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Condições sócio-ocupacionais do trabalho docente e a formação profissional

Socio-occupational conditions of teaching and professional training

Resumos

O texto aborda as configurações do trabalho docente na atualidade, tomando como determinações a contrarreforma do Estado e sua vinculação com a crise estrutural do capital. Destaca as medidas anticrise tomadas pelos organismos internacionais e governos nacionais, em particular no âmbito da educação superior. Apresenta elementos para problematização das implicações deste processo na formação dos assistentes sociais no Brasil

Trabalho docente; Ensino superior; Formação profissional


The article deals with the configurations of teaching nowadays, and it takes as determinations the counter-reform of the State and its link with the structural crisis of the capital. It stresses the anti-crisis measures taken both by international organizations and national governments, mainly the ones related to university education. It presents elements to question the implications of such a process in the training of social workers in Brazil

Teaching; University education; Professional training


ARTIGOS

Condições sócio-ocupacionais do trabalho docente e a formação profissional

Socio-occupational conditions of teaching and professional training

Marina Barbosa Pinto

Doutora em História PPG-UFF. Professora associada da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)/MG, Brasil. Pesquisadora do Núcleo Geografia, Espaço e Ação (Nugea-ICH-UFJF). E-mail: marinabp@flordelotus.net

RESUMO

O texto aborda as configurações do trabalho docente na atualidade, tomando como determinações a contrarreforma do Estado e sua vinculação com a crise estrutural do capital. Destaca as medidas anticrise tomadas pelos organismos internacionais e governos nacionais, em particular no âmbito da educação superior. Apresenta elementos para problematização das implicações deste processo na formação dos assistentes sociais no Brasil

Palavras-chave: Trabalho docente. Ensino superior. Formação profissional.

ABSTRACT

The article deals with the configurations of teaching nowadays, and it takes as determinations the counter-reform of the State and its link with the structural crisis of the capital. It stresses the anti-crisis measures taken both by international organizations and national governments, mainly the ones related to university education. It presents elements to question the implications of such a process in the training of social workers in Brazil

Keywords: Teaching. University education. Professional training.

I - O trabalho docente e a política educacional

Problematizar a formação profissional dos assistentes sociais requer, inicialmente, refletir sobre as condições sócio-ocupacionais no ensino superior, seja no âmbito público ou no privado. Para tanto, faz-se necessária uma breve contextualização sobre o projeto educacional em curso, de forma que possamos caracterizar as condições de trabalho e estudo no interior das instituições de ensino superior.

O contexto que dá os contornos da política educacional no Brasil tem como determinante a reformulação das diretrizes para o ensino superior no sentido de adequar a educação às exigências do mercado no mundo globalizado, conforme aponta o Consenso de Washington.1 1 . Elaborado em 1989 por instituições como Banco Mundial, FMI, e Departamento de Tesouro dos Estados Unidos, as diretrizes do Consenso de Washington se concentram em equilíbrio orçamentário, abertura comercial, liberalização financeira, desregulamentação dos mercados domésticos e privatização das empresas estatais e que se tornou a política oficial do Fundo Monetário Internacional em 1990, quando passou a ser orientação para promover o ajustamento macroeconômico dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades.

O projeto governamental materializa determinado projeto de educação, vinculado aos interesses do desenvolvimento capitalista, que prioriza: 1) a formação como preparação imediata para o trabalho, com ênfase na capacitação técnico-operativa e no desenvolvimento de habilidades para a adaptação; 2) a reprodução de conhecimentos em detrimento da produção de novos conhecimentos, o que se caracteriza pelo baixo investimento; 3) a redução da formação ao ensino, entendido exclusivamente como repasse de conhecimentos, excluindo a pesquisa e a extensão; 4) a ingerência e a primazia do interesse do mercado na definição das orientações acadêmicas, definindo, assim, os perfis dos cursos; 5) a remodelação do investimento público na educação e o incentivo à privatização, resultando no exponencial crescimento do empresariamento da educação; 6) a quantificação das tarefas como critério de avaliação, progressão e promoção; 7) a flexibilização dos projetos político-pedagógicos dos cursos de graduação para responder à imediaticidade do mercado e a aceleração da formação; 8) a fragmentação dos trabalhadores pelas novas configurações dos processos de trabalho e de absorção da força de trabalho.

Tudo isso ganha sentido quando nos reportamos ao projeto que hoje orienta mundialmente a acumulação capitalista. Não cabe aqui destrinchá-lo, mas vale destacar que o projeto para o ensino superior segue as regras do Banco Mundial, que opera a organização das economias cada vez mais internacionalizadas, em favor da superação da crise capitalista. Para isso, o adestramento e a formação da força de trabalho constituem itens de extrema relevância. Esse processo acontece tendo como base a retórica da modernização, que possibilitará ao país a qualificação necessária para ocupar espaço no mercado internacional, espaço esse que, tanto pelo ordenamento do imperialismo, quanto pela opção dos governos nacionais, é o da inserção subordinada na era dos oligopólios e das negociatas das economias transnacionais. Esse posicionamento é demonstrado na qualificação do Brasil como grande produtor de commodities2 2 . Termo inglês que significa mercadorias. Caracteriza-se pela produção de mercadorias não diversificadas, com baixo nível de industrialização. O Brasil é um dos grandes exportadores dos seguintes commodities: petróleo, suco de laranja, soja, café, minério de ferro e alumínio. e sua inserção nos Brics.3 3 . Brics: organização composta por cinco países que também inclui a África do Sul. Termo usado para se referir ao Brasil, Rússia, Índia e China como grandes mercados emergentes.

A materialidade desse projeto no Brasil calca-se na proposta de reforma do Estado,4 4 . O eixo dessa reforma, considerada pelo viés crítico uma contrarreforma, é a caracterização de áreas de atuação via políticas sociais, as quais concretizam direitos sociais, como setores de serviços não exclusivos do Estado oficializando e dando o verniz jurídico ao processo de privatização. Transferem-se diversas atividades para o controle do mercado, que passam a ser assumidas pelo empresariado e demais setores privados, sendo que o Estado assumirá a função de repassador de recurso e regulador dos processos. Ver Brasil, 1998. cujo eixo é a privatização de setores estratégicos; o envolvimento direto do Estado apenas em atividades que se vinculam à arrecadação, controle do mercado e segurança, e a não exclusividade do Estado em setores como saúde, educação e pesquisa científica. Isso significa que a execução desses serviços deverá ser assumida por entidades denominadas "públicas não estatais", que acarretam a terceirização de atividades de apoio da administração e a descentralização, por meio de "parcerias" como organizações sociais (OS) e empresas.

O trabalho docente no ensino superior tem seus contornos desenhados por esse contexto ao qual estão associadas as noções de produtividade, quantidade, qualidade, autonomia, gerenciamento, controle e finalidade.

Ao entendermos a atividade docente como trabalho e, portanto, os professores como trabalhadores, estamos afirmando que desenvolvemos uma atividade humana a qual imprimimos finalidade, a projetamos idealmente e buscamos formas de concretizá-la no real vivido. É isso que nos confere a qualidade de humanos e nos possibilita o desenvolvimento da vida em sociedade. A capacidade de conceber e executar é o que perpetua nossa espécie. Os professores que atuam no nível superior de ensino experimentam, inclusive, o privilégio de poder manter a indissociabilidade entre a concepção e a execução do trabalho, pois têm um relativo controle dos meios para realizá-lo. No entanto, isso não nos permite afirmar que a lógica geral do sistema capitalista não imprime os contornos desse privilégio, tendo em vista que vendemos nossa força de trabalho, e esse é o primeiro limite. Ainda que essa relação não se paute pela produção de mais-valia no setor público e, portanto, se caracterize enquanto um trabalho improdutivo; não podemos esquecer que também no trabalho docente se evidencia a liberdade e a castração enquanto componentes do trabalho na sociedade capitalista.5 5 . Para um aprofundamento dessa discussão, consultar Marx, 1985. Ver também Granemann, 2009. Essa condição é ordenadora do trabalho docente no setor privado, o qual se caracteriza pela produção da mais-valia na relação de compra e venda dessa força de trabalho.

O processo histórico organizou de diferentes formas as possibilidades de satisfação das necessidades para a sobrevivência. O capitalismo trouxe uma especificidade para esse fim com a possibilidade de venda da força do trabalho, condição básica para o desenvolvimento desse sistema, por intermédio da separação do trabalhador dos meios de produção, do fim do trabalho compulsório e o estabelecimento de condições para essa venda. A organização do sistema capitalista ainda que pressuponha a satisfação das necessidades para a sobrevivência, o faz com critério de classe, em que o interesse maior, que subordina todos os outros, é a acumulação do capital pelos detentores dos meios de produção, por intermédio do sobretrabalho, a mais-valia.

Assim sendo, a organização do trabalho na sociedade segue esta regra. E por mais distante que isso possa parecer estar de um docente, sua autonomia para manter a indissociabilidade entre a execução e a concepção é limitada, na medida em que se verifica, por exemplo, uma centralização nacional dos currículos; uma educação voltada para os interesses do mercado; o cerceamento da pesquisa que não esteja na ponta de lança do conhecimento necessário à reprodução do capital e, portanto, voltada para os interesses dos trabalhadores; a conformação de elites do saber por meio dos centros de excelência; alterações nas relações de trabalho por meio das novas modalidades de contratação; e introdução de novas metodologias de ensino.

O trabalho docente está vinculado à organização das relações de produção e reprodução da vida. Assim, na atualidade, está determinado pelas novas formas de organização e gestão do trabalho, cuja centralidade está na extração da maior produtividade do trabalhador e na racionalização do processo de trabalho. Nesse cenário, velhos conceitos e práticas que alteram a organização do trabalho docente são reeditados. Os professores do ensino superior têm cada vez mais restrições para desenvolver atividades integrantes de um projeto de produção do conhecimento - com ramificações para o ensino, a pesquisa e a extensão - que contribuam para produzir elaborações, como produções escritas, debates, novas descobertas científicas e novas formas de solucionar as questões postas por movimentos sociais e pela comunidade, na qual a instituição de ensino superior está inserida.

As definições das atividades passam a ser orientadas a partir das exigências do reordenamento da educação como mercadoria e não como direito social universal, o que impõe novas prioridades, que se distanciam do projeto de educação, cuja referência é ser um direito social, resultando na alteração do perfil dos cursos. Isto se agrava numa situação de crise do capital, em que o achatamento salarial é brutal e a ameaça do desemprego um fato. O trabalho do professor alterou-se ao mesclar-se com esta dura realidade.

A lógica mercantil passa a determinar a política educacional, na medida em que essa se torna um importante lugar para a expansão do capitalismo, para operar inversões na busca do lucro por meio da produção de conhecimento e da formação de força de trabalho especializada a partir de critérios do mercado. Nesse sentido, procura-se transformar o trabalho docente em trabalho produtivo, que transforma o simples dinheiro em capital, por intermédio da mais-valia. Tudo isso no contexto da Reforma do Estado proposta pelo BM, em curso há três décadas no país, tendo se intensificado nos últimos dez anos. Uma reforma que prevê a retirada do Estado do setor produtivo, mas amplia a intervenção estatal na formulação de políticas e ações - as educacionais são apenas um exemplo - que atendam à lógica do capital.

A "modernização" do Estado brasileiro foi baseada na superação da lógica burocrática para a gerencial, assentada nos critérios de eficácia e produtividade próprias do modelo empresarial na educação superior. Essa modernização evidencia-se na área da educação pelas diferentes modalidades de instituições de ensino, variando seu papel na educação e seu modelo de financiamento, além de instituir mecanismo que tornam boa parte das instituições privadas em empresas, garantindo espaço de rentabilidade do capital. Por outro lado, institui nas públicas o modelo de organização gerencial por contrato de gestão que nas universidades federais atendeu pelo nome de ReUni (Lima, 2011, p. 7-17).

As alterações no trabalho docente são, ao mesmo tempo, indutoras e resultados da trajetória de transformação da área da educação em espaço rentável para o capital, adequando-o à lógica produtiva do sistema.

Se voltarmos às análises já clássicas sobre a organização do trabalho, podemos afirmar que, com isso, separa-se o produto final de sua idealização, subdivide-se a especialidade do trabalho docente e barateiam-se os custos. Além disso, torna-se possível contratar a força de trabalho por diferentes formas, ainda que tenha as exigências da qualificação formal como critério avaliativo. Assim, uma otimização do trabalho é assegurada e a competição interna é acirrada, estimulando os docentes a produzir mais, além de flexibilizar a prestação do serviço de educação.

Utilizando-se de argumentos que visam demonstrar que essas alterações são interessantes para todos, o empresariado tenta ocultar suas reais intenções. Porém a apreensão teórica orientada pela lógica dos trabalhadores permite compreender as atuais modificações no mundo do trabalho no interior das instituições de ensino superior como ação que leva à descaracterização do trabalho docente, processo realizado por meio da imposição de condicionantes, como: a implantação de uma forma de avaliação que não considera objetivos, papel social da formação superior, condições de trabalho, mas somente tarefas predefinidas externamente ao ambiente de trabalho; o desrespeito aos direitos trabalhistas e sindicais; a imposição de uma carreira que não corresponde à real dinâmica do trabalho nas instituições; a ausência de política salarial, bem como a perda da qualidade do ensino em sua relação propedêutica e técnico-operacional para formar profissionais nas diferentes áreas do saber.

Como mais grave, é revelado que esses condicionantes criam o ambiente para estabelecer efetivamente a dissociação entre o conhecer e o fazer, reduzindo o trabalho docente a uma simples atividade e o destituindo de seu caráter coletivo e artesanal.

O quadro atual do ensino superior no país reescreve as condições sócio-ocupacionais do trabalho docente. Pensar nessas condições nos remete a um conjunto de circunstâncias das quais dependem a realização do trabalho docente. De um modo geral envolve necessariamente, no âmbito das IES, condições materiais para o exercício da atividade profissional, que inclui: 1) infraestrutura, equipamentos; 2) autonomia como princípio de organização desse trabalho que deve ser conferida frente a religiões, governos e partidos; 3) democracia como base para desenvolvê-lo em sua central característica, que é produzir e fomentar o pensar crítico, com pluralismo, direito ao contraditório e ao exercício da troca de conhecimentos; 4) estabilidade e direitos trabalhistas assegurados com carreira estruturada, para desenvolver sua relação profissional com dedicação e segurança sem ser demitido ou ter sua aposentadoria usurpada; 5) bons salários e política salarial definida para dar sustento para si e para sua família e ter como se capacitar no desenvolvimento de seu trabalho; 6) garantia de direitos paritários e isonômicos entre os que realizam essa atividade e os que já a realizaram; 7) estabelecimento de relação entre exercício direto da atividade de ensino, pesquisa e extensão com o tempo necessário para pensar e exercer o nosso trabalho, o que envolve relação professor-aluno, tempo de estudo, de produzir novo conhecimento; 8) socialização do conhecimento, assim como pensar junto com a comunidade, usuários e, em especial, em conjunto com os movimentos sociais, as diretrizes da educação que queremos. Esses são alguns dos pontos essenciais para se pensar uma educação superior comprometida com a formação profissional de qualidade e socialmente referenciada, elementos, infelizmente, cada vez mais raros na realidade de nossas instituições de ensino superior.

Essas circunstâncias desenham a real possibilidade de exercer o trabalho docente resguardando suas características próprias, as quais nos remetem ao seu perfil artesanal e ao respeito às condições de trabalho necessárias para realizá-lo nas instituições. A isso se associa o fortalecimento do papel social da instituição de ensino onde se realiza, a qual deve responder às necessidades da comunidade na qual está inserida e possibilitar uma formação profissional calcada na perspectiva crítica e de emancipação dos sujeitos. O cerceamento dessas circunstâncias desconstrói a essência do trabalho docente que parte da negação do imediato dado, propiciando perguntas sobre o que se apresenta, buscando desvendar a experiência vivida. A ele se associam necessariamente descoberta, interpretação, criação e vínculo com o contexto sociocultural que o institui. Para realizá-lo o princípio da autoridade deve ser rechaçado; a interdisciplinaridade deve ser perseguida permanentemente mesclando a história das ideias e também as práticas científicas nos diversos campos do conhecimento; e, por fim, exige a experiência coletiva de pensar e formular a reflexão.

O que se verifica são a implantação de métodos e critérios dos organismos financiadores e gestores das IES, aumento da intensidade do trabalho, perda do poder de decisão sobre os rumos do nosso trabalho. A tentativa de reestruturação e controle do fazer acadêmico é o que se experimenta. É estabelecido um novo ambiente de trabalho com concorrência, e não cooperação, fragmentação do conhecimento com soluções individuais, desconstruindo o caráter coletivo do trabalho acadêmico, instituindo a superexploração do trabalho e, por consequentemente, a desqualificação da educação.

Cabe destacar a avaliação com imposição de critérios e métodos que em geral tomam por base aferições individuais, desconsiderando a perspectiva avaliativa que deve necessariamente envolver projeto de ação da instituição e de trabalho do docente, condições e relações de trabalho e atividade desenvolvida. No atual contexto, os meios avaliativos quantitativos e individualizantes, vinculados a recurso, verbas e progressão funcional são privilegiados. Reduz-se, assim, a avaliação a uma "opinião gerencial" sobre o resultado final, com restrição da participação dos sujeitos do trabalho nos rumos do projeto executado e na avaliação realizada.

No setor privado, no qual se verifica o crescimento exponencial do empresariamento educacional,6 6 . Para aprofundamento do tema, ver: Neves, 2001. o trabalho docente está submetido mais diretamente às regras do mercado, em que a execução de tarefas por quantitativo de horas determina o processo de trabalho e sua relação trabalhista com a instituição, marcada centralmente pelo brutal retrocesso nos direitos do trabalho.

Ainda que tenhamos grandes diferenças no trabalho docente no setor público e privado, podemos afirmar que ambos, na atualidade, são determinados pela racionalidade do mercado, que o redefine por meio da alteração de suas atribuições, de seu papel e das relações de trabalho que o organizam.

Cabe reafirmar que as mudanças nas condições sócio-ocupacionais de trabalho docente são produto das mudanças no projeto educacional, o qual passa a responder diretamente às exigências do mercado. Essa nova configuração exige um novo tipo de ensino para formar o trabalhador da atualidade. Exige-se um trabalhador com diversas habilidades, maleável, com domínio de procedimentos técnico-operativos, polivalente, multifuncional, produtivista, competitivo. É esse trabalhador/profissional que se quer formar no ensino superior hoje, com rapidez e eficácia, e para isso é necessário outro tipo de trabalho docente e também outro docente. Ambos têm que se impregnar daquelas exigências para responder a essa nova concepção de formação profissional. Um novo modo de acumulação de capital, um novo modelo educacional, um novo tipo de formação profissional, um novo escopo de relações de trabalho, um novo ethos docente.

É a lógica das relações de trabalho fabril adentrando nos serviços, em especial naqueles que pelo projeto de (contra) reforma do Estado brasileiro em curso, se descaracterizam como direitos e, assim, deixam de ser serviço público para se transformar em mercadorias, sendo reduzidos a meros serviços e, portanto, privatizados. A educação é emblemática desta nova configuração.

Dão concretude a esse processo um conjunto de medidas e políticas que vem sendo implementadas nas três últimas décadas sem interrupção ou diferenças na estratégia. Medidas que ganharam densidade nos dois últimos governos petistas, ao desenhar um novo alinhamento das instituições de ensino com a lógica do mercado, diversificando os modelos de financiamento e também a tipificação das instituições, privilegiando a formação tecnicista.

II - A formação dos assistentes sociais no projeto de contrarreformas da educação superior

Nas duas últimas décadas, a formação do Serviço Social está majoritariamente sendo ofertada à sociedade sob a forma de mercadoria, na medida em que a maioria das instituições de ensino são privadas, com um crescimento da modalidade educação à distância. Esta formação está inscrita na diversificação das instituições sendo prioritariamente ofertadas pelas instituições não universitárias, confirmando, assim, que as medidas adotadas pelos últimos governos na educação superior, a partir da reforma do Estado brasileiro, desenham o novo perfil da educação superior no Brasil determinado pelo movimento do capital. No campo do empresariamento, a abertura desses cursos confirma o espaço de lucratividade do capital, visto ser uma ação de mercado que envolve pouco custo e muita rentabilidade.

Os dados do censo 2012 do Inep elucidam este quadro:

Quanto à tipificação das instituições de ensino:

Portanto, a formação do assistente social na atualidade está inscrita no processo de contrarreforma do ensino superior. As mudanças no trabalho docente e nas suas condições são elementos que repercutem diretamente no processo formativo dos novos assistentes sociais. Ao debruçarmo-nos sobre a formação profissional, reconhecemos nitidamente que ela é parte do todo e, assim, o contém, posto que o projeto educacional governamental incide diretamente nas condições de trabalho docente e do mesmo modo na formação e vice-versa. Nesse sentido, marcam a formação profissional na contemporaneidade a precarização do ensino público (salas lotadas, baixo investimento em pesquisa e extensão, sobrecarga do trabalho docente, entre outros), a ampliação do ensino à distância e o enorme crescimento do ensino privado.

As implicações para a formação profissional do assistente social estão diretamente relacionadas à qualidade dessa formação e ao projeto profissional. A formação nas instituições privadas e na modalidade à distância reduz-se a dimensão do ensino como repasse de conhecimento, desconsiderando a indissociabilidade entre este, a pesquisa e a extensão. Isso porque essas instituições não são universidades e, portanto, não se aplica essa exigência para o processo formativo. Somado a isso, há uma perspectiva empresarial que toma a referência da relação custo-benefício, com maior número de alunos tendo, no limite, a certificação de nível superior. Na modalidade à distância, a formação abstrai qualquer possibilidade de elaboração e aprendizado coletivo, com qualificação e formação de pensamento crítico. Agravando ainda o processo de precarização do trabalho docente há o aumento do número de alunos em sala de aula e a ausência de condições mínimas de trabalho como salas, equipamentos, bibliotecas. Isso repercute diretamente nas monografias finais de curso e nos estágios, na medida em que estes componentes curriculares são fundamentais na síntese do aprendizado de uma profissão interventiva, cujo projeto formador tem por base a formulação de compreensão da totalidade social, interpretando-a de forma crítica e formulando estratégias de ação profissional, a partir do movimento do real construído historicamente pelos sujeitos sociais.

No setor público, as alterações no trabalho docente se aproximam da lógica empresarial, e ainda que esse espaço reserve uma formação de maior qualidade dentro dos princípios das diretrizes curriculares, as condições do fazer profissional têm repercutido na formação dos novos assistentes sociais. No entanto, nos limites que se impõem, são reservadas as possibilidades de resistência maior, visto sua condição de setor público que ainda garante ações mais coletivas de reafirmação do projeto profissional e de educação pública no cotidiano do trabalho.

Nossa formação como assistentes sociais, com base no referencial teórico marxista, nos permite uma compreensão da totalidade da realidade. O embate de proposições no interior de nossa categoria envolve projetos profissionais, que por sua vez têm relação direta com projetos societários e, portanto, com perspectivas de organização e ação da classe trabalhadora nas relações sociais. Nas disputas de projetos, em alguns momentos, ganham primazia as ações vinculadas a um projeto societário elitista e fragmentado, que acaba por contribuir para a reprodução do status quo. A formação profissional, comprometida com o projeto ético-político da profissão, visa à construção de outra sociabilidade, que supere a ordem do capital, e é base importante para o enfrentamento e este contexto. Para tanto, aprendemos sobre princípios organizativos, os quais se traduzem em nosso processo de trabalho em compromisso com direitos humanos, sociais e políticos da classe trabalhadora, com a autonomia e emancipação dos sujeitos, com equidade e justiça social, com a liberdade e com uma nova ordem societária, como apontam os princípios do Código de Ética do Serviço Social. Evidentemente, sem aqui retomarmos algo já tão debatido entre nós na academia - a visão messiânica da profissão e sua perspectiva militantista -, vale registrar que resguardados os espaços de atuação, os cruzamentos de projetos profissionais e societários vão ser, inevitavelmente, entrecortados por projetos organizativos da classe trabalhadora.

A formação profissional, construção coletiva da categoria, sintetizada nas Diretrizes Curriculares da Abepss, nos permite estar em melhores condições para formar com capacidade de responder a essa dura realidade e aos desafios centrais que envolvem diretamente: a interlocução e o estreitamento de laços com os movimentos sociais, autônomos e classistas, que organizam a luta pelo projeto de educação e que possam contribuir para a emancipação da classe trabalhadora e reforçar a democracia, como condição de uma nova sociabilidade, em que os direitos sejam universais e públicos; intensificar a formação profissional, consonante com o projeto profissional, dando maior densidade à capacidade de apreensão da realidade, seus determinantes estruturais e seus vínculos com a condição de vida da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que fortalece a capacidade de elaboração de estratégias de intervenção profissional; despertar a compreensão da necessidade de organização como sujeito social na vida profissional, fomentando a organização política para enfrentar a atual condição de trabalho e as condições do exercício profissional, que, em geral, é determinado pelo autoritarismo institucional e pelo novo modelo de gestão dos espaços públicos.

Como afirma Ruiz (2013, p. 38)

Cada vez que nos negamos ao atendimento de longas filas de usuários, sem propor-lhes alternativas, tomamos uma decisão política. A cada silêncio diante de violações de direitos (de torturas e violências à ausência de espaços de efetiva participação de usuários na definição das políticas), essas violações se cristalizam. A cada discurso fatalista que assumimos ("não há o que fazer"; "as condições de trabalham me impedem agir"; "se disser o que penso serei transferido"; "corro o risco de perder meu emprego"), sem acionar saídas para ações alternativas (movimentos sociais; movimento sindical; sistemas nacionais e internacionais de proteção de direitos humanos etc.), também violamos direitos. Deixamos de responder, com a qualidade que nossa graduação nos possibilita, a demandas legítimas.

Os onze princípios de nosso Código de Ética guardam estreita articulação entre si. Nosso desafio central, como assistentes sociais, é garantir a direção social de nossa ação profissional e buscar superar os limites impostos pela natureza de nossa profissão como trabalhador assalariado. Tal tarefa pressupõe uma articulação efetiva na luta pelos direitos e pela efetivação de nossos princípios. Não há emancipação humana sem liberdade, democracia e socialização da riqueza produzida. Não há justiça social sem a profunda aceitação das diferenças, o fim de todas as formas de discriminação e a articulação com os movimentos sociais classistas na busca da superação da ordem do capital.

III - Considerações finais

Interpretar as determinações e dinâmicas que envolvem o trabalho docente associado ao novo ordenamento das políticas educacionais e as repercussões para o projeto de formação dos assistentes sociais é condição para que a formação, em consonância com nosso projeto ético-político profissional, possa prevalecer, apesar das investidas governamentais e patronais para ressignificá-la. Porém, como já aprendemos, não basta interpretar. É necessário agir para mudar, é preciso atuar coletivamente nos espaços de luta organizada da classe trabalhadora e dar amplitude aos nossos princípios de formação e somarmos força no projeto educacional dos movimentos sociais que lutam por um novo projeto societário.

Assim, para enfrentar as alterações do processo de trabalho e sua precarização, bem como a nova/velha política educacional, é primordial fortalecer nosso compromisso com a população com a qual trabalhamos e com o segmento com o qual atuamos na formação profissional, independente de onde estamos atuando como profissionais, seja no setor público ou privado, seja na academia ou nas instituições de execução. Aliarmo-nos aos lutadores do campo classista e combativo, aos usuários de direitos com os quais trabalhamos e aos estudantes com os quais atuamos, desvendar cada medida que nos impõem e respondê-las com ação propositiva e luta direta é condição para superarmos essa quadra marcada por ataques e desconstrução de direitos.

Há muito para avançar na luta contra a precarização do trabalho docente e as medidas que transforma a educação em mercadoria, o que está diretamente ligado à qualidade da formação dos assistentes sociais. Nossa formação nos permite contribuir muito para esse processo, na medida em que mantivermos o compromisso com debates e posicionamentos que contribuam para a luta mais geral dos trabalhadores, pautada no projeto profissional aliado à organização da classe trabalhadora brasileira. A formação como assistente social é um elemento que contribui para essa compreensão e pode ser propulsora em ações que favoreçam aquela superação.

Recebido em: 8/8/2014

Aprovado em: 13/8/2014

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  • CRESS/RJ. Projeto ético-político e exercício profissional: os princípios do código de ética articulados à atuação crítica do assistente social. Rio de Janeiro: CRESS, 2013. 134 p.
  • GRANEMANN, S. O processo de produção e reprodução social: trabalho e sociabilidade. Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/Abepess, 2009.
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  • 1
    . Elaborado em 1989 por instituições como Banco Mundial, FMI, e Departamento de Tesouro dos Estados Unidos, as diretrizes do Consenso de Washington se concentram em equilíbrio orçamentário, abertura comercial, liberalização financeira, desregulamentação dos mercados domésticos e privatização das empresas estatais e que se tornou a política oficial do Fundo Monetário Internacional em 1990, quando passou a ser orientação para promover o ajustamento macroeconômico dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades.
  • 2
    . Termo inglês que significa mercadorias. Caracteriza-se pela produção de mercadorias não diversificadas, com baixo nível de industrialização. O Brasil é um dos grandes exportadores dos seguintes
    commodities: petróleo, suco de laranja, soja, café, minério de ferro e alumínio.
  • 3
    . Brics: organização composta por cinco países que também inclui a África do Sul. Termo usado para se referir ao Brasil, Rússia, Índia e China como grandes mercados emergentes.
  • 4
    . O eixo dessa reforma, considerada pelo viés crítico uma contrarreforma, é a caracterização de áreas de atuação via políticas sociais, as quais concretizam direitos sociais, como setores de serviços não exclusivos do Estado oficializando e dando o verniz jurídico ao processo de privatização. Transferem-se diversas atividades para o controle do mercado, que passam a ser assumidas pelo empresariado e demais setores privados, sendo que o Estado assumirá a função de repassador de recurso e regulador dos processos. Ver Brasil, 1998.
  • 5
    . Para um aprofundamento dessa discussão, consultar Marx, 1985. Ver também Granemann, 2009.
  • 6
    . Para aprofundamento do tema, ver: Neves, 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Dez 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Recebido
      08 Ago 2014
    • Aceito
      13 Ago 2014
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