Acessibilidade / Reportar erro

PERSPECTIVA AFROGÊNICA DECOLONIAL NOS ITENS DE LÍNGUA ESPANHOLA DO ENEM PARA JOVENS E ADULTOS PRIVADOS DE LIBERDADE

AFROGENIC DECOLONIAL PERSPECTIVE IN THE SPANISH LANGUAGE ITEMS FROM ENEM FOR YOUNG PEOPLE AND ADULTS DEPRIVED OF THEIR FREEDOM

RESUMO

O objetivo desse trabalho é analisar como a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) é abordada nos itens de língua espanhola do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) das provas aplicadas para Pessoas Privadas de Liberdade (PPL). A análise se centra em cinco itens, referentes às aplicações feitas entre 2010 e 2019, que abordam as relações étnico-raciais no mundo hispânico, através do texto, do enunciado e das alternativas das questões. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritivointerpretativista e de técnica documental (MOITA LOPES, 1994MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Pesquisa interpretativista em linguística aplicada: a linguagem como condição e solução. D.E.L.T.A. v. l.1, No 2, 1994.). Essa discussão se insere no campo teórico da Linguística Aplicada (LA) voltada para pesquisas responsivas, que atendam às demandas sociais e pensem os sujeitos e a linguagem como heterogêneos e racializados, a partir de uma visão suleada (SILVA JÚNIOR; MATOS, 2019SILVA JÚNIOR, Antônio Carlos; MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Linguística Aplicada e o SULear: práticas decoloniais na educação linguística em espanhol. Revista Interdisciplinar Sulear, UEMG, Ano 2, n. 2, setembro, Edição Especial Dossiê SULear, 2019.). Como fundamentação teórica, além dos pressupostos da LA, tomamos como base os estudos decoloniais que problematizam a colonialidade do poder, fundamentada principalmente na ideia de raça a partir da colonização das Américas (LANDER, 2005LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.; QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005.; CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007CASTRO-GOMES, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Org.) El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 9-24.; MIGNOLO, 2007MIGNOLO, Walter D. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL. R. (Org.) El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 25-46.; WALSH, 2008WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, No.9: 131-152, julio-diciembre, 2008.; VERONELLI, 2015VERONELLI, Gabriela Alejandra. Sobre la colonialidad del lenguaje. Universitas Humanística no. 81 enero-junio de 2015, pp: 33-58, Bogotá - Colombia.). Os estudos étnicoraciais também fundamentam esta investigação, pois buscamos promover uma educação igualitária e livre de preconceitos, com vistas a refletir essa concepção na sociedade. Os resultados apontam que a ERER é contemplada parcialmente nos itens de língua espanhola aplicados para PPL, demonstrando que é um tema ainda urgente de ser debatido no meio educacional.

Palavras-chave:
decolonialidade; perspectiva afrogênica; ENEM; espanhol

ABSTRACT

The goal of this study is to analyse how the Education for Ethnic-Racial Relations has been addressed in the Spanish Language items from the National High School Exam (ENEM) specifically the tests applied for people deprived of their freedom. The analysis is mainly focused on five items, regarding tests applications between 2010-2019, addressing ethnic-racial relations in the hispanic world, taking as resources the text, the statement and the alternatives of the questions. This is a descriptiveinterpretative qualitative study, based on documental analysis (MOITA LOPES, 1994MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Pesquisa interpretativista em linguística aplicada: a linguagem como condição e solução. D.E.L.T.A. v. l.1, No 2, 1994.). It is an Applied Linguistics (AL) theory field of discussion focused on responsive research aiming to fulfill social demands, thinking on the subjects and language as heterogeneous and racialized from a southern point of view (SILVA JÚNIOR; MATOS, 2019SILVA JÚNIOR, Antônio Carlos; MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Linguística Aplicada e o SULear: práticas decoloniais na educação linguística em espanhol. Revista Interdisciplinar Sulear, UEMG, Ano 2, n. 2, setembro, Edição Especial Dossiê SULear, 2019.). As theoretical foundation, besides AL’s assumptions, we based ourselves in the decolonial studies that problematize the coloniality of power, mainly grounded in the racial idea from the colonization of the Americas (LANDER, 2005LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.; QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005.; CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007CASTRO-GOMES, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Org.) El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 9-24.; MIGNOLO, 2007MIGNOLO, Walter D. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL. R. (Org.) El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 25-46.; WALSH, 2008WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, No.9: 131-152, julio-diciembre, 2008.; VERONELLI, 2015VERONELLI, Gabriela Alejandra. Sobre la colonialidad del lenguaje. Universitas Humanística no. 81 enero-junio de 2015, pp: 33-58, Bogotá - Colombia.). Ethnic-racial studies also ground this work, since we endeavour the promotion of an egalitarian and prejudice free education, aiming to reflect this conception in society itself. The results show that ERER is partially contemplated in the Spanish Language items for people deprived of their freedom, indicating it still is a demanding matter to be discussed in the educational field.

Keywords:
decoloniality; afrogenic perspective; ENEM; spanish

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em 2009 com a reformulação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), foram inseridas no exame as provas de língua estrangeira (LE), espanhol e inglês, e as provas para Pessoas Privadas de Liberdade (PPL). Essas inclusões conformaram a visão de que o ENEM além de ser uma medição do sistema educativo a nível médio, também passou a ser um meio de acesso à educação com vistas ao ensino superior. Nesse mesmo período, as discussões sobre a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) ganharam destaque diante da urgência do tema principalmente no meio educacional.

A incorporação da ERER ao currículo da educação básica ocorreu no contexto das reformas educacionais dos anos 1990, quando os temas transversais passaram a fazer parte da formação dos (as) estudantes. Posteriormente, foram redigidos documentos que vêm orientando essa prática sendo a Lei 10.639/2003 um marco na defesa do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, temas que oficialmente não eram contemplados na escola e, segundo Gomes (2017)GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017., são fruto de uma demanda educacional e de uma histórica atuação do Movimento Negro, desde os anos 80. Essas ações e as pesquisas desenvolvidas na área proporcionaram maior visibilidade e qualidade no trabalho voltado para a ERER e a repercussão desses debates influenciou o ensino de línguas e também o ENEM. Em relação à língua espanhola, o reflexo das mobilizações aparece nas pesquisas voltadas para as culturas afrodescendentes nos países hispânicos, sobretudo na literatura, mas não somente. Já em relação ao ENEM, nota-se uma maior preocupação com a abordagem dos itens, para que estes reflitam o posicionamento protagonista da afrodescendência no Brasil, se contrapondo à imagem de subalternidade propagada inclusive pelos discursos oficiais.

Diante do exposto, o objetivo deste artigo é analisar como as relações étnico-raciais são apresentadas nos itens de língua espanhola do ENEM nas provas aplicadas para PPL. Essa análise parte do campo teórico da Linguística aplicada (LA) para compreender o papel da linguagem, e, em especial da língua espanhola e dos itens do ENEM em contexto de privação de liberdade. Essa reflexão se insere no âmbito da ERER, enquanto eixo de ensino que fundamenta o debate sobre racialização em ambientes educativos. Também permite refletir sobre a educação nas prisões, pois, embora tenham como foco o ensino regular ou a Educação de Jovens e Adultos (EJA), é nesse contexto que os/as privados/as de liberdade são preparados para o exame nacional. Além disso, as Orientações para a ERER (BRASIL, 2006BRASIL, Ministério da Educação / Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006.) destinam um capítulo para a EJA, indicando a importância desse eixo transversal ser trabalhado também com jovens e adultos.

A análise se centra em cinco itens, referentes às aplicações feitas entre 2010 e 2019, que abordam as relações étnico-raciais no mundo hispânico. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritivo-interpretativista e técnica documental (MOITA LOPES, 1994MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Pesquisa interpretativista em linguística aplicada: a linguagem como condição e solução. D.E.L.T.A. v. l.1, No 2, 1994.). O artigo se divide em quatro seções além desta introdução e da conclusão. Na primeira seção, apresentamos os conceitos perspectiva afrogênica, sulear e os estudos decoloniais. Na segunda seção, realizamos uma breve explanação sobre o papel das prisões e da educação nesse contexto. Na terceira seção, inserimos o espanhol e o ENEM na discussão a partir de uma perspectiva decolonial e afrogênica. Na quarta seção, apresentamos as análises.

1. PERSPECTIVA AFROGÊNICA DECOLONIAL

Diante do desafio de abordar as relações étnico-raciais, no âmbito da educação, vêm sendo construídas diversas perspectivas de compreensão da diversidade e da problematização da racialização em contextos colonizados como o Brasil. Além das leis que orientam a ERER, este trabalho toma como base o conceito de perspectiva afrogênica no intuito de somar as discussões postas no Brasil aos contextos diaspóricos do mundo hispânico. Ao defini-lo, a antropóloga Sheila Walker (2018WALKER, Sheila. Conhecimento desde dentro: Os afro-sul-americanos falam de seus povos e suas histórias. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018., p. 27) explica que, “Afrogênico foi um conceito que tive que criar, porque necessitava dele para o livro African Roots/ América Cultures”. Nas palavras da autora:

Afrogênico quer dizer, simplesmente, o que tem sua origem na história, a maneira de ser e de saber, as interpretações e os estilos de interpretação dos africanos e afrodescendentes. Refere-se às experiências, interesses e prioridades dos africanos, afrodescendentes e suas articulações. A palavra pode comparar-se à palavra eurogênico, conforme se usa para povos de origem europeia. São os mesmos povos que se apropriaram do direito de não somente dispor dos corpos e vidas de gerações de africanos e afrodescendentes escravizados, mas também de definir as realidades destas vidas e histórias. Uma perspectiva afrogênica é necessária para equilibrar, completar e corrigir as histórias e interpretações das américas que todos aprendemos, que se baseiam em perspectivas eurogênicas (WALKER, 2001, p. 8 apud WALKER, 2018WALKER, Sheila. Conhecimento desde dentro: Os afro-sul-americanos falam de seus povos e suas histórias. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018., p. 28).

A autora também utiliza a metáfora do quebra-cabeça para demonstrar a necessidade de juntar as informações, os conhecimentos, as vivências e resistências elaboradas na diáspora e, que, embora tenham particularidades em cada território geográfico, são próximas em suas construções (WALKER, 2018WALKER, Sheila. Conhecimento desde dentro: Os afro-sul-americanos falam de seus povos e suas histórias. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.). Todavia, essa reconstrução não pode ficar presa ao olhar de fora que, com base na escravização, obliterou as alteridades não europeias, como afirma Walker (2018WALKER, Sheila. Conhecimento desde dentro: Os afro-sul-americanos falam de seus povos e suas histórias. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018., p. 18): “Longe de me referir a um sentimento de sofrimento ou opressão comum, o que destaca para mim são as formas dinâmicas e criativas de viver e apreciar a vida”. Dessa maneira, a pesquisadora propõe uma aproximação aos contextos diaspóricos desde dentro, ou seja, a partir das culturas locais forjadas na diáspora e seus sujeitos/as.

Walker (2018)WALKER, Sheila. Conhecimento desde dentro: Os afro-sul-americanos falam de seus povos e suas histórias. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018. se centra no contexto afro-sul-americano, mais detidamente nos países de língua espanhola e no Brasil, para ouvir e reverberar as histórias, tradições, saberes, arte, espiritualidade e a heterogeneidade dos afrodescendentes em cada localidade. Essa somatização de experiências e contextos permite relacionar a educação linguística em espanhol no Brasil a uma cultura hispânica que reconhece as alteridades afrodescendentes.

Pensar nas possibilidades de atuação da língua espanhola, considerando os contextos colonizados a partir do protagonismo afrodescendente, nos direciona para o suleamento da pesquisa, pois considera que a perspectiva eurogênica de pensar o mundo não é a única, e, que, pensamentos outros, podem ser uma maneira de diálogo equitativo entre diferentes. Segundo Silva Júnior; Matos (2019)SILVA JÚNIOR, Antônio Carlos; MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Linguística Aplicada e o SULear: práticas decoloniais na educação linguística em espanhol. Revista Interdisciplinar Sulear, UEMG, Ano 2, n. 2, setembro, Edição Especial Dossiê SULear, 2019. sulear as pesquisas equivale a considerar as realidades e sujeitos socialmente marginalizados como fontes legítimas de construção de conhecimento. Assim, o Sul referente corresponde às escolhas epistêmicas que desafiam as hegemonias no campo do saber, que historicamente foram sustentadas por concepções do Norte global. Esse direcionamento se alinha aos estudos decoloniais que, ao descentrar o protagonismo do Norte, seu olhar eurogênico do mundo, e, em grande medida eurocêntrico, se volta para as vozes do Sul. Destarte:

Promover a educação linguística em espanhol através de práticas decoloniais é não mais aceitar a invisibilidade das identidades latinoamericanas e estimular seu protagonismo em nossas aulas. Entendemos que o diálogo com as chamadas periferias epistêmicas é importante para o estabelecimento do diálogo com as vozes do Sul e, principalmente, a partir delas, de maneira que a construção de saberes siga a direção Sul-Sul e Sul-Norte, não necessariamente geográfica, mas epistêmica (SILVA JÚNIOR; MATOS, 2019SILVA JÚNIOR, Antônio Carlos; MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Linguística Aplicada e o SULear: práticas decoloniais na educação linguística em espanhol. Revista Interdisciplinar Sulear, UEMG, Ano 2, n. 2, setembro, Edição Especial Dossiê SULear, 2019.).

Neste viés, esta pesquisa busca realizar uma intersecção entre o protagonismo negro a partir de uma perspectiva afrogênica; o suleamento epistêmico através das identidades latino-americanas e dos sujeitos para os quais a prova para PPL é elaborada; e a decolonialidade como viés para a abordagem da língua espanhola em contextos educacionais como o ENEM.

De acordo com Mignolo (2007)MIGNOLO, Walter D. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL. R. (Org.) El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 25-46., o pensamento decolonial é planetário, coletivo e se manifesta na expressão da diversidade de experiências de existir no mundo. Como exemplo, o autor cita os movimentos de cimarronagem na colonização e atualmente os movimentos sociais como formas de um pensar que não vem da centralização do Norte, mas surge dos anseios das existências comuns das populações do Sul global se opondo a dominação (MIGNOLO, 2007MIGNOLO, Walter D. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL. R. (Org.) El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 25-46.).

Esses pensamentos influenciam as teorizações sobre decolonialidade, todavia no âmbito acadêmico parte-se da relação entre o antes e o depois da colonização das Américas, por ser o primeiro evento a nível global a articular diferentes formas de opressão. Partindo desse pressuposto, Quijano (2005)QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005. formulou o conceito de colonialidade que se refere aos resquícios da lógica colonial de dominação e exploração ainda presente nas sociedades. Para o autor, a relação estabelecida na colonização se sustentou com base na ideia de que existem diferentes raças, sendo os brancos superiores e os demais inferiores, no eurocentrismo como visão de mundo e na divisão mundial do trabalho delegando os postos menos desvalorizados para os não brancos. A essa tríade que sustenta a colonialidade, Quijano (2005)QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005. chamou de colonialidade do poder. Embora o colonialismo tenha acabado enquanto regime político, a colonialidade resiste nas instituições, nas formas de sociabilidade e nas hierarquias sociais (QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005.).

Dessa maneira, outras teorizações se desmembraram para tentar esmiuçar as opressões e desigualdades agravadas pela colonialidade do poder. Um dos feitos do colonialismo, foi criar uma linha do tempo no qual civilizações anteriores à colonização são apagadas, tidas como atrasadas sendo consideradas apenas as civilizações europeias como fonte de conhecimento e construção histórica (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007CASTRO-GOMES, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Org.) El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 9-24.). Essa forma de violência é denominada por Lander (2005)LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005. de colonialidade do saber, pois se firma na ideia de que no Sul global não houve e não há produção de conhecimento legítima, sendo necessário buscar o saber nos países do Norte.

Walsh (2008)WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, No.9: 131-152, julio-diciembre, 2008. chama a atenção para outros dois conceitos, a colonialidade do ser, que se refere a desumanização dos sujeitos colonizados e que ainda legitima diferentes formas de violência em relação a população do Sul global. E a colonialidade da natureza ou cosmogônica que se caracteriza pelas apropriações, violações e destruição dos espaços sagrados dos povos originários e afrodescendentes nas Américas. Ao deslegitimar as tradições ancestrais, essa colonialidade destrói o próprio pensamento, visão de mundo, e a vida desses povos.

Já a colonialidade da linguagem, outro ponto dos estudos decoloniais, segundo Veronelli (2015)VERONELLI, Gabriela Alejandra. Sobre la colonialidad del lenguaje. Universitas Humanística no. 81 enero-junio de 2015, pp: 33-58, Bogotá - Colombia., examina a relação entre concepção de língua, racialização, expressão racional e intersubjetiva que limitavam a linguagem das pessoas colonizadas e ainda determina os espaços de circulação das línguas e suas variantes, bem como sua difusão, além de relacionar a expressão normativa com a capacidade cognitiva dos sujeitos/as. A colonialidade da linguagem, de acordo com a autora, opera para manter o diálogo colonizado, isto é, partindo sempre de uma perspectiva eurogênica ou eurocentrada. As colonialidades mencionadas atingem a existência dos grupos sociais não brancos, ao mesmo tempo, que operam para manter a lógica colonial. Há outros tipos de colonialidades, mas nos centramos nas que serão abordadas nos itens analisados na seção quatro.

Pensando em questões relacionadas aos currículos, Matos (2020)MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Decolonialidade e currículo: repensando práticas em espanhol. In: MENDONÇA E SILVA, Cleidimar Aparecida. América latina e língua espanhola: discussões decoloniais. Campinas/SP: Pontes Editores, 2020. p. 93-115., aponta que a decolonialidade, por se tratar de um processo “supõe um projeto e uma agenda urgente de sociedades que estejam implicadas em subverter o padrão de poder colonial em que nos encontramos, contrapondo-se às diversas opressões encravadas em seus sistemas”. Entendemos que as provas do ENEM, enquanto documento oficial, revelam traços das colonialidades que persistem nas instituições, mas em alguns momentos, se aproximam de uma perspectiva afrogênica decolonial. Isso ocorre, porque ambas concepções estão em disputa e, apesar de a ERER presar por uma educação equânime e antirracista, sua aplicação nem sempre é alinhada à elaboração dos itens, como veremos adiante.

2. ENEM PARA JOVENS E ADULTOS PRIVADOS DE LIBERDADE

Dentre os sentidos construídos em torno das prisões, entende-se que é um lugar de punição, correção e que produz mudanças nos indivíduos. Isso pode ocorrer de forma positiva pela lição experienciada e, quando possível, pelo trabalho. Mas, também de forma negativa, já que as condições sanitárias, de isolamento e as subjetividades do indivíduo nem sempre são garantidas, agravando seu quadro de marginalização social, como afirma Fernandes (2019)FERNANDES, Daniel Fonseca. As tortuosas relações entre escola e prisão: um olhar sobre a educação escolar nas prisões nos séculos XIX e XX. V Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão 09 a 11 de dezembro de 2019 FFLCH-SUP, São Paulo - SP..

O autor alerta que o papel da educação nas prisões brasileiras não se desvincula das políticas vigentes. Por isso, em um primeiro momento, a educação tinha forte vínculo com a regeneração moral e era praticada por religiosos, normalmente de denominação jesuíta. No fim do século XIX e início do século XX, o ensino nas prisões reproduzia o cientificismo eurocêntrico da época, inclusive as diretrizes eugênicas vigentes, mantendo um caráter de regeneração moral e religioso atrelado aos princípios de civismo e amor à pátria defendidos naquele contexto (FERNANDES, 2019FERNANDES, Daniel Fonseca. As tortuosas relações entre escola e prisão: um olhar sobre a educação escolar nas prisões nos séculos XIX e XX. V Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão 09 a 11 de dezembro de 2019 FFLCH-SUP, São Paulo - SP.). A partir dos anos 1980 a educação nas prisões foi inserida no âmbito dos direitos humanos, voltada para a ressocialização e escolarização. Contudo,

[...] é possível afirmar que se as prisões brasileiras não se tornaram espaços de reforma dos indivíduos, tampouco se converteram em locais de cura e tratamento, como pretendiam os positivistas. A ordem normativa e as práticas sociais em torno da prisão vão se consolidar ao longo do século XX atravessadas por influências destes movimentos, mas sua marca central será a absoluta precariedade das instalações, a submissão a condições degradantes, castigos físicos e a violação sistemática e reiterada de direitos. A grande permanência histórica da prisão brasileira é funcionar como um espaço de exclusão e produção de sofrimento, reforçando o controle violento das populações marginalizadas, através de um jogo disciplinar violento (FERNANDES, 2019FERNANDES, Daniel Fonseca. As tortuosas relações entre escola e prisão: um olhar sobre a educação escolar nas prisões nos séculos XIX e XX. V Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão 09 a 11 de dezembro de 2019 FFLCH-SUP, São Paulo - SP., p. 13).

Ao alocar as prisões no âmbito dos direitos humanos, uma série de leis e ações foram realizadas para que os direitos fundamentais dos privados/as de liberdade fosses garantidos. Uma delas foi a separação do sistema prisional para adultos e a implementação de um sistema socioeducativo para menores de idade. Esse processo iniciou nos anos 1990 e continua em andamento. Nesse viés, a Lei Nº 12.594/2012BRASIL, Lei Nº 12.594 de 18 DE JANEIRO DE 2012. Instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12594.htm. Acesso em: 08 mar. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) garante em seu artigo 8 a manutenção da educação durante a internação:

Os Planos de Atendimento Socioeducativo deverão, obrigatoriamente, prever ações articuladas nas áreas de educação, saúde, assistência social, cultura, capacitação para o trabalho e esporte, para os adolescentes atendidos, em conformidade com os princípios elencados na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

De acordo com Brasil (2019)BRASIL, Conselho Nacional do Ministério Público. Panorama da execução dos programas socioeducativos de internação e semiliberdade nos estados brasileiros/ Conselho Nacional do Ministério Público. - Brasília: CNMP, 2019., o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei do SINASE são marcos legislativos que diferem a política de atendimento socioeducativa, destinada aos adolescentes, de políticas criminais destinadas à adultos. Dessa maneira,

[...] o propósito maior do SINASE não é buscar a “punição” pelo ato infracional e sim promover a educação do adolescente envolvido para uma existência cidadã no seio da sociedade, reconhecendo como premissa a condição peculiar do adolescente como pessoa em desenvolvimento (ECA, artigo 6º) (Brasil, 2019BRASIL, Conselho Nacional do Ministério Público. Panorama da execução dos programas socioeducativos de internação e semiliberdade nos estados brasileiros/ Conselho Nacional do Ministério Público. - Brasília: CNMP, 2019., p. 15).

Com isso, os planos de atendimento devem ser alinhados à proposta educacional das Secretarias de Educação. De acordo com Souza e Ferreira (2013) no estado do Paraná a educação em unidades socioeducativas está vinculada a EJA, a partir de um programa específico para o ambiente de internação denominado Programa de Educação na Socioeducação (PROEDUSE). Já Silva e Vallina (2018)SILVA, Vitoria Veronica Moraes da; VALLINA, Katia de Araújo Lima. Medida socioeducativa: uma análise acerca da educação no sistema de internação socioeducativo do amazonas. Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social, de 2 a 7 de dezembro de 2018, Universidade Federal do Espirito Santo, Vitória. Disponível em: file:///C:/Users/Gabi/ Downloads/28615-Texto%20do%20artigo-84019-1-10-20200207.pdf. Acesso em: 8 mar. 2021. explicam que, no Amazonas está previsto também parcerias com centros tecnológicos para profissionalização. Esses exemplos indicam a heterogeneidade dos planos de atendimento no que concerne à educação no sistema socioeducativo.

Em relação ao sistema prisional para adultos a Lei de Execução Penal Nº 7.210/1984BRASIL, Lei de Execução Penal Nº 7.210 de 11 DE JULHO DE 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 08 mar. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
é explícita ao afirmar no artigo 18 que: “O ensino de 1º grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da Unidade Federativa.”. E na sequência do artigo 18-A: “O ensino médio, regular ou supletivo, com formação geral ou educação profissional de nível médio, será implantado nos presídios, em obediência ao preceito constitucional de sua universalização”. Dessa maneira, a educação fica a cargo das respectivas Secretarias de Educação como afirma a Resolução nº 2, de 19 de maio de 2010BRASIL, Resolução nº 2, de 19 de maio de 2010 que delibera sobre as Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=5142-rceb002-10&category_slug=maio-2010-pdf&Itemid=30192 . Acesso em: 8 mar. 2021.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
que delibera sobre as Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade:

Art. 2º As ações de educação em contexto de privação de liberdade devem estar calcadas na legislação educacional vigente no país, na Lei de Execução Penal, nos tratados internacionais firmados pelo Brasil no âmbito das políticas de direitos humanos e privação de liberdade, devendo atender às especificidades dos diferentes níveis e modalidades de educação e ensino e são extensivas aos presos provisórios, condenados, egressos do sistema prisional e àqueles que cumprem medidas de segurança.

Art. 3º A oferta de educação para jovens e adultos em estabelecimentos penais obedecerá às seguintes orientações:

I - é atribuição do órgão responsável pela educação nos Estados e no Distrito Federal (Secretaria de Educação ou órgão equivalente) e deverá ser realizada em articulação com os órgãos responsáveis pela sua administração penitenciária, exceto nas penitenciárias federais, cujos programas educacionais estarão sob a responsabilidade do Ministério da Educação em articulação com o Ministério da Justiça, que poderá celebrar convênios com Estados, Distrito Federal e Municípios.

Em consonância com as Leis mencionadas, as Diretrizes Nacionais para a oferta de Educação para Jovens e Adultos ressaltam que:

A prisão, em tese, representa a perda dos direitos civis e políticos. Suspensão, por tempo determinado, do direito do interno ir e vir livremente, de acordo com a sua vontade, mas não implica, contudo, a suspensão dos seus direitos ao respeito, à dignidade, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral, ao desenvolvimento pessoal e social, espaço onde se insere a prática educacional (BRASIL, 2013BRASIL, Ministério da Educação / Secretaria de educação Básica / Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade / Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais. In: Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013., p. 298).

O documento ainda reafirma que a escola, inclusive em ambientes de privação de liberdade, deve ser concebida como um espaço de socialização ao mundo livre em que o saber é apenas um dos elementos para a sua constituição (BRASIL, 2013BRASIL, Ministério da Educação / Secretaria de educação Básica / Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade / Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais. In: Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.). Nesse sentido, ainda que o cenário não seja o ideal, a educação nas prisões vem sendo incentivada, o que condiz com as expectativas geradas, já que é vista ora como meio de recuperação, ora como a própria antítese do crime, como explica Fernandes (2019)FERNANDES, Daniel Fonseca. As tortuosas relações entre escola e prisão: um olhar sobre a educação escolar nas prisões nos séculos XIX e XX. V Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão 09 a 11 de dezembro de 2019 FFLCH-SUP, São Paulo - SP., considerando que a partir da educação os/as privados/as de liberdade podem vislumbrar melhores perspectivas pessoais e profissionais para sua trajetória de vida.

Porém, as políticas públicas educacionais nas prisões são marcadas por avanços e impasses como afirma Verastegui (2020)VERASTEGUI, Bruna Agliardi. ENEM PPL: AVANÇOS E IMPASSES. Anais Congresso Nacional Universidade EAD e Software Livre 2020.2. V. 1, n. 11 Disponível <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/view/17019/1125613349> Acesso em 26 de outubro de 2020.
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/ind...
. Um exemplo disso são as provas do ENEM para PPL, pois se o exame existe desde 1998, apenas em 2010 passou a contemplar adultos privados/as de liberdade e jovens sob medida socioeducativa. De acordo com o portal do Ministério da Educação (MEC):

As provas do Enem PPL têm o mesmo nível de dificuldade do Enem regular. A única diferença é a aplicação, que acontece dentro de unidades prisionais e socioeducativas indicadas pelos respectivos órgãos de administração prisional e socioeducativa, de cada unidade da Federação. Só podem participar aqueles que assinam Termo de Adesão, Responsabilidade e Compromisso, por meio de um sistema on-line (BRASIL, 20201 1 Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/guest/enem-pp. Acesso em: 19 de out. de 2020. ).

Além dessa diferenciação, a data de aplicação sempre ocorre duas semanas após o ENEM regular e em dias úteis. O portal ressalta que essa iniciativa é possível devido a parceria do MEC e, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) com as Secretarias Estaduais de Segurança Pública, de Administração Penitenciária, de Direitos Humanos e de Educação, além de informar que as pessoas privadas de liberdade interessadas em participar do Enem PPL devem solicitar a inscrição ao responsável pedagógico da sua unidade, desde que esta tenha assinado o acordo com o Inep. Segundo o portal, o número de participantes tem aumentado ao longo dos anos o que confirma o sucesso dessa ação. Todavia, em 2019, o ENEM PPL obteve 46.163 inscritos, menos de 10% de inscrições possíveis (VERASTEGUI, 2020VERASTEGUI, Bruna Agliardi. ENEM PPL: AVANÇOS E IMPASSES. Anais Congresso Nacional Universidade EAD e Software Livre 2020.2. V. 1, n. 11 Disponível <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/view/17019/1125613349> Acesso em 26 de outubro de 2020.
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/ind...
).

Segundo Verastegui (2020)VERASTEGUI, Bruna Agliardi. ENEM PPL: AVANÇOS E IMPASSES. Anais Congresso Nacional Universidade EAD e Software Livre 2020.2. V. 1, n. 11 Disponível <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/view/17019/1125613349> Acesso em 26 de outubro de 2020.
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/ind...
, a população carcerária do país é de 726.354 pessoas, sendo que 467.783 estão em regime fechado. Há um total de 1.506 estabelecimentos penais, dos quais 871 deles possuem sala de aula, além de que 670 instituições penais possuem uma biblioteca disponível. Entre as pessoas privadas de liberdade, 55% delas possuem de 18 a 29 anos; 64% são negras; 75% não cursaram o Ensino Médio; e 1% possui Ensino Superior (VERASTEGUI, 2020VERASTEGUI, Bruna Agliardi. ENEM PPL: AVANÇOS E IMPASSES. Anais Congresso Nacional Universidade EAD e Software Livre 2020.2. V. 1, n. 11 Disponível <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/view/17019/1125613349> Acesso em 26 de outubro de 2020.
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/ind...
). Vemos nesses números uma forte relação entre as pessoas privadas de liberdade a baixa escolarização e o pertencimento étnico-racial, demarcando a vulnerabilidade dessa população, e confirmando as prisões como último estágio da exclusão social (FERNANDES, 2019FERNANDES, Daniel Fonseca. As tortuosas relações entre escola e prisão: um olhar sobre a educação escolar nas prisões nos séculos XIX e XX. V Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão 09 a 11 de dezembro de 2019 FFLCH-SUP, São Paulo - SP.).

Destaca-se também a desarticulação de políticas públicas, pois, embora a oferta do ENEM seja algo positivo a preparação para o exame não é garantida, já que o formato de educação do EJA não é direcionado para o ENEM ou mesmo para o contexto de prisões. É importante ressaltar que desde 2017 o ENEM não certifica mais a conclusão do ensino médio, de modo que, para as pessoas privadas de liberdade a chance de conquistar essa certificação se limitou ao chamado provão, destinado aos alunos da EJA, tornando a oferta do exame nacional pouco atraente.

Assim, o exame tem como foco o ensino superior, contudo, além da burocracia para a realização da prova, após a conquista de uma vaga, há ainda impasses em relação ao comparecimento no curso, já que é preciso uma decisão judicial favorável para que os internos em regime fechado frequentem as aulas. Por outro lado, há o incentivo de remissão da pena, mediante estudo, de acordo com a Lei de Execução Penal em seu artigo 126.

Foucault (2010)FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. ao abordar a história da violência nas prisões, em especial sobre os exames, aponta que se trata de um tipo de dispositivo de disciplina, que juntamente à vigilância pretende docilizar corpos e comportamentos:

O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados (...) A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo seu brilho visível. (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010., p. 177).

Nesse sentido, de maneira informal, a realização dos trâmites para a prova e outras decisões podem ser atreladas ao comportamento dos privados/as de liberdade, resultando não em um exercício de direito, mas de compensação pelo comportamento (SILVA, 2017SILVA, Roberto da (Org). Didática do Cárcere: entender a natureza para entender o ser humano e seu mundo. São Paulo, SP: Giostri Editora, 2017.). Assim, o ENEM também pode atuar como um dispositivo de poder e saber, que pretende disciplinar os candidatos, de maneira a alcançarem o seu objetivo, que pode ser o acesso ao ensino superior. E, sendo um dispositivo de poder e saber, os conteúdos e temas escolhidos para serem tratados nas provas também vão atuar como uma forma de orientar os saberes que são legitimados e os que não são.

Considerando os trâmites para que a pessoa consiga se candidatar ao exame, o número de escolas nas prisões, a estrutura de atendimento e a falta de profissionais, além de que o ENEM PPL tem o mesmo objetivo do ENEM regular, isto é, avaliar o desempenho do discente no fim da educação básica, Verastegui (2020VERASTEGUI, Bruna Agliardi. ENEM PPL: AVANÇOS E IMPASSES. Anais Congresso Nacional Universidade EAD e Software Livre 2020.2. V. 1, n. 11 Disponível <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/view/17019/1125613349> Acesso em 26 de outubro de 2020.
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/ind...
, p. 2) questiona: “quantos, efetivamente, chegarão ou chegaram até esta etapa?” Somamos também o questionamento a respeito da atuação da área de espanhol como língua estrangeira neste contexto, a preparação para o exame e como a prova para PPL reflete o meio social desses jovens e adultos? Discorremos sobre esses temas na seção seguinte.

3. LÍNGUA ESPANHOLA, ENEM E CONTEXTO DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

O componente LE é parte dos conteúdos da EJA, assim a língua espanhola pode se fazer presente em contexto de privação de liberdade, ainda que de forma opcional. Considerando as diretrizes para atuação nas prisões e a fundamentação teórica já mencionada, cabe pensar a educação linguística em espanhol como uma ponte entre o contexto dos privados/as de liberdade, e, o mundo hispânico. Campos (2019)CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019. desenvolveu uma proposta interdisciplinar para prática de espanhol com essa característica, o projeto intitulado “Eu, latino-americano” ocorreu porque os privados/as de liberdade sofrem com a perda de identidade. Campos (2019CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019., p. 106) afirma:

Isso se dá porque na maioria dos locais que compõem o sistema prisional o reeducando é reconhecido pelo número que recebe ao adentrar no local, ou até mesmo pelo número do código penal referente ao crime que cometeu. Muito dificilmente ele vai ser reconhecido pelo seu nome e é importante que o professor tenha ciência disso, pois na sala de aula essa prática pode mudar e os alunos podem ser chamados por seus nomes, como forma de humanizar a relação. Especificamente no caso da APAC, como se trata de uma lógica de ressocialização diferente, o recuperando é, sim, chamado pelo nome e, inclusive, usa um crachá de identificação, para que essa prática seja constante.

Como descreve a autora, o contexto de desenvolvimento desse projeto se diferencia da realidade da maioria das escolas em presídios, pois se trata da Associação de Assistência e Proteção ao Condenado (APAC) caracterizada por ser uma prisão humanizada, masculina e para adultos, onde não há celas e o foco na ressocialização é constante (CAMPOS, 2019CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019.).

No projeto, o contato com o novo idioma ocorreu através de questões culturais, políticas, sociais, históricas, geográficas, entre outras intersecções feitas ao longo do trabalho que puderam colaborar para a compressão de identidade e de mundo para além dos contextos já vividos. Dessa maneira, mais do que os aspectos formais da língua o foco estava no alcance de outro idioma e de como esse acesso amplia os conhecimentos dos estudantes (CAMPOS, 2019CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019.). Podemos observar, que a educação nas prisões não se prende ao formato da educação regular, podendo a preparação para o ENEM não ser o objetivo das aulas. Ainda assim, é possível considerar as particularidades deste contexto e seus sujeitos/as agregando conhecimentos que podem auxiliar no exame.

A inclusão da religião nas aulas foi um ponto de adaptação ao contexto dos privados de liberdade, pois embora o Estado seja laico a associação é cristã e o método de trabalho inclui a religião como parte da ressocialização. Assim, a religiosidade é importante para os alunos, que compartilhavam essa visão na aula, bem como versículos bíblicos e solicitavam conteúdos gospel (CAMPOS, 2019CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019.). Dessa maneira, a temática foi incluída nas aulas como explica a autora:

Porém também fiz questão que as meninas tratassem sobre temas que envolviam a colonização e a catequização dos índios na América, por exemplo, como forma de mostrar os dois lados da moeda. O que concluo disso tudo é que devemos ter respeito com a religião do outro, do mesmo modo que devemos respeitar quem não tem religião, (CAMPOS 2019CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019., p.101).

Sobre o perfil dos alunos, a autora constata:

[...] o que mais nos chamava a atenção era o fato de que com uma população carcerária brasileira composta maioritariamente de pretos e pardos, essa não era uma realidade da APAC. Por isso, nos questionávamos se esse não seria um tipo de critério também determinante, ainda que de forma indireta, para que o recuperando fosse transferido para uma Associação (CAMPOS, 2019CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019., p. 38).

E complementa: “aqueles que se declaravam negros mostravam em suas atividades e comentários em sala de aula que o racismo fazia parte da realidade deles” (CAMPOS, 2019CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019., p. 149). Essas constatações são importantes para esta pesquisa pois, como afirma a autora, para chegar a APAC há uma série de critérios relacionados a um bom comportamento que deveriam ser cumpridos. Entretanto, mesmo nesse contexto, as pessoas brancas são as que alcançam esse lugar.

Ao explicar as diferentes manifestações de racismo, Almeida (2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramentos, 2018., p. 29) afirma que sob a perspectiva institucional: “[...] o racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado como resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente desvantagens e privilégios a partir da raça”. O autor elucida que, a estabilidade social depende da capacidade das instituições em absorver os antagonismos inerentes a vida social, assim as instituições normalizam os conflitos hegemonizando as regras de convívio. Entretanto, essa hegemonia ocorre pela utilização de mecanismos institucionais para manter o poder dos grupos dominantes.

Para o autor, racismo é dominação e, portanto, exercício de poder, a manutenção do poder está na capacidade de institucionalizar os interesses do grupo dominante tornando-os natural para toda sociedade. No racismo institucional o domínio se estabelece nos padrões que demarcam determinado grupo como horizonte civilizatório, excluindo automaticamente os grupos fora desse padrão. Assim, é comum ver homens brancos e heterossexuais em situação de privilégio. Consequentemente, o grupo “oposto” fica a margem, na subalternidade (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramentos, 2018.).

Dessa maneira, em uma sociedade racista, não é preciso que a instituição discrimine ou beneficie, explicitamente, por conta da racialização, basta que se siga os processos normais de organização. O autor cita como exemplo a exigência de “boa aparência” para se candidatar a empregos, essa classificação na sociedade brasileira automaticamente se relacionava à estética branca, sendo outros fenótipos, e, principalmente a estética negra, automaticamente classificada como fora do padrão. Almeida (2018)ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramentos, 2018. salienta que se há o indivíduo padrão, há também o suspeito padrão, aquele enquadrado por um conjunto de comportamentos que criminaliza os corpos pretos. Por isso, o autor insiste na importância de questionar os mecanismos postos, como pondera Campos (2019)CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019., pois, somente os questionamentos podem promover a reflexão sobre a construção de uma sociedade equânime.

Nesse mesmo viés, Borges (2019) relaciona as prisões a uma reordenação do sistema, que se fundou na instituição colonial escravista, sinalizando para a materialização de colonialidades. Para a autora: “As “crises” dos sistemas prisional e criminal se quer poderiam ser denominadas como tal, porque se tratam, na verdade, de uma engrenagem funcionando a todo vapor pela manutenção de hierarquias sociais constituídas e indissociadas do elemento racial” (BORGES, 2019, p. 51). A autora defende que essa manutenção passou por diversos estágios, desde a seletividade penal no império, passando pela criminalização da cultura afrodescente como a capoeiragem e a prática de religiões de matriz africana no pós-abolição, até as prisões por vadiagem, que tinham como alvo a população negra. Outro ponto mencionado por Borges (2019) é a atual guerra às drogas que, na prática, além de não combater o tráfico e consumo, tem sido usada para o encarceramento em massa da população periférica e negra, inclusive as mulheres.

Ao analisar a dinâmica do encarceramento de modo interseccional, Borges (2019) agrega que a posição das mulheres no contexto prisional é mais opressora, e, se tratando de mulheres negras e indígenas, mais ainda. Historicamente, as mulheres brancas possuem maior nível de escolarização, o que as permite obter melhores cargos dentro das prisões, de modo que “gênero é uma categoria fundamental para entendermos punição e sistema punitivo na contemporaneidade” (BORGES, 2019, p. 64).

Bento (2002)BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Universidade de São Paulo: Instituto de Psicologia: São Paulo, 2002., ressalta que a omissão diante da discriminação racial, a desinformação sobre o racismo e defesa de interesses entre o grupo racial branco, mesmo que não seja esse o motivo explicitado, são característica do comportamento de branquitude, isto é, do pacto social e de grupo que ocorre para a manutenção das estruturas vigentes. Isso não ocorre por haver uma união deliberada, mas porque as estruturas postas beneficiam esse grupo, sendo as necessidades dos demais ignoradas.

Destarte, a proposta apresentada por Campos (2019)CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019. pode ser uma pista de como relacionar a educação linguística em espanhol ao contexto das prisões. A autora trabalhou aspectos da identidade dos privados de liberdade, mas também do contexto geográfico onde estão inseridos fazendo uma ponte entre Brasil e América Latina através do espanhol. Esse trabalho incluiu possibilidades potencialmente decoloniais ao trazer reflexões sobre temas que influenciaram na subalternização das identidades latino-americanas como a religião e a racialização, ao mesmo tempo contemplou as vivências dos privados de liberdade. Essa abordagem abre espaço para pensar as identidades latino-americanas de forma suleada, e, em outras oportunidades, pode ter como foco a afrodescendência no mundo hispânico, suas contribuições e vivências em diáspora, o que traria uma perspectiva afrogênica para este ambiente.

Para Silva (2017SILVA, Roberto da (Org). Didática do Cárcere: entender a natureza para entender o ser humano e seu mundo. São Paulo, SP: Giostri Editora, 2017., p. 11) a educação nas prisões pode combinar o ensino regular com práticas da Pedagogia Social, já que essa “concebe a educação como parte do processo de desenvolvimento social e não como investimento individual”. Nesse viés, a educação na prisão pode ser uma preparação para a vida social e não apenas uma etapa de escolarização, ampliando perspectivas por parte dos privados/as de liberdade. Assim, o espanhol, pode colaborar nesse desenvolvimento, além de auxiliar na aproximação com textos que podem estar presentes no exame e incentivar na continuidade dos estudos. Considerando o próprio ENEM para PPL uma ação institucional e diante da importância da representatividade nesse contexto, cabe pensar como as provas de espanhol abordam as relações étnico-raciais e as identidades negras no mundo hispânico, assim, na próxima seção apresentamos as análises.

4. OS ITENS DE ESPANHOL NAS PROVAS PARA PPL

De acordo com o documento Guia para elaboração de itens (BRASIL, 2010BRASIL, Guia de elaboração e revisão de itens. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Diretoria de Avaliação da Educação Básica. Brasília: MEC, 2010. Disponível: em https://www.somospar.com.br/wp-content/uploads/2018/08/Guia-para-elaboracao-e-revisao-de-itens-ENEM.pdf. Acesso em: 02 out. 2020.
https://www.somospar.com.br/wp-content/u...
), a palavra item corresponde a uma unidade de testagem, o que no ENEM se refere às questões do caderno de perguntas. Cada item é composto por um texto base, um enunciado e cinco alternativas de respostas, das quais quatro são distratores e uma é o gabarito (BRASIL, 2010BRASIL, Guia de elaboração e revisão de itens. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Diretoria de Avaliação da Educação Básica. Brasília: MEC, 2010. Disponível: em https://www.somospar.com.br/wp-content/uploads/2018/08/Guia-para-elaboracao-e-revisao-de-itens-ENEM.pdf. Acesso em: 02 out. 2020.
https://www.somospar.com.br/wp-content/u...
). Para selecionar os itens analisados neste artigo, foram avaliadas 10 provas totalizando 50 questões, das quais 5 apresentaram temas que se remetem à afrodescendência no mundo hispânico. Esses itens serão analisados seguindo uma abordagem qualitativa (FLICK, 2009FLICK, Uwe. Qualidade na pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009.), com foco no detalhamento sobre como as relações étnico-raciais no mundo hispânico são contempladas em cada um deles. O procedimento, para tanto, será descritivointerpretativista (MOITA LOPES, 1994MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Pesquisa interpretativista em linguística aplicada: a linguagem como condição e solução. D.E.L.T.A. v. l.1, No 2, 1994.), uma vez que descrevemos a formatação dos itens e ao mesmo tempo buscamos compreender sua elaboração a partir dos pressupostos da ERER e da fundamentação teórica apresentada anteriormente.

Utilizamos ainda, a técnica documental (BARDIN, 1977), a partir do conceito de unidade de contexto como forma de análise que compreende o tema, as palavras, o parágrafo, entre outros aspectos linguísticos, textuais e contextuais como elementos que compõem determinado texto. Apesar desses elementos não serem essenciais para o respondente acertar as questões, entendemos que para compreender a abordagem utilizada na elaboração dos itens tais elementos são importantes, por isso consideramos a unidade de contexto como unidade de análise. O primeiro item selecionado está na prova de 2010, vejamos sua reprodução abaixo:

Figura 1
Item nº 91: Aplicação para PPL prova de 2010 Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2010/AZUL_quintafeira_GAB.pdf> Acesso 19 de junho de 2020.

O texto base do item 91 explica que as coreografias utilizadas na cueca têm origem zoomórfica e se inspiraram no ato de acasalamento entre a galinha e o galo. Essa explicação tenta se aproximar da proposta da dança que é o cortejo entre um possível casal. O enunciado se direciona para o tema central que é o significado dos passos da dança. Há uma breve explicação de que as culturas são diversas, o que complementa o tom folclórico e de exoticidade em relação ao gênero musical. Já as alternativas são bastante óbvias, pois não apresentam dificuldades na escolha da opção correta, já que são o oposto do que afirma o texto. O título do texto pode gerar dúvidas aos participantes, pois trata-se de um falso cognato, entretanto uma leitura rápida é suficiente para entender que cueca é o nome da dança e encontrar a alternativa correta.

É possível afirmar que o item se adequa à proposta de elaboração dos itens do ENEM na medida em que foca na compreensão global do texto, porém, apresenta uma visão folclorizada em relação a cultura afrodescendente, se remetendo a animalização, ao invés de dar destaque ao trajeto histórico da dança que surge nos bailes de pessoas negras no Peru até chegar no Chile e outros países hispano-americanos, além de omitir a construção artística de dança, canto e instrumentos que compõe o gênero provenientes principalmente da tradição do lundu.

Essa abordagem não apresenta uma perspectiva afrogênica, pois o protagonismo afrodescendente é obliterado, prevalecendo uma leitura superficial da dança. Essa leitura, não explica as influências da cultura africana e o processo de assimilação pela cultura de descendência europeia que, adaptou o estilo da dança a seus moldes, tornando-a tradicional em muitos países como o Chile. Essa “adaptação” caracteriza diversas colonialidades, como a do poder, pois devido ao eurocentrismo ainda hoje destaca-se a manifestação artística por um suposto exotismo e não pela arte que sustenta. Dessa maneira, tampouco o item é decolonial, pois apresenta mescla de culturas de forma acrítica sem considerar a dominação e o jogo de poder imposto pela cultura dominante. Vejamos o segundo item:

Figura 2
Item nº 93: Aplicação para PPL prova de 2012 Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/ppl/2012/prova_caderno_cinza_6_2012.pdf> Acesso 19 de junho de 2020.

O item tem como foco a pouca presença da língua espanhola na África. O texto base explica que, por não ter existido um império espanhol no continente, o idioma é falado apenas na Guiné Equatorial, diferente do que aconteceu com a língua portuguesa, falada em vários países. O texto ainda sugere a aproximação aos países que falam português como uma boa estratégia para a difusão da língua espanhola no território africano. Já o foco do enunciado está na compreensão global.

Este item além de tratar a língua de forma utilitária, defende a colonização e o imperialismo como forma legítima de poder. É possível notar uma espécie de neocolonização em sua proposta uma vez que os supostos acordos se dão através das línguas (português e espanhol) sem nenhuma menção às pessoas que supostamente aprenderiam o idioma espanhol e suas motivações para isso.

Ao discorrer sobre a colonialidade da linguagem Veronelli (2015)VERONELLI, Gabriela Alejandra. Sobre la colonialidad del lenguaje. Universitas Humanística no. 81 enero-junio de 2015, pp: 33-58, Bogotá - Colombia. explica que o próprio diálogo está colonizado, isto é, não há diálogo de fato no pensamento colonial, apenas a expressão dos grupos dominantes e suas construções sobre os demais grupos. O que vemos neste item é exatamente o eurocentrismo pensando a língua como forma de poder e dominação de território sem considerar os interesses de quem possivelmente faria esse acordo. É verdade que se trata de uma adaptação e o trecho do artigo é curto, porém analisando o texto original o tom neocolonial fica ainda mais nítido, pois os interesses dos africanos não são mencionados. Diante do exposto, é possível afirmar que este item não apresenta uma perspectiva afrogênica ou mesmo decolonial, pelo contrário seu posicionamento é bastante eurocentrado. O próximo item é semelhante:

Figura 3
Item nº 02: Aplicação para PPL prova de 2017 Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/ppl/2017/provas/P2_02_AMARELO.pdf> Acesso 22 de agosto de 2020.

O texto base do item 02 de 2017 está reproduzido na integra, porém sem o título que é: Erradicar el cólera. Trata-se de uma pequena publicação do site National Geographic espanhol que explica sobre algumas ações realizadas no combate à cólera no Congo. O texto é apresentado de uma perspectiva de fora do contexto do país e retrata as ações de uma Organização Não Governamental (ONG) na ajuda a cavar poços para água, formação de agentes de saúde e cuidado com o sistema de esgoto. As informações apresentadas focam em aspectos já muito expostos em relação aos países africanos, como a pobreza, a falta de serviços básicos, água potável e doenças.

As informações em si não agregam novos conhecimentos sobre o Congo e colaboram para manter uma visão limitada sobre os países do continente africano. A escolha desse texto pode naturalizar a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005.), pois apresenta uma única alternativa ao problema: as ações de instituições externas aos países africanos. Essa construção alcança outras colonialidades como a do ser (WALSH, 2008WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, No.9: 131-152, julio-diciembre, 2008.), uma vez que, o protagonismo dos congoleses não é mencionado reafirmando a posição de subalternidade como se não pudessem agir por si próprios. A colonialidade do saber (LANDER, 2005LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.) também opera nesse imaginário, já que apenas o conhecimento ocidental é posto em destaque.

As orientações para a ERER (BRASIL, 2006BRASIL, Ministério da Educação / Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006.), demonstram como é premente a reflexão positiva para a desconstrução de estereótipos em relação aos afro-brasileiros, o documento ainda aponta inúmeros eixos de estudo que podem colaborar para a reflexão positiva e desconstrução de estereótipos sobre a história da África, dos quais destacamos alguns que se encaixam na proposta de discussão do item 02 da prova de 2017, como: a denúncia da miséria e discriminação sofrida pelo continente, as civilizações e organizações políticas pré-coloniais como o reino do Congo, os aspectos religiosos e ancestrais, as lutas por independência política, as contribuições do Egito para ciência e filosofia, etc. (BRASIL, 2006BRASIL, Ministério da Educação / Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006.).

Adichie (2019)ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Companhia das Letras, 2019., ao tratar do perigo da história única, termo usado para referir-se aos estereótipos criados sobre pessoas e lugares, por um discurso unívoco, detentor da verdade ‘absoluta’ e capaz de dar conta de qualquer aspecto da experiência humana, aponta para a necessidade de se contarem outras histórias ocultadas ou distorcidas pelos séculos de racismo presentes na sociedade.

É claro que a África é um continente repleto de catástrofes. Existem algumas enormes, como os estupros aterradores no Congo, e outras deprimentes, como o fato de que 5 mil pessoas se candidatam a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas existem outras histórias que não são sobre catástrofes, e é muito importante, igualmente, falar sobre elas. (ADICHIE, 2019ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Companhia das Letras, 2019., p. 27)

Ressignificar e narrar outras histórias, reconhecendo e valorizando as relações étnico-raciais é importante para promover uma perspectiva afrogênica. Walker (2018)WALKER, Sheila. Conhecimento desde dentro: Os afro-sul-americanos falam de seus povos e suas histórias. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018., também se propõe a pensar os países africanos do ponto de vista da sua colaboração ao mundo, seja os conhecimentos trazidos para as Américas durante o tráfico de pessoas africanas e aqui apropriado pelos europeus, seja nas sociedades anteriores à colonização, sua organização e civilização ou mesmo a hodiernidade dos países africanos. Em diversos capítulos de sua obra é possível evidenciar a influência de aspectos culturais do reino do Congo, por exemplo, tradições que ainda hoje podem ser reconhecidas nos festejos dos países diaspóricos. Assim, é possível afirmar que o item não apresenta uma perspectiva afrogênica ou decolonial, se prendendo a uma visão já bastante difundida e estereotipada sobre os países africanos. Vejamos o próximo item:

Figura 4
Item nº 91: Aplicação para PPL da prova 2014 Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/ppl/2014/prova_caderno_cinza_6_2014.pdf> Acesso 19 de junho de 2020.

O trecho adaptado, usado como base para o item 91, explica as mudanças de sentido em relação à palavra candombe e, como essa tradição afro-uruguaia foi ressignificada ao longo dos séculos no país. O artigo chama atenção para os significados negativos atribuídos ao gênero musical devido ao preconceito racial. Atribuir sentidos negativos em torno da raça ou de elementos culturais próprios de determinado grupo pode caracterizar diferentes formas de colonialidade. O enunciado apresenta a situação problema resumindo os conflitos presentes no texto base em torno da manifestação cultural do Candombe e direcionando o leitor para a compreensão e interpretação dos fatos descritos.

É possível identificar aspectos da colonialidade da linguagem (VERONELLI, 2015VERONELLI, Gabriela Alejandra. Sobre la colonialidad del lenguaje. Universitas Humanística no. 81 enero-junio de 2015, pp: 33-58, Bogotá - Colombia.) quando formas de expressão (verbal, não verbal ou mesmo artística) são deslegitimadas. A colonialidade da linguagem está na supremacia da expressão dos grupos dominantes, limitando e dando sentidos à comunicação dos demais grupos. Nesse viés, o Candombe não era visto como arte ou uma forma possível de expressão humana, mas como um divertimento de péssima categoria, barulhento e obsceno. Ou seja, a linguagem da dança, da música e suas expressões só são reconhecidas como tal, quando adaptadas aos padrões aceitáveis dos grupos dominantes.

Neste caso, em específico, o dicionário é citado como instrumento de poder que colaborava para oficializar a visão dominante e letrada, arquivando imagens negativas em torno da afrodescendência, em detrimento da perspectiva das pessoas negras em diáspora que recriavam suas tradições. Essa passagem nos remete à colonialidade do saber (LANDER, 2015), pois o conhecimento ocidental é sobreposto a outras formas de conhecimento. Aqui as colonialidades são exibidas em forma de denúncia e o texto indica que já não são aceitas, chamando a atenção do leitor para o processo que fez a sociedade uruguaia reconhecer a pluralidade cultural do país. Há, portanto, uma perspectiva decolonial já que foca em construções sociais fora dos moldes coloniais.

Contudo, o item deixa a desejar em relação ao gabarito, pois o texto base demonstra o protagonismo afrodescendente na persistente manutenção de manifestações de origem africana como o Candombe, destacando também a luta contra o preconceito sofrido pela cultura afro-uruguaia. Logo, o status atual de respeitabilidade do Candombe, se dá pela “conservação da herança africana” (alternativa D, considerada errada). Sendo estas atitudes o que gerou a aceitação da sociedade, ao invés, de a aceitação gerar o status de respeitabilidade como consta na resposta B (gabarito). Essa diferenciação é muito importante, pois coloca em evidência o protagonismo afrodescendente na manutenção de aspectos culturais e, em certa medida, de sua própria existência. Ainda ficam evidentes os conflitos sociais gerados pelos embates de diferentes visões de mundo.

A tolerância descrita em forma de aceitação, nos remete a Bento (2002)BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Universidade de São Paulo: Instituto de Psicologia: São Paulo, 2002. ao explicar sobre a relutância do grupo dominante identificado racialmente como branco, em não abrir mão dos espaços de visibilidade e poder. Destarte, a perspectiva afrogênica está presente no texto base, pois apresenta a resistência dos afro-uruguaios para manter sua cultura e existência; está presente no enunciado problematizador; porém, o gabarito não satisfaz, pois tira o protagonismo afrodescendente presente na discussão.

Assim, ao trazer o preconceito sofrido pela cultura de matriz africana para o contexto da prova, este item alcança as experiências de luta contra a discriminação afrodescendente travada no território americano, e corrobora com as orientações para ERER no que se refere à modalidade EJA pois, como afirma o documento Brasil (2006BRASIL, Ministério da Educação / Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006., p. 103): “Dentre os desafios colocados para a EJA, está o de possibilitar a inclusão da discussão sobre a questão racial não apenas como tema transversal ou disciplina do currículo, mas como discussão, problematização e vivências”. Assim, o item dialoga com o contexto diaspórico aproximando o Brasil ao mundo hispânico. O último item analisado segue essa mesma direção:

Figura 5
Item nº 95: Aplicação para PPL prova de 2014 Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/ppl/2014/prova_caderno_cinza_6_2014.pdf> Acesso 19 de junho de 2020.

A adaptação presente no item 95 mantém a ideia central do texto original que se intitula: No más día de la raza, o objetivo é chamar a atenção para o significado da expressão “día de la raza”. Assim, a autora demonstra que essa nomenclatura e suposta comemoração que alude à chegada dos primeiros europeus em solo americano em um 12 de outubro de 1492, parte de uma concepção colonial de conquista colocando em destaque a possível existência de diferentes raças. O argumento, como demonstrado no trecho adaptado, é de que essa expressão já não serve como forma de identificação para a sociedade uruguaia, uma vez que não houve descobrimento, e, sim apropriação e genocídio, gerando não uma nova raça (até porque não existem raças biologicamente), mas a dominação dos povos originários e das pessoas negras traficadas.

Podemos considerar que este item propõe uma visão decolonial (MIGNOLO, 2007MIGNOLO, Walter D. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL. R. (Org.) El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 25-46.), uma vez que rompe com a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005.), já que questiona o eurocentrismo, o conceito colonial de raça e suas consequências. Em função disso, também rompe com a colonialidade da linguagem (VERONELLI, 2015VERONELLI, Gabriela Alejandra. Sobre la colonialidad del lenguaje. Universitas Humanística no. 81 enero-junio de 2015, pp: 33-58, Bogotá - Colombia.), quando propõe a autonomeação, a busca de uma frase ou expressão que de fato simbolize o acontecimento a ser rememorado no dia 12 de outubro. A autora não impõe outra nomenclatura, mas chama a atenção para a reflexão sobre os significados da data, propondo uma agenda que subverte as colonialidades e dialoga com um projeto decolonial como aponta Matos (2020)MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Decolonialidade e currículo: repensando práticas em espanhol. In: MENDONÇA E SILVA, Cleidimar Aparecida. América latina e língua espanhola: discussões decoloniais. Campinas/SP: Pontes Editores, 2020. p. 93-115..

O texto original, ainda menciona uma manifestação pública a ser realizada por diversos setores da sociedade que pretendem solicitar a mudança do nome da data, e, que pretendem fazê-lo de forma democrática e colaborativa. Em outro trecho do texto original a autora salienta que não se trata de apagar a história, mas de pensar o simbolismo da comemoração, pois algo que fere os direitos humanos de tantos compatriotas, como os povos originários e afrodescendentes, não pode ser tratado como pátrio. Esses grupos também são citados como protagonistas do questionamento e debate com a sociedade uruguaia sobre os simbolismos do dia da raça. Pode-se considerar que, ao menos o texto original, apresenta uma perspectiva afrogênica, já que reconhece as pessoas afrodescendentes como protagonistas dessa movimentação em direção decolonial.

Este item, poderia ser o mais completo em relação à abordagem do texto base e sua problematização, através do enunciado e alternativas, exceto pelo fato de que no trecho adaptado não aparece explicitamente o protagonismo dos povos originários e afrodescendentes como é demonstrado no texto original. Esse ponto é importante, pois caracteriza mais uma vez um apagamento de grupos sociais etnicamente marcados, neste caso, em detrimento da reflexão gerada em torno da data específica, das concepções de colonização e descobrimento. Não se trata de desconsiderar essas reflexões, mas de deixar proeminente as ações de grupos minoritarizados, pois quando há uma generalização, como ao citar a sociedade uruguaia, sem especificações dos grupos sociais envolvidos, as ações desses grupos ficam invisibilizadas. O questionamento da comemoração sobre o dia da raça ganha destaque, porque é visto como uma discussão necessária, porém se seus protagonistas não são evidenciados, mantém-se a exclusão.

Como foi possível observar, os itens do ENEM da prova para PPL que permitem discutir as relações étnicoraciais no mundo hispânico, o fazem sustentando as colonialidades em três oportunidades e em outras duas ocasiões tentam direcionar sua abordagem para uma perspectiva decolonial e em alguma medida afrogênica, de modo que, a ERER é parcialmente contemplada. Compreender os itens do ENEM como uma materialização de linguagens pode ser uma forma de mediar tais discursos no exame e também a educação nas prisões, abrindo espaço para localizar a pessoa privada de liberdade no contexto da América Latina como forma de conscientização dos processos históricosociais que este território resguarda, relacionando-o ao contexto de prisões que, como afirma Borges (2019) remete diretamente ao processo colonial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto até aqui, evidenciamos as particularidades da educação em contextos de privação de liberdade. Na primeira seção, exibimos o aporte teórico do estudo. Na segunda seção, apresentamos as características educacionais em regimes socioeducativos e prisionais, e explicamos o papel do ENEM nesses contextos. Na terceira seção, indicamos caminhos para uma educação linguística em espanhol que seja suleada e colabore para emancipação do/a estudante. Na quarta seção, apresentamos as análises demonstrando que os itens do ENEM contrapõem visões decoloniais com visões que mantém as colonialidades. É possível concluir que na aplicação regular do exame as discussões propostas pelos itens costumam repercutir na sociedade e no ensino durante a preparação para a prova, já que os cadernos de perguntas se tornam materiais didáticos e podem ser lidos de forma mais abrangente como propomos nas análises. No contexto de privação de liberdade essa retroalimentação fica comprometida, sendo necessária uma sensibilização maior por parte do sistema educativo para que o exame não se restrinja a medidas psicométricas e colabore para uma formação ampla, como se busca nos contextos regulares de ensino.

Ao analisar os itens das provas do ENEM para PPL, aplicadas em unidades prisionais e socioeducativas, entendemos a importância de refletir sobre o papel da linguagem, e, em especial da língua espanhola e do ENEM nesse contexto, no qual a população negra, os subalternizados socialmente, são a maioria dos corpos presentes (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramentos, 2018.; BORGES, 2018BORGES, Juliana. O que é: encarceramento em massa? Belo Horizonte - MG: Letramento: Justificando, 2018) e a reflexão sobre as dinâmicas de como se estabelecem as relações étnicoraciais podem possibilitar atender às demandas sociais de pensar os sujeitos e a linguagem como heterogêneos e racializados, a partir de uma visão suleada (SILVA JÚNIOR; MATOS, 2019SILVA JÚNIOR, Antônio Carlos; MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Linguística Aplicada e o SULear: práticas decoloniais na educação linguística em espanhol. Revista Interdisciplinar Sulear, UEMG, Ano 2, n. 2, setembro, Edição Especial Dossiê SULear, 2019.).

Devido a heterogeneidade da educação no contexto de privação de liberdade, esta pesquisa encontrou alguns limites como: a dificuldade de acesso aos dados da aplicação do ENEM PPL; pouca informação sobre o formato do ensino em diferentes situações de confinamento (regimes socioeducativos, penitenciárias, APACs, etc.); a preparação para o ENEM e a efetivação do espanhol nesses contextos. Essas lacunas exigem pesquisas direcionadas ao cotidiano educacional dos/as privados/as de liberdade para compreender melhor o alcance dessas políticas públicas e possíveis adequações, sobretudo na área do ensino de línguas.

Dentro do campo teórico da LA, ao nos preocuparmos com as demandas sociais e ao pensar os sujeitos e a linguagem como heterogêneos e racializados, é possível propor pesquisas que busquem descortinar visões eurogênicas e afrogênicas em diversas materialidades linguísticas. Nesse sentido, os estudos decoloniais estão ao lado dessas perspectivas, rompendo com o silenciamento ou a propagação de estereótipos baseados em histórias únicas. O suleamento de nossas pesquisas, considerando as possibilidades que nos trazem os contextos colonizados a partir do protagonismo afrodescendente, é um dos caminhos para promover epistemologias outras. Essas propostas tensionam as diversas colonialidades, sobretudo em contextos nos quais os/as estudantes ocupam posições sociais marginalizadas como ocorre no contexto de privação de liberdade, podendo proporcionar uma educação para sociabilidade.

REFERÊNCIAS

  • ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única Companhia das Letras, 2019.
  • ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramentos, 2018.
  • BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público Universidade de São Paulo: Instituto de Psicologia: São Paulo, 2002.
  • BORGES, Juliana. O que é: encarceramento em massa? Belo Horizonte - MG: Letramento: Justificando, 2018
  • BRASIL, Conselho Nacional do Ministério Público. Panorama da execução dos programas socioeducativos de internação e semiliberdade nos estados brasileiros/ Conselho Nacional do Ministério Público. - Brasília: CNMP, 2019.
  • BRASIL, Guia de elaboração e revisão de itens Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Diretoria de Avaliação da Educação Básica. Brasília: MEC, 2010. Disponível: em https://www.somospar.com.br/wp-content/uploads/2018/08/Guia-para-elaboracao-e-revisao-de-itens-ENEM.pdf. Acesso em: 02 out. 2020.
    » https://www.somospar.com.br/wp-content/uploads/2018/08/Guia-para-elaboracao-e-revisao-de-itens-ENEM.pdf
  • BRASIL, Lei Nº 12.594 de 18 DE JANEIRO DE 2012. Instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12594.htm. Acesso em: 08 mar. 2021.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12594.htm
  • BRASIL, Lei de Execução Penal Nº 7.210 de 11 DE JULHO DE 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 08 mar. 2021.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm
  • BRASIL, Resolução nº 2, de 19 de maio de 2010 que delibera sobre as Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=5142-rceb002-10&category_slug=maio-2010-pdf&Itemid=30192 . Acesso em: 8 mar. 2021.
    » http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=5142-rceb002-10&category_slug=maio-2010-pdf&Itemid=30192
  • BRASIL, Ministério da Educação / Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006.
  • BRASIL, Ministério da Educação / Secretaria de educação Básica / Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade / Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais. In: Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
  • CAMPOS, Thayane Silva. “Un pueblo sin piernas pero que camina”: formação inicial de professores de espanhol na educação de jovens e adultos privados de liberdade. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2019.
  • CASTRO-GOMES, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Org.) El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 9-24.
  • CARDOZO, Gloria Christina de Souza; SILVA, Ana Lucia Ferreira. Educação formal e cumprimento de medidas socioeducativas: políticas públicas para educação escolar de adolescentes privados de liberdade no estado do paraná. Anais do 11º Congresso Nacional de Educação de 23 a 26 de setembro de 2013, Pontifícia Universidade Católica de Curitiba, Curitiba. Disponível em: https://educere.bruc.com.br/CD2013/pdf/8602_5505.pdf. Acesso em: 8 mar. 2021.
    » https://educere.bruc.com.br/CD2013/pdf/8602_5505.pdf
  • FERNANDES, Daniel Fonseca. As tortuosas relações entre escola e prisão: um olhar sobre a educação escolar nas prisões nos séculos XIX e XX. V Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão 09 a 11 de dezembro de 2019 FFLCH-SUP, São Paulo - SP.
  • FLICK, Uwe. Qualidade na pesquisa qualitativa Porto Alegre: Artmed, 2009.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
  • GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
  • LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.
  • MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Decolonialidade e currículo: repensando práticas em espanhol. In: MENDONÇA E SILVA, Cleidimar Aparecida. América latina e língua espanhola: discussões decoloniais. Campinas/SP: Pontes Editores, 2020. p. 93-115.
  • MIGNOLO, Walter D. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL. R. (Org.) El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 25-46.
  • MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Pesquisa interpretativista em linguística aplicada: a linguagem como condição e solução. D.E.L.T.A v. l.1, No 2, 1994.
  • QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005.
  • SILVA, Roberto da (Org). Didática do Cárcere: entender a natureza para entender o ser humano e seu mundo São Paulo, SP: Giostri Editora, 2017.
  • SILVA JÚNIOR, Antônio Carlos; MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Linguística Aplicada e o SULear: práticas decoloniais na educação linguística em espanhol. Revista Interdisciplinar Sulear, UEMG, Ano 2, n. 2, setembro, Edição Especial Dossiê SULear, 2019.
  • SILVA, Vitoria Veronica Moraes da; VALLINA, Katia de Araújo Lima. Medida socioeducativa: uma análise acerca da educação no sistema de internação socioeducativo do amazonas Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social, de 2 a 7 de dezembro de 2018, Universidade Federal do Espirito Santo, Vitória. Disponível em: file:///C:/Users/Gabi/ Downloads/28615-Texto%20do%20artigo-84019-1-10-20200207.pdf. Acesso em: 8 mar. 2021.
  • VERONELLI, Gabriela Alejandra. Sobre la colonialidad del lenguaje. Universitas Humanística no. 81 enero-junio de 2015, pp: 33-58, Bogotá - Colombia.
  • VERASTEGUI, Bruna Agliardi. ENEM PPL: AVANÇOS E IMPASSES. Anais Congresso Nacional Universidade EAD e Software Livre 2020.2. V. 1, n. 11 Disponível <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/view/17019/1125613349> Acesso em 26 de outubro de 2020.
    » http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/view/17019/1125613349
  • WALKER, Sheila. Conhecimento desde dentro: Os afro-sul-americanos falam de seus povos e suas histórias. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.
  • WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa Bogotá - Colombia, No.9: 131-152, julio-diciembre, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2020
  • Aceito
    03 Mar 2021
  • Publicado
    13 Ago 2021
UNICAMP. Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) Unicamp/IEL/Setor de Publicações, Caixa Postal 6045, 13083-970 Campinas SP Brasil, Tel./Fax: (55 19) 3521-1527 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: spublic@iel.unicamp.br