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Dependência, ciclo do capital e limites do fundo público no Brasil

Dependency, capital cycle and limits of the public fund in Brazil

Resumo:

Este artigo visa identificar a participação e os limites do fundo público no ciclo do capital da economia dependente brasileira. Para isso, aborda as implicações do intercâmbio desigual, da transferência de valor e da superexploração da força de trabalho para a composição e direcionamento do fundo público no Brasil, utilizando-se da coleta e análise de dados acerca do sistema tributário brasileiro.

Palavras-chave:
Fundo público; Ciclo do capital; Dependência; Intercâmbio desigual; Superexploração da força de trabalho; Sistema tributário brasileiro

Abstract:

This article aims to identify the participation and limits of the public fund in the capital cycle of the Brazilian dependent economy. To this end, it addresses the implications of unequal exchange, value transfer and overexploitation of the labor force for the composition and direction of public fund in Brazil, using the analysis of data about the Brazilian tax system.

Keywords:
Public fund; Capital cycle; Dependency; Unequal exchange; Overexploitation of the labor force; Brazilian tax system

1. Introdução

A contribuição de Ruy Mauro Marini sobre o ciclo do capital na economia dependente permite aprofundar a compreensão da configuração do fundo público no Brasil e a correlação de forças entre capital e trabalho, em que o primeiro depende cada vez mais de recursos públicos para seu financiamento.

Os mecanismos da superexploração da força de trabalho com a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada e a expropriação de parte do trabalho necessário aos trabalhadores para repor suas necessidades são reforçados pela exploração tributária sobre a classe trabalhadora no Brasil.

Com base nos aportes teóricos da Teoria Marxista da Dependência (TMD), em particular sobre o ciclo do capital na economia dependente, este artigo busca compreender a conformação do fundo público no Brasil e os limites do financiamento das políticas sociais. Este estudo investiga como o processo de troca desigual no comércio internacional, via transferência de valor e a consequente superexploração da força de trabalho, implica restrições ao fundo público no Brasil com adoção de medidas compensatórias para o capital, ao mesmo tempo que opera uma pesada carga de tributos sobre a renda dos trabalhadores.

Em termos metodológicos, têm-se como perspectiva de análise a totalidade e a observação crítica da realidade macroeconômica do fundo público e da política tributária. Para tanto, realiza-se um esforço de compreensão dos aportes teóricos da TMD, principalmente nas obras de Marini (2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012., 2017MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e revolução. 6. ed. Florianópolis: Insular, 2017.). Para sustentar os argumentos teóricos apresentados ao longo do texto, foram coletados e analisados dados do sistema tributário brasileiro, a partir da base de informações da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB). A primeira parte do artigo pontua e aprofunda as particularidades do ciclo do capital nas economias dependentes, visando compreender a participação e os limites do fundo público no contexto da dependência. Na segunda parte, com base nas categorias do intercâmbio desigual e da superexploração da força de trabalho, investiga-se a estrutura tributária que compõe o fundo público no Brasil a partir das bases econômicas dos impostos (renda, propriedade e consumo) e dos benefícios tributários concedidos ao capital.

2. O Fundo Público situado no ciclo do capital da economia dependente

Fundamentado nos mecanismos de transferência de valor e na consequente superexploração da força de trabalho, o processo de acumulação dependente carrega peculiaridades por conta do desenvolvimento econômico subordinado nas formações sociais, que levam a especificidades na conformação do Estado, na disponibilidade de recursos do fundo público e na definição das políticas econômicas e sociais.

A participação concreta do Estado quanto à garantia das condições para o desenvolvimento do capitalismo e à reprodução das relações sociais é perceptível a partir da constituição e apropriação do fundo público, apreendido como o conjunto dos recursos apropriados pelo Estado e utilizados para o cumprimento de suas funções, considerando que o Estado reorganiza a produção e distribuição dos valores (Salvador, 2010SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.). Na mesma direção, Behring (2012BEHRING, E. Rotação do capital e crise: fundamentos para compreender o fundo público e a política social. In: SALVADOR, E. et al. (org.). Financeirização, fundo público e política social. São Paulo: Cortez, 2012, p. 153-180.; 2021BEHRING, E. Fundo público, valor e política social. São Paulo: Cortez, 2021.) afirma que o fundo público participa diretamente do processo de rotação do capital e da reprodução do capital em sua totalidade, nos momentos da produção, circulação, troca e consumo, pois está presente em diversos mecanismos no financiamento aos capitalistas, no sistema de crédito, na definição da política salarial e na efetivação das políticas sociais, que possibilitam o consumo dos trabalhadores, entre outros aspectos.

Faz-se necessário, então, pontuar e aprofundar as particularidades do ciclo do capital nas economias dependentes, para que seja possível compreender a participação e os limites do fundo público no contexto implicado pela dependência. Para tratar do ciclo do capital na economia dependente, Marini (2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.) parte da sistematização de MarxMARX, K. O Capital: Crítica da economia política. Livro I - O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011., quando demarca as três fases do ciclo do capital em geral: circulação - produção - circulação. Na primeira fase da circulação, já se percebe a importância do dinheiro no processo de criação do valor, uma vez que o capital na forma de dinheiro é responsável por iniciar o ciclo, viabilizando a compra das mercadorias essenciais para o processo de produção: meios de produção e força de trabalho. Na produção, a força de trabalho em ação gera a mais-valia, cujo resultado permite, já na segunda fase da circulação, a remuneração de todas as frações do capital envolvidas no processo de valorização.

A particularidade do ciclo na economia dependente já se expressa na primeira fase da circulação, quando a origem do capital para iniciar o ciclo depende de três fontes. A primeira é o capital privado interno, a partir do investimento privado resultante de parte da mais-valia gerada internamente e redirecionada para o processo de produção1 1 Para Marini (2012), não importa se a propriedade jurídica é do capital estrangeiro, posto que o importante é que o capital se mantenha no processo produtivo interno. . A segunda fonte é o investimento público, por meio do Estado, o qual se apropria de parte da mais-valia gerada via tributação sobre parcela do capital, bem como de parte dos salários por meio da tributação sobre os trabalhadores, além do lucro das estatais que também disponibiliza recursos para o investimento público. Tais discussões de Marini (2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.) aproximam-se sobremaneira do debate realizado por Salvador (2010SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.) e Behring (2021BEHRING, E. Fundo público, valor e política social. São Paulo: Cortez, 2021.), em relação à composição do fundo público permitida pela apropriação do Estado de parte do trabalho excedente e do trabalho necessário.

Entre as múltiplas funções do Estado operadas pelo fundo público para a reprodução do capital, está a sustentação do investimento capitalista por meio das desonerações tributárias, dos incentivos fiscais e da redução da base tributária. Ressalta-se que, no tempo presente, o investimento capitalista no sentido clássico do termo - isto é, a formação bruta do capital fixo - perde força perante o avanço da financeirização do capital, viabilizada com a punção do orçamento estatal (face mais visível do fundo público) sob a forma de juros e amortização da dívida pública.

Ainda sobre a origem do capital no início do ciclo, a terceira fonte da origem do dinheiro mencionada por Marini (2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.) remete ao capital estrangeiro, tanto por meio do investimento direto como indireto sob a forma de empréstimos e financiamentos. Quando concluído o ciclo, o capital estrangeiro se apropria de parte da mais-valia sob a forma de lucro (no caso de investimento direto) ou juros (quando se trata de investimento indireto), no que é caracterizado como transferência de valor ao exterior. Portanto, no primeiro momento do ciclo do capital, “atua um fator externo à economia dependente e que se encontra totalmente fora de seu controle: o capital estrangeiro” (Marini, 2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 26). Marini ressalta, ainda, que, até o final da década de 1960, predominava o investimento direto na América Latina, mas, desde a década de 1970, em países com maior desenvolvimento relativo, como Brasil e México, a forma predominante passa a ser o investimento indireto, com protagonismo do capital financeiro. O capital estrangeiro, então, “além das taxas de amortização, cobra taxas de juros que são deduzidas da mais-valia gerada pelo investimento produtivo para o qual ele contribuiu, sem haver assumido, contudo, os riscos da produção e realização dessa mais-valia” (Marini, 2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 25).

Breda (2020BREDA, D. A transferência de valor no capitalismo dependente contemporâneo: o caso do Brasil entre 2000 e 2015. 2020. Tese (Doutorado) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020.), em extensa análise das transferências de valor tanto por meio do intercâmbio desigual como pela propriedade do capital (lucros, juros, renda) no período 2000-2015, afirma que se mantém atual a participação do capital estrangeiro na economia brasileira e que as transferências de valor seguem vigentes, “corroborando a hipótese geral de que este fenômeno é estrutural em economias dependentes como a brasileira” (Breda, 2020BREDA, D. A transferência de valor no capitalismo dependente contemporâneo: o caso do Brasil entre 2000 e 2015. 2020. Tese (Doutorado) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020., p. 199).

Conclui-se, então, que o ciclo do capital na economia dependente é diretamente articulado com o capital estrangeiro e muito influenciado pelo Estado, situação bastante distinta dos países imperialistas, em que houve um processo de industrialização mais orgânico - a própria produção de bens de consumo e o desenvolvimento da indústria passaram a exigir a produção de bens de capital. No desenvolvimento capitalista dependente, a industrialização tardia implicou um prolongamento da fase de produção de bens de consumo, posto que a oferta externa de meios de produção estava dada e até mesmo imposta. Dessa maneira, a indústria consolida-se e mantém-se dependente de tal oferta de máquinas, equipamentos e tecnologias advindas dos países imperialistas, o que favorece as formas de transferência de valor como royalties e assistência técnica. O Estado se apropria de menor parcela da mais-valia, portanto a disponibilidade de recursos do fundo público é também reduzida.

No que se refere à segunda fase do ciclo do capital, de acumulação e produção, Marini (2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.) destaca a tendência de que as empresas estrangeiras tenham acesso a meios de produção com mais tecnologia empregada, o que baixa o custo de produção e aumenta o lucro extraordinário2 2 Destaca-se que, após alguns ciclos, o lucro extraordinário reinvestido no processo de produção passa a se caracterizar como mais-valia extraordinária. Para o aprofundamento sobre essa categoria, vide Marini (1979), “Plusvalía extraordinaria y acumulación de capital”. , possível pela transferência de valor em um mesmo ramo de produção. Como consequência, o capital interno que opera em “condições normais” de produção não alcança o desempenho das empresas estrangeiras, estabelecendo a posição dominante do capital estrangeiro. De acordo com Marini (201MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.2), embora a concentração e a centralização de capitais representam uma característica geral do capitalismo na era dos monopólios, o ciclo do capital na economia dependente, em razão do elevado número de empresas estrangeiras operando em seu interior com maior grau de tecnologia implicada no processo de produção e menor custo de produção, tende a acumular mais-valia extraordinária em maior proporção que as empresas nacionais. Assim, as empresas menores, sem condições de competir da mesma forma na segunda fase da circulação - realização das mercadorias -, são destruídas ou incorporadas às multinacionais ou aos demais empreendimentos com aporte de investimento estrangeiro. Por isso, a tendência à monopolização é ainda maior nos países dependentes.

A reação das pequenas e médias empresas frente a esse cenário para recomposição da taxa de lucro é a elevação da taxa de mais-valia. Como isso ocorre? Por meio da extração de mais trabalho não remunerado, ou seja, por meio do recurso da superexploração da força de trabalho. Nos termos de Marini (2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 30):

isso só é possível se (descartada sempre a elevação da produtividade) aumenta-se a intensidade do trabalho, prolonga-se a jornada laboral e/ou simplesmente se rebaixa forçosamente o salário do trabalhador, sem que essa redução salarial corresponda a um barateamento real da força de trabalho. Em todos esses casos, a força de trabalho é remunerada abaixo de seu valor e, por conseguinte, dá-se uma superexploração dos trabalhadores.

Uma vez mais as empresas estrangeiras monopolistas são beneficiadas, já que todos os capitais se aproveitam da superexploração e do nível rebaixado dos salários, de acordo com o nível médio fixado pelas empresas que operam em condições médias. Estabelece-se, então, “um círculo vicioso no qual a estrutura de preços tende sempre a ser deprimida, pelo fato de que se deprime artificialmente o preço do trabalho, o salário” (Marini, 2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 30). Soma-se a isso a ação estatal, a qual impõe difíceis condições para que a classe trabalhadora conquiste melhores salários, sendo as lutas por reajustes salariais um enfrentamento central à burguesia dependente ao longo da história do desenvolvimento capitalista no Brasil (Marini, 2017MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e revolução. 6. ed. Florianópolis: Insular, 2017.). O rebaixamento dos salários tem consequências também para a capacidade de arrecadação do Estado, com grande impacto sobre o fundo público.

Além disso, já na segunda fase da circulação de realização das mercadorias tratada por Marini (2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.), o capital passa a circular sob a forma de mercadoria materializada em bens de consumo necessário, bens de consumo suntuário e bens de capital. A particularidade da economia dependente é exposta em razão da importância que assumem os bens de consumo, quando comparada com os países imperialistas. Os salários insuficientes proporcionados pela superexploração impactam diretamente a realização das mercadorias, reduzindo o escopo do mercado interno de consumo. Destaca-se que parte considerável das mercadorias produzidas nesse contexto são deslocadas para o mercado mundial por meio das exportações. De acordo com Marini (2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 35):

Os limites com que se choca essa segunda fase da circulação, tanto pela transferência de mais-valia ao exterior como pela deformação da estrutura da renda interna, empurram-na em direção ao exterior, levando-a a buscar a realização de partes das mercadorias no mercado mundial, com o que se fecha o círculo da dependência do ciclo do capital com relação ao exterior.

Dessa forma, se o fundo público participa do ciclo do capital em cada uma de suas fases, situá-lo e compreendê-lo com base nas particularidades do ciclo do capital na economia dependente permite realizar a análise concreta das condições de reprodução do capital - e do trabalho - no contexto brasileiro. Salvador e Teixeira (2014SALVADOR, E.; TEIXEIRA, S. Orçamento e políticas sociais: metodologia de análise na perspectiva crítica. Revista de Políticas Públicas (UFMA), v. 18, p. 15-32, 2014.) assinalam que o fundo público deve ser analisado a partir de dois eixos: composição e direcionamento dos recursos concentrados no Estado. Do ponto de vista da composição, é pertinente o estudo sobre a arrecadação, no capitalismo dependente, para um panorama sobre as consequências dos baixos salários para o padrão de financiamento do Estado dependente. Pode ser interessante, inclusive, comparar o sistema tributário das economias dependentes com aqueles dos países imperialistas. No âmbito do direcionamento, as transferências de valor que permeiam todo o ciclo são compreendidas em razão dos mecanismos de estruturas de preços, das remessas de lucros e do pagamento de juros, royalties, entre outros.

A mediação do Estado e do fundo público na efetivação e garantia do processo de transferência de valor é latente, sendo corroborada, no caso brasileiro, pelo sistema tributário que subsidia o capital e não cobra impostos sobre lucros e dividendos, inclusos os remetidos para o exterior, ao mesmo tempo que tem uma pesada carga tributária sobre a classe trabalhadora.

3. Dependência e financiamento tributário do Estado no Brasil

A origem da arrecadação tributária no capitalismo, como demonstrado por Max, só é possível por meio da extração da mais-valia. Portanto, a origem do financiamento das atividades estatais está na exploração da força de trabalho pelos proprietários dos meios de produção, sendo a renda dos trabalhadores tributada diretamente pelo Imposto de Renda (IR), o que reduz a renda disponível deles e, indiretamente, pelos tributos que incidem sobre os produtos consumidos pela classe trabalhadora (Salvador, 2018SALVADOR, E. A questão tributária em Marx: fundamentos para compreender o financiamento do fundo público. In: BOSCHETTI, I.; BEHRING, E.; LIMA, R. de L. (org.). Marxismo, política social e direitos. São Paulo: Cortez Editora, 2018, p. 89-112.).

A compreensão do ciclo do capital na economia dependente e das categorias intercâmbio desigual e superexploração da força de trabalho, discutidas anteriormente, corrobora para o entendimento da estrutura tributária que compõe o fundo público no Brasil.

Nesse sentido, compreende-se o fundo público como:

um compósito de mais-valia - incidindo sobre o lucro/juro e a renda da terra - e sobre o trabalho necessário, há vista a crescente tributação sobre os rendimentos da classe trabalhadora e também sobre as mercadorias que compõe sua cesta básica de reprodução (tributação indireta) (Behring, 2021BEHRING, E. Fundo público, valor e política social. São Paulo: Cortez, 2021., p. 91).

Nesse diapasão, a Tabela 1 apresenta de forma sintetizada as bases econômicas da arrecadação tributária, visando identificar sobre quem recai o ônus do financiamento do Estado brasileiro3 3 O debate sobre conceitos fundamentais para a compreensão da carga tributária como regressividade, progressividade, impostos diretos, indiretos e proporcionais pode ser visto em Salvador (2010) e Rezende (2021). .

A carga tributária é um indicador que expressa a relação entre o Produto Interno Bruto (PIB) e o volume de recursos que o Estado extrai da sociedade sob a forma de impostos, taxas e contribuições, de acordo com a responsabilidade de todos os entes da federação (União, estados, DF e municípios) de financiar as atividades que estão sob sua incumbência. A carga tributária brasileira tem oscilado entre 32,29% (2010) a 32,90% do PIB (2021), conforme os dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN, 2022STN. Estimativa da carga tributária bruta do Governo Geral. Boletim, Secretaria do Tesouro Nacional. Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional, 2022. Disponível em: <Disponível em: http://www.tesourotransparente.gov.br >. Acesso em: 10 fev. 2023.
http://www.tesourotransparente.gov.br...
).

Tabela 1.
Carga tributária por incidência econômica - arrecadação tributária União, Estados, DF e municípios por base tributárias, em 2021, Ano-Calendário, em R$ milhões

Os dados da Tabela 1 revelam que a tributação sobre a renda alcançou 9,92% do PIB em 2021, representando 31,6% do total de tributos arrecadados no país. Do montante de R$ 883,19 bilhões de tributos diretos sobre a renda, R$ 447,10 bilhões (50,62%) são originários da carga sobre os rendimentos dos trabalhadores. Os trabalhadores têm sua renda diretamente tributada pelo Imposto de Renda - Pessoa Física (IRPF), pelos descontos das contribuições sociais previdenciárias de trabalhadores vinculados ao Regime Geral da Previdência Social e dos Regimes Próprios de previdência dos servidores públicos de todos os entes da federação e, principalmente, pelo Imposto de Renda Retido na Fonte - Trabalho, que é a principal carga tributária incidente diretamente sobre os salários dos trabalhadores no Brasil, tanto daqueles do setor privado da economia, como dos servidores públicos, alcançando R$ 208,22 bilhões, em 2021, conforme Salvador (2023SALVADOR, E. Fundo público e questão tributária no Brasil. In: BEHRING, E. et al. (org.). Fundo público, orçamento e política social: 20 anos do GOPSS/UERJ. Curitiba: CRV, 2023, p. 117-140.).

Por outro lado, a tributação da Pessoa Jurídica no Brasil, portanto do capital, representou apenas 11,54% do Carga Tributária em 2021, conforme os dados da Tabela 1. A origem está na arrecadação tributária advinda do Imposto de Renda - Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a qual é o único tributo sobre a renda do capital a financiar a seguridade social no Brasil (Salvador, 2010SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.). Em 2021, as entidades financeiras, por exemplo, pagaram somente R$ 1,1 bilhão de IRPJ e R$ 820 milhões de CSLL (Salvador, 2023SALVADOR, E. Fundo público e questão tributária no Brasil. In: BEHRING, E. et al. (org.). Fundo público, orçamento e política social: 20 anos do GOPSS/UERJ. Curitiba: CRV, 2023, p. 117-140.).

Os donos do capital também não são tributados na condição de pessoas físicas, pois, desde 1996, no curso de um ajuste fiscal permanente, vigora no país a isenção do Imposto de Renda sobre Lucros e Dividendos4 4 Observe que somente Brasil e Estônia, na lista de países da OCDE, não tributam lucros e dividendos (Introíni et al., 2018). , incluindo a remessa para o exterior, o que agrava ainda mais a condição do Brasil como país dependente. Como destacado na seção anterior, o intercâmbio desigual entre as economias imperialistas e dependentes opera no sentido de captura de renda pelo comércio internacional, pela dívida, pelas remessas de lucros, royalties e dividendos, agravando a dependência.

A Tabela 1 revela, ainda, a baixa tributação sobre patrimônio no Brasil, apenas 1,6% do PIB e 5,11% do total da Carga Tributária. Essa situação é bem diferente dos países centrais, em que os impostos sobre o patrimônio representam mais de 10% da arrecadação tributária, como, por exemplo, no Canadá (10%), no Japão (10,3%), na Coreia (11,8%), na Grã-Bretanha (11,9%) e nos Estados Unidos (12,15%), conforme Owens (2005OWENS, J. Fundamental tax reform: an international perspective. Paris: Centre for Tax Policy and Administration Organisation for Economic Co-operation and Developmen, 31 de março de 2005.).

A tributação sobre bens e serviços, ou seja, sobre a base econômica do consumo, é a que melhor expressa a regressividade do sistema tributário brasileiro e sua enorme carga de tributos indiretos, uma vez que compromete de forma considerável o fundo de consumo5 5 Luce (2018, p. 158-159), com base nas categorias da Teoria Marxista da Dependência, demonstra a relação entre a superexploração da força de trabalho com o fundo de consumo e o fundo de vida em uma relação dialética da transubstanciação do valor diário e do valor total, ou seja, como uma “insuficiência do fundo de consumo, provocada pelo rebaixamento do pagamento da força de trabalho, influi negativamente sobre o fundo de vida”. dos trabalhadores no Brasil. De acordo com a Tabela 1, os tributos incidentes sobre bens e serviços ou que possam ser repassados ao consumo respondem por 59,2% da arrecadação tributária brasileira.

Os dados da carga tributária brasileira em comparação internacional, levantados por Rezende (2021REZENDE, T. Valor e fundo público: análise do sistema tributário brasileiro. Tese. (Doutorado em Política Social) - Instituto de Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS), Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2021.), mostram a existência de uma estrutura tributária indireta e regressiva com predomínio de impostos sobre consumo, enquanto, nos países centrais, a maior parte dos impostos recaem sobre a renda e o patrimônio. Na amostra de 38 países membros da OCDE, com base nos dados dos sistemas tributários de 2018, Rezende (2021REZENDE, T. Valor e fundo público: análise do sistema tributário brasileiro. Tese. (Doutorado em Política Social) - Instituto de Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS), Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2021., p. 319) destaca que “o Brasil apresenta uma relação entre tributos diretos e indiretos superior apenas a Letônia, Lituânia, Estônia e Costa Rica”. Os cálculos do autor quanto à relação entre tributos diretos e indiretos no Brasil resultaram no coeficiente de 0,56 em 2018, enquanto, na média dos países da OCDE, foi 1,02.

De acordo com Rezende (2021REZENDE, T. Valor e fundo público: análise do sistema tributário brasileiro. Tese. (Doutorado em Política Social) - Instituto de Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS), Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2021.), a estrutura tributária do Brasil demonstra o caráter subordinado e dependente das classes dominantes, ao passo que a superexploração da força de trabalho alimenta processos produtivos, que tendencialmente ignoram as necessidades da maioria da classe trabalhadora, direcionando a produção para mercados estrangeiros e/ou para estreitas camadas sociais que conformam os reduzidos mercados internos, gerados em meio à aguda concentração da riqueza (Osorio, 2014OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização. São Paulo: Outras Expressões, 2014.).

Uma das principais razões da forte incidência do Imposto de Renda (IR) nos rendimentos dos trabalhadores brasileiros é a defasagem na correção da tabela do IR. Estudo do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita do Brasil (Sindifisco Nacional) demonstra que a não correção da tabela do IRPF pelo índice de inflação faz com que os trabalhadores paguem mais impostos, sendo que a defasagem média acumulada da tabela do IRPF, em comparação ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), é de 134,52%, no período de 19966 6 O ano de 1996 é a referência, pois até 1995 a tabela do IR era corrigida periodicamente. Assim, foi durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) que a tabela do IR deixou de ser corrigida periodicamente pela inflação, sendo reajustada somente em 2002, no contexto das contrarreformas neoliberais e de políticas de ajuste fiscal permanente. No período de 2005 a 2015 (anos dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores), a tabela foi corrigida periodicamente, mas sem a reposição integral da inflação passada. Após o golpe de 2016, que derrubou a presidenta Dilma Roussef, a tabela deixou de ser corrigida. a 2021 (Coelho; Mota, 2022COELHO, A.; MOTA, J. A defasagem na correção da tabela do Imposto de Renda Pessoa Física. Brasília: Sindifisco Nacional, 2022.).

A situação torna-se mais agravante para a classe trabalhadora em 2016, com o golpe que derrubou a então presidenta Dilma Roussef, fruto de um processo de organização da burguesia dependente e de ajustes na hegemonia, evidenciando como as frações burguesas se articulam para responder à crise econômica e política (Ribeiro, 2020RIBEIRO, I. R. Burguesia dependente, bloco no poder e a conformação da hegemonia no Brasil entre 2003 e 2018. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Política Social, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2020.). Com ascensão ao poder do Presidente Temer, ocorre um recrudescimento da ofensiva do capital, voltando com carga a ortodoxia neoliberal a ponto de haver brutal corte de direitos sociais, sobretudo, no campo do financiamento das políticas públicas, como denota o Novo Regime Fiscal (NRF), aprovado pela Emenda Constitucional 95, já substituído pelo Novo Arcabouço Fiscal (NAF), por meio da aprovação da Lei Complementar 200, em 30/08/20237 7 O governo Lula encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLP 93/2023), que “institui regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico”, também denominado de Novo Arcabouço Fiscal (NAF), sendo aprovado em de 30 de agosto de 2023, com a Lei Complementar 200. O NAF fortalece, ao contrário de seu anúncio, os objetivos da política fiscal neoliberal de estabilizar a relação dívida pública/PIB por meio do controle do gasto público. . Importante notar que, no tocante ao financiamento tributário do fundo público, foi interrompida a política de reajuste da tabela do IR que vigorou no período de 2005 a 2014. Com isso, há uma queda excepcional na faixa de isenção da tabela do IR sobre os rendimentos do trabalho no Brasil.

A Tabela 2 demonstra que, cada vez mais, os trabalhadores mais pobres no Brasil vêm pagando IR descontando sobre o salário. De acordo com os dados apresentados nessa tabela, a faixa de isenção do IR, em 1995, era equivalente a 9,67 salários mínimos (SM). Ao longo de quase 30 anos, o limite da isenção do IR nem sequer acompanhou o reajuste do SM, com isso, em janeiro de 2022, aqueles que recebiam acima de R$ 1.903,98, o que equivalia somente 1,57 SM, já tinham incidência de 7,5% de imposto sobre seu salário.

Tabela 2.
Faixa de isenção do IRPF no Brasil (1995 a 2002)*

Os dados da Tabela 2 também revelam que a força de trabalho no Brasil é remunerada abaixo de seu valor e mostram o salário mínimo necessário (SMN)8 8 Salário mínimo necessário (SMN) do Dieese é bom parâmetro para avaliar a remuneração da força de trabalho próximo de seu valor (Luce, 2018). De acordo com o Dieese (2010, p. 118), o SMN deve “atender às necessidades dos trabalhadores e de suas famílias (...) e cobrir os gastos com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. do Dieese que, em janeiro/2022, era três vezes maior do que aquele que está em vigor no país, evidenciando como a dinâmica do fundo público no capitalismo dependente está diretamente relacionada à superexploração da força de trabalho. Como destaca Souza Filho (2016SOUZA FILHO, R. Fundo público e políticas sociais nos Estados dependentes: considerações teóricas. Em Pauta . Rio de Janeiro, 1o sem. de 2016. n. 37, v. 14, p. 174-198., p. 193):

A restrição da base de arrecadação, do ponto de vista do capital, estrutura-se devido à necessidade de se complementar a compensação da transferência do valor, ocorrendo, portanto, a redução da disponibilidade de mais valor para a constituição do fundo público. Do ponto de vista do trabalho, a restrição está relacionada à presença da superexploração; assim, a possibilidade de taxação dos trabalhadores também é reduzida, já que a base salarial está aquém da necessidade de reprodução de sua força de trabalho.

Ainda que a Constituição brasileira não permita a discriminação em razão da ocupação profissional ou da função exercida pelos contribuintes, a atual legislação tributária no Brasil não submete à tabela progressiva do IR os rendimentos de capital e de outras rendas da economia, que são tributados com alíquotas inferiores à do IR incidente sobre a renda do trabalho. Ademais, no Brasil, os incentivos fiscais e a não cobrança de impostos sobre lucros e dividendos leva à situação de baixa progressividade no IR. De acordo com Salvador (2016SALVADOR, E. Perfil da desigualdade e da injustiça tributária: Perfil da Desigualdade e da Injustiça Tributária. Brasília: INESC, 2016.), as alíquotas médias do IR (no ano de 2013) apresentam uma progressividade nas faixas de 3 a 40 salários mínimos, sendo que, a partir da faixa de 40 a 80 salários mínimos, o IR começa a perder a progressividade. Nessa faixa, a alíquota é rebaixada para 10,09%; na faixa de 80 a 160 salários mínimos, é reduzida para 6,65%, e, na faixa acima de 160 salários mínimos, a 3,33%, ou seja, uma alíquota de IR similar à existente na faixa de 5 a 10 salários mínimos. Em conclusão, quanto maior for a renda recebida pelo contribuinte, menor vai ser a alíquota do IR devido, o que revela uma regressividade do IR para os contribuintes de maior remuneração. Fica explícita a tentativa de compensar as perdas geradas pelas transferências de valor ao utilizar o sistema tributário para favorecimento do capital.

No bojo das contrarreformas neoliberais na década de 1990, foram realizadas modificações sorrateiras na legislação dos impostos, que modificaram a estrutura do sistema tributário e solaparam os princípios constitucionais da isonomia tributária, da progressividade e da capacidade contributiva (Salvador, 2010SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.).

A título de exemplo, podem ser citados pelos menos três benefícios, conforme a Tabela 3, que operaram no sistema tributário em prol do capital e funcionam como verdadeiras renúncias tributárias, ainda que não reconhecidas pela RFB: juros sobre capital próprio; isenção de IR sobre lucros e dividendos distribuídos no país, e Isenção de imposto de renda sobre lucros e dividendos remetidos para o exterior.

Tabela 3.
Benefícios tributários ao capital, 2021

Desde 1996, alguns bilhões de reais do fundo público brasileiro foram apropriados pelo grande capital, graças às medidas tomadas na área tributária, o que ampliou a relação de dependência. Entre os privilégios tributários concedidos ao grande capital, especialmente os bancos, está a isenção de imposto de renda da remessa de lucros e dividendos ao exterior. Os dados da Tabela 3 extraídos do balanço de pagamento do Banco Central do Brasil9 9 Disponível em: www.bcb.gov.br/estatisticas/estatisticassetorexterno. Acesso em: 15 set. 2023. revelam que a remessa de lucros e dividendos alcançou o montante de US$ 38,4 bilhões, em 202110 10 Em 2022, as remessas de lucros e dividendos alcançaram US$ 42,4 bilhões. , que, convertidos pela taxa de câmbio do final daquele ano, totaliza R$ 214,50 bilhões. Como as remessas de lucros e dividendos estão isentas de IR, o Brasil vem renunciando a receitas tributárias em favor da renda do capital. Houve momentos em que a taxação sobre essas transferências internacionais chegou a 25%; na época da edição da Lei n. 9.249/1995, a alíquota era de 15% (Salvador, 2010SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.).

A distribuição de lucros e dividendos é isenta de IR, após 1995. Os grandes números do IR disponibilizados pela Receita Federal do Brasil (RFB)11 11 Disponível em: www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos. Acesso em: 15 set. 2023. revelam que, em 2021, foram distribuídos na forma de lucros e dividendos R$ 555,69 bilhões (Tabela 3). Caso fosse aplicado uma alíquota de IR de 15%, que vigorava antes da alteração da lei, isso permitiria uma arrecadação de R$ 83 bilhões, em 2021.

Uma das renúncias fiscais implantadas em 1995 é a dedução dos juros sobre o capital próprio das empresas do lucro tributável do IR e da CSLL. A partir de 1996, a Lei n. 9.249/95, artigo 9o, permite às pessoas jurídicas tributadas pelo lucro real que remuneraram pessoas físicas ou jurídicas, a título de juros sobre o capital próprio, considerarem tais valores como despesas para fins de apuração do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Trata-se, na verdade, de uma despesa fictícia. O pagamento de juros sobre capital próprio vem sendo um mecanismo de redução na arrecadação do IRPJ e da CSLL.

As modificações na estrutura tributária brasileira estão em consonância com a política de ajuste fiscal permanente em curso no Brasil, que tem como característica central impor limite ao crescimento dos gastos sociais (custeio e investimento) e assegurar uma canalização de recursos do fundo público para o pagamento de juros e encargos da dívida pública, ao mesmo tempo que reduz a tributação dos mais ricos e concede generosos incentivos fiscais ao capital.

4. Considerações finais

O ciclo do capital na economia dependente opera como determinação fulcral sobre as tendências do fundo público e a configuração do sistema tributário brasileiro, que compensa a perda de valor produzido para os países centrais por meio de políticas fiscais que atendem aos interesses do capital. Os tributos incidem fortemente sobre a renda dos trabalhadores pelo IR na fonte cobrado sobre os salários e indiretamente com pesada carga tributária sobre o consumo.

As categorias da TMD permitem uma reflexão crítica sobre o fundo público no Brasil e sua estrutura tributária. Os dados que apresentamos revelam que, além da superexploração da força de trabalho reduzir a margem de recursos disponíveis para o fundo público no Brasil, agrava a situação da classe trabalhadora no país com forte tributação sobre a renda e compromete o fundo de consumo em razão da elevada tributação indireta.

Assim, quando observado e situado nas peculiaridades do ciclo do capital na economia dependente, tanto na origem como nas fases de produção e realização das mercadorias, o fundo público é utilizado para reforçar a hegemonia da burguesia dependente e limitada em sua possiblidade de redistribuição de renda e riqueza. O financiamento, em termos tributários, é regressivo, cobrando proporcionalmente mais impostos sobre a classe trabalhadora mais pobre, sendo também mais restritivo quanto ao destino dos recursos orçamentários, pois não universaliza nem amplia os direitos sociais.

As políticas sociais no Estado dependente brasileiro são submetidas de forma estrutural ao ajuste fiscal permanente, que impõe restrições aos gastos sociais, drenando recursos do fundo público ao capital portador de juros e fictício, cujos proprietários são credores dos títulos da dívida pública brasileira.

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    » http://www.tesourotransparente.gov.br
  • 1
    Para Marini (2012MARINI, M. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.), não importa se a propriedade jurídica é do capital estrangeiro, posto que o importante é que o capital se mantenha no processo produtivo interno.
  • 2
    Destaca-se que, após alguns ciclos, o lucro extraordinário reinvestido no processo de produção passa a se caracterizar como mais-valia extraordinária. Para o aprofundamento sobre essa categoria, vide Marini (1979MARINI, R. M. Plusvalía extraordinaria y acumulación de capital. In: Cuadernos Políticos, n. 20, México, D.F., Editorial Era, p. 18-39, abr./jun. de 1979.), “Plusvalía extraordinaria y acumulación de capital”.
  • 3
    O debate sobre conceitos fundamentais para a compreensão da carga tributária como regressividade, progressividade, impostos diretos, indiretos e proporcionais pode ser visto em Salvador (2010SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.) e Rezende (2021REZENDE, T. Valor e fundo público: análise do sistema tributário brasileiro. Tese. (Doutorado em Política Social) - Instituto de Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS), Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2021.).
  • 4
    Observe que somente Brasil e Estônia, na lista de países da OCDE, não tributam lucros e dividendos (Introíni et al., 2018INTROÍNI, P. et al. Tributação sobre a renda da pessoa física: isonomia como princípio fundamental de justiça fiscal. In: A reforma tributária necessária: diagnóstico e premissas. Basília: Anfip e Fenafisco, 2018. p. 245-280.).
  • 5
    Luce (2018LUCE, M. Teoria marxista da dependência. São Paulo: Expressão Popular, 2018., p. 158-159), com base nas categorias da Teoria Marxista da Dependência, demonstra a relação entre a superexploração da força de trabalho com o fundo de consumo e o fundo de vida em uma relação dialética da transubstanciação do valor diário e do valor total, ou seja, como uma “insuficiência do fundo de consumo, provocada pelo rebaixamento do pagamento da força de trabalho, influi negativamente sobre o fundo de vida”.
  • 6
    O ano de 1996 é a referência, pois até 1995 a tabela do IR era corrigida periodicamente. Assim, foi durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) que a tabela do IR deixou de ser corrigida periodicamente pela inflação, sendo reajustada somente em 2002, no contexto das contrarreformas neoliberais e de políticas de ajuste fiscal permanente. No período de 2005 a 2015 (anos dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores), a tabela foi corrigida periodicamente, mas sem a reposição integral da inflação passada. Após o golpe de 2016, que derrubou a presidenta Dilma Roussef, a tabela deixou de ser corrigida.
  • 7
    O governo Lula encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLP 93/2023), que “institui regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico”, também denominado de Novo Arcabouço Fiscal (NAF), sendo aprovado em de 30 de agosto de 2023, com a Lei Complementar 200. O NAF fortalece, ao contrário de seu anúncio, os objetivos da política fiscal neoliberal de estabilizar a relação dívida pública/PIB por meio do controle do gasto público.
  • 8
    Salário mínimo necessário (SMN) do Dieese é bom parâmetro para avaliar a remuneração da força de trabalho próximo de seu valor (Luce, 2018LUCE, M. Teoria marxista da dependência. São Paulo: Expressão Popular, 2018.). De acordo com o Dieese (2010DIEESE. Salário mínimo: instrumento de combate à desigualdade. São Paulo: Dieese, 2010., p. 118), o SMN deve “atender às necessidades dos trabalhadores e de suas famílias (...) e cobrir os gastos com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.
  • 9
    Disponível em: www.bcb.gov.br/estatisticas/estatisticassetorexterno. Acesso em: 15 set. 2023.
  • 10
    Em 2022, as remessas de lucros e dividendos alcançaram US$ 42,4 bilhões.
  • 11
    Disponível em: www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos. Acesso em: 15 set. 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2023
  • Aceito
    26 Out 2023
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