches passou a assumir nova linha editorial ao incorporar esses temas, inclusive aqueles trazidos por grupos alheios e, algumas vezes, muito pouco afinados politicamente com o CERFI (Nadaud, 2003).
  • 8
    IMEC. Fonds Félix Guattari. GTR 62.12. CERFI: contrat de recherches concernant l’émergence des équipements collectifs (1780-1850).
  • 9
    IMEC. Fonds Félix Guattari. GTR 62.12. CERFI: contrat de recherches concernant l’émergence des équipements collectifs (1780-1850).
  • 10
    No curso de 1972-1973, ao contrário de Vigiar e Punir, Foucault reconhece a funcionalidade de classe dos “equipamentos” (Foucault, 2013, p. 154). Mas vale destacar que, com os pesquisadores do CERFI, Foucault se reservara uma concepção mais genealógica e, portanto, menos condicionada a uma abordagem funcionalista da significação de classe dos “equipamentos” (Foucault, 2001d, p. 1315).
  • 11
    Avaliação registrada em texto inédito, disponível apenas no arquivo pessoal de Guattari. IMEC. Fonds Guattari. Texte sur l’action du Cerfi. L’idée de promoteur institutionnel a surgi d’un événement…, 1974. GTR 15.7.
  • 12
    IMEC. Fonds Guattari. Texte sur l’action du Cerfi. L’idée de promoteur institutionnel a surgi d’un événement…
  • 13
    Publicado em Recherches de março de 1973, Trois milliards de pervers foi organizado pelo Front Homosexuel d'Action Révolutionnaire (FHAR), com a proposta de permitir uma enunciação direta, sem testemunhos, do saber sobre a homossexualidade produzido pelos próprios homossexuais. Todos os exemplares foram recolhidos por determinação da Justiça francesa (Nadaud, 2003; Guattari, 2012b).
  • 14
    No sentido consagrado por Foucault (2001b).
  • 15
    Polêmica publicada nas páginas do Libération. Cf. Linhart (1974) e Centre d'études, de recherches et de formation institutionnelles (1974).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2016
  • Aceito
    31 Maio 2017
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