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A reconstrução intercultural dos direitos humanos linguísticos escolares guarani: horizontes sociais e letramento

The intercultural reconstruction of guarani school linguistic human rights: social landscapes and literacy

Resumos

O presente artigo busca contribuir para a reconstrução intercultural do direito humano linguístico escolar ao letramento, pondo em questão o caráter monovalente e universalizante com que esse direito é inserido no horizonte social dos grupos dominantes do capitalismo global. À luz de uma fundamentação teórica que articula discursos do Círculo de Bakhtin, dos Novos Estudos de Letramento, da Linguística Aplicada e dos Estudos Culturais, são interpretados, na análise de dados, discursos dos professores da Escola Indígena de Ensino Fundamental Itaty, da aldeia guarani do Morro dos Cavalos (SC). Esses discursos reconstroem interculturalmente o direito ao letramento, em primeiro lugar, como direito ao registro escolar da tradição cultural (reivindicado em decorrência das transformações de base econômica das práticas legitimadas de geração e transmissão de conhecimento da comunidade), e, em segundo lugar, como "arma de defesa e sobrevivência", através da qual lutar por uma maior soberania sobre as próprias formas de enunciação, indissociável de uma maior soberania econômica.

Oralidade-Letramento; Escola indígena; Direitos linguísticos


This paper seeks to contribute to the intercultural reconstruction of the school linguistic human right to literacy, questioning the monovalent and universalizing nature with which this right is inserted in the social horizon of the dominant groups of global capitalism. Upon a theoretical ground that articulates discourses from the Bakhtin Circle, New Literacy Studies, Applied Linguistics and Cultural Studies, the analysis of data interprets discourses about that issue by the Guarani teachers of the Itaty Indigenous Primary School, located in the Guarani village of Morro dos Cavalos (Santa Catarina, Brazil). Those discourses interculturally reconstruct the right to literacy as the right to the school register of their cultural heritage (claimed upon the transformations of economic basis of the community's forms of utterance and legitimated practices of knowledge generation and transmission), and as a "weapon of defense and survival" with which to struggle for fuller sovereignty over their forms of utterance and, inseparably, over their economy.

Speech-Literacy; Indigenous school; Linguistic rights


ARTIGOS

A reconstrução intercultural dos direitos humanos linguísticos escolares guarani: horizontes sociais e letramento

The intercultural reconstruction of guarani school linguistic human rights: social landscapes and literacy* * Uma versão deste trabalho foi apresentada como comunicação individual no V Simpósio Internacional de Educação Bilíngue na América Latina, na Universidade de Playa Ancha (Valparaíso, Chile) em outubro de 2013.

Carlos Maroto Guerola

UFSC, Florianópolis (SC), Brasil. cmguerola@gmail.com

RESUMO

O presente artigo busca contribuir para a reconstrução intercultural do direito humano linguístico escolar ao letramento, pondo em questão o caráter monovalente e universalizante com que esse direito é inserido no horizonte social dos grupos dominantes do capitalismo global. À luz de uma fundamentação teórica que articula discursos do Círculo de Bakhtin, dos Novos Estudos de Letramento, da Linguística Aplicada e dos Estudos Culturais, são interpretados, na análise de dados, discursos dos professores da Escola Indígena de Ensino Fundamental Itaty, da aldeia guarani do Morro dos Cavalos (SC). Esses discursos reconstroem interculturalmente o direito ao letramento, em primeiro lugar, como direito ao registro escolar da tradição cultural (reivindicado em decorrência das transformações de base econômica das práticas legitimadas de geração e transmissão de conhecimento da comunidade), e, em segundo lugar, como "arma de defesa e sobrevivência", através da qual lutar por uma maior soberania sobre as próprias formas de enunciação, indissociável de uma maior soberania econômica.

Palavras-chave: Oralidade-Letramento; Escola indígena; Direitos linguísticos

ABSTRACT

This paper seeks to contribute to the intercultural reconstruction of the school linguistic human right to literacy, questioning the monovalent and universalizing nature with which this right is inserted in the social horizon of the dominant groups of global capitalism. Upon a theoretical ground that articulates discourses from the Bakhtin Circle, New Literacy Studies, Applied Linguistics and Cultural Studies, the analysis of data interprets discourses about that issue by the Guarani teachers of the Itaty Indigenous Primary School, located in the Guarani village of Morro dos Cavalos (Santa Catarina, Brazil). Those discourses interculturally reconstruct the right to literacy as the right to the school register of their cultural heritage (claimed upon the transformations of economic basis of the community's forms of utterance and legitimated practices of knowledge generation and transmission), and as a "weapon of defense and survival" with which to struggle for fuller sovereignty over their forms of utterance and, inseparably, over their economy.

Keywords: Speech-Literacy; Indigenous school; Linguistic rights

1. A RECONSTRUÇÃO INTERCULTURAL DE DIREITOS HUMANOS LINGUÍSTICOS ESCOLARES

Eventos e manifestações como a Mobilização Nacional Indígena ou o Abril Indígena, ocorridos em diversas regiões do Brasil em 2013, constituem elos da viva e intensa rede de (articul)ações na luta em prol dos direitos e causas indígenas. Eles instanciam a histórica e ininterrupta batalha que esses povos têm travado contra a violência dos projetos políticos e econômicos com que o regime capitalista vem ganhando forma no Brasil séculos a fio. Tais empreitadas, hoje denominadas neoliberais, buscam acelerar o crescimento e o desenvolvimento com os mesmos custos de violência e exclusão daquelas a que dão sequência. Muitos desses projetos constituem uma ameaça contra os direitos que foram finalmente reconhecidos aos indígenas na Constituição de 1988, no que diz respeito a "organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" (BRASIL, 1988, s/p.). Ainda, eles têm resultado numa perene violência, tanto simbólica quanto física, com a qual muitas comunidades defrontam-se dia a dia nas suas aldeias, tanto em contextos rurais quanto urbanos1 1 Vide Carta denúncia da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) às Nações Unidas. Genebra, 13 nov. 2012. Disponível em: http://blogapib.blogspot.com.br/2012/11/carta-da-apib-as-nacoes-unidas-sobre.html. Acesso em: 02 abr. 2014; vide também Relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil, Dados de 2012, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Brasília: CIMI, 2012. Disponível em: www.cimi.org.br/pub/viol/viol2012.pdf. Acesso em: 02 abr. 2014. .

Nessa conjuntura, minha dissertação de mestrado (GUEROLA, 2012, desenvolvida a partir de uma perspectiva etnográfica, buscou contribuir para a reconstrução intercultural dos direitos humanos linguísticos escolares da comunidade guarani do Morro dos Cavalos, localizada no município de Palhoça, na Grande Florianópolis (SC). Para tanto, a pesquisa investigou as práticas de linguagem que essa comunidade reivindica para a sua escolaridade, junto à relação dessas práticas com o contexto político e econômico que as torna imprescindíveis até o ponto de serem demandadas como direitos.

Sousa Santos (SOUSA SANTOS, 2010) questiona a pretendida universalidade do conceito e das políticas de direitos humanos, em função dos pressupostos "claramente ocidentais" (p. 69) em que se baseiam, e é nesse sentido que propõe a sua reconstrução intercultural. Para esse autor, "diálogos transculturais sobre preocupações isomórficas" (p. 70), que visibilizem perspectivas tradicionalmente silenciadas, podem fazer emergir direitos com "competência global e legitimidade local" (p. 67). Essas características representam, para o autor (p. 67), "os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo".

Destarte, com base nos depoimentos dos professores guarani colaboradores da pesquisa2 2 Agradeço imensamente aos professores e lideranças guarani Marcos Moreira, Eunice Antunes, Adão Antunes, João Batista Gonçalves e Joana Mongelo a sua colaboração e participação nesta pesquisa. Todos eles autorizaram o uso dos seus nomes reais para fins de divulgação acadêmica. , a aproximação à reconstrução intercultural dos direitos humanos linguísticos escolares em Guerola (2012) problematizou direitos ditos universais, como a escola ou o letramento, com base na sua qualidade ambivalente de direitos humanos interculturais e obrigações humanas universais. Nesse sentido, o trabalho apontou para uma noção de direito relacionada a obrigações e a necessidades: na conjuntura descrita anteriormente, as assimétricas relações de poder, o assédio e a opressão das elites e grupos de interesse não indígenas contra as comunidades indígenas impede que essas comunidades possam satisfazer suas necessidades e sobreviver de forma autônoma. Por serem desapropriados dos seus recursos e da viabilidade da sua auto-suficiência, esses coletivos são obrigados a viver dentro de um sistema econômico, político e cultural alheio, imposto como única alternativa. É num tal contexto de conflitos e violências que a negação, a reivindicação e/ou o reconhecimento de direitos de uns grupos em relação a outros desencadeia a "reação semiótico-ideológica" (BAKHTIN, 1929/2006, p. 44) que outorga sentido a essas ações e aos signos que as representam.

Os Guarani do Morro dos Cavalos reivindicam hoje direitos humanos linguísticos escolares interculturais como o direito à voz, à visibilidade e à legitimidade, à troca intercultural de saberes, ao (bi)letramento ou à educação escolar guarani diferenciada, dentre outros. Clamam principalmente por terra, como chave para uma maior soberania que facilite a garantia dos seus direitos (linguísticos ou não) por eles mesmos. Tais reivindicações nascem a partir das necessidades criadas pelo sistema em que se encontram inseridos. Nesse sentido, tanto a escola quanto o letramento constituem hoje, para os Guarani, uma necessidade (precisam desses objetos culturais para sobreviver), uma obrigação (são obrigados pela Lei e pelo Estado a esses objetos culturais) e um direito (eles reivindicam tais objetos por serem indispensáveis à satisfação das suas necessidades).

Recorte de Guerola (2012), o presente artigo tem como objetivo questionar o caráter monovalente3 3 Conforme será aprofundado mais adiante, as classes sociais dominantes buscam tornar monovalentes os signos (BAKHTIN, 1929/2006), como, por exemplo, "indígena", "direito humano à educação", "língua", "escola" ou "reconstrução intercultural dos direitos humanos linguísticos escolares", silenciando a diversidade dos seus possíveis significados e reduzindo-os a sentidos únicos em favor de horizontes sociais particulares. com que o direito ao letramento é inserido nos horizontes sociais4 4 Para Bakhtin (1929/2006, p. 139), um horizonte social ou apreciativo é "tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo". dominantes. Ele busca igualmente contribuir para a reconstrução intercultural desse direito visibilizando as vozes e os discursos dos professores da escola Itaty da aldeia guarani do Morro dos Cavalos ao seu respeito.

Para tanto, na fundamentação teórica que se segue, articulo discursos do Círculo de Bakhtin, dos Novos Estudos de Letramento, da Linguística Aplicada e dos Estudos Culturais para, mais tarde, na análise dos dados, interpretar, à luz dessa articulação, os discursos dos professores colaboradores da pesquisa. Esses discursos reconstroem interculturalmente o direito humano ao letramento, em primeiro lugar, como direito ao registro escolar da tradição cultural, reivindicado em decorrência das transformações de base econômica das formas de enunciação e práticas legitimadas de geração e transmissão de conhecimento guarani. Em segundo lugar, o direito ao letramento é reconstruído como "arma de defesa e sobrevivência", nas palavras da cacique Eunice Antunes. Os direitos interculturais guarani são armas viáveis, dissidências possíveis "dentro dos próprios objetivos da modernidade" (MIGNOLO, 2004, p. 671, grifo do autor).

2. HIERARQUIA, BASES DA EXISTÊNCIA MATERIAL E LETRAMENTO

Para a filosofia da linguagem do círculo de Bakhtin, há uma relação orgânica entre linguagem, ideologia e relações socioeconômicas (BAKHTIN, 1929/2006). Uma vez que todos os contatos verbais possíveis e todas as formas e meios de comunicação verbal encontram-se determinados pelas relações de produção e pela estrutura sócio-política, mudanças nas relações econômicas determinam alterações nas formas de enunciação. Essas transformações modificam igualmente a ideologia, pois o domínio do ideológico é "mutuamente correspondente" ao domínio do discurso, da enunciação e dos signos (p. 30).

A férrea hierarquização das relações socioeconômicas e estruturas políticas capitalistas exerce, desse modo, uma "influência poderosa", de "importância incomensurável" (p. 42), sobre as formas de enunciação, assim como sobre o horizonte apreciativo dos grupos sociais:

A evolução semântica na língua é sempre ligada à evolução do horizonte apreciativo de um dado grupo social e a evolução do horizonte apreciativo - no sentido da totalidade de tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo - é inteiramente determinada pela expansão da infraestrutura econômica (p. 139).

Para que um objeto dê lugar à "reação semiótico-ideológica" (p. 44) que cria o signo, é indispensável que ele concerna às bases de existência material do grupo. A economia pauta os horizontes apreciativos, isto é, "tudo que tem sentido e importância" aos olhos dos grupos sociais, e eles dirigem, por sua vez, a "evolução semântica" da língua. É nessa relação dialógica entre linguagem, ideologia e economia que os grupos inscrevem o letramento e as formas de enunciação a ele vinculadas no seu horizonte social.

Heath e Street (2008) propõem uma interpretação de cultura como as metanarrativas por meio das quais os grupos sociais fazem sentido da sua história particular e dos seus hábitos e comportamentos. É a partir de uma definição semiótica de cultura como essa que é possível entrever possíveis relações entre esse conceito e o conceito de horizonte apreciativo ou social de Bakhtin (1929/2006). A esse respeito, cabe apontar para os fios dialógicos que ligam o horizonte apreciativo dos grupos dominantes no capitalismo ao "metarrelato da modernidade" (LANDER, 2005, s/p). Essa metanarrativa protagoniza discursos que representam o modelo civilizatório ocidental e moderno como o mais desenvolvido e superior, dentro de uma escala evolutiva que subalterna os grupos desprivilegiados pelas relações de produção e estrutura socioeconômica global. Ao assim fazerem, os grupos dominantes estabelecem uma "universalidade radicalmente excludente" (LANDER, 2005, s/p.), que proscreve grupos sociais deslegitimando-os como irrelevantes, incompreensíveis ou como alternativas não críveis àquilo que existe (SOUSA SANTOS, 2010).

A assimetria entre o domínio simbólico dos horizontes apreciativos dos grupos no topo da hierarquia socioeconômica capitalista e a deslegitimação daqueles dos grupos na base encontra o seu respaldo na capacidade de espoliação das "possibilidades intencionais da língua" por parte de "visões de mundo socialmente significativas" (BAKHTIN, 1975/2002, p. 97). Tais visões, nas suas metanarrativas, "sobrecarregam suas palavras e formas com suas próprias intenções e acentos típicos e, com isto, tornam-nas em certa medida alheias às outras correntes, partidos, obras e pessoas" (p. 97).

É na espoliação das possibilidades intencionais das palavras e formas de enunciação que se constata o embate ideológico dentro da rede de signos, discursos e significados do plurilinguismo social. Para o autor, o discurso é constituído de um dialogismo interno plurilíngue que é progressivamente monologizado através de "forças centrípetas" (p. 80-82). Essas forças reduzem a pluralidade interna dos signos e dos discursos a significados únicos em favor de um horizonte apreciativo particular. Afinal, "classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua", e, portanto, "em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios" (BAKHTIN, 1929/2006, p. 46). As classes dominantes buscam tornar os signos monovalentes, com sentidos "acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor" que neles se trava (p. 46).

Os signos e discursos que representam as interações e práticas mediadas pelas formas de enunciação escritas têm sofrido, ao longo da história, a ação de forças centrípetas. Essas forças abafaram a luta de valores que se trava ao seu respeito, por exemplo, através da exclusão dos significados que aqueles têm para os povos indígenas. Neste sentido, Franchetto (2008, p. 31) afirma que, apesar do impacto da escrita (com seus corolários alfabetização, letramento e escolarização) contar-se entre as experiências mais marcantes da história do conflito entre povos indígenas e colonizadores, "pouco se tem refletido sobre este tema no âmbito da história dos povos indígenas no Brasil e pouco se tem ouvido o que os índios dizem e contam sobre ele".

Em decorrência dessa exclusão, o contraste e a polarização da relação oralidade-letramento têm favorecido os discursos ligados ao metarrelato da modernidade, e, consequentemente, os interesses dos grupos que determinam o horizonte social dominante. Em tais discursos excludentes, o letramento tem sido defendido como um bem civilizador vinculado diretamente às "necessidades vitais de pessoas e sociedades modernas e desenvolvidas" (GALVÃO; BATISTA, 2006, p. 424, grifo dos autores). Esse presumido avanço evolutivo categoriza os seres humanos em "duas espécies, cognitivamente distintas: os que sabem ler e escrever e os que não sabem" (KLEIMAN, 1995, p. 27). Dentro desse paradigma, a escrita não apenas tem sido supervalorizada, mas também julgada essencial para a realização do potencial interior humano mais completo (ONG apud GEE, 1994, p. 54). Ela tem sido considerada, além disso, o único sistema válido que demonstra a capacidade de abstração humana (GALVÃO; BATISTA, 2006).

Os Novos Estudos de Letramento, em contraposição, identificam tais representações com a imposição das concepções ocidentais de letramento sobre outras culturas, ou, dentro de um país, de uma classe ou grupo cultural sobre outras (STREET, 2003). O que a distinção oralidade-letramento contrasta são, afinal, práticas culturais diversas que, em contextos diferentes, requerem usos distintos da linguagem (GEE, 1994). E se as práticas sociais articulam dialogicamente o discurso com as atividades materiais, as relações sociais e as crenças, valores e desejos dos agentes e comunidades nelas envolvidas (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999), a polarização entre práticas orais e letradas, e a consequente desvalorização das primeiras, acarreta a deslegitimação das atividades materiais, relações sociais, crenças, desejos e valores daqueles que outorgam maior legitimidade às formas de enunciação orais.

Tal menoscaso está vinculado, reitero, à hierarquização das estruturas socioeconômicas do capitalismo em sua reinterpretação neoliberal contemporânea. Neste sentido, César e Cavalcanti (2007, p. 51) afirmam como, progressivamente,

são mais contundentes os discursos de universalização da educação, da quase obrigatoriedade do letramento digital, da

erradicação

do analfabetismo — visto como doença, uma vez que precisa ser erradicado —, dentre outros. Parece que quanto mais o modelo é totalizador e excludente, mais se acirra a necessidade do discurso da inclusão. Que tipo de inclusão? Para reafirmar os projetos políticos e ideologias dominantes? (grifo dos autores)

Cabe ilustrar o questionamento de César e Cavalcanti (2007) a respeito da universalização da educação e da erradicação do analfabetismo, através das célebres palavras do fundador da instituição acadêmico-religiosa dominante na pesquisa e produção de gramáticas e dicionários de línguas ameríndias desde os anos 30 do século XX, o Summer Institute of Linguistics. Incluo, a seguir, uma citação que exemplifica a relação estabelecida pelo missionário Cameron Townsend entre a iniciação dos índios nas práticas de leitura e o despertar do seu interesse pela compra de produtos manufaturados:

Uma vez que pode ler, embora inicialmente seja só no seu próprio idioma, perde o complexo de inferioridade. Começa a interessar-se por coisas novas. Interessa-se por comprar artigos manufaturados — implementos, moinhos, roupa, etc. Para fazer tais compras, ele precisa trabalhar mais. A produção aumenta e, posteriormente, o consumo também. A sociedade inteira, menos o cantineiro e o bruxo, tira proveito. Descobre-se que o índio vale mais como homem culto que como força bruta sumida na ignorância (TOWNSEND, 1949, p. 43

apud

BARROS, 1994, p. 25

5 5 Tradução minha da cita em espanhol em Barros (1994, p. 25).

).

Nessa linha, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1957), conforme citado por Meliá (1979), ressalta o autoritarismo da universalidade com que se representa o direito à leitura e à escrita, erradicador de analfabetismos. Lévi-Strauss relaciona a ação sistemática dos países europeus, a partir do século XIX, em prol da instrução universal obrigatória, com a extensão do serviço militar e da proletarização. A luta contra o analfabetismo estaria relacionada à submissão de maiores contingentes populacionais ao sistema capitalista e às suas leis. Desse modo, por permitir e naturalizar que milhares de trabalhadores se submetam a tarefas extenuantes em troca de um salário, a comunicação escrita favoreceria "a exploração dos homens antes que iluminá-los", e é nesse sentido que a sua função primária seria "facilitar a servidão" (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 318-319 apud MELIÁ, 1979, p. 57).

Pois bem, fundamentada teoricamente a relação entre as bases de existência material, os signos, as formas de enunciação, os discursos e os horizontes sociais apreciativos; entrevistos os fios dialógicos entre o horizonte social dominante e o metarrelato da modernidade; e identificada a polarização oralidade-letramento como uma estratégia de deslegitimação das atividades materiais, relações sociais, crenças, valores e desejos de certos grupos sociais, encerro a presente seção para dar início à análise de dados. Nela, ilustra-se o entrevero entre os discursos dos professores guarani da escola Itaty e as relações de produção e estrutura sócio-política que sobrecarregam de certas possibilidades intencionais os signos e discursos que dizem respeito às formas de enunciação escritas, espoliando a diversidade de significados em torno do letramento.

3. 'TEM QUE DEIXAR TUDO ESCRITO NA ESCOLA PORQUE CULTURALMENTE NÃO EXISTE MAIS OS MAIS ANTIGOS': O LETRAMENTO NO HORIZONTE SOCIAL GUARANI

Como parte do seu território tradicional, os índios guarani ocupam o litoral do atual estado de Santa Catarina desde, no mínimo, o início do segundo milênio (LITAIFF; DARELLA, 2000). Contudo, não é esse o discurso veiculado pelos indivíduos, grupos e meios de comunicação de massas contrários à demarcação de terras indígenas. De fato, alguns deles têm lutado ferrenhamente contra a homologação da Terra Indígena do Morro dos Cavalos, cujo processo de demarcação completou, em 2013, duas décadas6 6 Vide a Cronologia da luta pela demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos - fatos relevantes. Duas décadas de espera (1993 - 2013), elaborada pela Comunidade Guarani Itaty/Morro dos Cavalos, Comissão Guarani Nhemonguetá, Conselho Estadual dos Povos Indígenas, Conselho Indigenista Missionário, Comissão de Assuntos Indígenas/Associação Brasileira de Antropologia, MArquE e Licenciatura Intercultural Indígena/UFSC. Palhoça/Florianópolis. 19 mar. 2013. Disponível em: http://www.abant.org.br/file?id=1053. Acesso em: 02 abr. 2014. . A espera é inadiável para os Guarani, pois apenas a desintrusão dos moradores não índios após a homologação da Terra Indígena lhes garantirá (parafraseando o artigo 231 da Constituição Federal) a terra imprescindível para as suas atividades produtivas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e "à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições" (BRASIL, 1988, s/p.)

No aguardo da garantia do direito à própria terra, os Guarani carecem de soberania e autossuficiência econômica. Por essa razão, encontram-se numa situação de extrema dependência em relação à sociedade dominante, ao estado brasileiro e à economia de mercado neoliberal globalizada. O seu sustento depende atualmente da elaboração e venda de artesanato, do trabalho assalariado, de bolsas de estudo e pesquisa, de programas governamentais de assistência social (distribuição de cestas básicas, programa Bolsa Família, etc.) e de esparsas atividades de agricultura e cria de animais domésticos. Foi devido às suas dramáticas condições de vida, à dependência da sociedade não-indígena e dos seus bens de consumo que, na década de 90, junto à demarcação de espaços próprios para sobreviver e existir, a educação escolar começou a ser reivindicada pelas comunidades guarani (VIEIRA, 2006).

Foi nessa década que ocorreu a inauguração da Escola Indígena de Ensino Fundamental Itaty no Morro dos Cavalos. Situada imediatamente à beira da estrada BR-101, principal rodovia do país, ela serve de palco para muitos dos inúmeros acontecimentos que ocorrem na aldeia. Protestos, manifestos, ofícios, solicitações, reuniões, feiras, cerimônias, rezas, brincadeiras, aulas, etc., são alguns dos gêneros e práticas discursivas habituais na escola Itaty. Os discursos articulados com elas constituem uma amostra ímpar do plurilinguismo social silenciado que ali se desabafa e se manifesta.

Na sua escola, os Guarani do Morro dos Cavalos reinterpretam e reconstroem interculturalmente direitos, signos e formas de enunciação. Impostos como necessidades pelos grupos e sistemas que os assediam, os Guarani apropriam-se deles para usá-los como armas de defesa e sobrevivência em favor dos objetivos econômicos e políticos do seu horizonte apreciativo. É nesse sentido que obrigações universais (como a instrução elementar, obrigatória segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição Federal brasileira) são reconstruídas como direitos humanos interculturais, garantida a sua competência global junto à sua legitimidade local.

Essa reconstrução, contudo, encontra obstáculos no caráter monovalente com que alguns signos e formas de enunciação foram universalmente constituídos na tradição escolar. Neste sentido, ao longo das primeiras semanas de pesquisa7 7 A pesquisa que deu lugar à dissertação mencionada no início deste trabalho, da qual este artigo constitui um recorte, foi desenvolvida entre 2011 e 2012, a partir de uma abordagem qualitativa de cunho etnográfico baseada na observação participante das aulas e do cotidiano da escola, assim como na gravação de entrevistas semiestruturadas com os professores indígenas da escola. , foi insistente a menção, por parte dos professores colaboradores, à facilidade com que os alunos aprendem através da oralidade e a dificuldade que estes enfrentam para aprenderem teoricamente, através da escrita. Contudo, a despeito de tal afirmação, ao longo das observações das aulas fui registrando o caráter central que a escrita e a leitura desempenham nas atividades do dia a dia nas salas de aula da escola. Quis indagar a respeito de tal distinção, e as respostas foram desvelando a relação entre as formas de enunciação, o horizonte social e as práticas econômicas e bases de existência material da comunidade:

Antigamente [...] toda criança tinha que ficar na Casa de Reza, aprendendo, era... o ensinamento era passado na oralidade mas ele era praticado, você chegava assim, a criança ali falava assim "Ô, eu quero pescar, eu quero aprender a pescar". O vô, o tio, o pai chamava [...] o filho e ele sentava ali e ele passava todos os conhecimentos oralmente, depois ele pegava e falava "agora vamo pescar". Então, quando o filho chegasse lá no rio, tudo aquilo que o pai tinha passado, ele ia praticando e aprendendo né, então é assim que ele aprendia, com tudo, na agricultura, né, mesma coisa [...] era toda a questão religiosa e tudo, envolvia tudo [...] Quando os europeus invadiram, começaram a catequizar, eles tiraram, tiraram a criança da Casa de Reza, do dia a dia dele, do aprendizado dele, e trouxeram pra escola, a criança começou a perder os ensinamentos, começou a ficar sentado ali aprendendo a ler e escrever [...] ai deu-se um conflito, claro né, e dai a criança já não tava aprendendo aquilo que era pra ser né, que era pra ele aprender, e hoje né, hoje a gente já... aqui não tem como eu tar passando na oralidade (entrevista com Eunice Antunes, 07/11/2011).

Na sua fala, a professora e cacique Eunice Antunes contrasta duas temporalidades, separadas pela invasão dos colonizadores europeus e a introdução nas primeiras escolas entre os Guarani. Note-se que a reivindicação da escola nas comunidades por parte dos próprios Guarani, a que fiz menção em outras partes do texto, é muito posterior à primeira temporalidade representada na fala de Eunice, que pode ser enquadrada no Brasil colonial. Nessa primeira temporalidade, a instituição legitimada de conhecimento é a Casa de Reza. Nela, o ensinamento é veiculado através de práticas orais nas quais os papéis sociais coincidem com aqueles da esfera familiar ("o vô, o tio, o pai") e as atividades materiais com atividades econômicas como a pesca ou a agricultura, ligadas de forma orgânica a outras práticas como, por exemplo, as espirituais ("a questão religiosa e tudo, envolvia tudo").

Eunice enfatiza a prática do ensinamento ("o ensinamento era passado na oralidade, mas ele era praticado"), colocando como pano de fundo para o seu contraste um ensinamento que não se pratica. É esse o ensinamento veiculado, desde os primórdios do contato, pela escola, instituição de conhecimento, de início, alheia à comunidade, originalmente imposta como obrigação humana universal. No princípio da sua inserção em comunidades guarani, a escola, para Eunice, tirou a criança da Casa de Reza e fez com que ela começasse a "perder os ensinamentos". Essa perda é relacionada por Eunice ao fato de a criança ter começado "a ficar sentado", desenvolvendo uma tarefa alheia ao "dia a dia dele" e ao "aprendizado dele", qual seja, aprender a ler e escrever.

A introdução da escolarização e do letramento em tempos coloniais, de acordo com as palavras de Eunice, não resultou pertinente às práticas sociais das comunidades guarani ("a criança já não tava aprendendo aquilo que era pra ser né, que era pra ele aprender"). Porém, a violência da imposição dessas obrigações humanas universais derivou na transformação radical das suas formas de enunciação e de geração e transmissão de conhecimento, que semeou os entraves à sua vigência atual ("e hoje né, hoje a gente já... aqui não tem como eu tar passando na oralidade").

Outra modificação, decorrente da presença da escola no universo guarani, apontada pelos participantes da pesquisa, é a transferência da responsabilidade pela educação das crianças para papéis sociais distintos dos estritamente familiares. Esse deslocamento se acentuou após a (re)introdução dessa instituição educacional nas aldeias, a pedido das próprias comunidades. Porém, não é a escola a única responsável por essas transfigurações. Também os bens de consumo (cuja compra por parte dos indígenas fora relacionada por Townsend com a aprendizagem da leitura e da escrita) são representados, nos discursos dos professores da escola Itaty, como responsáveis pela transformação e deslegitimação das formas de enunciação e práticas discursivas orais. Transcrevo a seguir as palavras do professor Adão Antunes a esse respeito:

A gente notou assim [...] quem sabe não seja por causa da escola também, que já não tá quase mais existindo as histórias na oralidade, portanto... que os pais tão... estão soltando os filhos pros professores ensinar [...] o pai tá deixando de passar os ensinamentos oralmente pras crianças, contar história, contar os mitos... [...] Os alunos [...] não tão mais procurando o pai pra perguntar as coisas, eles matam todo o tempo dele na frente da televisão ou ouvindo música direto, mp3 [...] hoje mesmo os próprios pais em vez de sentar ao redor do fogo pra contar historia eles vão todos pra frente da televisão, pai, filho, tudo, a família toda vai pra frente da televisão assistir novela (entrevista com Adão Antunes, 01/11/2011).

Nesta fala é possível identificar a comutação entre os papéis sociais responsáveis pela educação das crianças ("os pais estão soltando os filhos pros professores ensinar"), que leva os pais a se sentirem eximidos de "passar os ensinamentos oralmente para as crianças". O professor Adão vincula esse deslocamento, e também o descaso dos filhos em relação ao ensinamento dos pais, com o seu relacionamento intenso (e prejudicial, como é possível depreender das escolhas lexicais do professor Adão) com alguns bens de consumo ("eles matam todo o tempo dele na frente da televisão ou ouvindo música direto, mp3"). Dita relação faz com que as práticas de conhecimento com base em formas de enunciação orais no ambiente familiar venham se transformando em torno desses bens de consumo e dos discursos veiculados através deles ("em vez de sentar ao redor do fogo pra contar historia [...] a família toda vai pra frente da televisão assistir novela").

Assumindo, com Chouliaraki e Fairclough (1999), a sobredeterminação entre os elementos discursivos e não discursivos das práticas, é possível afirmar que transformações nas formas de enunciação acarretam alterações nas atividades materiais, nas relações sociais e nos valores, crenças e desejos que pautam as (inter)ações de grupos e indivíduos na vida social. A fala da professora Joana, que incluo a seguir, aponta nessa direção:

A tecnologia né, ela vem afetando muito o povo indígena guarani principalmente né, e tira totalmente da... em vez das crianças estarem brincando, irem pro mato, elas tão em casa, ouvindo música, estão na frente da televisão, eles querem videogame, eles querem jogos (entrevista com Joana Mongelo, 09/11/2011).

Os bens de consumo identificados com a tecnologia modificam as formas de enunciação e com elas as atividades materiais em que os falantes se envolvem ("em vez das crianças estarem brincando, irem pro mato, elas tão em casa"), assim como as suas crenças, valores e desejos ("eles querem videogame, eles querem jogos"). Desse modo, por exemplo, de acordo com o depoimento dos professores, as gerações mais novas estão prestando menos atenção aos ensinamentos daqueles que muitos reconhecem como as bibliotecas guarani, os mais velhos. Segundo o professor João Batista, "depois que entrou a escola na aldeia, aí já muito poucos que ouvem, né, os jovens quase não ouvem mais os mais velhos" (entrevista com João Batista Gonçalves, 01/11/2011). A transformação das formas de enunciação pauta a mudança das práticas de conhecimento às quais é atribuída legitimidade e, consequentemente, da epistemologia e dos modos de geração de saberes que facilitam a caminhada em direção ao horizonte social do grupo ao qual se pertence.

As palavras do professor João Batista mostram a preocupação dos participantes em relação à perda do conhecimento dos mais velhos, assim como em relação ao papel da escola e do letramento como ferramentas para aliviar tal situação adversa:

Tem que deixar tudo escrito na escola porque culturalmente não existe mais os mais antigos também, e acaba esquecendo da língua, aí vai saber só as novas línguas também, aí já não vai ter mais a língua antiga, tem que ter tudo registrado [...] se não deixar registrado vai esquecer né de como era a língua antiga também (entrevista com João batista Gonçalves, 01/11/2011).

Para o professor João Batista, a escrita tem que desempenhar um papel imprescindível ("temque deixar tudo escrito na escola", "tem que ter tudo registrado") no trabalho escolar contra o esquecimento da "língua antiga". O registro escrito dos conhecimentos dos mais velhos e da tradição cultural, de modo geral, é considerado pelos indígenas uma ferramenta de preservação desses saberes, e é por isso que o signo registro tem se tornado recorrente nas falas dos professores guarani em relação ao letramento escolar:

Esse registro vai ficar guardado, pra sempre também, quando os novos alunos, novas crianças que virão, né, pra estudar, eles já vão diretamente nesse material "ô, tá aqui registrado: nossa história, conhecimento guarani, tá aqui registrado" (entrevista com Marcos Morreira, 31/10/2011).

A transformação das formas de enunciação legitimadas como constituintes de práticas de conhecimento, num deslocamento de legitimidade que se move das práticas orais em direção às práticas letradas, aparece na fala do professor Marcos como definitiva no futuro. Para ele, as novas gerações recorrerão ao registro letrado da tradição e não às suas fontes orais ("eles já vão diretamente nesse material").

A modo de resumo, a fala da professora Eunice Antunes incluída a seguir sintetiza a relação apontada pelos professores guarani entre as formas de enunciação vinculadas à geração e transmissão de conhecimento e as bases de existência material da comunidade, assim como ao papel da escola na reconstrução dessa relação:

Hoje, aqui no Morro dos Cavalos né principalmente que a gente [...] tá muito em contato com as coisas de fora né, e aí a tecnologia também tá matando muito a cultura e aí as crianças já não... Aqui não tem um

Karai

, né, um rezador que vá todo dia na Casa de Reza [...] não tem um rio próximo pra eles tar pescando né, caça, não tem como, agricultura, piorou [...] então pra as crianças aqui do Morro dos Cavalos crescer aprendendo a tradição é difícil [...] aí a escola aqui assim eu acho importante porque [...] nós como professores temos a obrigação de passar a parte cultural né, que é a questão da religião, da tradição, nem que seja no papel [...] eu acho que se não tivesse escola a cultura hoje ia se perder (entrevista com Eunice Antunes, 07/11/2011).

Estas palavras da professora Eunice Antunes apontam para o vínculo existente entre a tradição, sua aprendizagem e as bases da existência material guarani. Para tanto, Eunice faz menção à impossibilidade de realização de certas práticas econômicas ("não tem um rio próximo pra eles tar pescando né, caça, não tem como, agricultura, piorou"), à falta de líderes espirituais que congreguem os moradores da aldeia em torno da Casa de Reza, e à consequente dificuldade para a aprendizagem da tradição ("pra as crianças aqui do Morro dos Cavalos crescer aprendendo a tradição é difícil").

Para sobrepor essa dificuldade, a escola e o letramento são reconstruídos pelos Guarani como direitos interculturais na sua qualidade de ferramentas para reconduzir e reinterpretar a transformação de formas de enunciação e práticas de conhecimento legitimadas. Numa tal conjuntura, as práticas letradas constituem um mal menor, uma vez que podem contribuir para dar continuidade à transmissão dos saberes tradicionais guarani ("como professores temos a obrigação de passar a parte cultural [...] nem que seja no papel"). Um mal menor que é apresentado como inevitável e imprescindível para a manutenção da tradição, conceito que aparece amalgamado, nos discursos dos professores colaboradores, ao conceito de cultura ("a parte cultural né, que é a questão da religião, da tradição [...] se não tivesse escola a cultura hoje ia se perder").

Chegados neste ponto, cabe ressaltar como, nos depoimentos de todos os colaboradores da pesquisa, são recorrentes as referências à cultura e ao conhecimento como objetos estáticos, sinônimos de tradição, usados em referência a práticas socioculturais de um tempo passado e idealizado, o tempo de antigamente. É nessa perspectiva que se fundamentam os discursos a respeito da cultura e do conhecimento como algo que é possível perder ou matar ("a criança começou a perder os ensinamentos", "a tecnologia também tá matando muito a cultura", "eu acho que se não tivesse escola a cultura hoje ia se perder"), e, consequentemente, como algo que pode ser escrito e registrado ("tem que deixar tudo escrito na escola porque culturalmente não existe mais os mais antigos", "nossa história, conhecimento guarani, tá aqui registrado").

Tais discursos podem ser ressignificados a partir de uma noção dinâmica de cultura, como a de autores como Geertz (1973) ou Heath e Street (2008). Conforme já mencionei anteriormente neste texto, esses autores defendem uma noção semiótica de cultura, ligada a redes de significação (GEERTZ, 1973) ou metanarrativas (HEATH; STREET, 2008), através das quais os grupos sociais fazem sentido da sua história particular ou dos seus hábitos e comportamentos. A dinamicidade da cultura é enfatizada por Heath e Street (2008) na sua argumentação em favor do entendimento do signo cultura como verbo, dada a sua infinita e caleidoscópica capacidade de transformação, e não como nome, para assim evitar no conceito a fixidez conotada por essa categoria gramatical.

É essa noção semiótica de cultura, paradoxalmente, que subjaz à apropriação guarani de obrigações humanas universais, como a escola e o letramento, e à sua reconstrução como direitos humanos interculturais. É pela sua qualidade dinâmica que a cultura guarani apropria-se deles, reinterpretando-os e inserindo-os no seu horizonte social como armas de resistência e sobrevivência em relação ao assédio do mundo não indígena e do sistema político e econômico capitalista. Esses direitos interculturais possibilitam de algum modo a recondução das transformações de práticas de conhecimento e formas de enunciação que ameaçam a transmissão dos saberes tradicionais e comprometem as bases epistemológicas da tradição guarani. Para tal resistência, a escrita representa um instrumento indispensável:

A questão da escrita guarani, das historias guarani [...] a gente usa como uma arma também de defesa, de sobrevivência [...] E ai então a gente usa como... uma estratégia né [...] tu aprende a falar em português pra me defender, tu aprende a escrever alguma coisa pra me defender, então é tudo defesa mesmo, divulgar a minha cultura pra que a pessoa que conheça a minha cultura ele me respeite do jeito que eu sou assim como eu tô respeitando ele (entrevista com Eunice Antunes, 07/11/2011).

Na fala da professora Eunice, "a questão da escrita guarani" não aparece representada como um bem civilizador nem como avanço evolutivo positivo em si mesmo. Antes, ela constitui uma estratégia de defesa ("é tudo defesa mesmo") perante a transformação que a organização hierarquizada das relações sociais exerce sobre as formas de enunciação e práticas discursivas das populações guarani e, inseparavelmente, sobre as suas bases de existência material, relações sociais, crenças, valores e desejos. É com base nesta afirmação que teço, na seção final, as considerações apontadas pela análise dos dados, em articulação com a fundamentação teórica com que foi munido este trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reconstrução intercultural dos direitos humanos linguísticos na escola Itaty da aldeia guarani do Morro dos Cavalos possibilitou a emergência de significados ainda hoje espoliados das "possibilidades intencionais da língua" por parte de "visões de mundo socialmente significativas" (BAKHTIN, 1975/2002, p. 97), especialmente aquelas que endossam o "metarrelato da modernidade" (LANDER, 2005, s/p). Nessa metanarrativa, a distinção oralidade-letramento serve à categorização de indivíduos em duas classes cognitivas distintas, uma delas primária e primitiva, a ser erradicada (a categoria dos analfabetos), e outra identificada com as "necessidades vitais de pessoas e sociedades modernas e desenvolvidas" (GALVÃO; BATISTA, 2006, p. 424, grifo dos autores). Destarte, afogados o plurilinguismo social e a luta de índices sociais de valor nos signos e discursos que lhes dizem respeito, o letramento tem sido tradicionalmente inscrito no horizonte social dos grupos dominantes já monovalente, como um processo evolutivo positivo em si mesmo, e, portanto, como um direito universal que há de ser garantido a todos os seres humanos.

O abafamento dos discursos ao seu respeito invisibiliza os significados que o letramento tem para comunidades tradicionalmente deslegitimadas, como as comunidades indígenas em geral, e guarani em particular. O letramento inscreve-se no horizonte social dessas comunidades como arma de defesa e sobrevivência em decorrência das violentas transformações em suas formas de enunciação, associadas a transformações nas suas bases de existência material, relações sociais, crenças, valores e desejos. Através dessa arma, os Guarani buscam reconduzir as mudanças no seu universo discursivo e lutar por uma maior soberania sobre as próprias formas de enunciação, indissociável de uma maior soberania sobre a sua economia.

Recebido: 16/11/2013

Aceito: 22/04/2014

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  • VIEIRA, I. F. (2006). Educação escolar indígena: as vozes Guarani sobre a escola na aldeia Dissertação de Mestrado em Educação. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
  • *
    Uma versão deste trabalho foi apresentada como comunicação individual no V Simpósio Internacional de Educação Bilíngue na América Latina, na Universidade de Playa Ancha (Valparaíso, Chile) em outubro de 2013.
  • 1
    Vide Carta denúncia da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) às Nações Unidas. Genebra, 13 nov. 2012. Disponível em:
    http://blogapib.blogspot.com.br/2012/11/carta-da-apib-as-nacoes-unidas-sobre.html. Acesso em: 02 abr. 2014; vide também Relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil, Dados de 2012, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Brasília: CIMI, 2012. Disponível em:
    www.cimi.org.br/pub/viol/viol2012.pdf. Acesso em: 02 abr. 2014.
  • 2
    Agradeço imensamente aos professores e lideranças guarani Marcos Moreira, Eunice Antunes, Adão Antunes, João Batista Gonçalves e Joana Mongelo a sua colaboração e participação nesta pesquisa. Todos eles autorizaram o uso dos seus nomes reais para fins de divulgação acadêmica.
  • 3
    Conforme será aprofundado mais adiante, as classes sociais dominantes buscam tornar monovalentes os signos (BAKHTIN, 1929/2006), como, por exemplo, "indígena", "direito humano à educação", "língua", "escola" ou "reconstrução intercultural dos direitos humanos linguísticos escolares", silenciando a diversidade dos seus possíveis significados e reduzindo-os a sentidos únicos em favor de horizontes sociais particulares.
  • 4
    Para Bakhtin (1929/2006, p. 139), um horizonte social ou apreciativo é "tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo".
  • 5
    Tradução minha da cita em espanhol em Barros (1994, p. 25).
  • 6
    Vide a
    Cronologia da luta pela demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos - fatos relevantes. Duas décadas de espera (1993 - 2013), elaborada pela Comunidade Guarani Itaty/Morro dos Cavalos, Comissão Guarani Nhemonguetá, Conselho Estadual dos Povos Indígenas, Conselho Indigenista Missionário, Comissão de Assuntos Indígenas/Associação Brasileira de Antropologia, MArquE e Licenciatura Intercultural Indígena/UFSC. Palhoça/Florianópolis. 19 mar. 2013. Disponível em:
    Acesso em: 02 abr. 2014.
  • 7
    A pesquisa que deu lugar à dissertação mencionada no início deste trabalho, da qual este artigo constitui um recorte, foi desenvolvida entre 2011 e 2012, a partir de uma abordagem qualitativa de cunho etnográfico baseada na observação participante das aulas e do cotidiano da escola, assim como na gravação de entrevistas semiestruturadas com os professores indígenas da escola.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      16 Nov 2013
    • Aceito
      22 Abr 2014
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