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Erich Auerbach e a apologia das ações modestas

Erich Auerbach and the Praise of Modest Actions

Erich Auerbach y la apología de las acciones modestas

RESUMO

Este artigo analisa os primeiros estudos de Erich Auerbach sobre Dante Alighieri, produzidos na década de 1920, de modo a salientar as rivalidades teóricas e políticas que atravessavam o ambiente acadêmico em que ele estava inserido. Dentre as tendências interpretativas que se estabeleceram após a Primeira Guerra Mundial sublinha-se a busca pela relevância atual da Divina comédia para a sociedade alemã. Por um lado, essa inclinação fundamentou leituras ufanistas e racialistas de Dante, e por outro, embasou a defesa da unidade da cultura europeia que, em alguma medida, seu poema permitiria vislumbrar. Os textos de Auerbach situam-se no segundo grupo, posto que, nos versos dantescos, para além da orientação teórica de sua reflexão sobre a literatura, ele teria encontrado o sentido do seu envolvimento no mundo enquanto filólogo europeu.

Palavras-chave:
Dante Alighieri; unidade; ação; Filologia; História

ABSTRACT

This article analyses Erich Auerbach’s early studies on Dante Alighieri in the 1920s, and highlights the theoretical and political rivalries that characterized the academic environment in which he worked. It also underlines the search for the relevance of The Divine Comedy for German society among the interpretative trends that were established after the First World War. On the one hand, this disposition was used as the basis for chauvinistic and racialist readings of Dante’s work; on the other, it supported the defense of a unified European culture that his poem would allow to glimpse. Auerbach’s texts exemplify the second category because, beyond his theoretical reflections on literature, he found in Dante’s verses the meaning of his involvement in the world as a European philologist.

Keywords:
Dante Alighieri; Unity; Action; Philology; History

RESUMEN

Este artículo analiza los primeros estudios de Erich Auerbach sobre Dante de Alighieri, producidos en la década de 1920, de modo de destacar las rivalidades teóricas y políticas que atravesaban el ambiente académico en que este estaba inmerso. Dentro de las tendencias interpretativas que se establecieron después de la I Guerra Mundial se destaca la búsqueda por la relevancia actual de la Comedia para la sociedad alemana. Por un lado, esa inclinación fundamentó lecturas vanagloriosas y racistas de Dante, y por otro, basó la defensa de la unidad de la cultura europea que, en cierta medida, su poema permitiría vislumbrar. Los textos de Auerbach se sitúan en el segundo grupo, puesto que, en los versos dantescos, además de la orientación teórica de su reflexión sobre la literatura, él habría encontrado el sentido de su envolvimiento en el mundo como filólogo europeo.

Palabras Clave:
Dante Alighieri; unidad; acción; Filología, Historia

1921: O ano de Dante Alighieri na Alemanha

No ano de 1921 completaram-se seiscentos anos desde a morte do poeta exilado Dante Alighieri, e, consequentemente, uma série de eventos comemorativos foi realizada com o ­objetivo de firmar uma nova interpretação para a A divina comédia, seu poema mais aclamado. Em solo alemão, especificamente, a data impulsionou a produção de conferências, livros e comentários críticos elaborados por alguns dos mais proeminentes representantes do estudo das humanidades. Do conjunto de palestras destaco as contribuições de Ernst Troeltsch (1921), Max Koch (1921) e Hugo Daffner (1921), cujas leituras acentuaram o tom ensaístico e a tendência presentista, característicos do período; já dentre os livros e artigos lançados naquele ano, merecem distinção o título Dante als Religiöser Dichter [Dante como poeta religioso], de Karl Vossler (1872-1949), a tiragem comemorativa da Deutsche Dante-Gesellschaft [Sociedade Alemã de Dante], intitulada “Die Deutschen Dantebücher des Jubiläumjahre”1 1 Embora se refira ao ano do Jubileu, o anuário só foi publicado três anos depois. Cf. Daffner (1924). [“O livro alemão sobre Dante do ano do Jubileu”] (apudDAFFNER, 1924GUMBRECHT, Hans Ulrich. Pathos da travessia terrena - o cotidiano de Erich Auerbach. VColóquio Uerj. Rio de Janeiro: Imago, 1994.), e o artigo “Zur Dante-Feier” [“Para a celebração de Dante”], de Erich Auerbach (1892-1957), publicado no volume 23 da revista Neue Rundschau (1921).

Como bem destacou Mirjam Mansen (2003, p. 24-35) em Denn auch Dante ist unser! [“Porque Dante também é nosso!”], grande parte dos trabalhos produzidos naquela ocasião indagava acerca da relevância de Dante para a Alemanha contemporânea, em um presente ainda maculado pela lembrança e pelas consequências da Primeira Guerra Mundial para a compreensão que se tinha de conceitos outrora sólidos, como cultura, arte e poesia. Desejava-se, portanto, saber o porquê da obra de Dante permanecer atual, ainda que composta em um passado tão distante. De fato, o evento comemorativo direcionaria ao poeta os holofotes da crítica acadêmica e diletante, construindo em torno de sua imagem uma intensa luta por sua posse intelectual. Os intérpretes dos escritos dantescos vinham de várias esferas da sociedade para demonstrar que nenhuma querela histórica estava completamente resolvida, nem mesmo aquela de cunho religioso e confessional, conforme destacou Martin Elsky (2017AUERBACH, Erich; ELSKY, Martin; VIALON, Martin; STEIN, Robert. Scholarship in Times of Extremes: Letters of Erich Auerbach (1933-1946), on the Fiftieth Anniversary of His Death.PMLA122, n. 3, p. 742-762, 2007., p. 21-45).

Ecoando uma leitura há muito conhecida de Dante como um protestante avant la ­lettre, representantes do protestantismo reivindicavam o poeta para si, enquanto intelectuais católicos, depois de séculos de completo descaso2 2 Referência ao fato de Dante ter tido um de seus livros, o tratado político De Monarchia ([1312-13] 1996), arrolado na lista de títulos proibidos pelas autoridades católicas entre 1554 e 1881. , eram conclamados pelo papa Bento XV3 3 Em 1921, o papa Bento XV determinou a retirada da Monarquia do index de livros proibidos pela igreja, e conclamou os intelectuais católicos a comprovar a relação de Dante com a sua fé, em detrimento da apropriação protestante. Ver: Encíclica In praeclara, datada de 30 abr. 1921, motivada pelo 6º centenário da morte de Dante. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xv/en/encyclicals/documents/hf_ben-xv_enc_30041921_in-praeclara-summorum.html. Acesso em: 21 nov. 2022. a comprovar a relação dantesca com a religião pontifical. Essa “competição”, pontuou Elsky, assim como a maior parte dos debates daquele ano, ocorreu independentemente da programação universitária. Em 1921, Dante estaria nas páginas de jornais e revistas de grande circulação, fossem eles conservadores, liberais ou literários; seu nome seria lembrado em colégios e sociedades letradas por admiradores eruditos, mas não necessariamente profissionais4 4 Além do artigo de Elsky, Mirjan Mansen (2003, p. 24-35) também oferece uma dimensão da produção alemã sobre Dante no ano do jubileu e igualmente atesta que a maior parte do que se publicou correu independentemente dos institutos de romanística e das universidades. . Notável, no entanto, foi a maneira como os horizontes das interpretações acadêmica e diletante mostraram-se compatíveis, não porque cumprissem os mesmos protocolos de pesquisa, mas porque, no esforço de resgatar uma poesia dos tempos pregressos, para onde quer que voltassem os olhos, deparavam-se sempre com o presente.

Nos quadros da Filologia Românica, além das polêmicas do passado, um conjunto novo de questões se elaboraria no século XX. Logo na primeira década, a visão estético-cultural como chave analítica para a investigação da D.C. fez aparição na Alemanha por meio das reflexões de Karl Vossler (1907; 1910), que, construídas sobre os conceitos estéticos de Benedetto Croce, apresentaram uma declarada preocupação metodológica: como ler o poema? Quais aspectos considerar e quais desprezar em sua narrativa? Em termos simples, a crítica estava às voltas com o problema ainda não solucionado da definição de fronteiras entre “arte e filosofia”. E é nesse amplo cenário que devemos compreender o curto artigo auerbachiano, “Para a celebração de Dante”. Das condições sociopolíticas que acompanharam a sua escrita, é necessário frisar que mesmo não abrigando acontecimentos extremos como a guerra e o exílio, a década de 1920 mostrou-se particularmente hostil a intelectuais de ascendência judaica, os quais sofreram ataques e perseguições, ora velados, ora patentes. E, no tocante a Auerbach, de modo específico, a situação não seria diferente. Conquanto se distinguisse em erudição e agudeza, suas tentativas de obter uma posição acadêmica foram constantemente bloqueadas por catedráticos praticantes de uma filologia cientificista que relacionava a ideia de autenticidade linguística à pureza étnica.

Após regressar da Primeira Guerra Mundial, Auerbach iniciou um segundo doutorado em Berlim - o primeiro havia sido na área do Direito, em 1913 -, sob a orientação do latinista Erhard Lommatzsch (1886-1975). Nesse período encontrou em Eduard Wechssler (1869-1949) um antagonista implacável, que via sua interpretação sobre Dante com profundo desagrado. As convicções intelectuais atravessadas por um ideal de distinção racial do povo alemão e a postura ambígua no concernente ao nacional-socialismo permitiriam inferir que sua relutância em relação a Auerbach poderia conter, além de questões conceituais, uma origem racista5 5 O ambiente acadêmico alemão dos anos 1920 foi analisado por Martin Vialon (2003), em cujo artigo esclarece a maneira como abordagens “biologistas” foram se tornando cada vez mais comuns nas áreas de linguagens, ciências naturais e humanidades. Falando da filologia, especificamente, Vialon citou exemplos de críticos que produziram um saber instrumentalizado para a política e para a valorização da raça alemã, dentre os quais, Eduard Wechssler. Em termos teóricos, esses trabalhos geralmente norteavam-se pelos princípios positivistas e cientificistas que na década seguinte ditariam a norma da produção acadêmica. Dois projetos distintos, todavia complementares, foram identificados: a filologia nacionalista da República de Weimar (1919-1933) e a incipiente ciência literária racialista. Esta, ao passo que se alimentava da primeira, paulatinamente a suplantava, e ambos os modelos se emaranhavam. A questão nacional alemã aflorou com ímpeto singular após a Primeira Guerra Mundial espraiando-se em toda a parte, inclusive no estudo da linguagem e da literatura, preocupado que estava em definir a essência, a alma dos povos [Volksseele]. Então, pouco a pouco, o caráter popular tornou-se biologicamente concebido, e à produção literária direcionaram-se os determinismos e preconceitos que no futuro caracterizariam a produção científica de língua alemã. Sendo assim, segundo Vialon, a receptividade a modelos de pensamento construídos sobre uma ideia de superioridade racial nas universidades e centros de pesquisa alemães era tão patente naquele momento, que “a Gleichschaltung [uniformização] das ciências, ordenada pelos nazistas depois de 1933, era de fato supérflua, pois estas já se haviam alinhado, mais ou menos, muito antes de 1933”. Desse modo, em contraposição à filologia dita tradicional - aí englobadas a ufanista de Weimar e a cientificista nazista - Vialon circunscreveu a atividade reflexiva de Auerbach e alguns de seus eminentes contemporâneos no decorrer da década de 1920 à aparição de uma “nova filologia” [Neuphilologie], de natureza humanista (VIALON, 2003, p. 191-246). . Depois que Lommatzsch foi transferido para a Universidade de Greifswald, Wechssler simplesmente vetou a participação de Auerbach nos seminários, de maneira que ele não pôde concluir o doutorado em Berlim6 6 Parte desse panorama está registrado em uma edição comemorativa que traduziu para o inglês as correspondências de Auerbach do período de 1933 a 1946. As notas dos tradutores trazem informações valiosas acerca de como o nacional-socialismo interferiu na obra e na biografia auerbachiana. Cf. Auerbach, Elsky, Vialon e Stein (2007, p. 742-762). Vale a pena consultar, também: Costa Lima (2017, p. 185-198). . Segundo o que nos indica Hans Ulrich Gumbrecht, o filólogo tampouco contou com a simpatia de seu orientador, o qual atribuiu à tese defendida em 1921, Zur Technik der Frührenaissancenovelle in Italien und Frankreich [A novela no início do Renascimento. Itália e França] ([1921] 2013), o grau mais baixo de aprovação (GUMBRECHT, 1994GUMBRECHT, Hans Ulrich. Pathos da travessia terrena - o cotidiano de Erich Auerbach. VColóquio Uerj. Rio de Janeiro: Imago, 1994., p. 99).

De modo que nitidamente o ambiente acadêmico no qual Auerbach se formou e passou seus primeiros anos como docente apresentou tensões de ordem política e intelectual que não devem ser entendidas como mero pano de fundo. Embora o filólogo muitas vezes fosse descrito como um homem de temperamento calmo, a quem o envolvimento em todo tipo de dissensão desagradava, aventurar-se como um dantólogo nos anos 1920, seguramente, era algo que demandava uma tomada de posição, e como Spitzer corretamente avaliou, “escondia uma polêmica”7 7 Referência ao parecer de Leo Spitzer à tese Dante als Dichter der irdischen Welt [Dante como poeta do mundo terreno] ([1929] 2001), registrado à mão nas margens da ficha de aprovação, sublinhando a natureza polêmica da abordagem auerbachiana de Dante: a “apresentação calma, equilibrada, elegante e quase nunca interrompida pela polêmica no livro de Auerbach sobre Dante talvez não deixe o leitor perceber que seu ‘tom’ está fortemente afinado com uma polêmica”. Trad. livre da autora: “Die ruhig abgewogene, vornehme, durch Polemik fast kaum unterbrochene Darstellung des Auerbach’schen Dante‐Buches läßt den Leser vielleicht nicht merken, daß der‚ Ton’ im höchsten Maße polemisch gestimmt ist”. Acervo pessoal de Erich Auerbach no Staatsarchiv Marburg: Leo Spitzers Handschriftliches Gutachten über Erich Auerbachs Habilschrift „Dante als Dichter der irdischen Welt“ (8 maio 1929). . Não somente porque adentrava uma recepção que, na Alemanha, remontava ao século XIV quando Dante ainda era um autor marginal - o que muda completamente após a canonização romântica e os esforços de Karl Witte e seu círculo no século XIX -, mas também porque, em uma camada mais profunda, em torno do poeta gravitava outra categoria de disputas ainda mais indesejáveis a Auerbach, cujos principais opositores eram o antissemitismo e a filologia tradicional. Logo, o entendimento dessas duas camadas como estruturas dotadas de certa porosidade compõe a ideia geral deste artigo.

A história da crítica alemã de Dante nas primeiras décadas do século XX caracterizou-se pelo trânsito de ideias advindas de circunstâncias políticas correntes, gerando em alguns casos uma leitura da D.C. completamente instrumentalizada. Um marco decisivo desse fenômeno teria sido o ano de 1921 e as celebrações pelos seiscentos anos da morte do poeta, evento que deixou explicita a existência de uma disputa por sua posse intelectual. Martin Elsky de forma muito apropriada observou que, na época do jubileu, a recepção de Dante manifestou certas idiossincrasias explicáveis pelo conceito de “passado contemporanizado”8 8 O conceito é de Jan Assmann (1995, p. 125-133) em seu estudo sobre a construção da “memória cultural”. . Em síntese, trata-se de um processo de reconstrução dos eventos remotos a partir de um quadro de referências contemporâneo, cujo intuito refletia o desejo de concreção da identidade de um determinado grupo social (ELSKY, 2017AUERBACH, Erich; ELSKY, Martin; VIALON, Martin; STEIN, Robert. Scholarship in Times of Extremes: Letters of Erich Auerbach (1933-1946), on the Fiftieth Anniversary of His Death.PMLA122, n. 3, p. 742-762, 2007., p. 125-133). No cenário da reconstrução alemã pós-Primeira Guerra Mundial, Dante seria uma peça-chave para a elaboração de modelos éticos e culturais advindos das aspirações de seus leitores para aquela sociedade no presente.

Em uma dessas interpretações, Ulrich Leo em “Unser Weg zu Dante” [“Nosso caminho até Dante”] atacou a estética iluminista francesa, que mimetizada na Alemanha, relegou Dante e sua obra, ora ao ridículo, ora ao esquecimento. Leo argumentava veementemente contra a razão enquanto fundamento absoluto para a crítica literária. A seu ver, norteada por parâmetros exclusivamente racionais, a opinião setecentista da Comédia teria incorrido em uma série de erros de julgamento, sendo o maior e mais grave deles a depreciação do conteúdo religioso do poema. Leo acrescentou, ainda, que tampouco o Romantismo alemão teria conduzido uma análise satisfatória, haja vista o individualismo egocentrado e distante de qualquer sentido ético que a ideia de subjetividade acarretara à revelia. Assim sendo, a D.C. teria um valor e uma utilidade ainda encobertos no presente, e que era fundamental descortinar: um conhecimento produzido a partir da experiência e da vida de seu compositor.

A Alemanha de seus dias estaria, em sua opinião, mais próxima de Dante do que jamais esteve. Superadas as tradições racionalista e individualista, um retorno necessário à vida ética tornava-se, enfim, um horizonte possível: “nossa ética e nosso senso de forma atuais caminham nos caminhos de Dante, e assim, estamos mais próximos dele em suas referências essenciais do que qualquer uma das épocas anteriores” (LEO, 1921, p. 342). Nessa pers­pectiva, o estudioso da Comédia deveria conduzir um método investigativo enriquecido pela experiência religiosa pessoal de Dante, de forma a evidenciar sua exemplaridade ética.

Outra análise significativa nos anos 1920 foi coordenada por Eduard Wechssler em três ocasiões diferentes. A primeira delas em um artigo do ano do jubileu, sob o título “Der Deutsche Dante” (1921DEMPF, Alois. Die Hauptform mittelalterlicher Weltanschauung: Eine geisteswissenschaftliche Studie über die Summa. München; Berlin: Walter de Gruyter, 1925.) [“O Dante alemão”]; a segunda, no prefácio à tradução de Karl Streckfuss da D.C. (1922), e a terceira, em Esprit und Geist (1927) [O espírito francês e o espírito alemão], livro mais importante de sua carreira. No primeiro texto, tal como o título sugere, Wechssler perseguiu os caminhos da recepção alemã de Dante, a fim de comprovar que o poeta não apenas fora lido no país, senão que completamente absorvido como parte de seu acervo cultural. Mais do que simples arte, a Comédia seria uma narrativa da redenção, na qual a singularidade da trajetória de um único homem adentrava o universal pelas portas da religião cristã.

Segundo esta abordagem, Dante teria composto um poema didático-alegórico que revelava o plano divino para toda a humanidade por meio da ideia de “ascensão”, mimetizada na rota do inferno até o paraíso. Nesse cenário, as personagens dantescas encarnariam sentidos alegóricos: Virgílio acomodava os princípios da razão e da filosofia, e Beatriz, as ideias do amor e da graça, por exemplo. A apreensão desses significados no presente forjaria uma unidade metafísica entre a experiência do poeta e a de seus leitores por intermédio de uma identificação ideal proporcionada pelo cristianismo, que outorgava a Dante uma pertença espiritual ao povo alemão.

No que se refere a Sprit und Geist, Wechssler construiu uma leitura da Comédia bastante elucidativa dos aspectos aqui examinados. Apoiado em uma análise fenomenológica, procurou estabelecer as características essenciais dos espíritos francês e alemão, a fim de demonstrar a superioridade dos últimos sobre os primeiros. Portanto, não estamos diante de uma investigação sobre a obra de Dante em si, mas de uma leitura lateral e instrumentalizada de seu principal poema, na qual os reinos do “Inferno”, do “Purgatório” e do “Paraíso” constituem uma referência simbólica. As imagens contidas nesse cenário foram mobilizadas por Wechssler a partir de uma analogia, cujo propósito, por meio de um processo de deslocamento do sentido, era iluminar o debate da formação cultural e literária na França e na Alemanha. Assim, Wechssler empregou a “metáfora da ascensão”, recurso hermenêutico recorrente no ano do jubileu, a fim de determinar o vínculo indestrutível de complementariedade e necessidade que havia entre as três partes da Comédia. Das ideias de escalada e superação que a jornada de Dante evocava, ele extraiu semelhanças aplicáveis ao desenvolvimento do sprit francês e do Geist alemão. Em suas palavras, os três reinos do além simbolizavam “o homem francês e o alemão: o primeiro como um ser natural com impulsos e paixões originais; o segundo como um intelectual aspirante, que nas peculiares vias de seu pensamento, do material vigente forma uma imagem do mundo atravessada pela essência dos povos”9 9 Trad. livre da autora: “der französische und der deutsche Mensch: erst als Naturwesen mit ursprünglichen Trieben und Leidenschaften, hernach als geistig Strebender, der auf eigentümlichen Bahnen seines Denkens gegebenen Stoff zu seinem volkheitlichen Weltbild formt”. (WECHSSLER, 1927WECHSSLER, Eduard. Esprit und Geist. Bielefeld, Leipzig: Velhagen & Klasing, 1927., p. VI).

O “homem francês” corresponderia ao estágio amargo e obscuro da viagem dantesca ao “Inferno”, uma experiência indesejável e, todavia, forçosa, para aqueles que aspiravam à glorificação. Já o espírito alemão se acharia estampado na imagem da escalada do herói na montanha do “Purgatório”, na qual a ideia de “purificação” aludia ao vocabulário cristão de remissão dos pecados e àquela “essência dos povos” [Volkheit] antes mencionada. Para o autor, a conquista da glória eterna por meio dos princípios de ascensão e sobrepujamento refletia o conteúdo mais essencial do poema, algo que, de modo mais imediato, exprimiria seus próprios anseios para sociedade alemã no presente. Em sua análise, as três partes da Comédia denotariam uma síntese vital entre os espíritos francês e alemão. O grande ensinamento de Dante diria respeito à aceitação das etapas amargas do aperfeiçoamento do espírito como parte de um caminho que deve ser superado. E assim como a literatura francesa mostrava-se como um degrau necessário para a ascensão do espírito alemão no contexto europeu, o nacional-socialismo, em caráter local, corresponderia a um momento indispensável e útil para a glória nacional.

Essa forma de apropriação dos escritos dantescos, aliada a uma atitude condescendente no tocante ao nazismo, justificaria sua convivência conflituosa com Auerbach em Berlim. Na década de 1920 o filólogo publicaria dois trabalhos que refutaram alguns princípios defendidos por Wechssler e por grandes autoridades na obra de Dante, tais como Karl ­Vossler e Benedetto Croce. O primeiro, o já mencionado artigo de 1921, intitulado “Sobre a celebração de Dante”; o segundo, a tese Dante como poeta do mundo terreno ([1929] 2022), livro responsável por alçá-lo à carreira universitária e por fixá-lo como especialista na obra de Dante. Contudo, mesmo dois romanistas tão opostos como Auerbach e Wechssler manifestariam a propensão comum à época de acercamento dos escritos dantescos em função das aspirações e desassossegos contemporâneos.

Em “Para a celebração de Dante” essa característica seria mais do que aparente. Nele, Auerbach articularia, pela primeira vez, a dupla projeção da D.C. como peça central da cultura literária do ocidente e como fonte de um saber dirigido para a Alemanha de seus dias. A leitura auerbachiana de Dante incorporaria às matérias estética, histórica e filosófica um modelo prático para a ação consciente do homem no mundo, demonstrando uma preocupação ética implícita na erudição filológica. A crítica contemporânea tem apontado essa dimensão desde pontos de vista distintos, que encontram fundamento nas noções de exílio, judaísmo e humanismo. No entanto, tais análises geralmente restringem-se à produção pós-1935, quando o alcance ético da escrita auerbachiana se manifestaria de modo mais claro em seus textos. De modo distinto, busco reforçar a existência dessa perspectiva nos escritos anteriores ao exílio e à Segunda Guerra Mundial, a começar pelo pequeno artigo do ano do jubileu.

Esquerda, direita, esquerda, direita... - Apologia das ações modestas.

Somente quando a comunidade cultural em que vivemos recuperar aquela forma fechada, da qual retire força e coragem suficientes para reconhecer o seu destino como juiz; somente então a comemoração de Dante será algo mais do que uma celebração de estudiosos e entusiastas.10 10 Trad. livre da autora: “Erst wenn die Kulturgemeinschaft, in der wir leben, wieder einmal geschlossene Form gewinnt, aus der sie Kraft und Tapferkeit genug schöpft, um ihr Geschick als ihren Richter zu erkennen, erst dann wird ein Dante-Gedenktag mehr sein als eine Feier von Gelehrten und Liebhabern”. (AUERBACH, [1921AUERBACH, Erich. Zur Technik der Frührenaissancenovelle in Italien und Frankreich. Heidelberg: C. Winter, 1921.] 2007AUERBACH, Erich [1921]. Zur Dante-Feier. In: BARCK, K.; TREML, M. (orgs). Erich Auerbach. Geschichte und Aktualität eines europäischen Philologen. Berlin: Kulturverlag Kadmos Berlin, 2007. p. 407-409., p. 409)

A tendência presentista que permeou as opiniões críticas na Alemanha durante o “ano de Dante” não passaria sem antes deixar efeitos significativos na reflexão auerbachiana. Em “Zur Dante-Feier”, essa perspectiva foi edificada sobre a ideia segundo a qual, na D.C., haveria certas potencialidades que não se deveriam reduzir à mera fixação de temas acadêmicos; seus versos esconderiam uma relevância atual e urgente para a sociedade contemporânea europeia - a “nossa comunidade cultural” - voltada para a recuperação daquela “forma fechada” de caráter e destino característica do realismo homérico. Nesse sentido, a Comédia equivaleria a um testamento cantado, cujos beneficiários se achariam ainda entre nós. Toda a posteridade herdou o seu valioso legado, o princípio da unidade entre o homem e o mundo, a partir do qual o indivíduo poderia reivindicar sua liberdade e autonomia.

O debate acerca da integralidade da Comédia expressou-se na recepção alemã pelo menos desde a polêmica entre Schelling e Bouterwek11 11 Um dos episódios mais interessantes da fase oitocentista da recepção alemã de Dante sem dúvida foi a polêmica entre Friedrich Bowterwek (1766-1828) e Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) acerca da unidade ou da dualidade da D.C. Bouterwek foi um dos primeiros dantólogos modernos da Alemanha. Estudioso diligente da filosofia kantiana e dono de uma larga erudição, lamentavelmente manteve-se isolado em relação ao debate moderno conduzido primordialmente por intelectuais ligados à escola de Jena. Sua surpreendente Geschichte der italienischen Poesie und der Beredsamkeit seit dem Ende des dreizehnten Jahrhunderts [História da poesia e eloquência italianas desde o final do século XIII] (1801-1802) ostenta 12 volumes, dos quais o primeiro comporta 80 páginas de discussão sobre Dante. Ao encetar uma análise particionada da Comédia, o trabalho de Bouterwek levantou uma polêmica respondida quase imediatamente por Schelling por meio de um artigo publicado no periódico que editou em parceria com Hegel - o Kritisches Journal der Philosophie. O artigo na verdade era uma adaptação de duas aulas que ele ofereceu nas Universidades de Jena (1802-1803) e Würzburg (1804-1805). A versão do Journal levou o nome de “Über Dante in philosophischer Beziehung” (“Dante sob o aspecto filosófico”) (1803) e foi acrescida de um apêndice - “Anhang II” - no qual o autor registrou comentários e críticas inflamadas ao trabalho de Bouterwek. Cf. Schelling (1859, p. 683-687) e Frigo e Vellucci (1994). . Nas leituras de Vossler (1907; 1910) e Croce (1921) a defesa dessa inteireza estranhamente consentiu algumas exclusões ou sublimações; já nos textos dos anos próximos ao jubileu, seu significado reportou-se ao vínculo entre o poeta-criador e o leitor contemporâneo, estabelecendo uma comunidade espiritual que transformaria Dante, cidadão da Toscana, em poeta alemão. No entendimento de ­Auerbach, todavia, o poeta teria realizado a ideia da unidade em todos os níveis: do ponto de vista narrativo, explorou a relação entre o ser particular e o mundo histórico-terreno; na apresentação da ideia geral, construiu um elo semântico entre este mundo e a transcendência, capaz de construir um enredo coerente; e na estrutura do texto, incorporou uma variedade de saberes que se entrecruzaram à imaginação do autor. De modo que, em sua percepção, a premissa da unidade da Comédia demonstraria uma amplitude singular transcorrida nos quadros da vida concreta. Síntese de filosofia e poesia, a obra teria concatenado as ordens física, política e teológica que moldaram o pensamento de Dante, desvendando os mistérios de um mundo não mais acessível no presente, regido pelos ideais de ordem e concordância. Nesse cenário imaginado, os rumos do acontecer terreno dependeriam exclusivamente da agência livre e individual dos homens, e do modo como eles se portavam perante as leis estabelecidas por Deus. Assim, a classificação das almas nos três reinos do além não decorreria de um capricho divino ou de uma decisão arbitrária, mas da forma como elas haviam conduzido suas vidas na Terra.

Consoante Auerbach o potencial de Dante ainda não havia sido plenamente explorado na Europa, pois embora se reconhecesse que o poeta “deve ser considerado como a raiz e o início da poesia moderna”, lamentavelmente, “sua obra tornou-se, em sua terra de origem, apenas parcialmente, e de modo algum no resto da Europa, parte integrante da consciência interior”12 12 Trad. livre da autora: “der als Wurzel und Beginn der neueren Poesie zu gelten hat”. E, em seguida: “sein Werk ist im eigenen Lande nur teilweise, im sonstigen Europa überhaupt nicht ein Bestandteil des inneren Bewusstseins geworden”. (AUERBACH, 2007AUERBACH, Erich [1921]. Zur Dante-Feier. In: BARCK, K.; TREML, M. (orgs). Erich Auerbach. Geschichte und Aktualität eines europäischen Philologen. Berlin: Kulturverlag Kadmos Berlin, 2007. p. 407-409., p. 407). O motivo de sua incompreensão pelo público atual Auerbach atribuiu à cisão entre caráter e destino que acabou inviabilizando a percepção - adquirida de Vico - da história como domínio específico do agir humano. E em decorrência disso, o homem fragmentado buscaria finalidade e justificação em sentidos alheios e transcendentais, como Deus, a razão, a virtude - e acrescento, a raça. O filólogo, então, dirigiu um alerta ao leitor. Suas palavras, dotadas de um tom acentuadamente patético, pareciam procurar um público com quem ele partilhava a pertença àquela “comunidade cultural” europeia. Nas palavras de Auerbach,

Enquanto buscarmos a justificação de nossa existência e de nossa ação em outro lugar que não em nosso destino, (ou, ao menos, em nossa esperança metafísica; enquanto nossos próprios parâmetros - sejam eles racionais e terrenos, como a virtude e a justiça, sejam os não terrenos e místicos, como a alienação de si e a renúncia à vida) não poderemos encontrar, na Comédia, algo além de alguma beleza poética e um amplo material para a atividade erudita. Somente quando a comunidade cultural em que vivemos recuperar aquela forma fechada, da qual retire força e coragem suficientes para reconhecer o seu destino como juiz; somente então a comemoração de Dante será algo mais do que uma celebração de estudiosos e entusiastas13 13 Trad. livre da autora: “Solange wir die Berechtigung unseres Daseins und Handelns anderswo suchen als in unserem Schicksal, zum mindesten in unserer metaphysischen Hoffnung, solange wir mit unseren eigenen Maßstäben messen - sei es den irdisch-rationalen wie Tugend und Gerechtigkeit, sei es den unirdisch-mystischen wie Selbstentäusserung und Abkehr vom Leben, solange werden wir in der Commedia nichts finden als einige poetische Schönheit und reichlichen Stoff für gelehrte Tätigkeit”. . (AUERBACH, 2007AUERBACH, Erich [1921]. Zur Dante-Feier. In: BARCK, K.; TREML, M. (orgs). Erich Auerbach. Geschichte und Aktualität eines europäischen Philologen. Berlin: Kulturverlag Kadmos Berlin, 2007. p. 407-409., p. 409)

O que poderia significar, no início dos anos 1920, esse convite à ação que o poema de Dante destinaria ao homem, uma ação cuja origem e o fim se justificariam exclusivamente na história? A resposta à essa questão deve considerar que o significado de história, em Auerbach, frequentemente apareceu associado não às realizações dos grandes estadistas, mas à sucessão dos detalhes miúdos e repetitivos que preenchiam a vida de qualquer indivíduo e movimentavam as forças históricas. Deve ter em conta, também, as transformações políticas e a penetração de ideologias raciais e nacionalistas que, conforme se discutiu anteriormente, caracterizaram aquele tempo. Assim, considerando ambos os panoramas, ao buscar uma justificativa histórica para a ação humana, Auerbach identificou um sentido ético para a prática intelectual direcionada à filologia. Nos versos da D.C. ele teria descoberto uma forma de intervenção no mundo que habitava a sutileza do dia a dia e as escolhas mais diminutas, das quais somente ele seria o responsável. O homem apartado de seu destino era mero joguete da Providência, da razão ou dos determinismos biológicos; mas quando reconectado a um fim historicamente dado, tornava-se efetivamente livre.

Muito já se disse acerca da maneira sóbria e serena com a qual Auerbach defendia suas posições. Sua formação preliminar em direito preparou-o para atacar as mais enfadonhas questões cotidianas com a mesma obstinação devotada aos elevados conteúdos do espírito, por meio da argumentação eloquente. O gosto pelos clássicos, o profundo conhecimento das línguas e literaturas românicas e a imersão na filosofia idealista eram parte das referências que nortearam seu pensamento. Era esse o campo da ação que ele dominava, em vez das agitações partidárias e dos piquetes políticos. Hans Ulrich Gumbrecht certa vez circunscreveu a calma do filólogo ante os eventos de 1933 ao conceito de “compostura”, isto é, o esforço pela manutenção da normalidade da vida em tempos extremos: “[a] compostura manteve Auerbach à distância do trágico da vida cotidiana, e forneceu a calma da privacidade. Mas, ao preço de uma estreiteza de visão política” (GUMBRECHT, 1994GUMBRECHT, Hans Ulrich. Pathos da travessia terrena - o cotidiano de Erich Auerbach. VColóquio Uerj. Rio de Janeiro: Imago, 1994., p. 102). No entanto, tenho razões suficientes para acreditar que a aparente morosidade em abandonar a Alemanha comandada por Hitler não refletia uma alma sossegada ou em negação com a realidade, senão que o intelectual em ação opondo a única resistência à qual estava habilitado - a resistência do pensamento. Dois exemplos podem corroborar essa afirmação.

Quando Auerbach foi forçado a se aposentar por determinação do decreto de 14 de outubro de 1935 - fato que impulsionou sua admissão na Universidade de Istambul - ele conduziu todo o processo de acordo com as exigências legais, informando sua partida às autoridades e solicitando autorização para assumir o novo cargo no exterior14 14 “Erich Auerbach an den Herrn Reichs-und Preussischen Minister für Wissenschaft, Erziehung und Volksbildung, Berlin”. 29 jul. 1936. Documento abrigado nos acervos de DLA-Marbach. . Apesar disso, viu-se forçado a enfrentar uma longa e infrutífera batalha judicial pelo pagamento dos benefícios da sua aposentadoria. Parte das petições foi por ele mesmo elaborada, por meio da enumeração coerente dos fatos, da anexação de provas, da citação de leis que o pudessem favorecer e, como último e apelativo recurso, da menção aos serviços prestados durante a guerra e a consequente injúria sofrida em batalha: “[n]ão me parece justo que um funcionário público aposentado, gravemente ferido na guerra, tenha que dar o último de seus bens herdados como garantia de um empréstimo, a fim de passar algumas semanas de férias na Alemanha enquanto sua pensão não é paga”15 15 Trad. livre da autora: “Es erscheint mir nicht billig, dass ein schwer kriegsverletzter Ruhestandsbeamter den letzten Rest des ererbten Besitzes beleihen müsste, um einige Ferienwochen in Deutschland zuzubringen, währ end sein Ruhegehalt nicht ausgezahlt wird”. “Erich Auerbach an den Herrn Reichs - und Preussischen Minister für Wissenschaft, Erziehung und Volksbildung”. Istambul, 14 set. 1937. In: Deutschland <Deutsches Reich> / Reichs - und Preussisches Ministerium für wissenschaft, Erziehung Volksbildung (1937-1941, Istambul). DLA-Marbach. .

Tudo em vão. Nem mesmo depois da promulgação da lei de compensação pelos agravos cometidos pelo Nacional-Socialismo Auerbach obteve decisão favorável. Devemos entender essa atitude para além das finalidades práticas e das urgências econômicas que o filólogo afirmava motivar seu pedido - embora essa seja também uma dimensão a se considerar. No documento citado, Auerbach expressou o desejo de passar parte de suas férias na Alemanha naquele ano, com o intuito de consultar as bibliotecas do país, dada a suposta precariedade dos acervos turcos.

Além disso, tenho o desejo urgente de passar parte de minhas férias na Alemanha, em parte para visitar meus parentes, mas acima de tudo, para consultar as bibliotecas científicas. Em Istambul não há nenhuma biblioteca útil para as humanidades europeias, e meu salário, cujo valor é conhecido lá, não é suficiente para custear viagens mais longas a uma capital europeia, onde há bibliotecas maiores16 16 Trad. livre da autora: “Ferner habe ich den dringenden Wunsch, einenTeil meiner Ferien in Deutschland zuzubringen, teils um meine Angehörigen zu besuchen, vor allem aber um die Deutschen wissenschaftlichen Bibliotheken zu benutzen. In Stanbul ist keine für europäische Geisteswissenschaften brauchbare Bibliothek, und mein Gehalt, dessen Höhe dort bekannt ist, reicht nicht zur Bestreitung längerer Reisen in eine europäische Hauptstadt, in der sich grössere Bibliotheken befinden”. Idem.

Kader Konuk em East West Mimesis: Auerbach in Turkey (2010) contrapôs a afirmação auerbachiana da escassez de exemplares úteis à investigação da literatura europeia no país. A autora atestou, pautada na ocidentalização das universidades turcas promovida pelo governo de Atatürk, que as bibliotecas de Istambul estavam perfeitamente equipadas com todo o material necessário à pesquisa. Portanto, assim como no último capítulo de Mimesis (­AUERBACH, [1946] 2015AUERBACH, Erich [1946]. Mimesis. Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur. Tübingen: Franke, 2015.), a indispensabilidade das bibliotecas europeias mencionada na petição era, provavelmente, um recurso argumentativo, um fingimento. Auerbach escrevia para a burocracia alemã empregando os mesmos recursos estilísticos com os quais se dirigia a seu leitor acadêmico. Pois quer como estudioso da literatura, quer como cidadão em exercício de seus direitos, seu procedimento era exatamente o mesmo: a confluência entre a erudição e o mundo através de ações corriqueiras. As ideologias políticas e os movimentos organizados de resistência, por sua vez, demandavam a execução de atos extremos conforme fins ideais, e isso ia de encontro ao aprendizado obtido de Dante.

O segundo exemplo da crença auerbachiana na efetividade da linguagem como instrumento de intervenção no âmbito da vida regular e política pode ser encontrado na carta que endereçou a Traugott Fuchs (AUERBACH et al., 2007AUERBACH, Erich [1921]. Zur Dante-Feier. In: BARCK, K.; TREML, M. (orgs). Erich Auerbach. Geschichte und Aktualität eines europäischen Philologen. Berlin: Kulturverlag Kadmos Berlin, 2007. p. 407-409., p. 752-755; VIALON, 2003VIALON, Martin. The Scars of Exile: Paralipomena concerning the Relationship between History, Literature and Politics - demonstrated in the Examples of Erich Auerbach, Traugott Fuchs and their circle in Istanbul. Yeditepe’de felsefe, n. 2, p. 191-246, 2003., p. 191-246). Fuchs foi assistente de Spitzer na Universidade de Colônia. Em 1933 organizou um abaixo-assinado contra a demissão de seu orientador, qualificado como não-ariano, mas o intento foi frustrado pela denúncia de um estudante fiel à ideologia nazista. Desde então, passou a ser duramente perseguido e todos os envolvidos no motim perderam seus postos acadêmicos. Assim como um par de outros ex-assistentes de Spitzer, Fuchs acompanhou-o no exílio em Istambul, onde viveu até o fim de sua vida. Poeta, pintor e amigo de Hermann Hesse (1877-1962), foi completamente assimilado tornando-se fluente no idioma local, um genuíno mediador entre sua cultura materna e a oriental. Na carta que recebeu de Auerbach, em outubro de 1938, testemunham-se duas personalidades contrastantes, as quais implicam formas de ação e de compreensão do mundo distintas. Nela, o filólogo expôs a sua posição frente ao presente, defendendo-se das críticas que o documento dá a entender que havia recebido de seu interlocutor. “Longe de mim - você recentemente pareceu ter entendido mal - acreditar que não sou reconhecido, ou que estou no lugar errado, incapaz de usar os poderes que tenho. Eu nunca fui desconhecido; onde eu tivesse algo a dizer ou fazer, eu diria ou faria”.17 17 “Erich Auerbach a Traugott Fuchs”. Istambul, 22 out.1938. Traduzido do inglês, na versão publicada por Martin Elsky, Martin Vialon e Robert Stein (2007).

As palavras de Auerbach sugerem que Fuchs cobrara dele um posicionamento mais claro a respeito dos acontecimentos correntes, além de uma maior proximidade nas relações afetivas com seus semelhantes:

Não há dúvida de que, diante de tudo isso, minha prontidão para o pessoal e o humano em meu semelhante é insuficiente. Eu sinto isso frequentemente. Às vezes fico impaciente se algo semelhante se esgueira em mim, e penso: olha, homem, como você chega a um acordo consigo mesmo: esquerda, direita, esquerda, direita, comer, dormir, trabalhar, claro, isso funciona, e então eu penso em Deus e no mundo eterno, e [digo a mim mesmo] não seja tão melodramático. Mas também sei que estou errado sobre isso, e que também não é da minha natureza real sentir isso.18 18 Idem [Meu adendo].

Embora reconhecesse a falta de entusiasmo para os vínculos pessoais, o filólogo não aceitaria ser subestimado como intelectual apático e deslocado. As formas vigentes de intervenção e resistência - como, por exemplo, a mobilização de Fuchs em Colônia - pareciam-lhe manobras impulsivas e fragmentadas. No entanto, ele conservava a esperança de que o bem personificado em cada um desses atos, um dia, pudesse “recuperar a unidade e a concretude para se tornar um sinal visível” da renovação vindoura. Era tudo uma questão de esperar e permanecer atento, até que “novas forças históricas” surgissem do caos e das pressões diárias: “[p]rocurá-las em mim mesmo, localizá-las no mundo absorve-me completamente.”19 19 Idem. , diria Auerbach. Sua biografia e sua profissão explicariam o porquê de engajamentos políticos e ideológicos, vez ou outra, se lhe apresentarem em forma de “distorções” e “falseamentos”, frente aos quais jamais se renderia. Contudo, isso não significa inação de sua parte, e muito menos um afastamento do mundo:

Eu não posso fazer isso. Estou profundamente convencido da ordem histórica, sou muito compelido a reconhecer o que está acontecendo para não me sentir coagido a esperar por uma correção dos próprios eventos - e, por outro lado, aprendi muito (da vida e dos livros) para permitir eu mesmo ser enganado por esperanças ilusórias. Ainda não acredito que minha capacidade de ação espontânea esteja prejudicada - ela ainda funciona em caso de emergência. Mas exercê-la erroneamente e impulsivamente não é de meu feitio20 20 Idem. .

Diante disso,

Consequência: sou um professor que não sabe concretamente o que deve ensinar. Não sei o que dizer àqueles que esperam algo concreto de mim (um conselho, um tópico, uma decisão básica) - na melhor das hipóteses posso dizer algo prático no momento, mas mesmo isso não é tão diferente de princípios básicos quando não há nenhum. Não considero a condição em que me encontro única; há muitos exatamente como eu, ou em situação similar21 21 Idem. .

Portanto, nessa autodefesa auerbachiana observa-se o esforço por legitimar um posicionamento no mundo que se reserve o lugar do concreto, da estabilidade e da moderação, algo que, a meu ver, não se confunde com “estreiteza de visão política”. Ao perceber o caráter obsoleto das “antigas forças de resistência” - aí incluída a Bildung - Auerbach não poderia estar mais atento ao que se passava ao seu redor. Nenhuma ideia ou instituição vigente seria capaz de oferecer o grau de certeza desejado, de modo que era fundamental aguardar pela “renovação das forças históricas”. Nesse meio tempo, somente a ação individual voltada para a vida cotidiana se mostraria viável. Enquanto filólogo e herdeiro do conteúdo espiritual do século XIX, ele encontrou na palavra eloquente a sua ideologia, e nas literaturas do mundo inteiro o seu partido, e seus escritos constituiriam uma série de ações modestas que se desdobrariam na história e para a história. E essa compreensão alargada da ação como escolha responsável e autônoma Auerbach obteve através de Dante, poeta da unidade entre o ser particular e o mundo.

Notas finais - Auerbach e o poeta da unidade

Acima de qualquer outra coisa, Dante foi o poeta da unidade. Isso está claro no pequeno artigo do jubileu, em sua tese de habilitação, em “Figura” e em todos os trabalhos nos quais Auerbach eventualmente tematizou a D.C. Com essa afirmação não pretendo reduzir a importância do “mundo terreno” em sua leitura; meu propósito, fundamentalmente, é acentuar a participação do homem enquanto personagem relevante na lógica dessa mundanidade. Porque, em última instância, entre o terreno e o humano haveria uma relação de correspondência interna: “[e]is o segredo do vínculo interior de Dante: em sua concepção da particularidade humana como algo atrelado ao destino”22 22 Trad. livre da autora: “Hier ist das Geheimnis von Dantes innerer Bindung: in seiner Konzeption vom menschlichen Besonderssein in der Verknüpfung mit dem Schicksal”. (AUERBACH, [1921AUERBACH, Erich. Zur Technik der Frührenaissancenovelle in Italien und Frankreich. Heidelberg: C. Winter, 1921.] 2007AUERBACH, Erich [1921]. Zur Dante-Feier. In: BARCK, K.; TREML, M. (orgs). Erich Auerbach. Geschichte und Aktualität eines europäischen Philologen. Berlin: Kulturverlag Kadmos Berlin, 2007. p. 407-409., p. 408), frisou o filólogo. Em Dante als Dichter der irdischen Welt [Dante como poeta do mundo terreno] (AUERBACH, [1929Leo Spitzers Handschriftliches Gutachten über Erich Auerbachs Habilschrift „Dante als Dichter der irdischen Welt“. 8 maio 1929. Staatsarchiv Marburg.] 2001), a construção teórica dessa conexão recorreu à filosofia de São Tomás de Aquino, em particular, ao conceito de habitus. Enquanto disposições que orientam os atos individuais para uma ação em conformidade com o sujeito que a pratica, Auerbach situou, nos hábitos, a ponte entre o homem - complexo indivisível entre corpo e alma - e o mundo. Desse modo, o princípio homérico para a epopeia grega sintetizado pela máxima de Heráclito - “caráter é destino” - reaparecia nas personagens de Dante sob o filtro do tomismo.

Nessa perspectiva, a D.C. remeteria a uma época cuja visão de mundo conformava-se pela necessidade de totalidade e “concordância” [Konkordanz] (DEMPF, 1925DEMPF, Alois. Die Hauptform mittelalterlicher Weltanschauung: Eine geisteswissenschaftliche Studie über die Summa. München; Berlin: Walter de Gruyter, 1925.) e, portanto, o pensamento filosófico, a experiência pessoal, a crença religiosa e a fantasia sem precedentes de seu autor teriam colaborado com igual intensidade para a sua criação. Na Idade Média, declarou Auerbach, a arte e a reflexão filosófica, não eram domínios que pudessem cobrar autonomia em relação à fé; nos dias de Dante tudo confluía para um mesmo ponto, formando, assim, uma estrutura coerente e bem ordenada. Conforme S. Tomás, os hábitos moldavam as ações humanas, e mediante a lei da concordância, os efeitos desse agir - isto é, o destino - não poderiam apresentar outro enredo que não aquela qualidade essencial inscrita no caráter do sujeito. As penas do “Inferno” correspondiam às faltas outrora praticadas, assim como a expiação no “Purgatório” trazia a esperança de purificação dos pecados, e as bem-aventuranças do “Paraíso” recompensavam aqueles que levaram a vida em retidão. Assim sendo, em primeiro plano, o cenário do além não seria a transcendência, o eterno, o intangível, mas a história terrena, em sua unidade substancial com o ser particular flagrado no curso da vida ordinária.

Considerando aquelas camadas de embates com as quais Auerbach se deparou ao longo da década de 1920 na Alemanha, entendo que a obra poética de Dante claramente lhe proporcionou uma dupla aplicabilidade: a primeira, sobre o sentido teórico de sua história literária, visto que por meio de Dante ele pôde pensar uma unidade cultural europeia da Antiguidade grega à contemporaneidade. A segunda, sobre o sentido prático de sua agência no mundo, pois a D.C. foi para ele algo como um pergaminho antigo, com uma mensagem escrita há séculos e cujo sentido havia se perdido no presente. Mas, para ele, seu significado estaria bastante claro.

Dante criara um cenário no qual o homem e o mundo histórico-terreno, o indivíduo e seu destino, eram um só. Não a partir de modelos ideais, senão que nas atitudes cotidianas, o desfecho de um homem se desenharia. A mistura de estilos dar-se-ia no desenrolar da vida mesma, onde tudo ganhava profundidade e seriedade, e o menor e mais insignificante ato seria capaz de determinar os rumos do acontecer humano. Daí o caráter trágico da história, e a responsabilidade do filólogo. A crise dos anos 1920-1930 era uma crise da cultura, de modo que a forma mais eficaz de a enfrentar seria a partir da reconstrução erudita das manifestações dessa mesma cultura. Trata-se de uma revolução restauradora. Talvez por isso a obra auerbachiana nos pareça ainda tão fascinante, porque ela tem uma urgência de presente, mas permanece saudosa do passado. E porque nessa relação, por vezes conflituosa e problemática, literatura e história têm uma função essencial, viva, e ao mesmo tempo comum. Visto a partir de Dante, o projeto literário de Auerbach é um pacto com as ações modestas, que a despeito de sua aparência simplória, corajosamente ocupam-se de propagar os mais elevados princípios do espírito inscritos no caráter de seu mais apropriado portador - o filólogo europeu - e nesse sentido, de modo mais amplo, também a filologia encontra seu destino.

Fontes documentais

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  • Erich Auerbach an den Herrn Reichs - und Preussischen Minister für Wissenschaft, Erziehung und Volksbildung. Istambul14 set. 1937. In: Deutschland <Deutsches Reich> / Reichs - und Preussisches Ministerium für Wissenschaft, Erziehung Volksbildung (1937-1941, Istambul). DLA-Marbach.

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  • WECHSSLER, Eduard. Esprit und Geist Bielefeld, Leipzig: Velhagen & Klasing, 1927.
  • 1
    Embora se refira ao ano do Jubileu, o anuário só foi publicado três anos depois. Cf. Daffner (1924).
  • 2
    Referência ao fato de Dante ter tido um de seus livros, o tratado político De Monarchia ([1312-13] 1996), arrolado na lista de títulos proibidos pelas autoridades católicas entre 1554 e 1881.
  • 3
    Em 1921, o papa Bento XV determinou a retirada da Monarquia do index de livros proibidos pela igreja, e conclamou os intelectuais católicos a comprovar a relação de Dante com a sua fé, em detrimento da apropriação protestante. Ver: Encíclica In praeclara, datada de 30 abr. 1921, motivada pelo 6º centenário da morte de Dante. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xv/en/encyclicals/documents/hf_ben-xv_enc_30041921_in-praeclara-summorum.html. Acesso em: 21 nov. 2022.
  • 4
    Além do artigo de Elsky, Mirjan Mansen (2003, p. 24-35) também oferece uma dimensão da produção alemã sobre Dante no ano do jubileu e igualmente atesta que a maior parte do que se publicou correu independentemente dos institutos de romanística e das universidades.
  • 5
    O ambiente acadêmico alemão dos anos 1920 foi analisado por Martin Vialon (2003), em cujo artigo esclarece a maneira como abordagens “biologistas” foram se tornando cada vez mais comuns nas áreas de linguagens, ciências naturais e humanidades. Falando da filologia, especificamente, Vialon citou exemplos de críticos que produziram um saber instrumentalizado para a política e para a valorização da raça alemã, dentre os quais, Eduard Wechssler. Em termos teóricos, esses trabalhos geralmente norteavam-se pelos princípios positivistas e cientificistas que na década seguinte ditariam a norma da produção acadêmica. Dois projetos distintos, todavia complementares, foram identificados: a filologia nacionalista da República de Weimar (1919-1933) e a incipiente ciência literária racialista. Esta, ao passo que se alimentava da primeira, paulatinamente a suplantava, e ambos os modelos se emaranhavam. A questão nacional alemã aflorou com ímpeto singular após a Primeira Guerra Mundial espraiando-se em toda a parte, inclusive no estudo da linguagem e da literatura, preocupado que estava em definir a essência, a alma dos povos [Volksseele]. Então, pouco a pouco, o caráter popular tornou-se biologicamente concebido, e à produção literária direcionaram-se os determinismos e preconceitos que no futuro caracterizariam a produção científica de língua alemã. Sendo assim, segundo Vialon, a receptividade a modelos de pensamento construídos sobre uma ideia de superioridade racial nas universidades e centros de pesquisa alemães era tão patente naquele momento, que “a Gleichschaltung [uniformização] das ciências, ordenada pelos nazistas depois de 1933, era de fato supérflua, pois estas já se haviam alinhado, mais ou menos, muito antes de 1933”. Desse modo, em contraposição à filologia dita tradicional - aí englobadas a ufanista de Weimar e a cientificista nazista - Vialon circunscreveu a atividade reflexiva de Auerbach e alguns de seus eminentes contemporâneos no decorrer da década de 1920 à aparição de uma “nova filologia” [Neuphilologie], de natureza humanista (VIALON, 2003, p. 191-246).
  • 6
    Parte desse panorama está registrado em uma edição comemorativa que traduziu para o inglês as correspondências de Auerbach do período de 1933 a 1946. As notas dos tradutores trazem informações valiosas acerca de como o nacional-socialismo interferiu na obra e na biografia auerbachiana. Cf. Auerbach, Elsky, Vialon e Stein (2007, p. 742-762). Vale a pena consultar, também: Costa Lima (2017, p. 185-198).
  • 7
    Referência ao parecer de Leo Spitzer à tese Dante als Dichter der irdischen Welt [Dante como poeta do mundo terreno] ([1929] 2001), registrado à mão nas margens da ficha de aprovação, sublinhando a natureza polêmica da abordagem auerbachiana de Dante: a “apresentação calma, equilibrada, elegante e quase nunca interrompida pela polêmica no livro de Auerbach sobre Dante talvez não deixe o leitor perceber que seu ‘tom’ está fortemente afinado com uma polêmica”. Trad. livre da autora: “Die ruhig abgewogene, vornehme, durch Polemik fast kaum unterbrochene Darstellung des Auerbach’schen Dante‐Buches läßt den Leser vielleicht nicht merken, daß der‚ Ton’ im höchsten Maße polemisch gestimmt ist”. Acervo pessoal de Erich Auerbach no Staatsarchiv Marburg: Leo Spitzers Handschriftliches Gutachten über Erich Auerbachs Habilschrift „Dante als Dichter der irdischen Welt“ (8 maio 1929).
  • 8
    O conceito é de Jan Assmann (1995, p. 125-133) em seu estudo sobre a construção da “memória cultural”.
  • 9
    Trad. livre da autora: “der französische und der deutsche Mensch: erst als Naturwesen mit ursprünglichen Trieben und Leidenschaften, hernach als geistig Strebender, der auf eigentümlichen Bahnen seines Denkens gegebenen Stoff zu seinem volkheitlichen Weltbild formt”.
  • 10
    Trad. livre da autora: “Erst wenn die Kulturgemeinschaft, in der wir leben, wieder einmal geschlossene Form gewinnt, aus der sie Kraft und Tapferkeit genug schöpft, um ihr Geschick als ihren Richter zu erkennen, erst dann wird ein Dante-Gedenktag mehr sein als eine Feier von Gelehrten und Liebhabern”.
  • 11
    Um dos episódios mais interessantes da fase oitocentista da recepção alemã de Dante sem dúvida foi a polêmica entre Friedrich Bowterwek (1766-1828) e Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) acerca da unidade ou da dualidade da D.C. Bouterwek foi um dos primeiros dantólogos modernos da Alemanha. Estudioso diligente da filosofia kantiana e dono de uma larga erudição, lamentavelmente manteve-se isolado em relação ao debate moderno conduzido primordialmente por intelectuais ligados à escola de Jena. Sua surpreendente Geschichte der italienischen Poesie und der Beredsamkeit seit dem Ende des dreizehnten Jahrhunderts [História da poesia e eloquência italianas desde o final do século XIII] (1801-1802) ostenta 12 volumes, dos quais o primeiro comporta 80 páginas de discussão sobre Dante. Ao encetar uma análise particionada da Comédia, o trabalho de Bouterwek levantou uma polêmica respondida quase imediatamente por Schelling por meio de um artigo publicado no periódico que editou em parceria com Hegel - o Kritisches Journal der Philosophie. O artigo na verdade era uma adaptação de duas aulas que ele ofereceu nas Universidades de Jena (1802-1803) e Würzburg (1804-1805). A versão do Journal levou o nome de “Über Dante in philosophischer Beziehung” (“Dante sob o aspecto filosófico”) (1803) e foi acrescida de um apêndice - “Anhang II” - no qual o autor registrou comentários e críticas inflamadas ao trabalho de Bouterwek. Cf. Schelling (1859, p. 683-687) e Frigo e Vellucci (1994).
  • 12
    Trad. livre da autora: “der als Wurzel und Beginn der neueren Poesie zu gelten hat”. E, em seguida: “sein Werk ist im eigenen Lande nur teilweise, im sonstigen Europa überhaupt nicht ein Bestandteil des inneren Bewusstseins geworden”.
  • 13
    Trad. livre da autora: “Solange wir die Berechtigung unseres Daseins und Handelns anderswo suchen als in unserem Schicksal, zum mindesten in unserer metaphysischen Hoffnung, solange wir mit unseren eigenen Maßstäben messen - sei es den irdisch-rationalen wie Tugend und Gerechtigkeit, sei es den unirdisch-mystischen wie Selbstentäusserung und Abkehr vom Leben, solange werden wir in der Commedia nichts finden als einige poetische Schönheit und reichlichen Stoff für gelehrte Tätigkeit”.
  • 14
    “Erich Auerbach an den Herrn Reichs-und Preussischen Minister für Wissenschaft, Erziehung und Volksbildung, Berlin”. 29 jul. 1936. Documento abrigado nos acervos de DLA-Marbach.
  • 15
    Trad. livre da autora: “Es erscheint mir nicht billig, dass ein schwer kriegsverletzter Ruhestandsbeamter den letzten Rest des ererbten Besitzes beleihen müsste, um einige Ferienwochen in Deutschland zuzubringen, währ end sein Ruhegehalt nicht ausgezahlt wird”. “Erich Auerbach an den Herrn Reichs - und Preussischen Minister für Wissenschaft, Erziehung und Volksbildung”. Istambul, 14 set. 1937. In: Deutschland <Deutsches Reich> / Reichs - und Preussisches Ministerium für wissenschaft, Erziehung Volksbildung (1937-1941, Istambul). DLA-Marbach.
  • 16
    Trad. livre da autora: “Ferner habe ich den dringenden Wunsch, einenTeil meiner Ferien in Deutschland zuzubringen, teils um meine Angehörigen zu besuchen, vor allem aber um die Deutschen wissenschaftlichen Bibliotheken zu benutzen. In Stanbul ist keine für europäische Geisteswissenschaften brauchbare Bibliothek, und mein Gehalt, dessen Höhe dort bekannt ist, reicht nicht zur Bestreitung längerer Reisen in eine europäische Hauptstadt, in der sich grössere Bibliotheken befinden”. Idem.
  • 17
    “Erich Auerbach a Traugott Fuchs”. Istambul, 22 out.1938. Traduzido do inglês, na versão publicada por Martin Elsky, Martin Vialon e Robert Stein (2007).
  • 18
    Idem [Meu adendo].
  • 19
    Idem.
  • 20
    Idem.
  • 21
    Idem.
  • 22
    Trad. livre da autora: “Hier ist das Geheimnis von Dantes innerer Bindung: in seiner Konzeption vom menschlichen Besonderssein in der Verknüpfung mit dem Schicksal”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2022
  • Aceito
    16 Nov 2022
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