Acessibilidade / Reportar erro

Pesquisa acadêmica: a escrita na primeira pessoa do singular

Academic research: writing in the first person of the singular

Resumo

É possível produzir pesquisa científica na área da Comunicação garantindo a escrita na primeira pessoa do singular? Para problematizar a questão apresento alternativas teórico-metodológicas que subsidiam a escrita autoral provocando pensar na passagem da “dor” ao “prazer” do texto com Roland Barthes; Susan Sontag e Sueli Rolnik. Trago duas pesquisas realizadas no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade Federal de Tocantins para mostrar arranjos possíveis entre o jogo textual e a articulação de imagens nas pesquisas acadêmicas de modo mais experimental, tendo como fundamento a “cartografia” e a “Pesquisa Baseada em Artes”. Se tecemos pesquisas na “encruzilhada dos caminhos” temos muito a aprender com metodologias distintas das usualmente adotadas na área da Comunicação. O artigo abre diálogo sobre práticas experimentais na escrita acadêmica na interface metodológica entre a Comunicação e áreas afins.

Palavras-chave:
Cartografia; Comunicação; Escrita na primeira pessoa; Pesquisa Acadêmica; Pesquisa baseada em Artes

Abstract

Is it possible to produce scientific research in the area of communication while guaranteeing writing in the first person singular? To address the issue, I present theoretical-methodological alternatives that support authorial writing, arousing thinking about the passage from “pain” to “pleasure” of the text, based on Roland Barthes, Susan Sontag and Sueli Rolnik. As an example, I bring two researches carried out in the Graduate Program in Communication and Society at the Federal University of Tocantins, Brazil, to show possible arrangements between the textual game and the articulation of images in academic research in a more experimental way, based on cartography and Arts-Based Research. If we weave research at the “crossroads of paths”, we have a lot to learn from methodologies that are different from those usually adopted in the area of communication. The article opens a dialogue about experimental practices in academic writing in the methodological interface between communication and related areas.

Keywords:
Cartography; Communication; Written in the first person; Academic Research; Arts-based Research

Introdução

O texto que o senhor me escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura. A escritura é isto: a ciência da fruição da linguagem, seu kama-sutra (desta ciência só há um tratado: a própria escritura) (Barthes, 1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 10).

Há tempos venho construindo junto a meu grupo de pesquisa, caminhos investigativos que tomam o estudo das imagens, em especial a fotografia, para explorar as interfaces entre as áreas da Comunicação, Arte e Educação. A partir da orientação de dissertações vinculadas ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade Federal de Tocantins, mestrado acadêmico, busco junto aos orientandos, parceiros essenciais nesta trajetória, criar possibilidades metodológicas para trabalhar com imagens, potencializando a produção de pensamento para além de análise semiótica e/ou de conteúdo. O que temos feito é operar com as imagens pela noção vizinhança entre áreas e linhas de forças. Conectar de outras maneiras, em novas propostas (textuais, estruturais, investigativas) a composição e criação imagética na escrita da pesquisa acadêmica e nas apostas reflexivas. Uma escrita em devir, zona de vizinhança se instaura nas dobras da criação artística.

De tanto orientar e repetir as mesmas coisas ao longo dos anos (em aulas, palestras, lives, workshops etc), optei por escrever este texto torcendo para que ele encontre eco em outros leitores e pesquisadores (ainda bem que não estamos sozinhos nesta jornada). Não haveria necessidade se não houvesse ainda certo tipo de estranhamento e até de resistência neste tipo de abordagem de alguns parceiros-pesquisadores-estudantes, sobretudo, quando damos a ver duas questões-chaves que surgem no início de um mestrado acadêmico: (a) o processo de escrita e (b) a metodologia de trabalho.

Antes de tudo, não tenho a pretensão de criar fórmulas, enquadrar, classificar ou sugerir padrões para o procedimento de escrita ou de tessitura das pesquisas. Na contramão deste movimento, trago o que resulta de uma experiência de docência construída a muitas mãos, experimentada, sentida, percebida, vivida na troca com meus orientandos, no diálogo com os professores parceiros de bancas avaliativas, e ainda, das leituras realizadas e divididas com os estudantes no coletivo de pesquisa.

Escrita acadêmica na primeira pessoa do singular: coragem!

Por incrível que pareça escrever em um texto acadêmico usando a primeira pessoa do singular requer muita coragem! Coragem para enfrentar um conjunto regras impostas por sistemas burocráticos, por teorias datadas, por professores que desaconselham este tipo de escrita em aulas e orientações, por bibliotecas universitárias que muitas vezes negam a publicação daquilo que foge à norma técnica, ou ainda, por linhas de pesquisas vinculadas aos programas de pós-graduação que operam de modo mais conservador, enfim, a escrita acadêmica que assume o tom autoral ou mais ensaístico com vistas a dar visibilidade para quem assina a própria pesquisa, vai na contramão dos cânones que padronizam a produção acadêmica.

Mas, por que ao longo da trajetória acadêmica (re)forçamos a escrita em terceira pessoa? Há nesta ideia uma pseudoneutralidade que busca ocultar o sujeito que escreve ou que propõe uma reflexão para o uso de um posicionamento impessoal; acreditamos estar distantes do tema, buscamos ser imparciais para sugerir que o leitor pense a partir das questões apresentadas e não por certo tipo de indução. No entanto, sabemos que a neutralidade não existe. Ela deriva sempre da bagagem daquele que escreve e que estabelece os jogos de escrita articulando conceitos e problematizações (ainda que se esforce em ser o mais “neutro” possível, ou sustentar a todo custo um imaginário de “fala neutra” que Barthes (1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 23) propõe abolir do texto.

Como orientadora, um dos maiores desafios que encontro tem sido desconstruir com meus orientandos os efeitos de resistência à escrita em primeira pessoa dados pela longa formatação a que fomos submetidos desde a caminhada escolar até a graduação. Honestamente, podemos abandonar a formatação histórica para encontrar processos de escrita mais criativos e autorais! Essa ruptura gera empatia, aproxima aquele que escreve de uma ligação direta com o tema investigado, torna o texto acadêmico mais fluído e mais atraente para quem lê. E se pensarmos que o modo como escrevemos ou propomos a estrutura textual tem a ver também com o modo como construímos o pensar, veremos que o pensamento cada vez mais acontece por redes, fazemos links e links não cabem em caixas, em categorias, em gestos imparciais. Abrimos janelas para arejar o próprio pensar.

O gesto da escrita marca o gesto do pensar, por isso, é importante buscar aberturas para uma escrita mais experimental. Claro, não vamos nos esquecer de que todo tipo de escrita acadêmica passará pelos rigores das normas técnicas até que seja validada e publicizada como linguagem científica. No entanto, há sempre linhas de fuga, zonas de escape, passagens, possibilidades de outros trajetos para um texto estruturalmente mais livre, que proponha novos arranjos. Mas, será que dá para sair da dor e do suplício que a escrita acadêmica perpassa para o prazer no texto?

Evidente que sim. Para pensar melhor sobre essa questão há quatro noções importantes: (a) escrever na primeira pessoa do singular significa não se distanciar do tema de investigação. É a nossa trajetória que abrirá convites para mergulhar profundamente no labor da escrita aproximando os conceitos de nós, do contexto que estamos, da forma como criamos links com questões cotidianas que rodeiam o tema e que também nos constituem; (b) perguntar para a gente mesmo, enquanto autores/pesquisadores: qual é o tom do nosso texto? O que ele dá a ver em nossa proposta? Que voz é essa que aparece propondo caminhos? (c) aceitar que não dominamos a relação entre o leitor e o texto. Como diria Barthes em seu clássico texto sobre “A morte do autor”, é preciso sempre ter em mente que por mais claros e objetivos que pretendamos ser, nunca teremos o alcance exato da comunicação de nossos textos, ou seja, em algum momento precisaremos aceitar “[...] morrer o autor para que nasça o leitor” (Barthes, 1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 81) e (d) escrever é uma festa! Uma prática prazerosa! Muitos discursos estão cansados, esgotados, palavras exaustivamente usadas nos textos acadêmicos estão vazias de sentido ou tornaram-se “modinha”. Em contraponto, Barthes alerta sobre escrever com sabor, reivindicando uma liberdade crítica de escrita que vai ao encontro do prazer que se nega a manter girando a escrita e a leitura sistemática, imposta por valores linguísticos, históricos e sociológicos para que possamos propor um texto estimulante, prazeroso, que seja saboreado às fagulhas de um desejo no sentido barthesiano.

[...] as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa. […] a escritura se encontra em toda parte onde as palavras têm sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia). […] É esse gosto das palavras que faz o saber profundo, fecundo (Barthes, 1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 21).

Escrever é uma ação que mobiliza as nossas forças e que pode desestabilizar nossas certezas intelectuais, comportamentais e emocionais. Afinal, não é isso que torna o trabalho instigante? Escrever tem ligação direta com ir a outros lugares, inventar, criar, se divertir, surpreender… O domínio da escrita irá aparecer com muito treino e paciência. Susan Sontag (2005Sontag, S. Questão de ênfase. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 335, grifo próprio) em seu livro “Questão de ênfase” diria que “[…] escrever é praticar, com uma intensidade e uma concentração singulares, a arte de ler. Escrevemos a fim de ler o que escrevemos, ver se está bem e depois, como nunca está, é claro, reescrever […]. Uma vez que a escrita acadêmica é tomada como um experimento, podemos ser justamente mais experimentais com o próprio processo de composição, de criação desta escrita. Para isso, precisamos nos distanciar do nosso carrasco mais severo neste percurso - nossa autocrítica que, às vezes, quase anula a possibilidade do experimento.

Os detalhes farão a diferença em um processo de escrita experimental na primeira pessoa do singular. Por isso importa indagar de vez em quando: que marcas estamos deixando ou desejando imprimir? Podemos manter um discurso, uma narrativa, sem sermos impositivos ao leitor? Sob que condições e segundo que operações o discurso pode despojar-se do desejo de agarrar aquele que lê? É preciso abrir passagem para aparar as minúcias e redescobrir os detalhes.

Sabemos que por mais originais que sejamos em nossos textos acadêmicos o que propomos é mais um discurso sobre determinado tema; nunca a verdade, o discurso, o caminho, mas, outra forma de olhar e, quiçá, construir reflexões a partir do nosso lugar de tessitura da pesquisa. Toda escrita inaugura um exercício de “desfolhar” verdades diante do tema pesquisado. Seja pela conexão direta com o tema ou pelo modo como realizamos as leituras e as aproximações dos conceitos com o nosso problema de investigação, ao escrever acionamos um novo olhar para um saber já conhecido. Barthes (1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 13) diria que “a língua (e penso aqui no processo de escrita) se reconstrói alhures pelo fluxo apressado de todos os prazeres da linguagem. Onde alhures? No paraíso das palavras”.

Nossos textos significam sempre mais uma possibilidade de provocar insights. Nosso escrito irá se sustentar e se justificar pelo potencial de mudança que propiciará ao já existente! E se estamos cogitando coragem para a escrita acadêmica em primeira pessoa é porque entendemos que cada autor irá tecer a seu modo uma construção de pensamento criando a sua forma singular. Daí muita gente estudar o mesmo tema de pesquisa, mas chegar a lugares de pensamentos distintos. A diferença se dá na produção textual deste saber, desta reflexão. Barthes (1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 18) diria que “de uma leitura a outra, não saltamos nunca a mesma passagem.

Na escrita em primeira pessoa sempre será mais interessante o individual que o universal, por isso, estamos diante da ausência de padrões de escrita, “caixas” classificatórias, ruptura com modelos estruturalistas de escrita e de pensamento para um movimento que gera instabilidade no sistema burocrático acadêmico, uma escrita errante. Na errância, estamos diante do humano em sua fragilidade, seus rastros, vestígios, atravessamentos … podemos (ainda que não seja intencional) lidar com o apagamento de corpos e de contextos sociais …

Dada a escolha de uma pergunta de pesquisa, de certa forma, estamos questionando o mundo e seus conflitos; evocamos questões sobre o indivíduo, o coletivo, o singular, o universal, as relações entre o humano e o inumano etc. Toda escrita acadêmica leva consigo infindáveis possibilidades e contradições. Num curto período temporal (dois anos no mestrado, quatro anos no doutorado) passamos a colher fragmentos, memórias, vozes e pensamentos que se estruturam em camadas abertas, inconclusas, inacabadas, dadas no acaso… Chegamos a um tema de pesquisas exatamente no meio dele. Existia antes de nós um movimento e continuará existindo outros depois de nossa pesquisa… e se estamos no meio, no lugar do entre, onde os cruzamentos acontecem, como falar/escrever e propor pensar sem forçosamente ser representativo, categórico e/ou analítico? É possível romper o tom do discurso da ciência canônica?

Ser criativo na escrita não basta! O leitor precisará entender as regras do jogo para jogar com o texto que propomos. Toda escrita autoral acaba por suscitar pequenos métodos, percursos alternativos que poderão guiar o leitor dentro das condições de leitura dada pela pesquisa. Barthes (1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 9) reforça que “[...] escrever no prazer não assegura que o prazer chegue ao leitor, é preciso criar um espaço de fruição”, algo que desassossegue ao mesmo tempo em que convide o leitor a interagir com aquilo que lê.

Dito de outro modo, quanto mais perguntas e menos respostas aparecerem nosso texto, mais chances teremos de o leitor ativar a seu modo buscar responder ou interagir com as lacunas abertas pelo texto. Uma leitura é sempre diferente de outra, daí a produção de sentidos ser renovada por um novo olhar que alcança o texto. No pensamento barthesiano, o texto mostra a primeira margem ao leitor, já a segunda margem é o próprio leitor quem constrói, a partir de suas referências, de sua curiosidade e associações. Agora, essas margens podem ser desestabilizadas e na instabilidade colocar o leitor em estado de fruição, diante do vazio, da fenda, da falta de respostas. Coexiste na linguagem rumor, pulsão, vibração, fetiche… Diante da escrita e da leitura tornamo-nos um texto-corpo.

Talvez, estejamos próximos daquilo que a literatura faz há muitos e muitos anos, entendendo que a escrita convida o autor a colocar a mão no movimento da emoção, da subjetividade, de sua autoria na pesquisa escrita em primeira pessoa e diante do leitor que está em jogo com as palavras e as imagens. Escrever, é um texto que se faz em nós enquanto escrevemos. Barthes (2004Barthes, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 29) em “O rumor da língua” diria que “ler (e eu acrescentaria: escrever) é fazer o nosso corpo (inteiro) trabalhar”.

A relação epistemológica e semântica com o campo da Ciência da Informação

Antes de avançar preciso pontuar rapidamente o contexto epistemológico que alicerça a área da Ciência da Informação, condições e fundamentos pelos quais, entre discussões teóricas e práticas, as pesquisas e a produção de conhecimento é submetida. Não vamos aprofundar metodologias e tendências de pesquisa, mas, identificar algumas para que o leitor possa, posteriormente, adensar a leitura.

Nas pesquisas da Ciência da Informação é comum que a palavra “objeto” apareça com certa frequência. Objeto, neste caso, tem a ver com algum tema investigativo de base originária da/na “informação” e os desdobramentos de seus fenômenos sociais. Apresentado o objeto (dito, aqui, de modo simplista e aligeirado), o pesquisador deverá dar conta da fundamentação teórica, do contato com o campo, da coleta, da criação de categorias de análise desses dados e da apresentação dos resultados e seus fenômenos. Essa linha investigativa pode ter ligação com as epistemologias específica, particular e global descritas por Japiassu (1977Japiassu, H. Introdução ao pensamento epistemológico. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.), por exemplo. Um tipo de abordagem de movimentação investigativa que tende a disciplinar e a viabilizar que a pesquisa seja realizada talvez de modo mais padronizado e sistêmico, criando classificações, categorias de análises e paradigmas sobre o modo de se fazer pesquisa lavrado por normas institucionais regulatórias da comunidade científica. O pesquisador preza pela “neutralidade” evitando na escrita um posicionamento subjetivo e/ou descritivo, daí adotar a escrita na terceira pessoa.

Na área da Comunicação, autores como: Bachelard (1977Bachelard, G. A epistemologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.), Bourdieu et al. (1999Bourdieu, P. et al. A profissão de sociólogo. Preliminares epistemológicas. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.), Certeau (1994Certeau, M. A invenção do cotidiano. Artes defazer. Petrópolis: Vozes , 1994.), Lopes (1990Lopes, M. I. V. Pesquisa em comunicação: formulação de um modelo metodológico. São Paulo: Loyola, 1990., 2002Lopes, M. I. V. et al. Vivendo com a telenovela. Mediações, recepção, teleficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002.), Maldonado (2002a Maldonado, E. Produtos midiáticos, estratégias, recepção. A perspectiva trans metodológica. Ciberlegenda, n. 9. p. 1-15, 2002a., 2002bMaldonado, E. Explorações sobre a problemática epistemológica no campo das ciências da comunicação. Ciberlegenda, n. 10, p. 1-16, 2002b., 2006Maldonado, E. Práxis teórico/metodológica na pesquisa em comunicação: fundamentos, trilhas e saberes. In: Maldonado, E. et al. Metodologias da pesquisa em comunicação: olhares, trilhas e processos. Porto Alegre: Sulina , 2006.) e Mills (1975Mills, C. W. A imaginação sociológica. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar , 1975.), entre outros, apontam para metodologias de pesquisas reflexivas, onde o pesquisador insere-se junto ao tema, no entanto, ao produzir a análise dos dados preza pela neutralidade, sobretudo, quando realiza pesquisas teóricas, onde a metodologia passa pela contextualização exploratória. Na Comunicação, um método muito usado é a Análise de Conteúdo (Bardin, 2010Bardin, L. Análise de conteúdo. 4. ed. Lisboa: Edições 70, 2010.) que passa a instrumentalizar pesquisas de abordagem qualitativa. Este método (assim como outros) estrutura teoricamente a pesquisa científica a partir de uma abordagem extremamente qualitativa, mantendo também o interesse por vezes em elementos estatísticos para subsidiar a análise e a interpretação dos fenômenos da área da Comunicação. O que marca esta metodologia é a categorização das coisas. Para criar categorias o pesquisador levanta empiricamente os dados e obedece às etapas de: (a) organização da análise; (b) codificação; (c) categorização e (d) tratamento dos resultados, inferência e a interpretação dos resultados de um determinado contexto (Bardin, 2010Bardin, L. Análise de conteúdo. 4. ed. Lisboa: Edições 70, 2010.).

De fato, isso pode funcionar muito bem, no entanto, é um método complexo e, a meu ver, a metodologia de pesquisa se apresenta no percurso, no trajeto que o pesquisador traça a partir do tema investigado, ou seja, é no movimento de se lançar a campo, ouvir colegas, ouvir pessoas da comunidade, observar o tema empiricamente, etapa por etapa, em diferentes meios e redes, que o pesquisador (e a própria metodologia da pesquisa) é também contagiado por aquilo que descobre, que lê, que repensa, que desloca, que aproxima do contexto averiguado. Pensando assim, não há modos de se sustentar a neutralidade. Se fazer a pesquisa sugere uma espécie de contágio, de vizinhança entre áreas e saberes, escrever sobre ela e dar a ver as movimentações e as novas descobertas, abre passagem para que o pesquisador assuma a autoria de seu próprio percurso, assinando um pensamento autoral e singular na produção de conhecimento, independente da área que atua.

Nada de apuro! A metodologia de pesquisa se faz no caminho…

Tudo bem, mesmo com algumas dúvidas, você já pode ter se convencido sobre a possibilidade de escrever um texto acadêmico usando a primeira pessoa do singular e, consequentemente, dizer do seu interesse e vínculo direto com a temática a ser estudada. Você entendeu a partir das considerações de Barthes (1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 23) que “[...] na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor), não há um sujeito e um objeto”. Então, que metodologia de trabalho pode amparar este tipo de escrita/pesquisa?

A metodologia se mostra aos poucos, durante a caminhada investigativa. Por isso, é preciso estar de olhos bem atentos ao que você está exercitando enquanto desenvolve a pesquisa. São pequenos movimentos que conduzem cada uma das etapas é que dirão sobre o método e seus instrumentos (quando houver). Veja, se você traçou alguns objetivos pense que será a metodologia quem criará as condições para que estes objetivos sejam averiguados (ou não) na pesquisa. E se estamos considerando que a metodologia aparece gradativamente na caminha do pesquisador, não temos como sair apresentando os “aportes metodológicos” num primeiro semestre de aula, concorda?

Às vezes, alguns docentes cometem o equívoco de exigir que seja apresentada a metodologia da pesquisa desde as primeiras aulas nos mestrados acadêmicos. Veja, há certas temáticas e trajetórias de pesquisa que podem anunciar isto mais facilmente, metodologias mais clássicas, no entanto, pesquisas que pedem tempo para a experimentação, tempo para a maturação de conceitos, exercícios, testes, até que se mostre como um dado para o trabalho, essas não têm a menor condição de serem apresentadas de início, justamente porque são construídas e verificadas no próprio percurso investigativo.

Embora busquemos amparar nossas ações e movimentos de pesquisa dentro de noções metodológicas contextualizadas teoricamente, elas serão sempre provisórias e inacabadas, abrindo ao pesquisador a chance de incluir, sugerir, propor melhorias dentro da própria metodologia a partir dos devires de cada pesquisa. Para citar um exemplo, se pensarmos na área da Ciências Sociais, especialmente nos registros dos diários de campo elaborados pela etnografia, veremos que não há padrão para a escrita do diário. É impossível anunciar previamente o que irá configurar essa escrita já que cada pesquisador estará imerso numa realidade específica, diante de um tema peculiar visto e pensado dentro de um determinado contexto. Neste tipo de registro geralmente aparece elementos materiais (relativos à coleta de dados), anotações sobre o campo/tema investigado, sensações das andanças do pesquisador e suas reflexões, seus deslocamentos para pensar e escrever a pesquisa, enfim, como acedeu ou chegou a certas análises a partir dos indícios experimentados no trabalho de campo. E tem como padronizar este tipo de experiência ou a escrita pessoal de um diário?

A questão que todo pesquisador precisa estar atento é a descrição detalhada de como a pesquisa acontece em cada uma de suas etapas. Quanto mais claro o texto estiver, mais veremos o método ou como afirma Lofland e Lofland (1995Lofland, J.; Lofland, L. H. Analysing social settings. A guide to qualitative observation and analysis. Belmont, CA: Wadsworth Publishing, 1995., p. 82) “[...] the logging record actually constitutes the data” (o que é registrado constitui, de fato, os dados - tradução minha). Significa dar a ver como ou quais foram as condições da pesquisa, qual a proposta de sua estrutura (que também é uma forma de escrita e de pensamento) até àquilo que costumamos nomear como “resultados” da pesquisa ou como chegamos a eles. Esses resultados não serão “considerações finais” sobre um tema/contexto investigado, ao invés disto, abrirão novas inquietações para continuarmos desdobrando extratos da pesquisa em novos trabalhos.

Resultado: Grupo de pesquisa em experimentações metodológicas

Destaco dois movimentos metodológicos de pesquisa que tenho desenvolvido com meus orientandos especialmente por associar à escrita na primeira pessoa do singular e a abordagem direta com a produção de visualidades. Trago duas pesquisas para exemplificar um breve percurso sobre a cartografia e outro sobre a Pesquisa Baseada em Artes.

Em 2021, apresentamos a pesquisa: “Narrativa e cultura: a festa do Bumba Meu Boi de Juçatuba/MA”, ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade, da Universidade Federal de Tocatins (Garcez, 2021Garcez, M. E. S. Narrativa e cultura: a festa do Bumba Meu Boi de Juçatuba/MA. 2021. 187f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Sociedade) - Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2021.). A pesquisa trata do Bumba Meu Boi, uma das maiores festas populares do Brasil. Em meio a centenas de grupos encontrados no estado do Maranhão, escolhemos o folguedo da comunidade quilombola de Juçatuba, localizada em São José de Ribamar (MA), que se constituiu no locus da pesquisa. O objetivo era investigar narrativas que constituem o Bumba Meu Boi de Juçatuba/MA. Além de dar visibilidade às características da festa e suas estratégias comunicacionais, realizamos um levantamento sobre o folguedo no cenário brasileiro e produzimos um capítulo visual como exercício de experimentação, com imagens da festa, capturas pelo pesquisador.

Utilizamos a cartografia como percurso de pesquisa por ser um método que privilegia a experimentação na investigação. Entendemos que a partir do trajeto proposto e traçado pelo pesquisador, somados as suas anotações, fotografias, leituras, entrevistas realizadas e pensamentos em deriva sobre a festa e suas narrativas, é que foi possível chegar às pistas para experimentar o folguedo de diferentes maneiras. Há muitas narrativas na composição do Boi de Juçatuba e, nesta pesquisa, verificamos como a tradição da brincadeira do Boi segue se transformando ao longo dos anos (antes e durante a pandemia causada pela Covid-19, que alterou o formato da festa nos anos de realização do trabalho, transmitindo através de live uma das maiores manifestações culturais do estado).

Por meio da cartografia estudamos uma festa popular ao mesmo tempo em que vimos o pesquisador se lançar na criação artística para produzir sensações/conhecimento. Como assinala Barros e Kastrup (2012Barros, L. P.; Kastrup, V. Cartografar é acompanhar processos. In: Passos, E.; Kastrup, V.; Escóssia, L. (org.). Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 131-150., p. 53) “[...] a pesquisa cartográfica consiste no acompanhamento de processos e não na representação de objetos”. Não se trata de representar, reapresentar ou criar protocolos sobre o Bumba meu Boi de Juçatuba (MA), mas, pesquisar pelo meio, perceber as forças latentes constituintes da festa em cada elemento. A cartografia dá condições para acompanhar caminhos, criar conexões, propor trajetos… Uma forma de perceber a intensidade do tema investigado, mas também, experimentar a própria tessitura da pesquisa e sua multiplicidade de saberes enquanto ela mesma se desenha, se faz.

Pela cartografia traçada pelo pesquisador (percurso único sugerido e trilhado exclusivamente para esta pesquisa) temos um mapa não apenas geográfico, mas, afetivo, subjetivo, com anotações do caderno de campo, com experimentações imagéticas da festa e seus desdobramentos em pensamentos sobre o evento, suas mudanças nos aspectos estruturais, sociais, culturais, políticos e até no campo do desejo. Cabe lembrar que “[...] o cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado”. Neste sentido, não há esforço para “explicar” uma realidade ou festa, mas mergulhar “[...] na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem” (Rolnik, 1989Rolnik, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. , p. 66) (Figuras 1 e 2).

Figura 1.
Mapa da pesquisa.

Figura 2.
Ensaio visual experimental elaborado para a pesquisa.

Na pesquisa propomos um capítulo totalmente imagético inspirado na poesia concreta de Arnaldo Antunes, Haroldo de Campos e Ferreira Gullar. Essas referências somadas às fotografias produzidas e as etapas de edição, originaram novas imagens da festa, colagens digitais, que deram ao leitor elementos para sentir a festa a partir de questões ligadas à: território, folguedo, sotaque, personagens, indumentárias etc. que compõe o contexto pesquisado. Obviamente propor um capítulo exclusivamente imagético foi um desafio ao próprio pesquisador. (Será que isso é possível professora? Vão aceitar o capítulo visual?) Muitas dúvidas surgiram, mas, cada vez que compreendíamos mais a cartografia como método investigativo, reconhecíamos em nossa aposta a originalidade em termos de produção de pensamento com as imagens. O que fizemos foi “[...] participar, embarcar na constituição de territórios existenciais, constituição de realidade” como aponta Rolnik (1989Rolnik, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. , p. 66).

Um exercício como extensão do corpo-pensamento usando a dissertação como canal experimental que narra, reinventa e ressignifica o Bumba Meu Boi de Juçatuba/MA. Pela cartografia tecemos uma pesquisa híbrida que traz a voz do pesquisador, a voz do morador de Juçatuba e as memórias do seu corpo brincante. Fomos ao campo em estado de abertura à vida, sem o domínio da rota traçada previamente. Dentro do trajeto dado em cada etapa da investigação, observamos desencadear a reflexão, imbricados em nossa condição humana (limitada) desejante por entender as narrativas sobre o Bumba Meu Boi de Juçatuba e dar a elas passagens na pesquisa.

Em 2022, realizamos outra pesquisa, “Imagens fotojornalísticas da pandemia: a construção de imaginários, leituras e narrativas” (Oliveira, 2022Oliveira, A. M. R. S. B. Imagens fotojornalísticas da pandemia: a construção de imaginários, leituras e narrativas.2022. 125f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Sociedade) - Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2022.), no Program de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade Federal de Tocantins. Partimos de um conjunto de fotografias jornalísticas produzidas durante a pandemia da Covid-19 para questionar: o que as imagens dão a ver além do valor-notícia? Buscamos pensar a conjuntura social e política brasileira por meio da cobertura fotojornalística intitulada: “Morte a Domicílio: A explosão de mortes nas casas manauaras no ápice da epidemia de Covid-19 no Amazonas”, de Yan Boechat, vencedor do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos de 2020.

A pesquisa enfatiza em especial, o modo estrutural que se fundamenta teórico-metodologicamente na “Pesquisa Baseada em Artes” (PBA) para tencionar ou provocar a área da Comunicação e estabelecer diálogo com metodologias de áreas afins. Hernandéz (2013Hernandéz, F. H. A investigação baseada em arte: propostas para repensar a pesquisa em educação. In: Dias, B.; Irwin, R. L. (org.). Pesquisa educacional baseada em arte: a/r/tografia. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2013. p. 39-62., p. 45) orienta sobre três aspectos essenciais para nosso percurso: (a) Utilização de elementos estéticos e artísticos: a pesquisa construída a partir da PBA utiliza não apenas elementos linguísticos, mas, composições artísticas para dar passagens às experiências. Por isso, a pesquisa pode utilizar diferentes formatos de escrita, combinando imagens, narrativas subjetivas e literárias ao longo de sua proposta; (b) Busca por outras possibilidades de olhar e representar a experiência: Não objetivamos expor à verdade sobre o tema, mas, ampliar perspectivas narrativas, interpretativas e outras leituras. “Por esse motivo, não busca oferecer explicações sólidas, nem predições ‘confiáveis’, mas espera outras maneiras de ver os fenômenos aos que dirigem o interesse do estudo” (Hernandéz, 2013, p. 45); e (c) Desvelar aquilo que não se fala ou tornar visível o invisível. Nesta dissertação, não apresentamos respostas conclusivas sobre a Covid-19 e seus impactos ou desdobramentos que afetam diretamente a vida, mas, propomos um diálogo amplo, profundo e sincero sobre práticas artísticas, sobre política, sobre os contextos e as narrativas das fotografias analisadas, desnaturalizando o que está posto pela comunicação fotojornalística.

Assim, há concomitantemente a análise de um conjunto premiado de fotografias pandêmicas ao mesmo tempo em que observamos que o conhecimento também deriva de outras formas de experimentação fazendo Ciência, investigando e pesquisando a partir do que não é visto, mas, sentido. Ao tomar a série fotográfica vencedora do Prêmio Vladimir Herzog de 2020 estabelecemos conexões com conceitos teóricos, éticos, estéticos e até pedagógicos nos modos de construir a pesquisa acadêmica.

Dito isto (ainda que de forma muito aligeirada), a PBA abre caminho para criar outros modos estruturais nas pesquisas acadêmicas. Por isso, a dissertação apresenta os atravessamos da pesquisadora (questões e inquietações de investigação), intercaladas aos trechos do diário escrito por ela ao longo da pandemia (período de isolamento social - trechos nomeados de “pequenos devaneios pessoais” - que aparecem manuscritas no texto acadêmico gerando pausa, intervalo na leitura, sensações e olhares decorrentes do contexto pandêmico) e, ainda, a análise das fotografias premiadas estabelecendo a aproximação direta com a metodologia da PBA para a área da Comunicação e do fotojornalismo.

Há um gesto autoral que corajosamente desafia ou pelo menos tensiona os cânones da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ao elaborar um pensar próprio que pede outra estrutura textual. Entendemos que a Comunicação também se faz no encontro, no contágio entre teorias e metodologias que derivam de outras áreas. Este movimento é um exercício potente que desloca conceitos e desterritorializa saberes para criar passagens ao pensar. Quiçá um novo comunicar.

Acompanhamos que a evolução da Covid-19 foi marcada através de “ondas”, graficamente ilustrada pela comunidade científica e pelos meios de comunicação. Assumimos a imagem das ondas como metáfora na construção do pensamento, mas também como arranjo estético/estrutural para anunciar cada capítulo. Os capítulos funcionam como ondas análogas as ondas pandêmicas, mas, também, às do mar. Ondas que vem e vão, que trazem fluidez, poética e a cada novo movimento orienta o leitor a pensar com as imagens. Ondas curtas, que logo desaparecem. Ondas grandes, que ganham proporção à medida em que chegam à costa. E por não sabermos onde a onda vai “quebrar”, eis a incerteza da completude, o mergulho no desconhecido. Escrever sobre imagens da pandemia vivendo a própria pandemia. Aceitar o desafio de escrever quanto se é… se vive.

Os índices que aparecem na dissertação foram pensados para levar o leitor a experimentar a temática por outras vias teórico-metodológicas. Para nós, além da análise das imagens fotojornalísticas premiadas, outra contribuição é justamente repensar o modo como construímos pesquisas acadêmicas a partir de procedimentos mais artísticos, subjetivos e poéticos. Um devir-pesquisa para lembrar as orientações deleuzeanas, “[...] a escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos num devir-mulher, num devir-ani-mal ou vegetal, num devir-molécula, até num devir-imperceptível” (Deleuze, 1997Deleuze, G. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997., p. 11).

Outro desvio estrutural foi tomar a imagem de cartazes produzidos para orientar a população sobre os protocolos de prevenção à Covid-19, para produzir um protocolo próprio de leitura da dissertação. Há uma orientação objetiva dada ao leitor sobre como operam os jogos textuais e imagéticos neste texto. Por fim, o sumário da pesquisa também foi pensado intencionalmente em tópicos (que constituem as ondas capitulares) onde optamos pela escrita do texto tachado. Uma forma de dar visibilidade e de problematizar o apagamento de vidas, de corpos, de sonhos, planos e desejos; a interrupção de projetos, a incerteza de um vírus e de suas múltiplas variantes.

A concepção estrutural desta pesquisa é um dos resultados da própria investigação. Isto pode parecer algo subversivo, desobediente ao sistema que rege à escrita acadêmica. Para nós, o gesto autoral firma um modo de expandir a reflexão do tema na área da Comunicação tendo como fundamento a PBA e o diálogo com áreas afins. Resulta numa forma de arquitetar novos saberes desde a primeira palavra-imagem-texto, desde o primeiro gesto de escrita.

Discussões e considerações para seguir movendo aberturas e arranjos na pesquisa

Em síntese, apresentei os anseios de uma professora-pesquisadora e a busca cotidiana por metodologias mais subjetivas, afetivas e/ou alternativas na construção estrutural de pesquisas acadêmicas realizadas no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade Federal de Tocantins. Possibilidades encontradas em teorias pós-estruturalistas que só podem acontecer em conjunto (construção coletiva e colaborativa com os orientandos), na troca com pesquisadores de outras universidades (em rede), no intercâmbio com estudantes do grupo de pesquisa, nas zonas de vizinhança com diferentes áreas de conhecimento.

Para seguir movendo novas aberturas e arranjos metodológicos dentro da área da Comunicação podemos entender (e aceitar) que a pesquisa acadêmica muda em primeiro lugar o próprio pesquisador, move seus pensamentos, desloca suas certezas, desterritorializa sua bagagem referencial, provocando àquele que se lança em muitos mergulhos até conhecer (quase) verdadeiramente em um tema de investigação. Podemos pensar com Barthes (1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 25) que o atravessamento do sujeito/pesquisador, está ligado ao “[...] prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias - pois meu corpo não tem as mesmas ideias que eu”.

Na incerteza de onde a pesquisa poderá nos levar, trilhamos caminhos novos todos os dias ou voltamos a caminhos conhecidos procurando instaurar sobre eles novas lentes, outras perspectivas. Há nestes modos de fazer pesquisa um estado de abertura do pesquisador, de menos controle e mais atenção. O prazer do texto pontuado por Barthes pode muito bem assumir a forma de uma deriva:

[…] à deriva advém toda vez que eu não respeito o todo e que, à força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre as ondas, permaneço imóvel, girando em torno da fruição intratável que me liga ao texto (ao mundo […] (Barthes,1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 26-27).

Agora, na academia, é preciso ter cuidado ao dizer de uma escrita em deriva, para que ela não se torne um gesto suicida ou paradoxalmente contraditório. Enquanto sujeitos que assumem a escrita da pesquisa acadêmica (corajosamente) na primeira pessoa, assumimos ao mesmo tempo através do texto, um corte, uma afirmação de um dado contexto histórico-temporal. Entre forças paralelas damos pistas de uma escrita que pode exibir o prazer do texto e sua fruição. Enquanto o prazer é algo dizível, a fruição é indizível, está nas entrelinhas, nas fissuras (Pausa pulsante 1: é possível “enquadrar” fissuras nas normas da ABNT?”).

Para lembrar o pensamento do contemporâneo Didi-Huberman (2012Didi-Huberman, G. Quando as imagens tocam o real. PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da EBA/UFMG, p. 204-219, 2012., p. 207) no artigo “Quando as imagens tocam o real”, quando trabalhamos com imagens, sabemos que “[...] não é um simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis. É uma impressão, um rastro, um traço visual do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares”. Do mesmo modo, o texto acadêmico não pode se fechar numa narrativa ensimesmada específica de uma área/bolha, mas, buscar oxigenar o próprio pensamento, atualizando o presente. O texto, assim como as imagens, pode fazer arder no contato com o real. A questão é: o que damos a ver na produção imagética e textual das pesquisas acadêmicas? (pausa pulsante 2: estamos propondo mais do mesmo ou traçando apostas singulares, mais subjetivas, mais tocantes, que provoquem o leitor?) Acredito que se tecemos pesquisas justamente na “encruzilhada dos caminhos” temos muito a aprender no encontro com distintos saberes, no diálogo com diversas áreas.

Para concluir (ainda que provisoriamente), abro o pensamento sobre um gesto de transmutação na escrita, para reforçar a aposta barthesiana e continuar movendo as pesquisas que realizamos como textos-de-micro-resistência, para “[...] fazer surgir um novo estado filosofal da matéria linguareira […] coisa de linguagem” (Barthes, 1987Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987., p. 42). Podemos criar textos que enfrentem as resistências das bibliotecas universitárias em receber pesquisas com textos tachados, imagens na capa, escrita manuscrita, capítulos inteiramente visuais… apostar em organizações estruturais mais convidativas para que o leitor se encha de vontade a adentrar no jogo. Quiçá possamos também encontrar professores de metodologia científica mais disponíveis e interessados em apreender nas interfaces com as áreas afins do que docentes-terroristas, do tipo que ameaçam estudantes de graduação, mestrandos e doutorandos, desses que inibem e até bloqueiam lindos processos de escrita por serem incisivos em métodos conservadores ou por simplesmente desconhecerem outros caminhos. Importa abrir diálogo e fortalecer práticas experimentais na escrita acadêmica na interface metodológica entre a Comunicação e áreas afins.

Referências

  • Bachelard, G. A epistemologia Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
  • Bardin, L. Análise de conteúdo 4. ed. Lisboa: Edições 70, 2010.
  • Barros, L. P.; Kastrup, V. Cartografar é acompanhar processos. In: Passos, E.; Kastrup, V.; Escóssia, L. (org.). Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 131-150.
  • Barthes, R. Aula São Paulo: Cultrix, 1987.
  • Barthes, R. O rumor da língua São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • Bourdieu, P. et al A profissão de sociólogo Preliminares epistemológicas. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
  • Certeau, M. A invenção do cotidiano Artes defazer. Petrópolis: Vozes , 1994.
  • Deleuze, G. Crítica e clínica São Paulo: Editora 34, 1997.
  • Didi-Huberman, G. Quando as imagens tocam o real. PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da EBA/UFMG, p. 204-219, 2012.
  • Garcez, M. E. S. Narrativa e cultura: a festa do Bumba Meu Boi de Juçatuba/MA. 2021. 187f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Sociedade) - Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2021.
  • Hernandéz, F. H. A investigação baseada em arte: propostas para repensar a pesquisa em educação. In: Dias, B.; Irwin, R. L. (org.). Pesquisa educacional baseada em arte: a/r/tografia Santa Maria: Ed. da UFSM, 2013. p. 39-62.
  • Japiassu, H. Introdução ao pensamento epistemológico 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
  • Lofland, J.; Lofland, L. H. Analysing social settings A guide to qualitative observation and analysis. Belmont, CA: Wadsworth Publishing, 1995.
  • Lopes, M. I. V. et al Vivendo com a telenovela Mediações, recepção, teleficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002.
  • Lopes, M. I. V. Pesquisa em comunicação: formulação de um modelo metodológico. São Paulo: Loyola, 1990.
  • Maldonado, E. Explorações sobre a problemática epistemológica no campo das ciências da comunicação. Ciberlegenda, n. 10, p. 1-16, 2002b.
  • Maldonado, E. Produtos midiáticos, estratégias, recepção. A perspectiva trans metodológica. Ciberlegenda, n. 9. p. 1-15, 2002a.
  • Maldonado, E. Práxis teórico/metodológica na pesquisa em comunicação: fundamentos, trilhas e saberes. In: Maldonado, E. et al Metodologias da pesquisa em comunicação: olhares, trilhas e processos. Porto Alegre: Sulina , 2006.
  • Mills, C. W. A imaginação sociológica 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar , 1975.
  • Oliveira, A. M. R. S. B. Imagens fotojornalísticas da pandemia: a construção de imaginários, leituras e narrativas.2022. 125f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Sociedade) - Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2022.
  • Rolnik, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
  • Sontag, S. Questão de ênfase São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Editado por

Editor:

Cesar Pereira e Luisa Paraguai

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2022
  • Revisado
    07 Ago 2023
  • Aceito
    20 Dez 2023
Pontifícia Universidade Católica de Campinas Núcleo de Editoração SBI - Campus II - Av. John Boyd Dunlop, s/n. - Prédio de Odontologia, Jd. Ipaussurama - 13059-900 - Campinas - SP, Tel.: +55 19 3343-6875 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: transinfo@puc-campinas.edu.br