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A diversidade, as idades, as gerações: das especializações medíocres aos estudos necessários para a Sociologia da Juventude

Diversity, ages, generations: from mediocre specializations to necessary studies for Youth Sociology

Resumo:

O objetivo deste artigo é adentrar algumas produções sobre as juventudes e as gerações, tendo como fundamento para análise a decadência ideológica, cunhada por Georg Lukács. Com isso, pretendo afirmar que as bases de algumas especializações contribuem para a disseminação de conceitos pautados por expressões da questão social atribuídas aos sujeitos individualmente, numa espécie de afirmação de essência de sujeito, que carrega determinabilidade, ou seja, estão impregnados de uma ontologia depreciativa do humano.

Palavras-chave:
Sociologia da Juventude; Juventude; Geração; Jovem; Ser social; Decadência ideológica

Abstract:

The objective of this article is to enter some productions about youth and generations, having as basis for analysis the ideological decadence, coined by Georg Lukács. With this I intend to affirm that the bases of some specializations contribute to the dissemination of concepts guided by expressions of the social issue attributed to the subjects individually, in a kind of affirmation of subject essence, which carries determinability, i.e., are impregnated with a depreciative ontology of the human.

Keywords:
Sociology of Youth; Youth; Generation; Young people; Social being; Ideological decadence

Introdução

O presente ensaio é um texto de caráter introdutório pautado no questionamento de epistemologias que sustentam estudos e práticas com sujeitos de diferentes gerações. Através dele, algumas questões foram colocadas, identificadas, incentivando o desbravamento e contribuindo para desenhar o caminho teórico-metodológico que sustentou um estudo mais aprofundado sobre juventudes e gerações.1 1 O presente texto é parte constitutiva de reflexões e construções realizadas a partir da tese doutoral intitulada: Uma crítica ontológica aos estudos das juventudes a partir de Georg Lukács, defendida no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Tal trabalho contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e teve como objeto a análise de estudos da Sociologia da Juventude a partir da contribuição do materialismo histórico e dialético. Como base para esse estudo, está a crítica à sociedade capitalista e às epistemologias que a sustentam, que se reproduzem também por meio da afirmação de relações de opressão que afetam as singularidades humanas, entre elas as idades, as gerações.

Questões que envolvem o tema gerações têm desafiado pesquisadores de diferentes áreas e resultaram em movimentos de estudos e interpretações que deram origem, entre outras especializações, à Sociologia da Juventude. De forma geral, eles eram marcados por visões conservadoras e, muitas vezes, até preconceituosas da sociedade e dos problemas que nasciam decorrentes da exploração entre as classes, ou seja, da questão social, relacionados à urbanização e ao avanço do capitalismo no mundo.

Nesses estudos, havia uma ligação quase lógica entre o aumento de problemas urbanos vinculados às juventudes, datados do princípio da urbanização, e as respostas acadêmicas e públicas nesse campo, ou seja, o caminho teórico-metodológico preponderante nos estudos clássicos das juventudes é também o que estava por se destacar nas Ciências Sociais e Humanas, assim a influência do pragmatismo e do behaviorismo no princípio da sociologia da juventude é evidente.

É como se ocorresse um movimento inverso na ciência: em vez de os jovens serem estudados por si em uma perspectiva histórica articulada a partir da sociedade de complexos, eles foram estudados a partir dos problemas da urbanização que lhes eram atribuídos social e academicamente, ou seja, as/os jovens eram tidos como as causas dos ‘desajustes sociais’ identificados. O fato agravante é que a reversão desse deturpado propósito acadêmico ainda não aconteceu (Caliari, 2021CALIARI, H. F. Uma crítica aos estudos das juventudes a partir de Georg Lukács. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) - Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.).

O presente texto foi elaborado, portanto, pretendendo correlacionar o arcabouço teórico que sustenta a Sociologia da Juventude e o debate sobre gerações ao movimento descrito por Lukács como decadência ideológica, caracterizado por alguns estudos das Ciências Sociais, da Filosofia e da Economia, que se comprometeram e ainda se comprometem irrestritamente com o desenvolvimento do sistema capitalista em expansão, sem dimensionar a totalidade.

1. As contribuições da crítica à sociedade de classes para pensar as idades, as juventudes e a diversidade

Antes de tudo, vida cotidiana, ciência e religião (teologia incluída) de uma época formam um complexo interdependente, sem dúvida, frequentemente contraditório, cuja unidade muitas vezes permanece inconsciente (Lukács, 2012LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2012. v. I.)

As teorias, as pesquisas, desenvolvidas nos campos das humanidades e das Ciências Sociais, independentemente do objeto de estudo, em seu bojo carregam certa ideia de ser, que no emaranhado filosófico e epistemológico que as sustenta deixa transparecer, entre outras questões, a defesa ou crítica da sociedade capitalista. Esse fato é tão consolidado no campo científico que, segundo Lukács, esteve durante anos dado como superado e, portanto, não mais discutido nem evidenciado. Assim, Lukács toma para si a tarefa de resgatar esse debate ontológico, de colocá-lo novamente na ordem do dia, por entender que a superação da sociedade de classe tem intrínseca relação com a ontologia. Portanto, aí se localiza a importância de analisar o fundamento do ser à luz da teoria crítica marxiana.

Como afirma José Paulo Netto (2012NETTO, J. P. Apresentação. In: LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2012. v. I., p. 16): “Ao avançar para a construção da sua ética, Lukács foi levado a reconhecer que haveria de fundá-la expressamente na especificidade do ser social”, o que deu origem aos seus trabalhos sobre a Estética e a Ontologia do ser social, I e II, e os Prolegômenos, traçando os profundos passos para a Ética que, infelizmente, não chegou a ser escrita.

A partir desse percurso investigativo, Lukács nos brinda com a necessidade do enfrentamento do debate ontológico, fazendo um resgate das diferentes questões filosóficas que provocaram o abandono das ciências sobre o entendimento dos fundamentos do ser. Por esse resgate nos possibilita identificar e sustenta a crítica radical à sociedade de classes e as relações sociais como estão estabelecidas. Esse caminhar será a base do que já tinha sido sinalizado em Marx (2011MARX, K. O capital: crítica da economia política. 2. ed. Tradução: R. Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. Livro I: O processo de produção do capital.) como decadência ideológica, ao identificar um movimento na própria ciência de sustentação da ordem capitalista em expansão, presente no posfácio da segunda edição de O capital, ao discorrer sobre as ciências pós-revolução de 1848.

A decadência ideológica, de que tratam Lukács (2020LUKÁCS, G. A destruição da razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020.; 2018bLUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018b. v. 14.), Tonet (2016TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. Maceió: Coletivo Veredas, 2016.), Lara (2013LARA, R. Notas lukacsianas sobre a decadência ideológica da burguesia. Katálysis, Florianópolis, v. 16, n. 1, p. 91-100, jan./jun. 2013.), Lessa (1992LESSA, S. Lukács: trabalho, objetivação, alienação. Trans/Form/Ação, Marília, v. 15, p. 39-51, dez. 1992.), Coutinho (2010COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.) (este também postulante da miséria da razão), será aqui, portanto, o chão para a análise da Sociologia da Juventude, da ideia de geração, que se desenvolve no princípio do século XX. Assim, nas próximas linhas, assumo todos os riscos que são próprios de quem tenta tratar brevemente de profundas questões, mas ao mesmo tempo as torna urgentes ao debate entre os pares.

A base da decadência ideológica consiste num suposto pacto antiontológico (Lukács, 2018aLUKÁCS, G. Prolegômenos e para ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018a. v. 13.) que consta na supressão de indagações de questões ontológicas, de fundamento, constituição, origem. Pacto estabelecido entre a religião, as ciências e a filosofia, em meados da Idade Média, que não só permaneceram na Idade Moderna, como também ganharam novos contornos com a Revolução de 1848, e seus resquícios adentram os tempos contemporâneos. A tendência, portanto, da filosofia foi o afastamento das questões ontológicas, dadas até mesmo anticientíficas, abrindo campo para as religiões desenvolverem e sustentarem suas percepções sobre o ser, sua origem e constituição. Juntamente a esse movimento, há na virada do século XIX para o XX o advento de um novo gênero de positivismo. As Ciências Sociais que se colocavam como em uma perspectiva de crítica da sociedade antiga, após a Revolução de 1848, começam a dar suporte à sociedade burguesa nascente.

Como historiador e crítico da economia clássica, Marx descobriu e escreveu, pela primeira vez, a história dessa decomposição. A caracterização sumária dessa decomposição, feita por Marx no que diz respeito ao período 1820-1830, torna-se ao mesmo tempo uma exposição e uma crítica rica e multilateral da decadência ideológica da burguesia. Esta tem início quando a burguesia já domina o poder político e a luta de classes entre ela e proletariado se coloca no centro do cenário histórico (Lukács, 2010LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010., p. 51, grifos nossos).

A tendência geral dessa época, com a expansão do capitalismo no fim do século XIX, foi a eliminação definitiva de todos os critérios objetivos de verdade nas ciências, substituindo-os por procedimentos que permitem manipulação ilimitada dos fatos concretos, o que influenciou diretamente o conhecimento científico, a organização das Ciências Sociais, da Sociologia. Esse foi o princípio do período que Lukács chamou de decadência ideológica, mas que foi identificado por Marx, conforme dito, ainda no início do século XIX (Lukács, 2010LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010.).

Essa liquidação de todas as tentativas anteriormente realizadas pelos mais notáveis ideólogos burgueses no sentido de compreender as verdadeiras forças motrizes da sociedade, sem temor das contradições que pudessem ser esclarecidas; essa fuga numa pseudo-história construída a bel-prazer interpretada superficialmente, deformada em sentido subjetivista e místico, é a tendência geral da decadência ideológica (Lukács, 2010LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010., p. 53, grifos nossos).

A decadência ideológica, portanto, como afirmam Lukács (2020LUKÁCS, G. A destruição da razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020.; 2010LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010.; 2018bLUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018b. v. 14.), Tonet (2016TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. Maceió: Coletivo Veredas, 2016.), Lara (2013LARA, R. Notas lukacsianas sobre a decadência ideológica da burguesia. Katálysis, Florianópolis, v. 16, n. 1, p. 91-100, jan./jun. 2013.), Lessa (1992LESSA, S. Lukács: trabalho, objetivação, alienação. Trans/Form/Ação, Marília, v. 15, p. 39-51, dez. 1992.) e Coutinho (2010COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.), a partir de diferentes argumentos e percepções, é, portanto, a marca de um período em que os teóricos que outrora se empenhavam em entender profundamente as contradições presentes na realidade concreta, mesmo sendo teóricos burgueses, passam a se rarear e assumir entendimentos cada vez mais míticos, vazios de conteúdo crítico, manipuladores e menos sérios. Um exemplo dado por Lukács (2010LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010., p. 56) foi o que ocorreu com parte da economia: “A economia se limita, cada vez mais, a mera reprodução dos fenômenos superficiais. O processo espontâneo da decadência científica opera em estreito contato com a apologia consciente e venal da economia capitalista”.

Retomando a questão ontológica, aliado a esse movimento científico está o descaso com a base ontológica, o que faz com que a desconsideração possibilite a multiplicação de epistemologias ligadas a ontologias depreciativas desse ser, por não se colocar num diálogo crítico a respeito dos fundamentos, suas categorias constitutivas, e com o que ele pode vir a ser e a fazer. Não pautar as questões ontológicas pode significar sustentar defesas equivocadas.

Vale ressaltar que a decadência ideológica não é um movimento geral, mas em muitos casos, e em muitas especializações, se caracterizou por ser hegemônico. Ela se localiza no tempo/espaço de elaborar uma ciência capaz de dar suporte a ideias capitalistas, assim como afirma Lara (2013LARA, R. Notas lukacsianas sobre a decadência ideológica da burguesia. Katálysis, Florianópolis, v. 16, n. 1, p. 91-100, jan./jun. 2013., p. 93): “Ou seja, entre a herança teórico-cultural emancipadora e a manutenção da ordem, a burguesia opta pela segunda, dando origem ao ‘pensamento da ordem’, berço perfeito para o nascimento das ciências sociais especializadas”. Afirma Lukács (2010LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010., p. 63): “[...] a especialização cada vez mais estreita é o ‘destino’ de nossa época, [de] que ninguém pode escapar”. Aqui é essencial entender a diferença das especializações necessárias e que não se desvinculam do todo e aquelas medíocres, que buscam, de forma apartada e fragmentada, dar respostas rasas.

Segundo Lukács (2012LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2012. v. I.), após manobra burguesa que acarretou a derrota dos trabalhadores na Revolução de 1848 e a inauguração do sistema burguês capitalista, a Sociologia ocidental seguiu a linha de uma teoria geral de manipulação social consciente das massas, o que, de forma objetiva, contribuía também para a consolidação do sistema capitalista e para um suposto enterro da objetividade da verdade nas Ciências Sociais. É evidente que essa crítica ao movimento das ciências acaba sendo questionada, pois se constitui de maneira generalista, impulsionada pela hegemonia que esses estudos sustentadores da ordem assumiram.

No trato da Sociologia, por exemplo, ela mesma se apresenta como uma grande especialização que tenta por si só explicar expressões da questão social, vivências a partir de realidades e problemas diversos que, apartados da totalidade que compõe o ser e as sociedades, podem empobrecer o que vem sendo chamado de ciência. Em muitos casos, os estudos promovidos não podem nem ser chamados de análises, mas somente de reprodução do visual identificado, numa tradução de expressão verbal do que está visualmente disponível, ou seja, num completo pragmatismo. Estudos desse tipo não saem do âmbito da aparência, como explica Karel Kosik (2002KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.). E isso não é ciência. A ciência social não está dada, como bem pontua Lukács (2018bLUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018b. v. 14.), ela precisa ser perseguida, buscada, trabalhada.

Foi partindo desse entendimento e tentando sustentar a práxis no sentido imediato, de fortalecimento do pragmatismo, da aparência, que Karl Mannheim tentou desenvolver um método para as Ciências Sociais. Na nova ciência, ele considerava o pragmatismo, o behaviorismo e a psicologia profunda, e também chamou atenção para a afinidade entre o behaviorismo e a práxis fascista.

É digno de nota que Mannheim, em busca de uma força no mundo democrático, que se contrapusesse à influência fascista sobre as massas, tenha chamado a atenção para a afinidade metodológica entre as teorias behavioristas e a práxis fascista. Com toda a razão ele protesta contra a identificação simplista de ambas, mas com tal indicação aponta a continuidade socioeconômica de determinados problemas centrais da vida social, sobretudo a generalidade da manipulação como télos [alvo] da metodologia científica. Há tempos a manipulação deixou para trás o estágio das experiências e postulados, hoje ela exerce seu domínio sobre toda a vida, da práxis econômica e política à ciência (Lukács, 2012LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2012. v. I., p. 46, grifos nossos).

Portanto, segundo Lukács (2012LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2012. v. I., p. 47), emerge nas últimas décadas do século XIX uma confiança na possibilidade de manipulação das massas, e Karl Mannheim, a partir de uma tentativa de neutralidade das Ciências Sociais e de uma aparente busca por resolução de problemas sociológicos, reafirma isso com seu percurso teórico.

Mannheim (1952MANNHEIM, K. The sociologial problem of generation. In: MANNHEIM, K. Essays on sociology of knowledge. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1952.), ao escrever “O problema sociológico das gerações”, publicado por volta de 1928, insiste que seu texto se refere à Alemanha do entreguerras, devendo cada país, por isso, buscar respostas teóricas às questões das gerações de forma distinta, em específico nas expressões culturais. Portanto, para Mannheim (1968MANNHEIM, K. O problema da juventude na sociedade moderna. In: MARX, K. et al. Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. v. I., p. 71), a juventude assume diferentes significados, a depender da sociedade:

Há sociedades em que pessoas mais velhas desfrutam prestígio bem maior que as mais moças, como, por exemplo, na antiga China. Há outras em que, como nos Estados Unidos da América, depois dos 40 anos muitas vezes um homem é considerado velho demais para um emprego e só os moços interessam.

É comum a valorização do vigor da juventude de forma pontual, estética, e ao mesmo tempo sua depreciação quando associada à experiência de trabalho e de resolução de problemas. No entanto, ao falar das questões positivas relacionadas à pouca idade, Mannheim levanta um possível sentido revolucionário, que faz com que sua teoria se torne conhecida e tenha um valor positivo, que a faz ser reproduzida ainda hoje. Ao invés de afirmar que existe um caráter revitalizador próprio da juventude, como muitos autores fizeram, ele desconstrói essa ideia e diz que:

[...] a prenda mais importante da mocidade para ajudar a sociedade a dar nova saída é que, além de seu maior espírito de aventura, ela ainda não está completamente enredada no status quo da ordem social. [...] está provado que nas sociedades primitivas se desconhecem os conflitos mentais de nossa juventude, pois não há uma separação radical entre as normas ensinadas pela família e as que predominam no mundo dos adultos. [...] o fato relevante é que a juventude chega aos conflitos de nossa sociedade moderna vinda de fora, e é este fato que faz da juventude o pioneiro predestinado de qualquer mudança da sociedade (Mannheim, 1968MANNHEIM, K. O problema da juventude na sociedade moderna. In: MARX, K. et al. Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. v. I., p. 73, grifos nossos).

Mannheim (1968MANNHEIM, K. O problema da juventude na sociedade moderna. In: MARX, K. et al. Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. v. I.) abre caminho para compreender a juventude de forma emancipada, reconhecendo que ela ainda não está “completamente enredada no status quo”, sinalizando uma possível capacidade de se colocar no mundo de maneira diferente. Mas essa questão é um ponto não tanto explorado do debate, ao mesmo tempo que faz com que ele crie uma espécie de essência para o ser, que é completamente diverso e não determinado. O dito ‘maior espírito de aventura’ foi interpretado mais tarde como o princípio da noção de moratória, apesar de Mannheim não ter dado esse nome. Sobre as afirmações de Mannheim, Groppo (2017GROPPO, L. A. Introdução à sociologia da juventude. Jundiaí: Paco Editorial, 2017., p. 53, grifos nossos) afirma ser:

[...] primeiro rebento do que chamo de teorias críticas sobre juventude. O traço crítico dessas teorias que abordam a geração e a moratória reside no fato de que tendem a reconhecer o papel das juventudes na transformação social e atribuem um sentido positivo a este papel. Como se verá, libertam-se pouco da concepção ‘naturalista’ de juventude.

No entanto, apesar da consideração crítica referente ao esforço de Mannheim e do princípio da moratória social, há que se referir aos estudos do autor de forma integral e não pontual. Como exemplo, ressalto a teoria das gerações, de Mannheim, que engloba o sentido dado à moratória, envolve o conceito de classe social, mas apresenta caráter determinista, e faz referência a status econômico e não à configuração do sistema produtivo de classes sociais em disputa e da própria exploração, reforça um sentido meritocrático e individualista para a superação de classe.

Embora os membros de uma geração estejam indubitavelmente vinculados de certos modos, esses vínculos não resultam em um grupo concreto. Como, então, podemos definir e compreender a natureza da geração enquanto um fenômeno social?

Uma resposta talvez possa ser encontrada se refletirmos sobre o caráter de um tipo diferente de categoria social, materialmente bastante distinta da geração, mas apresentando certa semelhança estrutural - a saber, a posição de classe (Klassenlage) de um indivíduo na sociedade.

Em seu sentido mais amplo, a posição de classe pode ser definida como ‘situação’ (lagerung) comum que certos indivíduos suportam como a sua ‘sina’ na estrutura econômica e de poder de uma determinada sociedade. [...]

É possível abandonar a própria posição de classe através da ascensão ou da queda, individual ou coletiva, na escala social, independentemente por enquanto disto se dever ao mérito ou esforço pessoal, transformação social ou mero acaso (Mannheim, 1952MANNHEIM, K. The sociologial problem of generation. In: MANNHEIM, K. Essays on sociology of knowledge. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1952., p. 70).

No conceito de geração desenvolvido também por este autor, são fundantes as determinações biológicas, da idade, mas elas precisam ser inter-relacionadas com questões geográficas, de moradia e convívio, associadas à classe social como status:

A situação da geração está baseada na existência de um ritmo biológico na vida humana - os fatores de vida e morte, um período limitado de vida, e o envelhecimento. Os indivíduos que pertencem à mesma geração, que nasceram no mesmo ano, são dotados, nessa medida, de uma situação comum na dimensão histórica do processo social (Mannheim, 1952MANNHEIM, K. The sociologial problem of generation. In: MANNHEIM, K. Essays on sociology of knowledge. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1952., p. 71).

Portanto, para Karl Mannheim, como afirma a professora Weller (2018WELLER, W. Karl Mannheim: um pioneiro da sociologia da juventude. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/228652175_Karl_Mannheim_Um_pioneiro_da_sociologia_da_ juventude . Acesso em: 9 jun. 2018.
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), o determinante na teoria das gerações é que os sujeitos que compartilham um mesmo momento histórico, com idade parecida, classe social e condição social/cultural semelhante, acabam por processarem os acontecimentos e as experiências de forma também semelhante. Isso nos leva a ressaltar um possível determinismo na análise de seus textos.

O que o fato de pertencer a mesma classe e o de pertencer a mesma geração ou grupo etário têm em comum é que ambos proporcionam aos indivíduos participantes uma situação comum no processo histórico e social e, portanto, os restringe a uma gama específica de experiência potencial, predispondo-os a um certo modo característico de pensamento e experiência e a um tipo característico de ação historicamente relevante (Mannheim, 1952MANNHEIM, K. The sociologial problem of generation. In: MANNHEIM, K. Essays on sociology of knowledge. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1952., p. 72).

Sobre a Sociologia da Juventude e, de certa forma, a apreensão da decadência ideológica, apesar de não usar esse termo, Ianni (1968IANNI, O. O jovem radical. In: BRITO, S. (org.). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968. p. 225-242. v. 1.) já alertava que é preciso ter cautela nas leituras sobre juventudes, porque muitos autores se perdem no caminho: “Em consequência da falsa compreensão das relações entre as ciências sociais, os especialistas procuram interpretações ‘rigorosas’, isto é, circunscritas, parciais, voltadas para condições, fatores ou mecanismos psíquicos, sociais, pedagógicos ou outros” (Ianni, 1968IANNI, O. O jovem radical. In: BRITO, S. (org.). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968. p. 225-242. v. 1., p. 227, grifos nossos).

O exame de algumas focalizações - como Freud, Mannheim e Eisenstadt, por exemplo - tem por fim primordial somente ressaltar a natureza essencial de um fenômeno singular, cuja inteligibilidade completa depende de uma compreensão histórico-estrutural da sociedade (Ianni, 1968IANNI, O. O jovem radical. In: BRITO, S. (org.). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968. p. 225-242. v. 1., p. 226).

Para exemplificar isso, Ianni (1968IANNI, O. O jovem radical. In: BRITO, S. (org.). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968. p. 225-242. v. 1., p. 228) fala de Eisenstadt e como sua teoria busca interpretar o jovem como um sujeito que está num período de desajustamento social, localizando a leitura apenas de manifestações exteriores sobre algo que é mais profundo. O pensamento psicológico, privado, sobre a adolescência em Freud dá origem, por exemplo, à teoria de Mannheim. Segundo Freud (1952 apudIanni, 1968IANNI, O. O jovem radical. In: BRITO, S. (org.). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968. p. 225-242. v. 1., p. 229): “Da puberdade em diante o indivíduo se devota à grande tarefa de libertar-se dos progenitores. E somente depois dessa separação ele deixa de ser uma criança, tornando-se um membro da comunidade”.

Utilizando o pressuposto teórico de Freud, Mannheim (apudIanni, 1968MANNHEIM, K. O problema da juventude na sociedade moderna. In: MARX, K. et al. Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. v. I., p. 230) afirma: “O significado sociológico do deslocamento e da transferência (da libido) é muito importante, na medida em que o deslocamento de motivos privados, de objetivos familiares, para objetivos públicos constitui a forma normal de desenvolvimento do indivíduo”.

A socióloga brasileira Marialice Foracchi (1972FORACCHI, M. M. A juventude na sociedade moderna. São Paulo: Pioneira, 1972., p. 22) correlaciona fatores biológicos e sociais com o entendimento de gerações por Karl Mannheim, para concluir que “a continuidade das gerações é fundamental para assegurar a criação cultural e a transmissão da cultura”; ressaltando que “o conceito sociológico de geração não se baseia exclusivamente na definição social da idade, mas encontra no conflito a sua categoria constitutiva”. Segundo Augusto (2005AUGUSTO, M. H. O. Retomada de um legado intelectual: Marialice Foracchi e a sociologia da juventude. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo: Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, v. 17, n. 2, 2005.), Foracchi explora duas formas de relações interpessoais: de um lado, a família, entendida como grupo social que sustenta a relação de manutenção da vida, que envolve a categorização do jovem e do adulto; e, do outro, está o contato entre gerações, embasado na perspectiva mannheimiana.

É na busca por realizar debates que tenham como princípio a produção de conhecimento mais adequado possível da realidade, de caráter transformador e não manipulatório, que coloco em evidência a Sociologia da Juventude, que carrega uma centralidade na política. É necessário, a partir de uma ciência comprometida, ultrapassar a sustentação da ordem:

[...] se a ciência não se orienta para o conhecimento mais adequado possível da realidade existente em si, se ela não se esforça para descobrir com seus métodos cada vez mais aperfeiçoados essas novas verdades, que necessariamente são fundadas também em termos ontológicos e que aprofundam e multiplicam os conhecimentos ontológicos, então sua atividade se reduz, em última análise, a sustentar a práxis no sentido imediato. Se a ciência não pode ou conscientemente não deseja ir além desse nível, então sua atividade transforma-se numa manipulação dos fatos que interessam aos homens na prática (Lukács, 2012LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2012. v. I., p. 47).

Esse parêntese sobre a questão do conhecimento na perspectiva mannheimiana2 2 Conforme veremos, Mannheim é reconhecido na Sociologia da Juventude como um dos autores mais tradicionais de vertente crítica, conforme relata Groppo (2003; 2017). Daí o interesse em seus estudos. Além disso, entre os teóricos burgueses desse campo, o sociólogo húngaro é o que permanece mais requisitado, sobremaneira no campo da Educação. tem o intuito de sinalizar que o debate nesse campo precisa ser ampliado, mas não como sustentáculo à sociologia do conhecimento, e sim sob o interesse de maior aproximação com a totalidade. Nesse campo das gerações, não há um princípio de estudos ontológicos, mas uma multiplicidade de pontos de vista, de epistemologias, que deslocam o objeto da realidade para pesquisá-lo. É necessário, desse modo, um caráter transformador e não manipulatório para que as bases da Sociologia da Juventude sejam colocadas em xeque. Esse é o principal objetivo aqui.

Esse debate é tão atual e necessário que se reflete na busca pela compreensão também da questão social e do bojo de expressões e problemas que emergem e existem por ela. Em diversos momentos, as expressões da questão social são individualizadas e têm no sujeito humano e nas suas relações cotidianas a causa constituída para questões de âmbito conjuntural, ou seja, que ultrapassam em muito o sujeito, para isso fazem uso de teorias manipuladoras que fundamentam uma espécie de essência desse ser humano, que ganha aspectos apolítico e a-histórico.

Desbancar a ideia de essência do sujeito e também a ontologia dos dois mundos, que sustenta o idealismo, ainda reinante nessas teorias pregadas à decadência ideológica, permite superar afirmações conservadoras, racistas, misóginas, classistas, capacitistas, adultocêntricas e também homofóbicas, que têm se perpetuado e encontrado solo fértil na contemporaneidade, partindo de sujeitos ideais, relações ideais, vidas ideais, modelos.

É partindo desses pressupostos que é esboçada a Sociologia da Juventude que se desenvolveu a partir de diferentes influências teóricas. Os discursos sociológicos que sustentaram a criação de um campo de estudo chegam até a contemporaneidade, apesar de passar pelo que hoje Groppo (2017GROPPO, L. A. Introdução à sociologia da juventude. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. p. 84) chama de “implosão paradigmática” que ocorre de dentro para fora, ou seja: “Os edifícios que implodem são a estrutura social moderna, o eixo paradigmático da sociologia clássica e a estrutura moderna das categorias etárias” (GROPPO, 2017GROPPO, L. A. Introdução à sociologia da juventude. Jundiaí: Paco Editorial, 2017., p. 93). Sobre isso, o autor afirma que: “A sociologia da juventude tenta viver dos cacos das suas reflexões e pesquisas” (2017, p. 84)”.3 3 Com essa afirmação, o autor sintetiza a tese central das ciências pós-modernas, qual seja, a defesa da existência de uma crise paradigmática contemporânea que ignora a crítica ao positivismo e ao cientificismo feita há mais de um século por Karl Marx, conforme nos lembra Netto (2012), e que é reforçada por tantos pesquisadores, como Lukács (2020), Michael Löwy (2007), Carlos Nelson Coutinho (2010), Ricardo Lara (2013) e Ivo Tonet (2016).

2. Um breve resgate dos fundamentos dos estudos sobre gerações e da Sociologia da Juventude

Os primeiros estudos sobre o desenvolvimento humano das idades, mais sistematizados e organizados no que mais tarde veio a ser chamado de sociologia da juventude, datam, como dito anteriormente, do início do século XX4 4 Em meados do século XVIII, Jean-Jacques Rousseau já havia inaugurado os primeiros debates envolvendo a infância e a juventude, publicados na obra Émile ou de L’éducation, em 1762, com tradução de Antonio Sergio e edição da Inquérito, feita em Lisboa. Como autor clássico sobre a infância e juventude, vale ressaltar Philippe Ariès (1914-1984), defensor da monarquia e participante de movimentos contrarrevolucionários na França, como o Action Française. Foi também escritor da revista monarquista La Nation Française, escreveu a primeira grande obra sobre a infância ainda muito citada atualmente, História social da criança e da família. e carregam a importância de terem questionado e percebido que entre o nascimento e a idade adulta algo precisava ser compreendido no ser humano. No entanto, há que se ressaltar que esse momento estava envolto de grandes transformações socioeconômicas que afetaram sobremaneira as ciências e a filosofia, marcado pela expansão do sistema capitalista e a ampliação desmedida da urbanização. Portanto, a questão central que se apresentava, qual seja: a singularidade das idades, portanto o impacto do tempo no ser e em sua reprodução, passou a ser analisada a partir dos problemas que os sujeitos apresentavam diante do sistema em expansão, ou seja, de forma bastante reduzida.

Esse movimento, chamado por Lukács de decadência ideológica, tomo a liberdade de afirmar que acabou por influenciar os estudos que se propuseram a pautar o desenvolvimento humano social e as idades, tornando as idades um dado manipulável, como afirmou anos mais tarde Bourdieu5 5 Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês, contribuiu também com o campo de estudo da juventude, com um breve texto intitulado “A juventude é apenas uma palavra”. (1983BOURDIEU, P. A juventude é apenas uma palavra. In: BOURDIEU, P. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 112-121.). Seguindo esse ritmo, a Escola de Chicago (1920 a 1940) apontava para conclusões sobre os problemas vivenciados pelos jovens urbanos, como anomia e desvio social, ou seja, tínhamos, por parte da academia, um ideal de ser jovem, assim como um ideal de sociedade, que não suportava rachaduras, contradições nem problemas, e quando estes eram identificados, eles se localizavam individualmente nos sujeitos e não na sociedade em construção.

No início da década de 1920, Parsons já aposta no caráter de ordem estrutural para compreender o fenômeno que se apresenta cada vez mais complexo: os jovens urbanos, questionadores do ritmo e controle da vida e do trabalho que vinham sendo consolidados. Essa abordagem de ordem estrutural refere-se à emergência da adolescência nas sociedades urbanas ocidentais, de classe média. Com estes estudos, se viabilizou a padronização de comportamentos que mais tarde deu origem à criação do conceito de “cultura juvenil”, expresso nas suas formas de interação com outras gerações (Tavares, 2012TAVARES, B. Sociologia da juventude: da juventude desviante ao protagonista jovem, da Unesco. Sociedade e Cultura, Goiania, v. 15, n. 1, p. 181-191, jan./jun. 2012.).

Para compreender o que Parsons diz sobre o jovem e os problemas estruturais (a exemplo do desemprego) e como ele chega a soluções pontuais, acríticas e sem análises profundas (como a qualificação), é necessário ter como ponto de partida o entendimento de que a juventude para ele é uma “fase da vida. Isso nos leva à compreensão de “continuidade” e “descontinuidade” de valores e normas das gerações, tendo como quadro teórico dominante as teorias da socialização6 6 Desenvolvida pelo estrutural-funcionalismo. e das gerações7 7 Elaborada por Karl Mannheim, mas apropriada por diversos autores da Sociologia da Juventude. (Pais, 2003PAIS, J. M. Culturas juvenis. Lisboa: Editora Casa da Moeda, 2003.).

Parsons (1968PARSONS, T. A classe como sistema social. In: BRITTO, Sulamita de (org.). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. v. III.), em suas pesquisas,8 8 Ao interpretar os dados de uma pesquisa realizada com 3.348 meninos de uma escola secundária de Boston, Parsons (1968, p. 50) explica: “A variação das intenções de ingressar numa universidade era de 29% para filhos de trabalhadores a 89% para filhos de burocratas de nível superior”, e que esse dado ‘não é simplesmente um meio de afirmar um status de origem previamente determinado”, mas reforça que “o menino de status elevado e possuidor de grande habilidade tem muitas possibilidades de ingressar na universidade, ao passo que o menino de status inferior e pouca habilidade não apresenta as mesmas habilidades”. reforça um entendimento de autonomia, responsabilização e individualização das escolhas das crianças, principalmente em relação ao estudo e ao trabalho (por universidade ou mercado de trabalho), dizendo que as escolhas ainda estão para acontecer quando os sujeitos adentram a escola, como se tivessem oportunidades equivalentes, ressaltando aspectos meritocrático e individualista. Ainda apresenta uma visão determinista sobre sexualidade.

Da família [o jovem] recebeu algumas das bases de seus sistemas de motivação. Mas a única característica fundamental das funções que desempenhará mais tarde, que foi claramente determinada e psicologicamente imprimida naquela ocasião, é a função do sexo [...] O processo de seleção, pelo qual as pessoas selecionarão e serão selecionadas por categorias de funções, está ainda para acontecer (Parsons, 1968PARSONS, T. A classe como sistema social. In: BRITTO, Sulamita de (org.). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. v. III., p. 51).

Para ele, a família e a escola se localizam em espaços privilegiados, especiais na socialização dos sujeitos, chegando a fazer comparação entre o papel da mãe na família e da professora na classe (que, para ele, deve ser incentivada a ser mulher). Reforça que mesmo que com objetivos distintos a professora segue, na escola, a orientação que a mãe realiza em casa (Parsons, 1968PARSONS, T. A classe como sistema social. In: BRITTO, Sulamita de (org.). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. v. III.). Sua teoria conservadora influenciou diversos pesquisadores, como Eisenstadt, que, interessado em problemas intergeracionais, discutiu-os em seu trabalho mais conhecido De geração a geração, de 1976. A juventude, para Eisenstadt, surge como um grupo social específico quando não há um perfeito ajustamento entre as regras sociais articuladas no interior da família (Tavares, 2012TAVARES, B. Sociologia da juventude: da juventude desviante ao protagonista jovem, da Unesco. Sociedade e Cultura, Goiania, v. 15, n. 1, p. 181-191, jan./jun. 2012.).

Eisenstadt (1968EISENSTADT, S. N. Grupos informais e organizações juvenis nas sociedades modernas. In: EISENSTADT, S. N. et al. Sociologia da Juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. v. IV., p. 14) criou certa tipologia dos grupos juvenis para interpretá-los e afirma que, apesar de apresentarem questões semelhantes, “a magnitude da organização e especialmente os valores desses grupos variam sobremaneira de acordo com a classe e a composição étnica do grupo”. Ainda afirmando esse pensamento de que os jovens possuem certo padrão ao se organizarem, Eisenstadt (1968EISENSTADT, S. N. Grupos informais e organizações juvenis nas sociedades modernas. In: EISENSTADT, S. N. et al. Sociologia da Juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. v. IV., p. 15) diz que: “Embora a estrutura funcional do grupo e os valores de diversos jovens das classes altas e médias variem de um lugar para outro, e de um país para outro, ainda assim os seus principais valores e diretrizes parecem assemelhar-se”, sugerindo uma espécie de cultura juvenil, como também sinaliza Parsons.

Assim, a Sociologia da Juventude que vinha sendo construída se configura a partir de conceitos de ser jovem, pautados em modelos ideais, apartados das múltiplas categorias constitutivas do ser, de forma genérica, ou seja, afastados da totalidade complexa, ou de uma ontologia crítica, ou seja, os estudos se localizavam no âmbito do visível, do identificado pelos sentidos, da aparência, o que permite a conclusão da aproximação desses estudos ao movimento da decadência ideológica.

Portanto, a Sociologia da Juventude e os estudos fundantes, especialmente os realizados pelo sociólogo húngaro Karl Mannheim (1893-1947), pelo sociólogo estadunidense Talcott Parsons (1902-1979) e pelo sociólogo israelense Shmuel Eisenstadt (1923-2010), continuam sendo fontes de referências na atualidade. Vale ressaltar que a Sociologia da Juventude brasileira se pauta nas produções desses autores e em sua crítica também, como no caso de Octavio Ianni (1968IANNI, O. O jovem radical. In: BRITO, S. (org.). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968. p. 225-242. v. 1.), Marialice Foracchi (1972FORACCHI, M. M. A juventude na sociedade moderna. São Paulo: Pioneira, 1972.) e Luis Antonio Groppo (2017GROPPO, L. A. Introdução à sociologia da juventude. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.). Apropriam-se também dos estudos culturalistas ingleses produzidos na Universidade de Birmingham, no Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS), que dão origem ao entendimento de diversidade das juventudes aliado ao conceito de culturas juvenis, com Paul Willis, entre outros. Esses estudos possuem características um pouco mais críticas, libertárias, mas próximas de trabalhos pós-modernos, com reforço de discursos identitários e simbólicos (Caliari, 2021CALIARI, H. F. Uma crítica aos estudos das juventudes a partir de Georg Lukács. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) - Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.). Fato que reforça a necessidade de crítica ao arcabouço teórico que envolve o campo da juventude e a necessária ampliação do debate, a partir de uma perspectiva dialética e emancipadora e de crítica radical à sociedade de classes.

Considerações finais

Tendo como referência a Sociologia da Juventude, especificamente, as produções do estrutural funcionalismo, do culturalismo e da teoria das gerações, que são fundantes desse campo, tratamos de compreendê-la à luz da teoria crítica, especialmente das contribuições e da influência da decadência ideológica identificada por Karl Marx e desenvolvida por Lukács (2010LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010.). A partir desse percurso, foi possível registrar algumas considerações gerais:

  • A questão do tempo, das idades e das gerações, como singularidades que interagem na constituição do ser social, não assumiu um espaço de diálogo correspondente à importância de que necessita para o aprimoramento dos estudos.

  • As juventudes, as infâncias, as adolescências, assim como os idosos, estão sendo tipologizadas social e biologicamente, num entendimento limitado a um sujeito finito em termos sociais e culturais, levando-nos à compreensão das idades ligadas ao entendimento de tipo ideal construído por meio de um modelo de adulto produtivo.

  • As juventudes, as infâncias, as adolescências, assim como os idosos, estão sendo caracterizadas e problematizadas, retirando-os do contexto geral que os envolve, das suas categorias humano-constitutivas e partindo de sujeitos ideais, como se fosse um sujeito à parte do restante da sociedade e da história.

  • Os conceitos de juventude são apresentados de forma a-histórica e apolítica, sem considerar que existem limites de certas abordagens ao que impõe o sistema capitalista.

  • Há desvinculação das juventudes e das problemáticas que as envolvem da Questão Social, entendida como expressão concreta das contradições que nascem na relação de embate entre o capital e o trabalho, entre as classes sociais.

  • As teorias econômicas e sociais, emergentes no capitalismo no princípio do século XX, marcadas pela chamada decadência ideológica, dão suporte às teorias fundantes da Sociologia da Juventude.

Essa última consideração reforça todas as demais, visto que a base teórica hegemônica utilizada como aparato para entender as questões que envolvem a problemática das idades, das gerações, das juventudes é restrita conceitualmente, limitada a um tempo histórico específico, e marcada pela manipulação de dados e teoria. Em alguns momentos, essa base teórica é encoberta de um criticismo superficial que se desmancha ao ser aprofundado.

Portanto, compreender que, em muitos aspectos, a Sociologia e suas especializações se constituem como um fim em si mesmo é identificar que elas podem se apoiar em uma base material teórica cômoda, envelhecida, conservadora e burguesa no seu pior sentido, aquele pregado à decadência ideológica (Caliari, 2021CALIARI, H. F. Uma crítica aos estudos das juventudes a partir de Georg Lukács. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) - Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.). É notável que nesse campo de estudo das juventudes, das infâncias, das adolescências, das gerações, que se apresenta como uma especialização dentro da Sociologia, há a desconsideração, a liquidação do materialismo e da dialética (Sherer et al., 2021SHERER, G. A. et al. Crise e questão social: rebatimentos para infâncias, adolescências, juventudes e envelhecimentos. Temporalis, Brasília, ano 21, n. 42, p. 320-334, jul./dez. 2021.), expressando certa “fuga” da realidade concreta, das contradições e das possibilidades de emancipação humana, localizando as problemáticas dentro de limites estruturais e inviabilizando a possibilidade de entender o sujeito como Ser Social e as idades como mais um complexo categórico, que interage na constituição das singularidades que envolvem esse ser. O que vemos é a luta de classes dando lugar à criação de misticismos vulgares e insípidos, deslocados e mascarados de proposições aparentemente críticas e plurais.

Referências

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    » https://www.researchgate.net/publication/228652175_Karl_Mannheim_Um_pioneiro_da_sociologia_da_ juventude
  • 1
    O presente texto é parte constitutiva de reflexões e construções realizadas a partir da tese doutoral intitulada: Uma crítica ontológica aos estudos das juventudes a partir de Georg Lukács, defendida no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Tal trabalho contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e teve como objeto a análise de estudos da Sociologia da Juventude a partir da contribuição do materialismo histórico e dialético.
  • 2
    Conforme veremos, Mannheim é reconhecido na Sociologia da Juventude como um dos autores mais tradicionais de vertente crítica, conforme relata Groppo (2003GROPPO, L. A. Educação e juventude como técnicas sociais nas obras de Karl Mannheim. Revista de Ciências da Educação Americana, ano 5, n. 9, p. 233-356, 2o sem. 2003.; 2017GROPPO, L. A. Introdução à sociologia da juventude. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.). Daí o interesse em seus estudos. Além disso, entre os teóricos burgueses desse campo, o sociólogo húngaro é o que permanece mais requisitado, sobremaneira no campo da Educação.
  • 3
    Com essa afirmação, o autor sintetiza a tese central das ciências pós-modernas, qual seja, a defesa da existência de uma crise paradigmática contemporânea que ignora a crítica ao positivismo e ao cientificismo feita há mais de um século por Karl Marx, conforme nos lembra Netto (2012)NETTO, J. P. Apresentação. In: LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2012. v. I., e que é reforçada por tantos pesquisadores, como Lukács (2020)LUKÁCS, G. A destruição da razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020., Michael Löwy (2007)LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2007., Carlos Nelson Coutinho (2010)COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010., Ricardo Lara (2013)LARA, R. Notas lukacsianas sobre a decadência ideológica da burguesia. Katálysis, Florianópolis, v. 16, n. 1, p. 91-100, jan./jun. 2013. e Ivo Tonet (2016)TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. Maceió: Coletivo Veredas, 2016..
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    Em meados do século XVIII, Jean-Jacques Rousseau já havia inaugurado os primeiros debates envolvendo a infância e a juventude, publicados na obra Émile ou de L’éducation, em 1762, com tradução de Antonio Sergio e edição da Inquérito, feita em Lisboa. Como autor clássico sobre a infância e juventude, vale ressaltar Philippe Ariès (1914-1984), defensor da monarquia e participante de movimentos contrarrevolucionários na França, como o Action Française. Foi também escritor da revista monarquista La Nation Française, escreveu a primeira grande obra sobre a infância ainda muito citada atualmente, História social da criança e da família.
  • 5
    Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês, contribuiu também com o campo de estudo da juventude, com um breve texto intitulado “A juventude é apenas uma palavra”.
  • 6
    Desenvolvida pelo estrutural-funcionalismo.
  • 7
    Elaborada por Karl Mannheim, mas apropriada por diversos autores da Sociologia da Juventude.
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    Ao interpretar os dados de uma pesquisa realizada com 3.348 meninos de uma escola secundária de Boston, Parsons (1968PARSONS, T. A classe como sistema social. In: BRITTO, Sulamita de (org.). Sociologia da juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. v. III., p. 50) explica: “A variação das intenções de ingressar numa universidade era de 29% para filhos de trabalhadores a 89% para filhos de burocratas de nível superior”, e que esse dado ‘não é simplesmente um meio de afirmar um status de origem previamente determinado”, mas reforça que “o menino de status elevado e possuidor de grande habilidade tem muitas possibilidades de ingressar na universidade, ao passo que o menino de status inferior e pouca habilidade não apresenta as mesmas habilidades”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
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