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Felicíssimo Manoel de Azevedo e o pensamento protopenitenciário do Partido Republicano Rio-Grandense: política, imprensa e narrativa humanitária no século XIX

Felicíssimo Manoel de Azevedo and the Proto-Penitentiary Thinking of the Rio-Grandense Republican Party: Politics, Press, and Humanitarian Narrative in the 19th Century

Felicíssimo Manoel de Azevedo y el pensamiento protopenitenciario del Partido Republicano Rio-Grandense: política, prensa y narrativa humanitaria en el siglo XIX

RESUMO

O presente artigo analisa as ideias e concepções expressadas, defendidas e difundidas pelo Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) acerca das instituições e sistemas penais antes da queda do regime monárquico e da emergência da República. Para isso, utilizou-se de fontes variadas, como: relatórios de comissões municipais e de higiene, avisos, notícias e informações jornalísticas diversas, além de quatro crônicas assinadas em maio de 1886 por Felicíssimo Manoel de Azevedo, um importante correligionário do PRR, publicadas em A Federação, órgão oficial da legenda, fundado em 1º de janeiro de 1884. Procura-se demonstrar que a instrumentalização política da “questão penitenciária” pelo PRR acabou gerando um pensamento protopenitenciário em boa medida beneficiado pelo momento de recrudescimento de um discurso civilizatório julgado fundamental para a manutenção teórica da chamada “humanização do castigo penal”.

Palavras-chave
Felicíssimo Manoel de Azevedo; Partido Republicano Rio-Grandense; história das prisões; A Federação; narrativa humanitária

ABSTRACT

This article analyzes the ideas and conceptions expressed, defended and disseminated by the Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) about penal institutions and systems before the fall of the monarchy and the emergence of the republic. It is based on a variety of sources, such as reports from municipal and hygiene commissions, various journalistic texts, as well as four chronicles penned by Felicíssimo Manoel de Azevedo, an important PRR member, that were published in A Federação, the party’s official organ. This article seeks to demonstrate that the PRR’s political instrumentalization of the “penitentiary issue” ended up generating a “proto-penitentiary thought,” aided by the moment of resurgence of a civilizing discourse judged fundamental for the theoretical maintenance of the so-called “humanization of penal punishment.”

Keywords
Felicíssimo Manoel de Azevedo; Partido Republicano Rio-Grandense; History of Prisons; A Federação; Humanitarian Narrative

RESUMEN

El presente artículo analiza las ideas y concepciones expresadas, definidas y difundidas por el Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) sobre las instituciones y sistemas penales antes de la caída del régimen monárquico y de la emergencia de la república. Para eso, se utilizaron fuentes variadas, como: informes de las comisiones municipales y de higiene, avisos y noticias e informaciones periodísticas diferentes, además de cuatro crónicas firmadas en mayo de 1886 por Felicíssimo Manoel de Azevedo, un importante correligionario del PRR, publicadas en la Federação, órgano oficial de la leyenda, fundado el primero de enero de 1884. Se busca demostrar que la instrumentalización política de la “cuestión penitenciaria” por el PRR terminó generando un pensamiento protopenitenciario en buena medida beneficiado por el momento de recrudecimiento del discurso civilizador juzgado fundamental para el mantenimiento teórico de la llamada “humanización del castigo penal”.

Palabras Clave
Felicíssimo Manoel de Azevedo; Partido Republicano Rio-Grandense; historia de las prisiones; A Federação; narrativa humanitaria

Introdução

A poucos anos de assumir o governo do Rio Grande do Sul e de ganhar a contenta federalista contra os maragatos de Silveira Martins, o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), capitaneado por Júlio Prates de Castilhos, colocou em marcha uma significativa reforma do sistema penitenciário gaúcho. Em 1895 se encaminharam uma série de medidas, dentre as quais a que resultou na promulgação de um novo regulamento e a rebatização da Cadeia Civil de Porto Alegre que, a partir de então, passou a se chamar Casa de Correção. Preocupou-se, igualmente, em estipular um regime baseado no trabalho penal, que, na virada do XIX para o XX, já auferia importantes lucros aos cofres do estado. Tudo isso, além de gerar capital político, acabou transformando a Correção num modelo para todo o Brasil.

Não restam dúvidas de que o PRR se esforçou em agir de maneira coerente ao que defendia e denunciava quando estava na oposição. Pois, como se disse, apesar de não terem construído nenhuma nova prisão, recauchutaram a antiga e a converteram na mais importante instituição penal do país, até pelo menos a inauguração da Penitenciária de São Paulo, em 1920. Nesse sentido, tampouco seria exagero dizer que a administração castilhista destinou, inquestionavelmente, maior atenção às questões penitenciárias do que todos os governantes imperiais que passaram pela chefia do executivo provincial sul-rio-grandense entre 1855 (data da ocupação da primeira parte da prisão capitalina) e o golpe de 15 de novembro de 1889.

Todas essas ações, por outra parte, nos levam a voltar a atenção para o que ainda se sabe muito pouco, como, por exemplo, o que pensavam esses republicanos acerca das instituições e sistemas penitenciários antes da derrocada da monarquia. Até porque uma coisa era criticar e denunciar as mazelas do cárcere, outra bem diferente era conceber um projeto ou refletir sobre o melhor modo de se executar o cumprimento das penas de privação de liberdade. Este texto, portanto, aspira pelo aprofundamento no que chamamos de pensamento protopenitenciário do PRR, a partir da análise de quatro crônicas publicadas (em maio de 1886) por Felicíssimo Manoel de Azevedo, o Fiscal honorário, no A Federação, órgão de imprensa da referida legenda, da qual também era um reconhecido correligionário.

Felicíssimo Manoel de Azevedo: o Fiscal honorário

Um levantamento minucioso realizado no jornal A Federação, desde a sua fundação em 1884 até novembro de 1889, resultou na localização de inúmeras matérias relativas às questões penitenciárias da província de São Pedro, mas nenhuma delas constitui claro indício da existência de um projeto penal-carcerário, em toda regra, formulado pelos republicanos do PRR. Mas as referidas quatro crônicas assinadas por Felicíssimo Manoel de Azevedo, encontradas nesse mesmo pente fino, ainda que não configurem um autêntico projeto penitenciário republicano, revelam concepções penal-carcerárias que nos autorizam falar de um pensamento protopenitenciário do PRR. Isso, portanto, justifica o roteiro deste artigo, que inicia com a tentativa de responder quem foi esse correligionário e porque assinava suas crônicas com o pseudônimo Fiscal honorário.

Felicíssimo nasceu em Porto Alegre, em 1823, onde também faleceria em 2 de julho de 1905. Parte de sua vida se passou entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre, até a radicação definitiva na província mais austral do Brasil. Foi ourives, participou da guerra contra Rosas e exerceu a função de comerciante na cidade de Jaguarão. Os insucessos econômicos o levaram de volta à capital do Império, onde acabou se formando dentista. Ao regressar ao Rio Grande do Sul, além de exercer a profissão1 1 Em Porto Alegre, Felicíssimo anunciava seu gabinete dentário, em princípios de 1884, situado à rua da Igreja, nº 256, “em frente ao Lyceu”, aberto das 9 horas da manhã às 15 horas da tarde (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 1º mar. 1884, p. 3). , lançou-se às atividades político-jornalísticas, integrando o PRR e colaborando no A Federação, órgão oficial da legenda. Quando da fundação do partido, em 23 de fevereiro de 1882, o futuro Fiscal já contava com 59 anos, sendo o “mais velho republicano do grupo” (SACCOL, 2013SACCOL, Tassiana Maria Parcianello. Um propagandista da República: política, letras e família na trajetória de Joaquim Francisco de Assis Brasil (década de 1880). Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2013., p. 141).

Desde a primeira hora, Felicíssimo se empenhou com o partido e suas atividades político-periodísticas, tornando-se, inclusive, responsável por uma coluna intitulada Cousas Municipaes, de onde, como se fosse uma tribuna, se dirigia aos “cidadãos vereadores” criticando aspectos da administração municipal e provincial sobre assuntos locais. Segundo Pesavento (2009PESAVENTO, Sandra Jatahy. Visões do cárcere. Porto Alegre: Zouk, 2009., p. 35), ele “exercia a função de vigilante atento da vida urbana”, daí o uso sugestivo do pseudônimo Fiscal honorário.2 2 Estamos seguros de que o sentido do termo honorário utilizado por Felicíssimo é o mesmo recolhido pelo dicionário de Luís Maria da Silva Pinto (1832, p. 579): “Em que não se recebe emolumento pecuniario, mas só as honras”. Apenas para se fazer uma ideia do seu ritmo de escrita, ainda no primeiro ano de circulação do A Federação, iniciado em 1º de janeiro de 1884, ele já havia produzido suficientes crônicas para reuni-las em livro, o que o fez dando-lhe o mesmo título da sua aguerrida coluna-tribuna (AZEVEDO, 1884AZEVEDO, Felicissimo. Cousas municipaes. Porto Alegre: Typ. Marinoni, 1884. Disponível em: https://www.ihgrgs.org.br/biblioteca/Felicissimo%20Azevedo%20-%20Cousas%20Municipaes.pdf. Acesso em: 3 jun. 2022.
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).

Estratégia política, sem dúvida, dele e do PRR. Naquele ano se havia candidatado a vereador, ficando em terceiro lugar e perdendo de lavada para os dois primeiros: Joaquim Pedro Salgado, pelo partido liberal, que totalizou 645 votos, e José Ferreira Porto, pelo conservador, com 311. Nosso Fiscal logrou amealhar apenas 66 votos3 3 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 25 set. 1884, p. 2. , mas apesar da derrota, é possível supor que devido à militância política e o envolvimento nas coisas municipais, suas crônicas fossem lidas e comentadas. Além do mais, não apareciam publicadas em qualquer folha.

O A Federação surgiu como a principal tribuna periódica republicana da todavia província de São Pedro do Rio Grande do Sul, com “a missão de divulgar os ideários republicanos”, “combater o regime monárquico” e advogar pelo “término da escravidão” (LEITE, 2016LEITE, Carlos Roberto Saraiva da Costa. “A Federação”, um jornal que fez história. Observatório da Imprensa, ed. 909, 27 jun. 2016. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/memoria/federacao-um-jornal-que-fez-historia/. Acesso em: 5 jan. 2022.
http://www.observatoriodaimprensa.com.br...
). Entrou em circulação, como já se disse, no dia 1º de janeiro de 1884, e tornou-se rapidamente um dos mais importantes jornais em solo gaúcho. Segundo Cezar (1884CEZAR, J. J. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Gundlach & Cia., 1884. p. 188-200., p. 200), a meados de 1884, a província contava com aproximadamente 58 periódicos, sendo o órgão do PRR o de maior porte, imprimindo “cerca” de dois mil exemplares. À exceção dele, deA Reforma, e “talvez” do Jornal do Commercio da capital, e do Correio Mercantil de Pelotas, nenhuma outra folha atingia os mil exemplares diários.

Até onde se conseguiu averiguar, Felicíssimo não voltou a reunir seus escritos em livro, mas isso não significa que sua participação na referida tribuna política tenha diminuído. Na verdade, ele se manteve bastante ativo nos anos consecutivos, o que, juntamente com suas boas relações, deve ter sido fundamental para se tornar o primeiro vereador porto-alegrense ligado ao PRR, empossado na Câmara Municipal em janeiro de 1887, todavia em pleno regime monárquico (FRANCO, 2018FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guía histórico. 5 ed. Porto Alegre: Edigal, 2018., p. 50).4 4 É possível rastrear sua coluna inclusive após a chegada da República, porém, nessas matérias, o encontramos arremetendo contra outros inimigos. Em 1890, Felicíssimo assumiu a presidência da junta municipal, desde 22 de janeiro daquele ano, até 21 de novembro de 1891 (BAKOS, 2007, p. 182). No “registro mortuorio” publicado no A Federação de 3 de julho de 1905, o ancião correligionário (branco, viúvo, falecido aos 82 anos) fora assim apresentado: “Collaborou dedicadamente na formação do partido republicano, doutrinando e agindo na dilatada esphera de suas inumeras e selectas relações, na dedicação á causa que desde moço esposara e ao progresso de sua terra”. Falecido às 23h30 do dia 2 de julho, após uma “longa enfermidade”, o enterraram na tarde do dia seguinte, circundado por “grande concurrencia”, havendo também comparecido o presidente do Estado, Antônio Augusto Borges de Medeiros e o diretor da redação do A Federação, Olavo Godoy (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 3 jul. 1905, p. 2).

Acreditamos que as informações até aqui arroladas são suficientes para aferir o calibre do correligionário republicano em questão, já que será ele e não outro que acabará expressando não somente opiniões, mas muito mais do que isso, ideias e concepções acerca de modelos penitenciários em sua coluna que, apesar do título, acabou indo muito além das “cousas” estritamente “municipaes”.

Embora se tenha gastado muita tinta, desde a fundação do A Federação, contra os descalabros da gestão penal-carcerária provincial, utilizada como arma política contra o Império (CESAR, 2023CESAR, Tiago da Silva. A “questão penitenciária” no Rio Grande do Sul como arma política contra o Império (1884-1889). Revista de História, São Paulo, n. 182, p. 1-29, 2023.), serão as crônicas de Felicíssimo, de maio de 1886, que abrirão caminho, em meio à prática da denúncia, para reflexões e elucubrações sobre o que se considerava um bom modelo penitenciário pelos republicanos. Mas essa constatação, não obstante, nos coloca diante da seguinte interrogante: o que possibilitou/levou o Fiscal honorário a ultrapassar as fronteiras municipais, lançando-se em assuntos da alçada do governo provincial?

Para responder à primeira questão (o que possibilitou), é preciso remontar-nos à visita realizada a Cadeia Civil de Porto Alegre, em 27 de maio de 1885, por uma comitiva nomeada pela Câmara Municipal, a fim de inspecionar o referido estabelecimento, em cumprimento do disposto no art. 56 da lei de 1º de outubro de 1828. Esta comissão estava formada por “pessoas de cultura, ligadas às letras, à política, à medicina e ao jornalismo”, como expressara Pesavento (2009PESAVENTO, Sandra Jatahy. Visões do cárcere. Porto Alegre: Zouk, 2009., p. 36), “representativos de uma elite cultural da cidade (...) formadores da opinião pública”, a saber: Júlio de Castilhos, Achylles Porto Alegre, João Câncio Gomes, Ramiro Barcellos e, lá estava ele, Felicíssimo Manoel de Azevedo, nosso Fiscal honorário.5 5 Essa comissão assinou um extenso e detalhado relatório em 14 de junho, publicado pelo A Federação na íntegra no número do dia 30 do mesmo mês e ano.

Ou seja, a porta de entrada do Fiscal e do PRR em assuntos penitenciários foi justamente o disposto no artigo 56 da referida lei de 1º de outubro de 1828 (Regimento das Câmaras Municipais), que colocava como prerrogativa e obrigação das municipalidades a organização de comissões com o fito de vistoriarem e informarem acerca do estado das prisões e estabelecimentos de caridade.6 6 “Em cada reunião, nomearão uma commissão de cidadãos probos, de cinco pelo menos, a quem encarregarão a visita das prisões civis, militares, e ecclesiasticas, dos carceres dos conventos dos regulares, e de todos os estabelecimentos publicos de caridade para informarem do seu estado, e dos melhoramentos, que precisam” (BRASIL, 1828). Observe-se que dos cinco “cidadãos probos” nomeados naquela ocasião, três aos menos eram reconhecidos membros do PRR. Castilhos, figura de vulto do partido, ocupava desde 16 de maio de 1884 a direção da redação do A Federação, e Barcellos e Azevedo se destacavam enquanto correligionários e colaboradores de primeira hora das atividades do referido órgão. Não há lugar para dúvidas de que a presença deles naquela comissão, que colocou a boca no trombone sobre o descaso público em relação às péssimas condições de encarceramento, foi tudo menos algo fortuito.

O juiz de direito Antonio Joaquim de Macedo Soares, autor dos comentários e atualizações da lei de 1º de outubro de 1828, escreveu na segunda edição de 1885 que:

Não me consta que as camaras da provincia do Rio de Janeiro cumprão o dever que lhes impõe este artigo. Enganão-se os que se persuadem estar elle revogado pelo art. 144 do Reg. n. 120 de 31 de Janeiro de 1842, que attribue aos chefes de policia e seus delegados a inspecção geral das prisões. A inspecção que a Lei dá ás camaras reduz-se a ver e informar; a do chefe de policia e seus delegados vai além: providenceia e regulamenta. As camaras devem ser tanto mais zelosas no cumprimento deste dever, quanto é certo que sobre ellas (nas provincias) pesa a despeza com luz, agua e aceio das cadêas (LAXE; SOARES, 1885LAXE, João Baptista Cortines; SOARES, Antonio Joaquim de Macedo. Regimento das Câmaras Municipaes, ou, Lei de 1. de outubro de 1828: annotada com as leis, decretos, regulamentos e avisos que revogão, ou alterão suas disposições e explicão sua doutrina: precedida de uma introdução historica, e seguida de sete appensos, contendo o ultimo uma breve noticia da formação dos municipios da provincia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1885. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/227296. Acesso em: 5 jul. 2022.
https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/...
, p. 141).

Apesar do expressado pelo magistrado, no caso sul-rio-grandense, ao menos para a capital, a possibilidade de instrumentalizar as mazelas do cárcere contra as autoridades imperiais parece que serviu de estímulo para que tal obrigação municipal de “ver e informar” tenha sido naquela ocasião fervorosamente abraçada pelos republicanos do PRR, que, mais do que isso, aproveitaram também para ver e denunciar através do A Federação.7 7 Aquela visita de maio de 1885, além de meticulosamente organizada, representou apenas o pontapé inicial de um ciclo de denúncias que varou a década de 1880, jogando no ventilador o descaso das autoridades do executivo provincial para com os homens e mulheres privados de liberdade no principal depósito de indesejáveis da província sul-rio-grandense. Sobre isso, veja-se Cesar (2023). Essa atividade, entre outras experiências, dava-lhes conhecimento de causa e legitimidade, justamente o que possibilitava imiscuir-se em tais assuntos. Resta agora responder à segunda questão: qual foi o gatilho ou ensejo que levou o Fiscal honorário a tocar em questões penitenciárias de forma particular, a partir de suas crônicas municipais?

Em 8 de maio de 1886, uma visita sanitária realizada à cadeia pela Inspetoria de Higiene, criada pelo decreto nº 9.554, de 3 de fevereiro de 1886, dirigida pelos galenos Israel Rodrigues Barcellos Filho e João Adolpho Josetti Filho, trouxe novamente à tona uma série de problemas muito parecidos aos narrados pela já citada comissão municipal no ano anterior, porém agora mais agravados. Falta de asseio, luz e ventilação, aglomeração, umidade e uma absurda fetidez aumentavam, segundo os médicos, os riscos epidêmicos. Tudo isso, diga-se de passagem, publicado no mesmo dia da visita nas páginas do A Federação.8 8 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 8 maio 1886, p. 2.

Essa foi a deixa perfeita para que o Fiscal honorário, resgatando a experiência in loco do ano anterior, se pusesse a tecer comentários sobre a situação vivida pelos encarcerados, amplificando, portanto, a denúncia de desídia e incompetência por parte das autoridades imperiais, que haviam permitido que a realidade prisional porto-alegrense tivesse alcançado níveis escandalosos de arbitrariedades e desumanidades. Foi assim que, astutamente, Felicíssimo saltou as fronteiras, espraiando-se sobre temas bem maiores do que inicialmente poderia supor o título de sua coluna-tribuna, chegando inclusive a produzir diagnósticos e avaliações de cunho claramente reformador atinente às questões penitenciárias da província.

“Não affrouxeis, cidadãos vereadores”

Antes de passarmos a analisar as críticas e ideias penitenciárias elaboradas pelo Fiscal honorário, ao longo de quatro crônicas aparecidas entre os dias 10 e 20 de maio de 1886, à raiz do observado pela Junta de Higiene na visita sanitária do dia 8, devemos chamar a atenção para as habilidades linguísticas do republicano, assim como para a matriz discursiva de onde redundaria tanto os questionamentos quanto as suas reflexões penitenciaristas.

De cara, percebe-se que Felicíssimo se esforçava por envolver o potencial leitor/ouvinte, fazendo-o partícipe das suas ideias e enunciados, a partir de mensagens de ordem e simulações de diálogo plagados de perguntas retóricas. Escrita em primeira pessoa, suas crônicas não se dirigiam a meros interessados na res publica municipal, mas aos verdadeiros “cidadãos vereadores”. Ao distinguir seus leitores/ouvintes, qualificando-os enquanto cidadãos vereadores, simbolicamente lhes equiparava aos mesmos “cidadãos probos” que, como escreveu o juiz Soares (1885, p. 141), deveriam estar atentos para “ver e informar”. O que, temos de convir, constituía uma sutil exortação para que, assim como ele, todos se convertessem em fiscais honorários. De fato, em sua primeira crônica de 10 de maio, ao mencionar a comissão da qual ele próprio havia integrado no ano anterior, não atribuiu sua formação à lei per se, ou à obrigação da Câmara Municipal, mas à ação dos cidadãos vereadores: “Deveis lembrar-vos que o anno passado, cumprindo o disposto na lei, nomeastes uma commissão para examinar as prisões e casas de caridade”, de cujo trabalho se exarou um relatório “por vós remettido ao governo da provincia”.9 9 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.

Embora motivado, como dissemos, pelos resultados da recente visita sanitária, Felicíssimo não vai a eles com sede ao pote. Astutamente, para estimular uma opinião pública favorável à Inspetoria de Higiene, composta por médicos bastante ligados a importantes correligionários do PRR10 10 João Adolpho Josetti Filho, que participou da referida visita sanitária do dia 8, anunciava seus serviços de “operador e parteiro” no A Federação. Apresentava-se como “ex-interno de clinica cirurgica da faculdade de medicina, dos hospitaes de Misericordia e de Marinha do Rio de Janeiro”, residindo e atendendo à rua da Igreja, nº 216, das 13h às 15h da tarde (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 12 ago. 1886, p. 3). Josetti formou-se em 1884 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e, após sua meteórica passagem pela Inspetoria de Higiene da Província de São Pedro, em 1886, viajou para a Europa, onde realizou estudos na Alemanha e França. À sua volta, passou a atuar na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e em sua clínica particular (OLIVEIRA, 2012, p. 163). Ainda segundo o autor, antes mesmo de integrar o novo grupo de médicos daquele pio estabelecimento, em 1890, trazido por Victor de Britto e Ramiro Barcellos (ambos membros do PRR), estes e o primeiro já eram sócios da Beneficência Portuguesa de Porto Alegre, compondo o corpo de facultativos do seu hospital. , inicia simplesmente dando “graças a Deus!” por já se poder “beber um pouco de leite”, atribuindo o logro à referida “Junta de Hygiene, que vai dignamente cumprindo as suas attribuições, que estão de acordo com as posturas municipaes”.11 11 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.

Para além do compartilhamento de concepções ideológicas republicanas, muitas das articulações desses homens não estavam isentas de interesses profissionais e de classe. Não é difícil perceber que, auxiliando amigos e confrades médicos, num momento de luta pelo reconhecimento da medicina enquanto ciência fundamental para a sociedade, o partido também se beneficiava com algumas de suas ações, como no caso da vistoria sanitária que estava dando muita dor de cabeça às autoridades provinciais. Daí a conclama de Felicíssimo: “Não affrouxeis, cidadãos vereadores; ponde-vos de inteiro accordo com aquella digna corporação [Inspetoria de Higiene], sem o que ella não poderá bem cumprir a sua tarefa”.12 12 Idem.

Por outra parte, não é menos importante destacar que o verificado por essas juntas e comissões também alimentava uma autêntica disputa de imagens e representações. Àquela altura, era de longe conhecido o costume de d. Pedro II de visitar as prisões imperiais.13 13 Bastaria uma simples olhada nas anotações de seu diário para encontrar várias referências minuciosas sobre os mais diferentes cárceres visitados durante as viagens oficiais, dentro e fora do país. Em 1876, nos Estados Unidos, esteve na Western Penitentiary, em Alleghany City, próximo a Pittsburg, na Pensilvânia. Também visitou a prisão de Albany, capital do Estado de Nova Iorque, algumas cadeias de Boston e de outros lugares (GUIMARÃES, 1961, p. 198-200 e 279). Lembre-se, por exemplo, que em sua passagem pelo Rio Grande do Sul, no início dos conflitos da Guerra do Paraguai, o monarca esteve em pessoa na Cadeia Civil de Porto Alegre (CESAR, 2021cCESAR, Tiago da Silva. A visita de “Sua Majestade o Imperador” e os pedidos de perdão de presos da Cadeia Civil de Porto Alegre. Almanack, Guarulhos, n. 27, p. 1-54. 2021c.). Nesse sentido, não deixa de ser sintomática a reprodução de uma anedota atribuída ao Imperador, por ocasião de sua última viagem a Minas Gerais, publicada no A Federação, em julho de 1886. Segundo consta: “Visitando a cadêa, o imperador vio, no -pateo, um sentenciado, e interrogou o carcereiro, que disse-lhe que ao infeliz apenas faltavam onze dias para cumprir a pena e que por isso deixava-o andar em liberdade”. Ato seguido “magôou-se o imperador, censurando por isso o carcereiro por invadir attribuições do poder moderador...”.14 14 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 20 jul. 1886, p. 2.

Não parece coincidência, portanto, que, em sua primeira crônica, o Fiscal tenha atacado um conjunto caro de imagens e representações associadas à figura do monarca. Questionou, por exemplo, seus “sentimentos religiosos”, sua “piedade e devoção” e a “humildade christã” para com os “desgraçados presos”. Ora, um dos maiores atributos representativos de um rei era sua capacidade de fazer justiça, ser clemente e piedoso, tudo o que, segundo Felicíssimo, passava longe do que se vivia na Cadeia Civil. Segundo ele, enquanto o verdadeiro mártir do Gólgota perdoava seus algozes, os “falsos apostolos atormentam cruelmente os desgraçados, a quem a fatalidade, o acaso ou os máos instinctos precipita em taes masmorras”.15 15 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.

Os republicanos tentavam se apropriar, dessa forma, de representações até então associadas quase que exclusivamente ao Imperador e seus representantes, contrapondo o velho monarca/sistema, tido por insensível e inoperante, aos jovens republicanos e à promessa de uma república da lei e dos princípios humanos. Maus-tratos, situações vexatórias e descumprimentos legais são apresentados enquanto características da política penal-carcerária imperial, e os horrores do cárcere porto-alegrense como metáfora da barbárie institucional. Através desses jogos de imagens, ficava claro ao leitor/ouvinte que o progresso e o futuro de um país não podiam depender de governos que fizessem ouvidos moucos à dor e ao sofrimento alheios, a não ser que desejassem comprometer a sua marcha civilizacional.

Tirando o que havia nesse discurso de propaganda republicana, perceba-se que a matriz (laica ou cristã) de reivindicação de um tratamento humano casava com a sensibilidade dos novos tempos. Essas denúncias, apesar de políticas, revelam como, no último quartel do século XIX, notícias de descumprimentos de direitos, violências, torturas e maus-tratos em ambientes prisionais haviam alcançado no Brasil uma grande capacidade de impactar e gerar reações sociais, razão justamente pela qual passaram a ser instrumentalizadas pelos opositores da monarquia bragantina. Daí porque não havia de se afrouxar em nada, e todo apoio às fiscalizações era bem-vindo.

“Ha assumptos que não podem ser tratados perfunctoriamente...”

É somente no final da primeira crônica, após enfatizar inúmeras situações vexatórias e inumanas vividas pelos presos, porém retiradas do relatório da Inspetoria de Higiene16 16 Relatou-se que os reclusos doentes estavam aglomerados na enfermaria, sem a atenção de um enfermeiro que ministrasse os medicamentos e dietas nas horas recomendadas. Além disso se descreveu a prisão como imunda, sem limpeza e desinfecção dos xadrezes igualmente superlotados, onde se negava inclusive os meios para a higiene corporal (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 2). , que o Fiscal honorário defenderá o trabalho penal, há muito considerado por penitenciaristas, juristas e reformadores como a chave mestra de qualquer sistema prisional que se prezasse. Para ele seria essa a saída mais humana, mas a fórmula não será expressada sem uma crítica ao Estado imperial, dirigida à própria pessoa do Imperador, fonte de todos os males:

Lembrai-lhe [ao Imperador] a necessidade de desbastar o numero dos infelizes presos, não pelo assassinato latente produzido pelo deshumano tratamento que lhes é dado, mas pelo trabalho que é o reparador dos máos instinctos e o protector dos desprotegidos da sorte.17 17 Idem.

Acreditamos que essa referência ao trabalho talvez seja a primeira realizada por um importante correligionário do PRR, no A Federação, desde que ele passou a circular em 1º de janeiro de 1884. E foi só o começo, daí para frente o Fiscal entra literalmente em outro gênero, âmbito e assunto, que nada tinha que ver com as “cousas municipaes”. Acrescentaria, por exemplo, nos dois parágrafos seguintes, que:

Já ha na provincia um ensaio de colonias militares no Alto Uruguay18 18 “As colônias militares eram dotadas de diferentes características e poderiam ser de dois tipos: as fronteiriças e as interioranas. No caso da Colônia Militar de Caseros, era uma colônia militar interiorana, reunindo em uma mesma colônia militares e indígenas da parcialidade Kaingang, e foi o único empreendimento militar no extremo Sul do Brasil com essa tipologia. A segunda colônia militar, situada no Alto Uruguai (1879), era ainda mais isolada e caracterizava-se como uma colônia de fronteira” (SCHMITZ; LOPES, 2019, p. 2). , mande-se para essas colonias a maior parte dos desgraçados presos para serem empregados em trabalhos agrícolas, sob um regimem militar, dando-se-lhes uma regularisação disciplinar, e proporcionando-lhes ao mesmo tempo retribuição de seu trabalho e até premios aos que se mostrarem regenerados dos seus antigos vicios.

Por esta fórma poderão ainda voltar á sociedade, já regenerados, muitos membros d’ellarepellidos, ficando a quem tiver concorrido para tão justo fim a gloria excelsa de bemfeitor da humanidade”.19 19 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.

Como já se mencionou, a superlotação constituía então um dos piores problemas enfrentados pela cadeia da capital. Além de agravar ainda mais as de por si precárias condições de vida intramuros, a aglomeração também acarretava a elevação do nível de violência interpessoal utilizada como instrumento de controle e segurança institucional. Não estranha, portanto, que o modelo de colônia agrícola, sob regime militar, tenha soado atrativo aos ouvidos do Fiscal, pois como ele mesmo disse, possibilitaria tanto a transferência do excedente humano, como a sua aplicação a uma terapia laboral, há muito considerado o principal ingrediente de um coquetel disciplinar que tinha, teoricamente, o objetivo de corrigir moral-comportamentalmente a criminosos e infratores.

Mas não foi até a seguinte crônica (a segunda do escopo analítico deste artigo) que Felicíssimo desenvolveria melhor suas ideias e proposições penitenciárias. Apesar de contas, como disparou já no parágrafo introdutório: “Ha assumptos que não podem ser tratados perfunctoriamente, merecendo detido estudo para serem amplamente discutidos”. Ao que complementaria dizendo precisar “desenvolver melhor o meu raciocinio, afim de desmanchar a má idea que muita gente faz do systema de corrigir pelo trabalho”.20 20 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 13 maio 1886, p. 1.

Decerto, sua intenção não poderia estar mais à ordem do dia. Desde pelo menos a década de 1850, sucessivos ministros de justiça vinham batendo na mesma tecla sobre a importância de se pensar modelos penitenciários que privilegiassem o trabalho penal. Nabuco de Araújo, por exemplo, insistira tanto na primeira quanto na segunda passagem pela pasta, na proposta de criação de colônias penais, chegando a sugerir nesta última que fossem criados três tipos: marítimas, agrícolas e industriais (SALLA, 2006SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006., p. 126). Por outro lado, os sucessivos Congressos Penitenciários Internacionais também chancelavam o trabalho obrigatório como um dos principais elementos de regeneração (ALBUQUERQUE NETO, 2017ALBUQUERQUE NETO, Flavio de Sá Cavalcanti de. Prisões e o trabalho forçado no Brasil na segunda metade do século XIX. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Niterói, v. 9, n. 1, p. 40-57, jan./abr. 2017., p. 46-50). Visto assim, o pensamento de Felicíssimo não tinha nada de original, mas isso não o torna menos interessante vindo de um importante membro do PRR que, naquele momento, ressignificava velhas propostas em circulação.

Aparte de abandonar inicialmente o estilo característico de exposição a partir de perguntas retóricas, o que realmente chama a atenção na primeira parte dessa segunda crônica é a crítica à cultura punitivista da sociedade brasileira da época, que dificultava a valorização do trabalho como elemento de emenda e possibilidade de lucro penitenciário. Segundo o Fiscal: “Suppõe-se geralmente que o homem, depois de commetter o crime, torna-se um membro inutil da sociedade”, mas na contramão desse pensamento, acreditava que “de tudo se póde tirar vantagem: não ha ninguem inutil, comtanto que haja quem saiba governar”.21 21 Idem.

Repare-se que o problema é colocado em termos culturais, mas não como algo insolúvel, desde que fosse confiado (aí segue a propaganda republicana) em quem realmente soubesse governar.22 22 Para bons entendedores, é evidente que Felicíssimo não estava pensando nos monarquistas. Mais adiante chegou a expressar, inclusive, o seguinte julgamento: “Estamos ainda muito atrazados, muito pobres de homens para o governo do paiz; por toda a parte só encontramos parladores, sendo d’estes tirados os directores do governo” (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 13 maio 1886, p. 1). Para ele, era justamente a ociosidade forçada que não poderia render nenhum tipo de resultado positivo, “senão tributar o trabalho dos bons para sustentar os máos”. Esse apelo econômico-moral é simplesmente genial enquanto estratégia de convencimento dirigida aos céticos do uso do trabalho como instrumento penal. É importante ter presente que Felicíssimo estava se dirigindo a uma sociedade essencialmente agrária, escravocrata, e preocupada muito mais em punir do que em regenerar criminosos.23 23 O que não impede reconhecer que parte de uma elite letrada, como os juristas brasileiros, vinham há tempos esgrimindo preocupação sobre o fato de que um dos fins da punição deveria ser a regeneração dos criminosos (SONTAG, 2016). Por isso, conhecendo a mentalidade dos conterrâneos, passou a enfatizar a continuação, o viés lucrativo do trabalho penitenciário, estimulado também pelas primeiras reações de seus leitores/ouvintes. Pois, conforme expressara: “não faltou quem dissesse, ao ler o que escrevi segunda-feira: [que] soltos os presos, bem poucos chegariam ás colonias, fugindo em caminho para irem atacar os viajantes nas estradas”.24 24 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 13 maio 1886, p. 1.

Artifício retórico ou não, o fato é que o comentário deu lugar a uma melhor justificação e defesa do trabalho penal. Felicíssimo já havia afirmado num parágrafo antes que “rarissimo será o exemplo de um homem incorrigivel pelo trabalho”, razão pela qual desqualificou a crítica como um “engano manifesto de quem não conhece a natureza humana”. Estava convencido de que “nenhum homem em pleno gozo de sua razão, depois de um, dous ou tres annos de prisão, é refractario ás leis do trabalho”.25 25 Idem.

Pelo que sabemos acerca do Fiscal honorário, pode-se dizer que escrevia com propriedade, pois qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento sobre a vida atrás das grades compreenderia que as violências físicas e psicológicas poderiam ser letais, mas não as únicas; uma ociosidade forçada prolongada, além de constituir uma autêntica plataforma de empobrecimento, poderia levar à perturbação mental, quando não à própria morte. Por isso sustentava que, apesar do desconhecimento da sociedade e inclusive de parte das próprias autoridades policiais que olhavam para a cadeia “com a maior indifferença”, havia nela (na cadeia) “muito que aprender”:

Ali vê-se o genio inventivo do homem. Homens que para ali são remettidos como incorrigiveis, cheios de vicios adquiridos no meio da sociedade, onde não acharam quem dirigisse os seus primeiros passos na carreira da vida, adquirem em pouco tempo uma industria, e pouco a pouco se familiarisam com o trabalho.26 26 Idem.

Felicíssimo narrava o que certamente havia visto in loco durante a visita à cadeia, de maio do ano anterior, ocasião em que não só ele, mas todos os comissionados puderam observar como muitos presos se entregavam ao trabalho em manufaturas próprias em suas celas e corredores.27 27 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 30 jun. 1885, p. 1. Mas, como é evidente, esse tipo de trabalho se devia antes à iniciativa particular de determinados indivíduos do que à aplicação a um regime devidamente penitenciário. Aqui, até mesmo a não efetivação da Casa de Correção de Porto Alegre, conforme previa a lei provincial nº 2, de 27 de junho de 1835, acabou servindo para reforçar a sua defesa. Com efeito, depois de trinta e cinco anos, como alegou, ninguém negaria que sua idealização enquanto instituição penal moderna, com oficinas para “instruir os sentenciados no trabalho”, tivesse ficado relegada ao “esquecimento”.28 28 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 13 maio 1886, p. 1.

Motivos suficientes não faltavam para que o Fiscal voltasse a advogar pela implantação de uma colônia agrícola e manufatureira no Alto Uruguai, onde se pudesse empregar, conforme suas palavras, trezentos desses “desgraçados que occupam a cadêa de Porto Alegre”. Para ele, em “poucos annos”, com boa direção e disciplina, essa colônia se transformaria num “estabelecimento modelo de regeneração”.29 29 Idem. Com um devotado otimismo, exclamava:

Longe do bulicio dos povoados, desbastando os mattos do Alto Uruguay, fazendo cada um a sua habitação, e arrancando da terra o proprio sustento regado com o suor do rosto, como não se sentiriam felizes, depois de habitarem as masmorras de nossa cadêa, vendo-se proprietarios de um pedaço de terra?30 30 Idem.

O Fiscal se conectava assim a uma longa tradição de defesa do trabalho enquanto elemento-chave de uma ideologia penal baseada na correção dos indivíduos. Mas apesar desse “humanismo”, percebe-se, na proposta penitenciária do republicano, pervivências de uma cultura punitivista utilitária, cujas raízes se remontariam ao século das luzes. Conforme já fizemos notar, a chamada regeneração e moralização dos sentenciados não eram suficientes para justificar o investimento em tais estabelecimentos. E o Fiscal, se não compartilhava da mesma ideia, ao menos sabia muito bem que para angariar apoio, de nada lhe serviria argumentar apenas a partir dos ganhos correcionais; havia, pelo contrário, que demonstrar, em primeiro lugar, em que medida ou proporção o Estado tiraria seu proveito econômico dos braços encarcerados.

O autossustento por parte dos presidiários era um bom início de conversa, mas segundo as potencialidades econômicas aventadas por Felicíssimo, podiam ser maiores. Só assim se entenderão algumas informações (ou elucubrações) trazidas à baila, a exemplo da produtividade da terra, onde se localizaria a colônia. Afirmava que a região do Alto Uruguai gozava de um “abençoado solo para fazer a felicidade de quem o cultiva”, já que “ali cresce com viço descomunal a canna, o algodão, o café, a uva e todos os outros fructos do norte e do sul do Brazil”. Ao menos em sua cabeça, o projeto era totalmente factível e com ganhos garantidos para ambas as partes envolvidas (Estado e sentenciados), não justificando, portanto, a inércia governamental:

E ahí estão abandonadas todas essas riquezas naturaes, em falta de quem as usufrua, porque os cidadãos que deviam colher as suas vantagens, em falta de um governo paternal que dirija a sua educação para o trabalho, progridem na inação, na indolencia, que é a mãi de todos os vicios, resultando de tal proceder irem povoar as cadêas para serem sustentados pelos outros cidadãos, que são expoliados desapiedadamente para perpetuar nas enxovias immundas tantos infelizes, que podiam ser aproveitados em beneficio da sociedade.31 31 Ibidem, p. 1-2.

Após todas essas reflexões em defesa do trabalho penal, Felicíssimo ainda se perguntaria: “pregando no deserto?”, ao que respondeu sem hesitar que “talvez”, mas mesmo assim não deixou de seguir se espraiando sobre o mesmo assunto na seguinte crônica, aparecida no dia 17 de maio de 1886.

“Gostamos muito de imitar o que fazem os estrangeiros; pois sigamos os seus exemplos”

É importante lembrar que a escrita de Felicíssimo teve como pano de fundo a grave crise política suscitada pelos resultados da vistoria sanitária realizada à Cadeia Civil de Porto Alegre, a começos do mês de maio de 1886, pela Inspetoria de Higiene. Somente para se fazer uma ideia, no mesmo número do A Federação onde aparecera a terceira crônica do republicano, se deu conta também da segunda visita praticamente seguida, realizada pelo Presidente da Província, Manuel Deodoro da Fonseca, ao recinto penal.32 32 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2. A primeira havia ocorrido no dia 14, a convite da Junta de Higiene, acompanhado dos membros da referida junta, os facultativos Israel Rodrigues Barcellos Filho, João Adolpho Josetti Filho e Arthur Benigno Castilho, além do Chefe de Polícia e do Promotor Público. Na ocasião, a imprensa esteve presente através de O Mercantil e de A Federação (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 14 maio 1886, p. 2). Na do dia 17, Deodoro se apresentou juntamente com o Diretor Geral da Diretoria Provincial, do Cirurgião-mor do Corpo de Saúde, do Provedor da Santa Casa de Misericórdia e de outros funcionários não especificados. Segundo se informou, a intenção desta última era remover os “alienados” dali para o Hospício São Pedro, inaugurado em 29 de junho 1884, além de buscar meios para a continuidade das obras da cadeia “no mais curto prazo possivel” (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2).

O cenário, portanto, não poderia ser mais oportuno para as reflexões do Fiscal acerca das questões penitenciárias da província. Tanto que, nessa não menos extensa crônica, além de voltar com mais contundência sobre os supostos ganhos que a colônia agrícola auferiria, na tentativa de aplacar as críticas recebidas, nosso republicano também se referiria, por primeira vez, a modelos punitivos estrangeiros, conforme se verá mais adiante.

Não obstante, o pontapé inicial do novo texto se deu à raiz da notícia de um Aviso do Ministério da Justiça, dirigido ao ex-presidente Henrique Pereira de Lucena, negando-lhe o pedido feito para se transferir “a maior parte dos sentenciados que occupam a nossa cadêa” para o Presídio de Fernando de Noronha. O Fiscal honorário viu no conteúdo desse aviso o mote perfeito para responder àqueles que “dizem que eu quero abrir as portas da prisão aos criminosos e recompensal-os com o presente de uma colonia”. Sem papas na língua, chamou a esses críticos de “deshumanos”, e que deveriam penar ao menos uns trinta dias nas “masmorras” da Cadeia Civil “para saberem como aquillo é bom”, pois o que estava propondo nem se tratava de “abrir as portas”, nem muito menos de um “presente”.

Desejo que se faça um presidio nos desertos do Uruguay para que se aproveitem os serviços dos miseraveis que estão apodrecendo na cadêa de Porto Alegre (arrumados como pilhas de xarque em porão de navio) para serem reabilitados pelo trabalho e voltarem depois à sociedade.

Não quero e nem disse que se abandonem os sentenciados ao acaso.33 33 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2.

A irritação de Felicíssimo era compreensível, pois como vimos observando, em nenhum momento negligenciara a centralidade do trabalho lucrativo para o Estado. Longe de querer que os sentenciados fossem abandonados “ao acaso”, defendia a ideia de que deviam aprender “desde a sua chegada a fazer a propia habitação, a tirar da terra o alimento necesario á vida”, reforçando, ademais, que seria uma insensatez que num estabelecimento com tais características se desaproveitasse as “aptidões artísticas de muitos d’elles”.34 34 Idem. Mas para que não restassem dúvidas a respeito, acrescia: “Dos productos d’esta especial colonia se fará um commercio vantajoso para o Estado e para os mesmos colonos, que indemnisarão, com o seu trabalho, todas as despezas feitas com elles e ainda o valor de suas terras”. Do ponto de vista administrativo-organizacional, Felicíssimo apostava em um regime penitenciário militar, sob o comando de um corpo de cavalaria do exército, que se responsabilizaria tanto pela segurança como pela ordem e disciplina do estabelecimento, tudo, porém, devidamente previsto em “regulamentos adequados”.35 35 Idem. A preferência militar se refletirá mais tarde por meio de sucessivas indicações de oficiais do Exército para o cargo de administrador da Casa de Correção de Porto Alegre. Tudo leva a crer que o primeiro civil a governar o estabelecimento após 1896/7 foi Plauto de Azevedo, a partir de julho de 1920 (CESAR, 2021b, p. 143).

Quanto à idealização relativa à localização do aparelho penal na fronteira da província, nosso republicano se adiantava a muitos outros que depois dele viriam a defender os envios de presos a presídios e colônias agrícolas em ilhas e lugares remotos do território brasileiro.36 36 Apenas a título de exemplo, lembre-se do caso da Colônia Correcional de Dois Rios (SANTOS, 2009), construída na Ilha Grande (RJ); da Colônia Agrícola de Clevelândia (PEDROSO, 2002, p. 108-109), levantada na margem direita do Rio Oiapoque, na fronteira com a Guiana Francesa (PA), ou, ainda, o Instituto Correcional da Ilha Anchieta (FERREIRA, 2018), fundado na antiga Ilha dos Porcos (SP). O exemplo vinha de longe, mas talvez o Presídio de Fernando de Noronha (COSTA, 2009; BEATTIE, 2015) tenha sido o de maior expressão pelo longo período em funcionamento. Em sua proposta, não há lugar a questionamentos sobre os males que pudessem acarretar ao afastá-los (ao menos inicialmente) de entes queridos e familiares, rompendo circuitos afetivos e de auxílio material importantes. Segundo expressava:

Não vejo outro remedio para sahirmos da difficuldade em que nos achamos, a não ser o que lembrou certo individuo quando ponderei-lhe a impossibilidade de continuarem os presos em tão apertado edificio:

“Enforquem-se os que excederem á lotação da cadêa! São criminosos; não devem merecer contemplação alguma”.37 37 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 17 maio, 1886, p. 2.

Logo após esse parágrafo, o republicano descortina outras possibilidades: “Gostamos muito de imitar o que fazem os estrangeiros; pois sigamos os seus exemplos”, diria. E passa imediatamente a tecer comentários sobre duas práticas ou culturas punitivas alienígenas, a saber: a portuguesa, que enviava condenados às suas colônias africanas, e a norte-americana, calcada na “rehabilitação dos criminosos pelo trabalho”.

Para o Fiscal, as duas eram dignas de elogios, mas a segunda casava mais com sua proposta. Ainda assim, sobre a portuguesa, destacou os excelentes resultados alcançados com o envio de um “grande numero de sentenciados” às suas possessões africanas (ANDERSON, 2018ANDERSON, Clare. A Global History of Convicts and Penal Colonies. Londres: Bloomsbury Academic, 2018., p. 59).38 38 “In the years before the Depósitos were fully functioning (i.e. 1822 to 1881), Portugal exiled approximately 135 convicts and 50 vagrants annually, or 11,000 people to all its colonies, with an increasingly tendency to favour Angola. Looking at the Depósitos, it is easier to arrive at a total but it does not include vagrants, political or military deportees. The Depósito in Luanda was a much larger operation than its counterpart in Mozambique. The Luanda facility alone received well more than half (12,500) of the 16,000 to 20,000 convicts and vagrants sent to colonial exile from 1880 to 1932”. Trad. livre do autor: “Nos anos anteriores ao funcionamento pleno dos Depósitos (ou seja, 1822 a 1881), Portugal exilava cerca de 135 condenados e 50 vagabundos por ano, ou 11.000 pessoas a todas as suas colônias, com uma tendência cada vez maior para favorecer Angola. Olhando para os Depósitos, é mais fácil chegar a um total, mas não inclui vagabundos, deportados políticos ou militares. O Depósito em Luanda era uma operação muito maior do que a sua contraparte em Moçambique. Só as instalações de Luanda receberam bem mais da metade (12.500) dos 16.000 a 20.000 condenados e vagabundos enviados para o exílio colonial de 1880 a 1932”. Tratava-se em realidade de uma importante válvula de escape para o governo português que, dessa forma, aliviava as prisões da metrópole e de quebra realizava uma autêntica higienização social no país. Mas essa prática, repare-se bem, tampouco poderia ser apresentada apenas como beneficiosa ao Estado, o exílio também tinha que ser visto como uma espécie de segunda oportunidade dada aos indivíduos. Daí a referência ao caso do “celebre José do Telhado”, que, apesar de “todos os horrores commettidos”, levado para a África, “tornou-se elle um cidadão importante e prestimoso, prestando ao Estado relevantes serviços”.39 39 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2.

Note-se que ele não cita nenhuma fonte oficial ou quaisquer referências sobre a origem daquelas informações, e da mesma forma afirmará a continuação, que as “penitenciarias [dos Estados Unidos] nos dão os melhores exemplos da rehabilitação dos criminosos pelo trabalho”, exortando, simplesmente, para que “ouçamos o que diz um visitante dos Estados Unidos”:

Habitei algum tempo nas proximidades da penitenciaria de Sing Sing, distante uns setenta kilómetros de New York.

O estabelecimento toma um grande espaço circundado de um profundo fosso que intercepta a sahida. A casa está dividida em secções diversas para dormitorio, refeitorio e salões de officinas.

As officinas são de sapateiro, alfaiate, carpinteiro, chapelleiro, corrieiro e outros trabalhos semelhantes, sendo os ocupantes da penitenciaria em numero superior a trezentos.

Estão em plena liberdade nas officinas durante as horas de trabalho; no refeitorio encontram a horas certas um alimento sadio e abundante, sendo à noite recolhidos cada um à sua cellula, que é asseiada e ventilada convenientemente, e cada uma fechada por fóra depois de recolhidos os habitantes.

O producto da venda dos objectos fabricados é dividido em partes, ficando uma para as despezas do estabelecimento e outra formando o peculio que deve ser entregue ao sentenciado quando conclue o praso de sua pena.40 40 Idem.

Apesar de desconhecermos o tal visitante (se é que existiu), a passagem acima não deixa de ser interessante, porque, ao que tudo indica, foi exatamente o regime penitenciário de Sing-Sing que serviu de modelo para os mandatários do PRR, quando, arribados no poder, promoveram a transformação da Cadeia Civil em uma Casa de Correção, a partir de 1896. O sistema alburniano escolhido, tal como o vigente em Sing-Sing, caracterizava-se pelo trabalho diurno coletivo, em silêncio, e encarceramento solitário à noite. Conforme Aguirre, o modelo de Alburn “enfatizava vigorosamente o trabalho produtivo, com vistas a transformar as prisões em verdadeiras fábricas”41 41 Trad. livre do autor: “El modelo de Auburn o ‘congregado’ enfatizaba vigorosamente el trabajo productivo, con miras a transformar las prisiones em verdaderas fábricas”. (2019AGUIRRE, Carlos. Donde se amansan los guapos: las cárceles de Lima (1850-1936). Lima: Universidad del Pacífico, 2019., p. 129), o que de fato acabou acontecendo no estabelecimento porto-alegrense (CESAR, 2021aCESAR, Tiago da Silva. As oficinas e o trabalho penal dos condenados da Casa de Correção de Porto Alegre (1895-1930). Tempo, Niterói, v. 28, n. 3, p. 501-529, set./dez. 2021a.; 2021bCESAR, Tiago da Silva. Trabalho, lucro e regeneração na Casa de Correção de Porto Alegre durante a República Velha. Millars. Espai I Història, v. 2, n. 51, p. 135-177, 2021b.).

Finalmente, a quarta crônica de Felicíssimo apareceu no número do dia 20 de maio de 1886, mas, ao contrário das anteriores, nada de significativo aportaria em termos penitenciários. Limitava-se unicamente a indicar o(s) culpado(s) pelo estado escandaloso vivido na Cadeia Civil, caçoando, por exemplo, do vice-presidente da província que “embalde anda[va] (...) em busca de meios para melhorar o estado da cadêa”. Para ele nada disso teria acontecido se a desídia imperial não tivesse adiado as obras da cadeia para as “kalendas gregas”.42 42 Vale acrescentar que o republicano tomava de maneira mecânica e naturalizada a ideia de que “assim como a população cresce, o numero dos criminosos igualmente augmenta” (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 20 maio 1886, p. 1). Mas, diante do estado ignominioso de superlotação e dos problemas decorrentes, não se furtava em emitir opiniões. Acreditava que se deveria “reparar o telhado e prosseguir com a maior celeridade nas obras da parte em construcção, para depois de prompta receber metade dos presos e fazer-se então por partes os reparos de que necesita aquelle estabelecimento”.43 43 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 20 maio 1886, p. 1.

Conclusão

Apesar da escrita de Felicíssimo Manoel de Azevedo ter tido como pano de fundo a contenda entre republicanos e monarquistas, suas ideias não deixam de constituir, também, um testemunho das mudanças ocorridas nas últimas décadas do século XIX em relação às sensibilidades punitivas típicas de sociedades que expressavam o desejo de serem vistas (e de se verem a si mesmas) como civilizadas.

Vale lembrar que se experimentava, na década de 1880, no Brasil, um acirramento de várias demandas altamente politizadas, como o movimento abolicionista (COSTA, 1982COSTA, Emilia Viotti da. A abolição. São Paulo: Global, 1982.; ALONSO, 2015ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.), a luta contra a pervivência de práticas penais como a pena de morte44 44 É sabido que d. Pedro II passou a comutar cada vez mais as penas de morte por penas de galés. Veja-se Pirola (2016, p. 134-135). , ou, a de açoites, destinadas a escravizados. Como bem assinalara Pirola (2017PIROLA, Ricardo Figueiredo. O castigo senhorial e a abolição da pena de açoites no Brasil: Justiça, imprensa e política no século XIX. Revista de História, São Paulo, n. 176, p. 1-34. 2017., p. 1), as discussões parlamentares acerca da abolição da pena de açoites (decretada em 15 de outubro de 1886) relacionava-se “a um amplo debate de crítica aos castigos físicos nos anos finais da escravidão”.

Se acabar com determinadas penas cruéis alimentava a luta para quebrantar o velho direito senhorial de infligir castigos, por outra parte, ajudava a cimentar uma plataforma de contestação e rechaço cada vez maior contra quaisquer práticas de aplicação de dano físico ou psicológico. O Fiscal honorário, embora produzisse o que podemos chamar de denúncia política, não deixava, com essa mesma escrita, de fabricar também uma “narrativa humanitária” (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Thomas W. Corpos, detalhes e a narrativa humanitária. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 239-277., p. 239-277), posto que esteve o tempo todo questionando as mazelas do cárcere que causavam dor, aflição e morte aos inquilinos da principal prisão sul-rio-grandense. Se não podemos falar, por definição conceitual, de tortura governativa, podemos nos referir a elas como expressões de uma violência institucional que estava sendo contestada. Foi esse o passaporte que lhe possibilitou saltar a fronteira das “cousas municipaes” e se aventurar, inclusive, em considerações sobre instituições e regimes penitenciários teoricamente mais humanos.

Apesar de tudo, não estamos convencidos de que toda a tinta gasta tenha sido produzida unicamente para atingir o Império. Pensamos que, em meio a isso, também havia uma defesa sincera acerca de determinados princípios de justiça e caridade por utilizar expressões coevas, compartilhadas não somente por Felicíssimo, mas por muitos correligionários republicanos. Aparte do saber médico que vinha cada vez mais penetrando no mundo prisional, propondo cuidados higiênico-sanitários, antes de medicalizar o crime, resulta igualmente difícil imaginar que o saber jurídico moderno se sentisse cômodo com a existência de tratamentos vexatórios e cruéis nos estabelecimentos penitenciários, contrariando a doutrina e a teoria do sistema de justiça liberal.

O que estamos tentando dizer é que, por uma questão de interesse e identificação de princípios compartilhada por médicos, advogados e outros profissionais liberais ou não, fazer ouvidos surdos à degradação dos recintos prisionais e o que isso significava física e mentalmente para seus inquilinos podia deslegitimar o próprio discurso sobre o qual suas próprias áreas de atuação se projetavam, incluindo a política. Como diriam nossos colegas espanhóis: “A tortura e o maltrato derrubariam toda a construção teórica da humanização do castigo penal”45 45 Trad. livre do autor: “La tortura y el maltrato derribarían toda la construcción teórica de la humanización del castigo penal”. (OLIVER; GARGALLO, 2020OLIVER OLMO, Pedro; GARGALLO VAAMONDE, Luis. Tortura gubernativa y estado liberal. In: OLIVER OLMO, Pedro (coord.). La tortura en la España contemporánea. Madrid: Catarata, 2020. p. 23-84., p. 67), e o que era pior, justamente num momento em que a ciência criminal parecia começar a responder a inúmeros interrogantes.

Por outra parte, não restam dúvidas de que as ideias penitenciárias defendidas por Felicíssimo devem ser estendidas e atribuídas igualmente à direção da redação do A Federação, ocupada naquele momento por Júlio de Castilhos, e além dela. E por que isso é tão importante? porque serão esses mesmos homens que tomarão a dianteira da reforma que se levará a cabo no sistema penal-carcerário da província, poucos anos depois do golpe de 15 de novembro de 1889. Mas não se engane, nem tudo o que reluzia era ouro. A disciplina e a moralização por si só nunca interessaram nem a monarquistas nem a republicanos. O trabalho ou o sistema escolhido devia render resultados economicamente palpáveis, não importasse se através de uma colônia agrícola no Alto Uruguai, deportando gente para outros lugares, ou punindo por meio de penitenciárias aos moldes da de Sing-Sing, nos Estados Unidos. Foucault acerta, nesse sentido, quando fala da “constituição de uma relação de poder”, ou de “um esquema da submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção” (FOUCAULT, 2012FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 230), mas, ao menos em nosso caso, as fontes mostram claramente que os governantes imperiais ou republicanos nunca se contentaram com a ideia de que a utilidade do trabalho penal pudesse valer apenas por sua “forma econômica vazia”. Tal como defenderiam os mandatários do PRR, alguns anos depois, antes de moralizar e disciplinar, o trabalho deveria render dividendos que auxiliassem na desoneração dos cofres públicos (CESAR, 2021aCESAR, Tiago da Silva. As oficinas e o trabalho penal dos condenados da Casa de Correção de Porto Alegre (1895-1930). Tempo, Niterói, v. 28, n. 3, p. 501-529, set./dez. 2021a.; 2021bCESAR, Tiago da Silva. Trabalho, lucro e regeneração na Casa de Correção de Porto Alegre durante a República Velha. Millars. Espai I Història, v. 2, n. 51, p. 135-177, 2021b.). Nada mais acorde com o que Felicíssimo havia expressado em suas crônicas.

Em 1896, pelo Ato nº 24 de 29 de fevereiro, o PRR transformaria a Cadeia Civil em Casa de Correção de Porto Alegre, dotando-a de um regulamento novo, baseado num projeto elaborado pelo advogado Germano Hasslocher.46 46 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 21 fev. 1895, p. 2. Apesar de considerado por Borges de Medeiros “uma das aberrações do século XIX”47 47 Expressão originalmente esgrimida por Enrico Ferri acerca do sistema celular (SONTAG, 2019, p. 122). , escolheu-se como regime o sistema celular alburniano e se introduziram melhorias materiais, incluída a implantação de uma repartição de antropometria criminal, entregue ao médico Sebastião Leão, autor da proposta. Todavia, a finais do XIX, os castilhistas lograriam pôr em marcha algumas oficinas que, na virada do século, tornariam o estabelecimento uma das principais fábricas do Rio Grande do Sul e, talvez, do Brasil, durante a Primeira República.

  • 1
    Em Porto Alegre, Felicíssimo anunciava seu gabinete dentário, em princípios de 1884, situado à rua da Igreja, nº 256, “em frente ao Lyceu”, aberto das 9 horas da manhã às 15 horas da tarde (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 1º mar. 1884, p. 3).
  • 2
    Estamos seguros de que o sentido do termo honorário utilizado por Felicíssimo é o mesmo recolhido pelo dicionário de Luís Maria da Silva Pinto (1832PINTO, Luís Maria da Silva. Diccionario da Língua Brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5414. Acesso em: 3 jul. 2022.
    https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/54...
    , p. 579): “Em que não se recebe emolumento pecuniario, mas só as honras”.
  • 3
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 25 set. 1884, p. 2.
  • 4
    É possível rastrear sua coluna inclusive após a chegada da República, porém, nessas matérias, o encontramos arremetendo contra outros inimigos. Em 1890, Felicíssimo assumiu a presidência da junta municipal, desde 22 de janeiro daquele ano, até 21 de novembro de 1891 (BAKOS, 2007BAKOS, Margaret M. Política na sala de visitas (1897-1937). In: GOLIN, Tau; BOEIRA, Nelson (orgs.). República Velha (1889-1930), v. 3, tomo 1. Passo Fundo: Méritos, 2007. p. 171-221., p. 182). No “registro mortuorio” publicado no A Federação de 3 de julho de 1905, o ancião correligionário (branco, viúvo, falecido aos 82 anos) fora assim apresentado: “Collaborou dedicadamente na formação do partido republicano, doutrinando e agindo na dilatada esphera de suas inumeras e selectas relações, na dedicação á causa que desde moço esposara e ao progresso de sua terra”. Falecido às 23h30 do dia 2 de julho, após uma “longa enfermidade”, o enterraram na tarde do dia seguinte, circundado por “grande concurrencia”, havendo também comparecido o presidente do Estado, Antônio Augusto Borges de Medeiros e o diretor da redação do A Federação, Olavo Godoy (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 3 jul. 1905, p. 2).
  • 5
    Essa comissão assinou um extenso e detalhado relatório em 14 de junho, publicado pelo A Federação na íntegra no número do dia 30 do mesmo mês e ano.
  • 6
    “Em cada reunião, nomearão uma commissão de cidadãos probos, de cinco pelo menos, a quem encarregarão a visita das prisões civis, militares, e ecclesiasticas, dos carceres dos conventos dos regulares, e de todos os estabelecimentos publicos de caridade para informarem do seu estado, e dos melhoramentos, que precisam” (BRASIL, 1828BRASIL. Presidência da República. Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova fórma ás Camaras Municipaes, marca suas attribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juizes de Paz. Rio de Janeiro, 20 out. 1828. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-1-10-1828.htm. Acesso em: 26 jun. 2022.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
    ).
  • 7
    Aquela visita de maio de 1885, além de meticulosamente organizada, representou apenas o pontapé inicial de um ciclo de denúncias que varou a década de 1880, jogando no ventilador o descaso das autoridades do executivo provincial para com os homens e mulheres privados de liberdade no principal depósito de indesejáveis da província sul-rio-grandense. Sobre isso, veja-se Cesar (2023)CESAR, Tiago da Silva. A “questão penitenciária” no Rio Grande do Sul como arma política contra o Império (1884-1889). Revista de História, São Paulo, n. 182, p. 1-29, 2023..
  • 8
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 8 maio 1886, p. 2.
  • 9
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.
  • 10
    João Adolpho Josetti Filho, que participou da referida visita sanitária do dia 8, anunciava seus serviços de “operador e parteiro” no A Federação. Apresentava-se como “ex-interno de clinica cirurgica da faculdade de medicina, dos hospitaes de Misericordia e de Marinha do Rio de Janeiro”, residindo e atendendo à rua da Igreja, nº 216, das 13h às 15h da tarde (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 12 ago. 1886, p. 3). Josetti formou-se em 1884 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e, após sua meteórica passagem pela Inspetoria de Higiene da Província de São Pedro, em 1886, viajou para a Europa, onde realizou estudos na Alemanha e França. À sua volta, passou a atuar na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e em sua clínica particular (OLIVEIRA, 2012OLIVEIRA, Daniel. Morte e vida feminina: mulheres pobres, condições de saúde e medicina da mulher na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (1880-1900). Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012., p. 163). Ainda segundo o autor, antes mesmo de integrar o novo grupo de médicos daquele pio estabelecimento, em 1890, trazido por Victor de Britto e Ramiro Barcellos (ambos membros do PRR), estes e o primeiro já eram sócios da Beneficência Portuguesa de Porto Alegre, compondo o corpo de facultativos do seu hospital.
  • 11
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.
  • 12
    Idem.
  • 13
    Bastaria uma simples olhada nas anotações de seu diário para encontrar várias referências minuciosas sobre os mais diferentes cárceres visitados durante as viagens oficiais, dentro e fora do país. Em 1876, nos Estados Unidos, esteve na Western Penitentiary, em Alleghany City, próximo a Pittsburg, na Pensilvânia. Também visitou a prisão de Albany, capital do Estado de Nova Iorque, algumas cadeias de Boston e de outros lugares (GUIMARÃES, 1961GUIMARÃES, Argeu. D. Pedro II nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961., p. 198-200 e 279).
  • 14
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 20 jul. 1886, p. 2.
  • 15
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.
  • 16
    Relatou-se que os reclusos doentes estavam aglomerados na enfermaria, sem a atenção de um enfermeiro que ministrasse os medicamentos e dietas nas horas recomendadas. Além disso se descreveu a prisão como imunda, sem limpeza e desinfecção dos xadrezes igualmente superlotados, onde se negava inclusive os meios para a higiene corporal (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 2).
  • 17
    Idem.
  • 18
    “As colônias militares eram dotadas de diferentes características e poderiam ser de dois tipos: as fronteiriças e as interioranas. No caso da Colônia Militar de Caseros, era uma colônia militar interiorana, reunindo em uma mesma colônia militares e indígenas da parcialidade Kaingang, e foi o único empreendimento militar no extremo Sul do Brasil com essa tipologia. A segunda colônia militar, situada no Alto Uruguai (1879), era ainda mais isolada e caracterizava-se como uma colônia de fronteira” (SCHMITZ; LOPES, 2019SCHMITZ, Kalinka de Oliveira; LOPES, Indaia Dias. Conflitos, localismos e regionalismos na Colônia Militar de Caseros no Norte do Rio Grande do Sul no século XIX. Oficina do Historiador, v. 12, n. 1, p. 1-5, jan./jun. 2019., p. 2).
  • 19
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.
  • 20
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 13 maio 1886, p. 1.
  • 21
    Idem.
  • 22
    Para bons entendedores, é evidente que Felicíssimo não estava pensando nos monarquistas. Mais adiante chegou a expressar, inclusive, o seguinte julgamento: “Estamos ainda muito atrazados, muito pobres de homens para o governo do paiz; por toda a parte só encontramos parladores, sendo d’estes tirados os directores do governo” (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 13 maio 1886, p. 1).
  • 23
    O que não impede reconhecer que parte de uma elite letrada, como os juristas brasileiros, vinham há tempos esgrimindo preocupação sobre o fato de que um dos fins da punição deveria ser a regeneração dos criminosos (SONTAG, 2016SONTAG, Ricardo. “Curar todas as moléstias com um único medicamento”: os juristas e a pena de prisão no Brasil (1830-1890). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 177, n. 471, p. 45-72, abr./jun. 2016.).
  • 24
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 13 maio 1886, p. 1.
  • 25
    Idem.
  • 26
    Idem.
  • 27
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 30 jun. 1885, p. 1.
  • 28
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 13 maio 1886, p. 1.
  • 29
    Idem.
  • 30
    Idem.
  • 31
    Ibidem, p. 1-2.
  • 32
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2. A primeira havia ocorrido no dia 14, a convite da Junta de Higiene, acompanhado dos membros da referida junta, os facultativos Israel Rodrigues Barcellos Filho, João Adolpho Josetti Filho e Arthur Benigno Castilho, além do Chefe de Polícia e do Promotor Público. Na ocasião, a imprensa esteve presente através de O Mercantil e de A Federação (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 14 maio 1886, p. 2). Na do dia 17, Deodoro se apresentou juntamente com o Diretor Geral da Diretoria Provincial, do Cirurgião-mor do Corpo de Saúde, do Provedor da Santa Casa de Misericórdia e de outros funcionários não especificados. Segundo se informou, a intenção desta última era remover os “alienados” dali para o Hospício São Pedro, inaugurado em 29 de junho 1884, além de buscar meios para a continuidade das obras da cadeia “no mais curto prazo possivel” (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2).
  • 33
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2.
  • 34
    Idem.
  • 35
    Idem. A preferência militar se refletirá mais tarde por meio de sucessivas indicações de oficiais do Exército para o cargo de administrador da Casa de Correção de Porto Alegre. Tudo leva a crer que o primeiro civil a governar o estabelecimento após 1896/7 foi Plauto de Azevedo, a partir de julho de 1920 (CESAR, 2021bCESAR, Tiago da Silva. Trabalho, lucro e regeneração na Casa de Correção de Porto Alegre durante a República Velha. Millars. Espai I Història, v. 2, n. 51, p. 135-177, 2021b., p. 143).
  • 36
    Apenas a título de exemplo, lembre-se do caso da Colônia Correcional de Dois Rios (SANTOS, 2009SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Os porões da República: a barbárie nas prisões da Ilha Grande (1894-1945). Rio de Janeiro: Garamond, 2009.), construída na Ilha Grande (RJ); da Colônia Agrícola de Clevelândia (PEDROSO, 2002PEDROSO, Regina Célia. Os signos da opressão: história e violência nas prisões brasileiras. São Paulo: Arquivo do Estado, 2002., p. 108-109), levantada na margem direita do Rio Oiapoque, na fronteira com a Guiana Francesa (PA), ou, ainda, o Instituto Correcional da Ilha Anchieta (FERREIRA, 2018FERREIRA, Dirceu Franco. Rebelião e reforma prisional em São Paulo: uma história da fuga em massa da Ilha Anchieta em 1952. Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: Fapesp, 2018.), fundado na antiga Ilha dos Porcos (SP). O exemplo vinha de longe, mas talvez o Presídio de Fernando de Noronha (COSTA, 2009COSTA, Marcos Paulo Pedrosa. O caos ressurgirá da ordem: Fernando de Noronha e a reforma prisional no Império. São Paulo: IBCCRIM, 2009.; BEATTIE, 2015BEATTIE, Peter M. Punishment in Paradise: Race, Slavery, Human Rights, and a Nineteenth-Century Brazilian Penal Colony. Durham: Duke University Press, 2015.) tenha sido o de maior expressão pelo longo período em funcionamento.
  • 37
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 17 maio, 1886, p. 2.
  • 38
    “In the years before the Depósitos were fully functioning (i.e. 1822 to 1881), Portugal exiled approximately 135 convicts and 50 vagrants annually, or 11,000 people to all its colonies, with an increasingly tendency to favour Angola. Looking at the Depósitos, it is easier to arrive at a total but it does not include vagrants, political or military deportees. The Depósito in Luanda was a much larger operation than its counterpart in Mozambique. The Luanda facility alone received well more than half (12,500) of the 16,000 to 20,000 convicts and vagrants sent to colonial exile from 1880 to 1932”. Trad. livre do autor: “Nos anos anteriores ao funcionamento pleno dos Depósitos (ou seja, 1822 a 1881), Portugal exilava cerca de 135 condenados e 50 vagabundos por ano, ou 11.000 pessoas a todas as suas colônias, com uma tendência cada vez maior para favorecer Angola. Olhando para os Depósitos, é mais fácil chegar a um total, mas não inclui vagabundos, deportados políticos ou militares. O Depósito em Luanda era uma operação muito maior do que a sua contraparte em Moçambique. Só as instalações de Luanda receberam bem mais da metade (12.500) dos 16.000 a 20.000 condenados e vagabundos enviados para o exílio colonial de 1880 a 1932”.
  • 39
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2.
  • 40
    Idem.
  • 41
    Trad. livre do autor: “El modelo de Auburn o ‘congregado’ enfatizaba vigorosamente el trabajo productivo, con miras a transformar las prisiones em verdaderas fábricas”.
  • 42
    Vale acrescentar que o republicano tomava de maneira mecânica e naturalizada a ideia de que “assim como a população cresce, o numero dos criminosos igualmente augmenta” (A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 20 maio 1886, p. 1).
  • 43
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 20 maio 1886, p. 1.
  • 44
    É sabido que d. Pedro II passou a comutar cada vez mais as penas de morte por penas de galés. Veja-se Pirola (2016PIROLA, Ricardo Figueiredo. Cartas ao Imperador: os pedidos de perdão de réus escravos e a decisão de 17 de outubro de 1872. Almanack, v. 1, p. 130-152, 2016., p. 134-135).
  • 45
    Trad. livre do autor: “La tortura y el maltrato derribarían toda la construcción teórica de la humanización del castigo penal”.
  • 46
    A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 21 fev. 1895, p. 2.
  • 47
    Expressão originalmente esgrimida por Enrico Ferri acerca do sistema celular (SONTAG, 2019SONTAG, Ricardo. “Casas de correcção” ou “casas de corrupção”? Os juristas e a questão penitenciária no Brasil (1830-1984). In: CESANO, José Daniel; NÚÑEZ, Jorge A.; GONZÁLEZ ALVO, Luis (eds.). Historia de las prisiones sudamericanas: entre experiencias locales e historia comparada (siglos XIX y XX). San Miguel de Tucumán: Universidad Nacional de Tucumán, 2019. p. 91-171., p. 122).

Fontes documentais

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2022
  • Aceito
    08 Nov 2022
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