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Conflito mágico-religioso no universo ficcional de um intelectual umbandista da primeira metade do século XX

Magical and religious conflict in the fictional universe of an Umbanda intellectual of the first half of the twentieth century

Conflicto mágico-religioso en el universo ficticio de un intelectual de Umbanda en la primera mitad del siglo XX

RESUMO

Este texto tem como objeto de pesquisa uma obra de um intelectual da Umbanda, bastante citado no meio literário umbandista, chamado Lourenço Braga. Este autor deixou livros de cunho doutrinário, preponderantemente. Contudo, aventurou-se pela ficção, escrevendo um romance bastante interessante para o estudo da construção identitária da Umbanda na primeira metade do século XX. Enfoca-se, sobretudo, o esforço do autor em deixar uma narrativa da Umbanda que acenasse aos valores norteadores do agir coletivo, vigentes em meados do século XX. O conflito mágico-religioso ocupa um lugar preponderante tanto nas obras doutrinárias, quanto no romance deixado pelo autor. O romance é trabalhado como documento para a compreensão do projeto identitário da Umbanda.

Palavras-chave:
magia; Umbanda; religiões afro-brasileiras

ABSTRACT

This research focuses on the work of the Umbanda intellectual Lourenço Braga, often quoted in Umbanda literature. The author published books mainly of doctrinal nature, however, he ventured to publish fiction, when he wrote a very interesting novel for the study of the identity construction of Umbanda in the first half of the twentieth century. This papel focuses mainly on the author’s effort to provide a narrative of Umbanda that draws the attention to the guiding principles of colletive action in force in the mid-twentieth century. The magical and religious conflict accounts for an important role both in the doctrinal work and in the novel written by de author. He made his novel as a document for the understanding of the Umbanda identity Project.

Keywords:
magic; Umbanda; Afro-Brazilian religions

RESUMEN

Este texto tiene como objeto de investigación una obra de un intelectual de Umbanda, ampliamente citado en los círculos literarios de Umbanda, llamado Lourenço Braga. Este autor dejó en su mayoría libros doctrinales. Sin embargo, incursionó en la ficción, escribiendo una novela muy interesante para el estudio de la construcción identitaria de la Umbanda en la primera mitad del siglo XX. Se centra, sobre todo, en el esfuerzo del autor por dejar una narrativa de Umbanda que hiciera señas a los valores rectores de la acción colectiva, vigente a mediados del siglo XX. El conflicto mágico-religioso ocupa un lugar preponderante tanto en las obras doctrinales como en la novela dejada por el autor. La novela se trabaja como documento para la comprensión del proyecto identitario de Umbanda.

Palabras clave:
magia; Umbanda; religiones afrobrasileñas

Introdução

Entre a memória afro-ameríndia e o Espiritismo de tradição francesa; entre práticas de oralidade e escrita, a Umbanda desenvolveu um projeto identitário peculiar no Brasil. Se não se pode encarar a Umbanda, simplificadamente, como uma religião letrada (ISAIA, 1999ISAIA, Artur Cesar. Ordenar progredindo. A obra dos intelectuais da Umbanda no Brasil da primeira metade do século XX. Anos 90, v. 7, n. 11, p. 97-120, 1999.), também é verdade que não podemos ignorar uma literatura doutrinária umbandista, visível já em meados do século XX. Um dos autores doutrinários umbandistas, Lourenço Braga, aventurou-se pelos caminhos da ficção, constituindo o seu romance, Os mistérios da magia, o centro de atenção deste artigo.

O romance será interrogado levando em conta o seu caráter de monumento (LE GOFF, 1996LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1996.), ou seja, como capaz de ser apreendido na sua historicidade, no contexto sócio-histórico no qual aparece. O romance de Lourenço Braga será analisado a partir da tentativa do autor em criar uma narrativa mais próxima possível do Cristianismo e do Espiritismo codificado por Allan Kardec. Na direção de ambos os sentidos o autor criou uma narrativa extremamente indiciária de um projeto identitário refratário à ancestralidade africana. Este projeto integra-se ao esforço maior, neste sentido, dos intelectuais e dirigentes umbandistas da primeira metade do século XX. Assim, podem ser compreendidas as críticas que o autor recebe no presente por parte de alguns intelectuais da Umbanda, como Diamantino Trindade (2010TRINDADE, Diamantino. A construção histórica da literatura umbandista. Limeira: Editora do Conhecimento, 2010.)1 1 Este autor umbandista fez um interessante levantamento dos escritores da Umbanda, no qual aparece Lourenço Braga, sem, contudo, mais informações biográficas. .

Como narrativa prescritiva de nomeação da realidade (BOURDIEU, 1996BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: USP, 1996.) o projeto identitário no qual Lourenço Braga está inserido é datado, articula-se diacronicamente a interesses e a valores socialmente orientados. Portanto, o romance aqui focalizado integra um projeto inteligível em um dado momento histórico. Em breve e em outras situações, outros intelectuais e dirigentes umbandistas desenvolveriam projetos distintos, o que fica muito claro já na segunda metade da década de 1950, com uma reação valorizadora do passado africano2 2 Para Vagner Gonçalves da Silva, os anos 1950 foram reveladores da pressão de alguns segmentos umbandistas no sentido de aproximar a religião dos “valores africanos” (SILVA, 1994). . Tentando compreender os relacionamentos entre a Umbanda e a ancestralidade africana, tanto Camargo (1961CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda: uma interpretação sociológica. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1961.) quanto Ortiz (1978ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda: integração de uma religião numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes, 1978.) e, posteriormente, Negrão (1996NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada. Formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo: Editora da USP, 1996.) enfocaram a nova religião em movimentos de aproximação ou afastamento, tanto ao Espiritismo de matriz francesa e ao universo axiológico dominante na sociedade brasileira quanto à memória ancestral africana. Tais análises embora configurem importantes esforços compreensivos, trataram a Umbanda de forma generalizante. Desde a década de 1990, Isaia (1999ISAIA, Artur Cesar. Ordenar progredindo. A obra dos intelectuais da Umbanda no Brasil da primeira metade do século XX. Anos 90, v. 7, n. 11, p. 97-120, 1999.) tem defendido a necessidade de um olhar compreensivo das idiossincrasias da Umbanda, dos seus aspectos particulares, da extrema polissemia do sagrado umbandista. Trabalhos como os de Anjos (2008ANJOS, José Carlos dos. A filosofia política da religiosidade afro-brasileira como patrimônio cultural africano. Debates do NER, v. 7, n. 13, p. 77-96, 2008.) e de Nogueira (2017NOGUEIRA, Léo Carrer. Da África para o Brasil, de Orixá a Egum: as ressignificações do Exu no discurso umbandista. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.) abordam o caráter rizomático das religiões afro-brasileiras, marcado pela singularidade e articulação das diferenças. Assim, na Umbanda não há uma verticalização institucional do mando, com autoridades unanimemente reconhecidas com legitimidade para por ela falarem. Desta forma os terreiros e os dirigentes estão mais sujeitos à autoridade local. Por esta razão, segundo Prandi, as generalizações não são bem-vindas ao estudarmos as religiões afro-brasileiras e a Umbanda. Esta é uma ressalva muito importante que faço ao encarar uma fonte histórica, como o romance de Lourenço Braga: a produção dos intelectuais umbandistas, tanto as de caráter doutrinário quanto ficcional, deve ser remetida à polifonia de vozes dotadas de um investimento de falar sobre uma religião atomizada. A forma como a magia e os espíritos estão presentes no documento aqui enfocado adquire nexo maior ao articular-se com a análise de Velho (1991VELHO, Gilberto. Indivíduo e religião na cultura brasileira. Sistemas cognitivos e sistemas de crença. Novos Estudos v. 3, n. 31, p. 121-129, 1991.) sobre as simultâneas relações afetivas e cognitivas presentes na apreensão dos fenômenos mediúnicos no Brasil.

O bem e o mal: o esforço doutrinário

A fonte aqui trabalhada é encarada justamente como lócus no qual há o relacionamento extratextual com valores, crenças e universo afetivo de boa parte da população brasileira (SEVCENKO, 1985SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1985.). Desta forma compreende-se, para além das dicotomias da lógica e da teologia ocidentais, bem como da sociologia de matriz francesa3 3 A lógica ocidental, na esteira de Aristóteles e São Tomás de Aquino, não reconhecia a possibilidade de “ser isso e aquilo” concomitantemente, alicerçada nos seus três princípios fundamentais: o da identidade, o da não contradição e do terceiro excluído. Assim, tanto a teologia tomista quanto a sociologia francesa do final do século XIX e início do XX, no rastro de Durkheim, reconheciam a oposição entre religião e magia. , a coexistência entre Espiritismo, Umbanda, Religião e Magia, frequentando o horizonte intelectivo, os afetos dos personagens e a construção da trama.

Lourenço Braga firmou-se como um intelectual umbandista com uma produção bibliográfica preponderantemente doutrinária. Os dados esparsos que aparecem sobre sua pessoa na imprensa brasileira dos anos 1950 e 1960 indicam tratar-se de um autor, considerado à época uma referência sobre a Umbanda, sendo citado mesmo em uma crônica de Carlos Drummond de Andrade (1951ANDRADE, Carlos Drummond de. O zombeteiro Exu. Correio da Manhã, Quarto Caderno, 17 jun., 1951, p. 1.). Os dados colhidos indicam que Lourenço Braga circulava em uma rede de sociabilidade suburbana carioca, na qual aparecia como líder e porta-voz de moradores, trabalhando como funcionário público municipal e membro proeminente do Clube Municipal do Rio de Janeiro4 4 A referência à atuação de Lourenço Braga junto ao Clube Municipal do Rio de Janeiro aparece aqui como evidência da representatividade do autor em relação aos funcionários públicos municipais dos quais fazia parte, conforme aparece na imprensa carioca dos anos 1940 e 1950. O clube, localizado no bairro da Tijuca, é conhecido ainda hoje como o “quartel general dos servidores públicos”, lutando pelos “interesses dos servidores públicos do Rio de Janeiro e do Brasil” (CLUB MUNICIPAL, 2020, s.p.). . Os indícios da sua articulação a uma rede de sociabilidade suburbana ganham mais nitidez com a informação de que se tratava de um “nome conhecido bastante no Triângulo Carioca e antigo político das hostes do ex-senador Cesário de Melo”5 5 O PAPEL das Associações Esportivas nas lutas. O Jornal. Rio de Janeiro, Segunda Secção, 26 set. 1950, p. 2. . A mesma notícia que mostra o autor como figura familiar aos bairros que formavam o Triângulo Carioca (Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz), refere-se a ele também como porta-voz dos moradores “da mais antiga Vila Proletária”. Essa notícia, ao ligar o nome de Lourenço Braga ao do senador Cesário de Melo, conhecido por sua política clientelista, acena para a possibilidade de estarmos frente a alguém com trânsito político e reconhecimento social no chamado “sertão carioca”, antiga zona rural da cidade do Rio de Janeiro (SANTOS, 2018SANTOS, Leonardo Soares dos. Um sertão e muitas certezas: a luta pela terra na zona rural da cidade do Rio de Janeiro (1945-1964). Joinville: Clube dos Autores, 2018.). Essas informações nos remetem à ficção de Lima Barreto, o qual apresenta o subúrbio carioca como um lócus de sobrevivência da memória ancestral africana. Lima Barreto, em 1920, mostrava a herança mnemônica africana mesclada ao Espiritismo, habitando a cotidianidade dos homens e mulheres suburbanos (LIMA BARRETO, 2010LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Contos completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.).

A obra segue um padrão estético e ideológico explicitamente folhetinesco, com claro acento melodramático. Por um lado, hipertrofia a ação, o maniqueísmo na construção dos personagens. Por outro, divulga valores socialmente orientados para a manutenção do nomos social. Peter Brooks (1995BROOKS, Peter. The melodramatic imagination: Balzac, Henry James, melodrama, and the mode of excess. Londres: Yale University Press, 1995.), comentando a construção simplificada e binária dos personagens melodramáticos, mostra como o melodrama extrapola o teatro, estando extremamente presente no romance moderno. Para Brooks, a proeminência da dicotomia entre o bem e o mal na narrativa melodramática e no romance moderno tem interfaces religiosas, remetendo às raízes judaico-cristãs ocidentais. A veiculação de um imaginário melodramático na literatura ocidental acontece com o conflito entre as forças do bem e do mal afirmando uma metanarrativa. Rodríguez e Salvador (2005RODRÍGUEZ, Juan Carlos; SALVADOR, Álvaro. Introducción al estudio de la literatura hispanoamericana. Las literaturas criollas de la independencia a la revolución. Madrid: Akal Universitaria, 2005.), analisando a literatura melodramática hispano-americana, dão destaque à hipertrofia da sensibilidade, configurando o que chamam de uma “estrutura melodramática”, com interfaces com a religião. Os autores insistem na forma como a sensibilidade hipertrofiada pode, inclusive, circular entre lugares socialmente distintos, ultrapassando valores inerentes a uma territorialidade social e universalizando padrões axiológicos.

No romance, a dualidade entre o bem e o mal permeia toda a narrativa, com personagens e situações capazes de cumprir de forma binária a simplificação e radicalização da realidade, operações constituintes, para Boia (1998BOIA, Lucien. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris: Belles Lettres, 1998.), do imaginário social. Há personagens maus, comprometidos com forças noturnas, anômicas, grotescas e personagens bons, próximos da perfeição e da simetria do cosmos (CHEVALIER; GUERBRANT, 2003CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.). Os personagens maus são construídos com qualidades indiciárias da sua proximidade com o mal ancestral judaico-cristão. Não habitam um universo familiar, não desfrutam uma aceitável rede de afetividades e não se subordinam aos códigos orientadores do agir coletivo. É muito sintomático que Lourenço Braga identifique a magia como a qualidade principal do “núcleo do mal” no romance e oponha a religião como marca do “núcleo do bem”. Os personagens que habitam este “núcleo do mal”, não se conformando à ordem social e à “obviedade” com a qual aqueles que a nomeiam querem dotá-la (BOURDIEU, 1996BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: USP, 1996.), recriam o mundo ao seu modo, segundo seus valores e interesses. Recriação típica do magismo. Práticas mágicas de quem alia poder e insubordinação àquilo que se apresenta como inquestionável pelos valores dominantes. Nesse sentido, André Jolles, estudando as formas simples de narrativas, extremamente presentes na memória social como os provérbios, os mitos e as legendas, conclui pela existência de uma quase “divisão do trabalho” na linguagem. Assim há os que conservam a realidade (identificados pelos circunstantes e personificados no camponês); os que subvertem a realidade “natural” (identificados nos obstantes e personificados no artesão) e há ainda aqueles que dão significado, que chancelam ou condenam a realidade, (identificados pelos intérpretes, personificados no sacerdote) (JOLLES, 1976JOLES, André. Formas simples. Legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso memorável, conto, chiste. São Paulo: Cultrix, 1976.). Como se vê, Jolles remete à autoridade religiosa e sacerdotal a tarefa de sancionar ou condenar a realidade social, disputando com a atividade criativa e subversora do artesão. Portanto, o trabalho do artesão aproximava-se da magia e da atividade dos magos, capazes de desafiar a ordem cosmológica, afirmando seu talento criador. Se Jolles remete a subversão da ordem “natural” ao ato criativo do artesão, o parentesco com a recriação magística é evidente. Na magia não há obvie­dade, fixidez, não há lugares a priori determinados por uma vontade superior. Tudo é passível de transformação por aqueles que detêm os conhecimentos capazes da recriação da realidade (MARTINO, 1999MARTINO, Ernesto de. Le monde magique. Paris: Institut d’étition Sanofi-Synthélabo, 1999.). A sociologia das religiões tradicional, na esteira de Durkheim (1978DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Abril Cultural, 1978.; 1996DURKHEIM, Émile. Sobre la definición de los fenômenos religiosos. In: Classificaciones primitivas y otros ensayos de antropologia positiva. Barcelona: Editorial Ariel, 1996.), insistiu na dualidade entre, por um lado, religião, moral e coesão social e, por outro, a magia como força individualizante e desafiadora das forças nomizantes, distantes da moral. Postura semelhante teve Malinowski (1988MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa: Editora Setenta, 1988.), para o qual o horizonte mágico diferenciava-se do religioso essencialmente por seu caráter utilitário. Esta dualidade seria nuançada por autores como Mauss (2003MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naufy, 2003.) e Gurvitch (1953GURVITCH, Georges. La vocación actual de la sociologia: hacia uma sociologia diferencial. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1953.). O primeiro aproximando religião, magia e sociedade (embora continue a separar as características do rito religioso e do rito mágico) e o segundo explicando a magia enquanto fenômeno social a partir do surgimento de grupos heterônomos em relação à moral dominante. Da mesma forma que reconhece um direito fora do âmbito do estado (GURVITCH, 2014GURVITCH, Georges. A magia e o direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.), o autor reconhece na magia uma reação de grupos não integrados, marginais a realidades sociais institucionalmente reconhecidas, como a Igreja e o Estado. A possibilidade de coexistência entre religião e magia, fundamental para compreendermos o sagrado umbandista, aparece claramente em Max Weber. A separação que faz entre tipos ideais e o mundo empírico invalidava uma separação radical entre magia e religião. Em muitas ocasiões Weber mostra a coexistência entre a coação mágica e o serviço religioso. Nesse caso a oração e a atividade mágica poderiam coexistir, pois as religiões “praticam a oração autêntica individual, como súplica, na maioria das vezes numa forma racional, puramente comercial: o rezador apresenta ao deus os serviços prestados, esperando contraprestações correspondentes” (WEBER, 2009WEBER, Max. Economia e sociedade. Fundamentos de Sociologia Compreensiva. Brasília: Editora da UnB, 2009., p. 139). No campo da História, a possibilidade de uma coexistência empírica entre religião e magia aparece claramente em Keith Thomas. Este autor mostrou como os historiadores, na influência dos textos teológicos medievais tenderam a opor religião e magia, impossíveis de serem dissociadas ao pensar-se a Inglaterra da Idade Média (THOMAS, 1991THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.).

Lourenço Braga interage tanto com a sociologia tradicional das religiões quanto com a teologia cristã. Em ambas, aparece a oposição entre religião e magia. Para Lourenço Braga, a Umbanda seria capaz de processar a magia ancestral africana e indígena com o Cristianismo, o qual subordinaria o magismo a um fundamento ético. Portanto, a Umbanda proposta por Lourenço Braga exemplificaria empiricamente a concomitância entre religião e magia. No romance de Lourenço Braga, o que o autor chama indistintamente de Quimbanda e Candomblé opõe-se aos trabalhos da Umbanda, justamente pela forma como a magia aparece nos dois casos. No primeiro caso, o autor coloca a magia orientando de forma soberana os trabalhos rituais. Estes são encaminhados para levar adiante projetos mesquinhos, vinganças, desejos inconfessáveis. Em se tratando da Umbanda, o autor remete a uma magia controlada religiosamente. A Umbanda aparece como detentora dos ensinamentos de “magia branca”, capazes de desfazer o mal causado nas Quimbandas e Candomblés. No lugar do poder de recriar a natureza e intervir, sem nenhum limite, na vida dos semelhantes, a Umbanda traria, para Lourenço Braga, um magismo controlado pela ética cristã. Lourenço Braga, em outra obra, de cunho doutrinário, construiu as diferenças entre Umbanda, por um lado e o que chama, sem diferenciação, de Quimbanda e Candomblé (BRAGA s.d.BRAGA, Lourenço. Umbanda (Magia Branca) e Quimbanda (Magia Negra). Rio de Janeiro: EDC, s.d.). O surgimento da Umbanda no Brasil, para Lourenço Braga, integraria um plano divino para regenerar os adeptos da Quimbanda e do Candomblé e neutralizar o seus malefícios. O argumento invocado por Lourenço Braga está em íntima ligação com uma das teses apresentadas no Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda, celebrado em 1941. Nesta ocasião, outro intelectual umbandista, Baptista de Oliveira, sustentava que os conhecimentos mágicos do antigo Egito haviam sido “deturpados” pelos africanos negros, com o objetivo de causar o mal (FEDERAÇÃO, 1942FEDERAÇÃO ESPÍRITA DE UMBANDA. Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1942., p. 114). Para Negrão (1996NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada. Formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo: Editora da USP, 1996.) a visão refratária ao passado africano negro vai encontrar oposição quando a Umbanda passar a revelar uma situação tensional de campo, o que acontece de meados do século XX em diante.

O bem e o mal: a magia e a trama

A trama criada por Lourenço Braga é ambientada no Rio de Janeiro no ano de 1900. Portanto o autor remete a Umbanda para uma temporalidade bem anterior ao seu desenvolvimento enquanto religião. Os números apresentados por Ortiz evidenciam o aparecimento da Umbanda enquanto opção religiosa, na segunda metade do século XX (ORTIZ, 1978ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda: integração de uma religião numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes, 1978., p. 49-58).

A trama gira em torno de uma família de grandes proprietários rurais, que vive placidamente desfrutando sua fortuna e posição social, até a chegada de um vilão. É o núcleo familiar formado pelos dois irmãos, Estela e Marcos, bem como seus pais. O vilão, chamado Ricardo, aparece justamente introduzindo a magia na trama. Portanto, a narrativa do romance sofre uma inflexão com a sua chegada. Ele anuncia o mal, a desgraça, a doença, a pobreza, cumprindo claramente a função de encaminhar e precipitar a ação da trama, típica dos personagens melodramáticos, que encarnam qualidades más. Por outro lado, um recurso claramente melodramático é usado logo no início da narrativa para apresentar o vilão. Este, conhecendo Estela em uma festa dada por uma família amiga, resolve nela investir, visando a uma possível aliança com uma herdeira rica. O esquema melodramático fica explícito quando Ricardo desperta, por sua aparência, gestos, voz e palavras, uma antipatia generalizada em toda a família. Essa reação aponta diretamente para a construção esquemática dos personagens melodramáticos estudada por ­Thomasseau (2005THOMASSEAU, Jean-Marie. O melodrama. São Paulo: Perspectiva, 2005.): a leitura da sua maldade impressa justamente na sua aparência física. Lourenço Braga apresenta o vilão como “homem de olhar duro e penetrante, nariz adunco e unhas recurvas, sorriso sarcástico e rosto esquálido” (BRAGA, 1957BRAGA, Lourenço. Os mistérios da magia. Rio de Janeiro: Biblioteca Espiritualista Brasileira, 1957., p. 11). Por seu turno, Estela se refere a Ricardo, no início da narrativa como “este homem com cara de abutre”, o qual lhe passa a impressão “de ser uma criatura inferior, capaz de cometer as mais torpes vinganças” (BRAGA, 1957BRAGA, Lourenço. Os mistérios da magia. Rio de Janeiro: Biblioteca Espiritualista Brasileira, 1957., p. 14). Thomasseau (2005THOMASSEAU, Jean-Marie. O melodrama. São Paulo: Perspectiva, 2005., p. 39) relaciona a aparência estereotipada, típica da construção do vilão melodramático do século XIX, com a vulgarização da fisiognomia de Lavater6 6 A fisiognomia de Lavater (1741-1801) era um estudo que propunha decifrar a personalidade a partir das feições humanas. , aprofundando “as máscaras de comportamento e linguagem fortemente codificadas e imediatamente identificáveis”.

Indignado com a recusa de Estela às suas investidas e com a pouca receptividade familiar que recebe, Ricardo resolve vingar-se. Nesse intento escolhe um meio a ele próximo: a magia. E é com esse objetivo que vai a um lugar ermo, para procurar os serviços mágicos de um ser temido na cidade: Pai Sátiro. A magia entra na trama como uma força capaz de frequentar o universo de crenças e valores compartilhados entre as polaridades sociais7 7 A circulação das crenças mágicas na sociedade brasileira já foi apreendida, por exemplo por: Souza (1996), referindo-se ao período colonial; Sampaio (2009), referindo-se ao século XIX; Maggie (1992), referindo-se ao século XX. . Dessa forma, Lourenço Braga mostra que, para muito além da periferia na qual se insere Pai Sátiro, a magia aparece nos valores vivenciados de forma partilhada pela elite e a escória social. Pai Sátiro aparece no romance com todos os marcadores distintivos, indiciários da sua condição de “agente do mal”. Antes de tudo, o nome escolhido pelo autor para o personagem denuncia claramente a associação buscada, integrando-se ao esquema melodramático de aprofundar a estereotipia dos personagens. Sátiro remete justamente às figuras mitológicas fálicas, com características tanto humanas quanto de bode, dotadas de um apetite sexual intenso, em íntima ligação com Dionísio, do qual apareciam como companheiros (da mesma forma que os similares faunos romanos apareciam em associação a Baco). Com o advento do Cristianismo, os Sátiros passaram por um processo de demonização, aparecendo, inclusive, em algumas traduções bíblicas8 8 Obviamente, é necessário considerar-se o contexto histórico e teológico no qual se enquadram essas traduções. A menção aos sátiros não corresponde, absolutamente, à pureza do texto bíblico, conforme Lipinski (2013). . Assim, por exemplo, na tradução do livro do Profeta Isaías, feita pelos monges beneditinos de Maredsous (BÍBLIA, 2016BÍBLIA SAGRADA. Português. São Paulo: Ave Maria, 2018.), aparecem alusões a falsos deuses peludos, identificados como sátiros ou demônios. Essa tradução, em Isaías (34:12,14 e 21), passagens que narram o castigo divino sobre Edom, refere-se a uma cidade completamente destruída, na qual os sátiros passaram a habitar9 9 Em Silva (2012) há alusão às associações dos demônios masculinos e femininos existentes no Antigo Testamento. Os primeiros com bodes, chacais, gatos selvagens e os segundos com répteis, aves de rapina, animais carniceiros. . A associação com o lado transgressor e instintivo que o nome de Pai Sátiro parece indiciar no romance completa-se com a familiaridade que o personagem desfruta com Exu na narrativa. Este Orixá, igualmente transgressor, fálico, “trickster”, foi estereotipado por Lourenço Braga em seus textos doutrinários, reforçando a associação com o demônio judaico-cristão, que acompanha as reelaborações da memória ancestral africana em solo brasileiro (BASTIDE, 1971BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. Contribuição a uma sociologia das interpenetrações de Civilizações. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1971.; ORTIZ, 1978ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda: integração de uma religião numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes, 1978.). Essa associação é combatida, em nossos dias, por intelectuais das religiões afro-brasileiras, sendo uma das razões das críticas que Lourenço Braga recebe (TRINDADE, 2010TRINDADE, Diamantino. A construção histórica da literatura umbandista. Limeira: Editora do Conhecimento, 2010.)10 10 Trindade (1985), Prandi (2001; 2005) e Silva (1994) enfocaram o Orixá Exu a partir das suas especificidades no Candomblé e na Umbanda. . Se já não bastasse a associação invocada pelo autor entre negritude, incultura e inobservância aos códigos éticos que orientam a vida social, Lourenço Braga apresenta Pai Sátiro habitando uma territorialidade simbólica e objetiva completamente distinta da civilização. Esta é uma característica claramente presente em outros intelectuais dos primórdios da Umbanda, presente, inclusive, em uma das teses aprovadas em 1941 no Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda, na qual o passado africano foi visto como a “ausência completa de qualquer forma rudimentar de cultura” (FEDERAÇÃO, 1942FEDERAÇÃO ESPÍRITA DE UMBANDA. Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1942., p. 46). Carregando na associação entre Pai Sátiro e a marginalidade, o autor apresenta o personagem evocando os espíritos e comercializando com a magia em um lugar distante, feio, sujo, o “reino”. Ao contrário das casas bem situadas, elegantes, limpas dos personagens que formam o “núcleo do bem” no romance, o “reino” é apresentado como “uma grande sala de piso de terra batida, paredes de pau a pique e sopapo, cobertura de sapê e iluminado por lampiões de querosene” (BRAGA, 1957BRAGA, Lourenço. Os mistérios da magia. Rio de Janeiro: Biblioteca Espiritualista Brasileira, 1957., p. 16). Exu Marabô, através de Pai Sátiro, deixa claro, então, qual o trato feito entre ele e Ricardo: Estela enlouqueceria, Marcos ficaria paralítico, a família empobreceria (BRAGA, 1957BRAGA, Lourenço. Os mistérios da magia. Rio de Janeiro: Biblioteca Espiritualista Brasileira, 1957., p. 18). Por outro lado, querendo tornar claro o caráter venal deste ritual, Lourenço Braga continua a narrativa sugerindo a associação entre intervenção mágica na realidade e comércio, com o preço do trabalho orçado em 150 cruzeiros11 11 O autor incorreu em equívoco, visto que, à época em que o romance é ambientado, a moeda vigente no Brasil era o mil réis. O cruzeiro só foi instituído durante a ditadura do Estado Novo, em 1942. . A presença do trato entre Pai Sátiro (e/ou o Exu) e Ricardo na trama, a fim de atingir uma família inteira com doença, pobreza e infelicidade, é indicativa da coabitação de Lourenço Braga de seus personagens e narrativa em um horizonte de percepção do mundo claramente marcado pela valorização da magia. A magia indica, portanto, uma presença extratextual, conforme notou Sevcenko, ao assinalar a “liberdade condicional” própria da produção literária: “todo o escritor possui uma liberdade condicional de criação, uma vez que os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade e seu tempo” (SEVCENKO, 1985SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1985., p. 20).

A valorização da magia na obra de Lourenço Braga mostra o autor captando a dramática forma de perceber e representar a realidade própria da vivência do magismo. Para Martino (1999MARTINO, Ernesto de. Le monde magique. Paris: Institut d’étition Sanofi-Synthélabo, 1999.), a labilidade é a característica básica da existência dos que têm na magia o elemento explicativo para as ações cotidianas. Assim, como nada tem fixidez no horizonte mágico de percepção do mundo, as pessoas correm o risco de a qualquer momento sucumbirem às ações daqueles que detêm a capacidade de intervenção mágica na realidade. Os magos, ao mesmo tempo em que intervêm no cotidiano, interrompendo e modificando o curso da existência das pessoas, revelam-se também como os seres especializados em neutralizarem essas mesmas intervenções mágicas. Magia e contramagia rondam de forma agonística a vida incerta dos que nelas confiam.

Conhecendo-se a circulação social da crença na magia no Brasil (MAGGIE, 1992MAGGIE, Yvonne. O medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.), assumida até mesmo no Código Penal de 1890, torna-se mais inteligível e ganha em historicidade o romance de Lourenço Braga. Seus personagens, por outro lado, não reproduzem integralmente a oposição entre religião e magia, própria da sociologia de matriz durkheiminiana e da teologia cristã. Não são personagens postados em oposição frontal às normas e aos valores orientadores do agir coletivo, ou, como queria Robertson Smith (1969SMITH, William Robertson. Lectures on the religion of the Semites. New York: Ktav, 1969.), estudando as oposições religiosas versus mágico-politeístas entre os hebreus e seus vizinhos, seres por ele julgados distantes de uma “comunidade moral”. A própria subserviência da magia aos aspectos religiosos na Umbanda, apresentada na trama pelo autor, invalida essa oposição frontal. Por outro lado, a estrutura melodramática da trama e da construção dos personagens, calcada na oposição entre bem (praticado na Umbanda) e mal (praticado na Quimbanda e Candomblé) e no encaminhamento vitorioso do primeiro, mostra a observância do autor aos códigos simbólicos e objetivos dominantes. Mostra a obra de Lourenço Braga inserindo-se nos aspectos pedagógicos, socializadores da moral dominante a que se referiram, entre outros, Rodríguez e Salvador (2005RODRÍGUEZ, Juan Carlos; SALVADOR, Álvaro. Introducción al estudio de la literatura hispanoamericana. Las literaturas criollas de la independencia a la revolución. Madrid: Akal Universitaria, 2005.) e Abraham Moles (1972MOLES, Abraham Antoine. O Kitsch. A arte da felicidade. São Paulo: USP, 1972.), ao escreverem sobre o melodrama e o kitsch12 12 Autores como Clement Greenberg (2002), Mattei Calinescu (1977) e Abraham Moles (1972) insistiram no caráter conservador do kitsch. Insistiram também na tendência à imitação de manifestações artísticas reconhecidas pela crítica. Especificamente no campo literário, a estética kitsch apostou no melodrama e nos romances ligeiros. Para Moles (1972) é possível falar-se mesmo em uma “ética kitsch”, presente na vulgarização dos valores da classe média e da burguesia, fenômeno visível, sobretudo, no final do século XIX e primeiras décadas do XX. literário. A vitória inevitável do bem, a hierarquia de sentimentos relacionando-se com a própria hierarquia social, presentes na literatura e na arte kitsch e perceptíveis na narrativa de Lourenço Braga, remete ao que Kundera (1993KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.) considerou essencial na estética kitsch: o banimento dos aspectos inaceitáveis da natureza humana. Esses aspectos quando presentes em algum personagem são exorcizados e punidos exemplarmente, com a vitória do bem e da virtude. Lourenço Braga constrói a narrativa como que subserviente a uma teleologia que a faz previsível: os maus desafiam a harmonia cosmológica, são inferiores, invejosos, feios e serão castigados. Nesse sentido, a lógica evolutiva da exegese evangélica espírita ajusta-se perfeitamente na narrativa: a lei do carma13 13 A relação entre as ideias de carma, reencarnação e processo evolutivo, esposadas pelo Espiritismo, aparece claramente em Kardec (1876), no quarto capítulo. agindo sobre os maus, depurando-lhes os sentimentos e agindo no sentido de sua elevação espiritual.

O bem e o mal: a religião e a domesticação da magia

É justamente no momento em que a magia se afirma como força poderosa na trama, que o autor introduz um elemento capaz de controlá-la, domesticá-la, encaminhando-a para a conciliação com os fundamentos éticos e cristãos. É a chegada da Umbanda na narrativa, no momento em que os efeitos dos trabalhos mágicos de Pai Sátiro começavam a fazer efeito: Estela havia enlouquecido, seu irmão Marcos havia ficado paralítico, os negócios da família haviam entrado em debacle.

O aparecimento da Umbanda aprofunda os marcadores melodramáticos anteriormente apontados, insistindo no acaso como forma de encaminhamento da trama. Um dos médicos que trata, sem sucesso, os dois irmãos, tem um amigo também médico e umbandista chamado Alberto, que, dessa forma, “por acaso” é introduzido na narrativa. Contudo, não é um acaso sem explicação. O acaso aparece, compondo a luta entre bem e mal, de maneira teleológica, completamente inserido nas raízes religiosas do melodrama. Como apontou Thomasseau (2005THOMASSEAU, Jean-Marie. O melodrama. São Paulo: Perspectiva, 2005., p. 35): “Tudo é acaso no melodrama, mas acaso enquanto contingência radical como dizem os filósofos, dirigido por uma potência metafísica que age na maior parte do tempo sob o nome de Providência e que alguns personagens chamam Deus”. A partir da entrada de Alberto, a trama encaminha-se para a afirmação de uma nova força religiosa, a Umbanda, capaz de agir sobre a “magia negra”, vencendo o mal praticado por Ricardo e Pai Sátiro. Alberto traz consigo, na narrativa, seus pais e sua irmã Mercedes, todos umbandistas, os quais abraçarão caridosamente a causa da família atingida pela “magia negra”.

Alberto e sua família são introduzidos na narrativa em contraposição aos praticantes da “magia negra”. Contrariamente a Pai Sátiro, apresentado com os atributos da pobreza, da maldade, da incultura e da negritude (em um país no qual a cor da pele era um explícito marcador social), Alberto e sua família aparecem como pertencentes à elite social e cultural. São bons e cultos, moram em uma casa confortável, desfrutam uma condição financeira excelente e estão inseridos em uma rede de relacionamentos com pessoas de iguais condições. Alberto é apresentado com explícitas menções à sua condição social, acentuando suas características fenotípicas: “um moço claro e alto, expressão inteligente e olhar vivo, cabelos ondulados castanho-claros, trajado com apuro e gosto, orçando pelos vinte e seis anos: na mão esquerda um lindo anel de médico” (BRAGA, 1957BRAGA, Lourenço. Os mistérios da magia. Rio de Janeiro: Biblioteca Espiritualista Brasileira, 1957., p. 33).

Bastante indiciária do projeto de identidade umbandista do autor é a relação que este estabelece entre o herói, a psicografia e a “magia branca” da Umbanda na trama. Logo nos primeiros diálogos entre Alberto e o pai de Estela e Marcos, o médico relata uma mensagem por ele psicografada, comunicando o tipo de enfrentamento necessário, a fim de neutralizar os trabalhos de Pai Sátiro. Eram necessários “fortes trabalhos de Magia Branca, a fim de conseguirmos desmanchar os efeitos da Magia Negra, que atingiram ao senhor, sua família e seus negócios” (BRAGA, 1957BRAGA, Lourenço. Os mistérios da magia. Rio de Janeiro: Biblioteca Espiritualista Brasileira, 1957., p. 34). A introdução concomitante da psicografia e da “Magia Branca” da Umbanda na narrativa parece ser indiciária de uma tentativa de afastar ainda mais a Umbanda das práticas tachadas de praticarem a “magia negra” (Quimbanda e Candomblé). A psicografia traz a Umbanda para perto de uma prática mediúnica amplamente divulgada pelo Espiritismo francês do século XIX, estando a obra de codificação espírita ligada à prática psicográfica. É necessário considerar-se também a ligação tecida no Ocidente entre o escriturístico, o progresso e a modernidade. Para Michel de Certeau (1994CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., p. 224), o escriturístico impôs-se no Ocidente como prática moderna, capaz de antepor-se à oralidade, julgada como “aquilo que não contribui para o progresso”. A aproximação da Umbanda com o letramento, por outro lado, foi defendida por Montero e Ortiz (1976MONTERO, Paula; ORTIZ, Renato. Contribuição para um estudo quantitativo da religião umbandista. Ciência e Cultura v. 28, n. 4, p. 407-417, 1976. ). Contudo, penso que essa aproximação não pode ser vista de forma a reduzir a enorme diversidade evidenciada pelo sagrado umbandista. Entre o projeto identitário letrado e o “fazer-se” da Umbanda, há uma distância enorme. Trata-se de um projeto identitário próprio de um segmento umbandista o qual se choca com a multiplicidade ritual e doutrinária da religião (ISAIA, 1999ISAIA, Artur Cesar. Ordenar progredindo. A obra dos intelectuais da Umbanda no Brasil da primeira metade do século XX. Anos 90, v. 7, n. 11, p. 97-120, 1999.).

Psicografia e “Magia Branca” funcionam como balizas identitárias do que aparece como “Espiritismo de Umbanda” na obra de Lourenço Braga e dos intelectuais umbandistas da sua geração. A aproximação tentada com o Espiritismo codificado por Allan Kardec aparece de forma nítida na explanação que o pai de Alberto faz, anunciando a “magia branca” da Umbanda como uma modalidade deste (BRAGA, 1957BRAGA, Lourenço. Os mistérios da magia. Rio de Janeiro: Biblioteca Espiritualista Brasileira, 1957., p. 36). O pai de Alberto claramente tenta opor as práticas mágicas e mediúnicas da Umbanda, as quais aparecem como religiosas, às práticas mágicas e mediúnicas da Quimbanda e do Candomblé, tidas como “feitiçaria” 14 14 O nivelamento das práticas mediúnicas afro-brasileiras como espíritas não teria o reconhecimento unânime daqueles que desenvolveram o projeto de falarem pelo Espiritismo brasileiro. Sobre isso, ver: Isaia e Amorim (2014). .

Seguindo a estrutura melodramática e religiosa da narrativa, Lourenço Braga vai mostrar como as entidades maléficas evocadas no ritual mágico de Pai Sátiro serão encaminhadas através da contramagia, do que chama de “magia branca” da Umbanda. De maneira teleológica na narrativa, aquela família, apresentada como honrada e praticante do bem, atingida pelo mal, fruto da inveja e do ódio do vilão, encontraria os trabalhos libertadores da “magia branca” da Umbanda.

Aprofundando o esquema redutor da realidade, trabalhando com estereótipos, o autor vai descrever os trabalhos, que livrariam a família de Estela da “magia negra”. Dessa forma, na residência de Estela e Marcos, reuniu-se a família de Alberto para levar adiante os trabalhos de “magia branca”, os quais, usando em sentido oposto as mesmas ferramentas da “magia negra”, neutralizariam os trabalhos tidos pelo autor como oriundos do Candomblé e da Quimbanda. Fazendo oposição aos trabalhos de Pai Sátiro, a reunião da Umbanda acontece em uma residência familiar da elite carioca, em lugar bem situado, elegante e aprazível. Por outro lado, enquanto Lourenço Braga descreve os espíritos evocados por Pai Sátiro como trevosos, feios, animalescos, na casa de Estela são vistos pelo pai de Alberto, médium vidente, entidades belíssimas e caras à hagiologia católica, como a Virgem Maria, Arcanjos e o próprio Jesus Cristo (BRAGA, 1957BRAGA, Lourenço. Os mistérios da magia. Rio de Janeiro: Biblioteca Espiritualista Brasileira, 1957.). Lourenço Braga apresenta essas entidades iluminadas e belas em perfeita harmonia com seus médiuns, brancos e bem postos socialmente, no afã de enfrentarem corajosamente a perseguição de Ricardo e das entidades evocadas por Pai Sátiro para fazerem mal a Estela e à sua família. O esquema previsível e melodramático da narrativa afirma e valoriza o lugar do herói, Alberto, no enfrentamento à perseguição desencadeada pelo “núcleo do mal”. A perseguição acontece na narrativa em dois níveis: no material, com Ricardo continuando com seu intento vingativo, herdado de encarnações passadas, e no espiritual, com as entidades maléficas evocadas na “magia negra”. O tema da perseguição é leitmotiv dos enredos melodramáticos, constitutivo da identidade do herói. Para Thomasseau, baseado em Mircea Eliade, existe um paralelo na literatura ocidental entre o tema da perseguição e os contos de fadas, ambos relacionando-se aos antigos mitos iniciáticos. Assim, a vitória na perseguição acrescenta à identidade do herói ou heroína um sentido iniciático. O mesmo habilita-se aos favores da divindade pela sua coragem, portanto sai da perseguição maior, melhor, mais próximo e familiar da divindade (­THOMASSEAU, 2005THOMASSEAU, Jean-Marie. O melodrama. São Paulo: Perspectiva, 2005.). Tal como Alberto, Estela vence, por sua bondade, os efeitos da magia negra. A perseguição de Ricardo, Pai Sátiro e dos espíritos por eles evocados nos rituais de “magia negra”, embora cruel e tenaz, sucumbiria frente à ação e aos méritos dos heróis. A previsibilidade melodramática mais uma vez alia-se à doutrina espírita na narrativa de Lourenço Braga. Estela possuía os atributos da heroína, reproduzidos nas personagens românticas e no perfil feminino da época: era uma moça de bons princípios, de moral elevada, caridosa. Sendo assim, a vitória sobre as forças obscuras da “magia negra” ia ao encontro da mensagem doutrinária endossada no romance: as leis do carma e da evolução transmutando o mal em bem. Isto fica explicitado quando Estela “recebe” pela primeira vez um espírito, uma índia com o nome de Guacira. Esta esclarece o porquê do seu sofrimento, relacionando-o com vidas passadas, com suas faculdades mediúnicas, com espíritos inferiores dispostos ao mal. Aparece claramente a vinculação com a teodiceia espírita presente na construção dramática das narrativas espíritas de obsessão (LEWGOY, 2003LEWGOY, Bernardo. O mal à moda espírita: as estruturas narrativas da desobsessão. Debates do NER v. 4, n. 4, p. 91-108, 2003.).

Enfim, o tema do amor romântico une-se à narrativa teleológico-religiosa: o encontro de almas afins, já familiares em encarnações anteriores. O encontro de Alberto e Estela (assim como o de Marcos e Mercedes) cumpre o plano traçado em vidas passadas, nas quais já estavam sentimentalmente unidos. Nesse sentido, a previsibilidade da narrativa de Lourenço Braga acena com outra característica típica do kitsch literário: a sublimação do amor romântico a um nível paradoxalmente acima das contingências humanas. Conforme notou Le Grand (1996)LE GRAND, Eva. Plaisirs du kitsch et souffrances d’amour: ou les “écrans” d’idylle. In: LE GRAND, Eva(org.). Séductions du kitsch. Roman, art et culture. Montreal: XYZ, 1996., o que chamou de “sedução kitsch” acena para um amor distante da relação cotidiana e real entre duas pessoas. Aponta para um sentimento erigido em valor absoluto (o amor pelo amor) “mantido por uma chama angelical, cujo objeto de desejo não é uma mulher ou homem concretos, mas a imagem de um amor celestial”. Um sentimento “que não se importa com o amor erótico uma vez que o amor é celestial”15 15 A autora faz menção à ironia com que Milan Kundera refere-se à idealização do amor romântico de Betina von Armin por Goethe no livro A imortalidade. Para Le Grand, o amor de Betina Von Armin por Goethe acena “para o caminho secular que o amor-sentimento percorre, sob o verniz de nossa civilização pretensamente racional, como evidenciado em grande parte pela história da literatura europeia” (LE GRAND, 1996, p. 55). . Dessa forma, no desenrolar da narrativa, os dois casais (Alberto-Estela e Marcos-Mercedes) passam a namorar, concretizando um plano urdido no mundo espiritual. Na condição de namorados, a relação, os toques físicos, as palavras, nada se aproximava da volúpia do encontro amoroso. Tudo era plácido, etéreo, espiritual, acima das paixões e muito acima do desejo. Descrevendo um passeio que os dois casais fizeram a uma das fazendas dos pais de Estela e Marcos, Lourenço Braga hiperboliza a espiritualização dos sentimentos entre os namorados: “os bosques floridos, os pássaros multicores, tudo isso, cercando criaturas sensíveis, provocava-lhes a sublimação dos sentimentos. Beijos foram trocados entre os pares que se amavam, porém sem a volúpia dos instintos inferiores” (BRAGA, 1957BRAGA, Lourenço. Os mistérios da magia. Rio de Janeiro: Biblioteca Espiritualista Brasileira, 1957., p. 62).

Lourenço Braga parece querer contrapor os casais de namorados umbandistas às imagens difundidas entre diversos discursos, como o médico e o católico sobre a exacerbação libidinosa dos negros, a qual, segundo os mesmos, aflorava nos rituais de invocação aos Orixás. Esse contraponto servia como recurso para afastar ainda mais a Umbanda e seus seguidores do propalado “barbarismo” africano, reafirmado no caráter dionisíaco de seus rituais. Anos antes da publicação do romance de Lourenço Braga, por exemplo, um representante da intersecção entre discurso médico e católico, Xavier de Oliveira, referia-se aos rituais afro-brasileiros existentes no Rio de Janeiro como “orgias macabras”, nas quais estava presente a “nódoa da lascívia imunda” (XAVIER DE OLIVEIRA, 1930XAVIER de OLIVEIRA, Antonio. Espiritismo e loucura. [s.l]: GEEM, 1930., p. 241). Igualmente, no início do século XX, João do Rio repetia o que Raimundo Nina Rodrigues escrevera sobre a exagerada pulsão sexual dos negros, que os faziam propícios à prosmicuidade (NINA RODRIGUES, 1906NINA RODRIGUES, Raimundo. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Salvador: Guanabara, 1906.). Descrevendo um ritual de evocação aos eguns16 16 Conforme a realidade ritual, o termo egun adquire significação própria. Na literatura umbandista, o termo refere-se a espíritos, àqueles considerados “desencarnados” (DUTRA, 1957). No pensamento antropológico, Prandi (2001; 2005) defende que os termos egun e egungun são sinônimos. Há um culto específico aos egunguns, com o propósito de “tornar os espíritos ancestrais visíveis, manipular o poder que emana deles e atuar como um veículo entre os vivos e os mortos (SANTOS; SANTOS, 2011, p. 232). Para o chefe religioso Balbino Daniel de Paula (2016), o egungum é um egun que passa por uma “preparação ritualística” tornando-o apto a retornar ao convívio dos vivos em cerimônias específicas. , João do Rio salientava que a excitação nervosa e o medo dos espíritos cediam lugar, ao final, à liberação dos instintos sexuais entre os negros, transformando-se em uma “bacanal”17 17 João do Rio escreve que “o egun é uma cerimônia quase pública, a que os feiticeiros convidam certos brancos para presenciar a pantomina do seu extraordinário poder” (RIO, 1976, p. 44). Os registros do autor parecem ir ao encontro do fenômeno do esvanecer da memória ancestral africana no Sudeste defendido por Bastide (1971) e Ortiz (1978). (RIO, 1976RIO, João do. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976., p. 47). Mesmo o Espiritismo, tido como referencial simbólico por Lourenço Braga e sua geração de intelectuais umbandistas, não ficava a salvo da pecha de lócus da licenciosidade. Quase que concomitantemente ao lançamento do romance de Lourenço Braga, o padre Zioni escrevia que as sessões espíritas não eram recomendadas devido à “falta de pudor, pois a moralidade está a cargo e sabor dos espíritos, que, muitas vezes, sem prévia censura, vomitam toda a sorte de pornografia” (ZIONI, 1942ZIONI, Vicente. O problema espírita no Brasil. São Paulo: Verba Salutis, 1942., p. 178). O projeto de Lourenço Braga, no sentido de salientar a seriedade e o acatamento da Umbanda aos valores dominantes e à legislação vigente, esteve presente na literatura produzida pelos intelectuais umbandistas do período de afirmação da nova religião no campo religioso brasileiro. Nesse mesmo sentido, os Estatutos de muitos centros umbandistas do período aparecem, igualmente, como fontes importantes para o estudo desse projeto identitário (ISAIA, 2013ISAIA, Artur Cesar. Umbanda no Rio Grande do Sul: o esforço pela representatividade social nos primórdios de uma religião. In: WEBER, Beatriz Teixeira; ZANOTTO, Gizele (orgs.). Religiões e religiosidades no Rio Grande do Sul. Espiritismo e religiões mediúnicas. São Paulo: ANPUH, 2013.).

A moral judaico-cristã, ressignificada pelo Espiritismo do século XIX, afirma-se no encaminhamento do enredo do romance. Exemplar nesse sentido é o desfecho moralizante e doutrinariamente aparentado com as leis de evolução e do trabalho contínuo, os quais aparecem em dois níveis principais na trama: no plano dos espíritos e no material. No plano dos espíritos, Lourenço Braga introduz na trama o “encaminhamento” de um espírito que se apresentou como “quimbandeiro”, durante os trabalhos pelo restabelecimento de Marcos e Estela. Este “espírito quimbandeiro”, sujeito a um tratamento simultaneamente doutrinário e mágico (bem ao estilo da Umbanda pregada pelo autor), finalmente concorda em trabalhar e evoluir espiritualmente (BRAGA, 1957BRAGA, Lourenço. Os mistérios da magia. Rio de Janeiro: Biblioteca Espiritualista Brasileira, 1957.). No plano material, a casa da família de Estela e Marcos é aberta para os trabalhos caritativos de um Centro de Umbanda, o “Grupo Espírita São Cipriano”, depois das várias sessões ali realizadas pelo restabelecimento dos dois jovens. Portanto, essa casa bem situada, confortável e bonita, local de reunião da elite carioca, agora se abria aos trabalhos da “magia branca” e do aprendizado doutrinário do “Espiritismo de Umbanda”. Mais uma evidência do projeto identitário da Umbanda intentado pelo autor: contrapondo-se aos antros mal cheirosos, abjetos e miseráveis do que Lourenço Braga apresenta indistintamente como Quimbanda e Candomblé, a Umbanda conquistava espaço na casa de uma família da elite. Esta, caridosamente encaminharia as vítimas da “magia negra” ao plano moralizante herdado do Espiritismo e à “magia branca” exercida pela Umbanda.

Um romance com as características folhetinescas, melodramáticas e religiosas aqui levantadas não poderia renegar a previsível e exemplar punição do mal, que no esquema melodramático tem maior importância do que a própria vitória do bem (HUPPES, 2000HUPPES, Ivete. Melodrama. O gênero e a permanência. Cotia: Ateliê Editorial, 2000.). Nesse sentido, Ricardo procurou fazer o mal conscientemente. Procurou, através da “magia negra” de Pai Sátiro, modificar a realidade de uma família “bem constituída” e feliz. A punição do mal praticado pelo vilão seria inevitável. Como notou Huppes (2000HUPPES, Ivete. Melodrama. O gênero e a permanência. Cotia: Ateliê Editorial, 2000., p. 112), referindo-se aos personagens maus dos melodramas, “quem escolhe a alternativa perversa não escolhe cego. Em detrimento da moral, as personagens malvadas colocam os projetos próprios. Por isso o público aplaude o infortúnio que se abate sobre eles no desfecho”. A sorte de Ricardo, portanto, é previsível, ao aparecer na narrativa tentando impor sua vontade pessoal através da magia, ao curso “natural” da vida. Após o mal e a perseguição feitos à família de Estela, Ricardo decai socialmente, até transformar-se em um mendigo, que perambula tropegamente pelas ruas, sem família, sem casa, sem identidade... É o epílogo revanchista e catártico, referendando os valores vivenciados e as crenças assumidas pelo público leitor de uma literatura construída segundo as crenças e valores orientadores do agir social, como uma “arte literária do estereótipo” (MOLES, 1972MOLES, Abraham Antoine. O Kitsch. A arte da felicidade. São Paulo: USP, 1972., p. 113). As características folhetinescas, melodramáticas e religiosas, por outro lado, não poderiam faltar no final romântico, representado pelos casamentos simultâneos de Estela com Alberto e Marcos com Mercedes. Na literatura kitsch não há espaço para a felicidade amorosa transgressora e revolucionária (LE GRAND, 1996LE GRAND, Eva. Plaisirs du kitsch et souffrances d’amour: ou les “écrans” d’idylle. In: LE GRAND, Eva(org.). Séductions du kitsch. Roman, art et culture. Montreal: XYZ, 1996.). Assim, o casamento aparece como a concretização de um plano exemplar de construção de uma felicidade totalmente acorde com as expectativas sociais. Segundo Huppes (2000HUPPES, Ivete. Melodrama. O gênero e a permanência. Cotia: Ateliê Editorial, 2000., p. 37), o matrimônio “dos bons se confunde com o padrão da ventura máxima, no romantismo em geral e no melodrama em particular”. Dessa forma, o autor atém-se à cerimônia civil e religiosa do casamento dos casais Estela-Alberto e Mercedes-Marcos, descrevendo detalhes e carregando nas cores de um acontecimento capaz de reunir a elite carioca, da qual os noivos fazem parte. Entre os padrinhos dos noivos, Lourenço Braga faz questão mesmo de colocar detentores de títulos nobiliárquicos, como signos de distinção, capazes de acentuar as cores de uma Umbanda distante do considerado barbarismo africano. Nessa direção, o autor vai alentar a descrição da cerimônia religiosa, realizada como um casamento umbandista. Claramente a intenção parece ser a de credenciar a Umbanda frente ao campo religioso brasileiro, principalmente em relação à religião majoritária, ao mesmo tempo em que acentuava marcadores identitários que a opunham às práticas rituais africanas, apresentadas como o domínio da imoralidade, próprio da soberania com que a magia orientava o que aparecia, indistintamente na narrativa, como Quimbanda e Candomblé.

Considerações finais

Como colocado no início, o romance de Lourenço Braga foi aqui inquirido, tendo em vista o seu aspecto de monumento. Portanto, foram perseguidos, tanto nos aspectos intratextuais quanto nos extratextuais, os indícios que davam historicidade à obra: o horizonte social e cultural no qual se movia o autor e, sobretudo, as evidências do seu projeto identitário de religião umbandista. Conforme notou Ginzburg (2011GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), os historiadores não lidam com transparências e, por isso, operam no domínio do conjectural, valorizando epistemologicamente a singularidade. Dessa forma, a trama, os personagens, as ambientações, forneceram pistas para uma compreensão empática da obra. A dimensão autoral aparece relacionada com o que Bastide (1971BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. Contribuição a uma sociologia das interpenetrações de Civilizações. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1971.) já havia notado ao escrever sobre uma primeira geração de intelectuais umbandistas, sem um vínculo maior com a escolaridade formal, cujo autodidatismo e a busca de afirmação pessoal na nova religião eram a tônica.

Lourenço Braga parecia ser um escritor que se movia em uma territorialidade intelectual subalterna aos autores reconhecidos pela crítica, circulando em redes de sociabilidade, na qual se afirmava como líder suburbano, demonstrando, igualmente, relações de subalternidade em relação a chefias políticas, talvez amplificada por sua condição de funcionário público municipal. Por outro lado, os muitos anúncios de seus livros em vários jornais do Rio de Janeiro, notadamente durante os anos 1950, mostram o seu reconhecimento dentro do segmento de consumidores de literatura doutrinária e espiritualista, sendo também um indício da abertura do campo editorial para uma literatura, como a umbandista. Portanto, não parecia exemplificar por completo aquelas “notoriedades suburbanas” retratadas por Lima Barreto (2010LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Contos completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.), incapazes de se impor no centro da cidade, confinadas na sua importância de arrabalde. Reconhecido por um público leitor de obras doutrinárias umbandistas, chegando mesmo a ser lembrado por Carlos Drummond de Andrade (1951ANDRADE, Carlos Drummond de. O zombeteiro Exu. Correio da Manhã, Quarto Caderno, 17 jun., 1951, p. 1.), o autor, ao enveredar pela ficção, parece ter continuado com o apreço de seu público leitor. Personagens estereotipados, narrativa melodramática e temática para lá de próxima ao universo afetivo, axiológico e religioso de um público leitor a ele fiel, parecem evidências da boa acolhida da obra, com as reedições do romance.

Uma abordagem empática da obra de Lourenço Braga enfatiza justamente o reconhecimento de sua característica de “produção corrente”, daquele tipo de obra que Duby (1998DUBY, Georges. A História Cultural. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François. Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.) dizia ser mais capaz de afirmar-se como um documento dos gostos, valores, vivências dos homens e mulheres comuns. Uma possibilidade pouco possível às obras consideradas vanguardistas ou tocadas pelo gênio. Compreende-se as reedições da obra, na qual o título sugestivo já acenava para a familiaridade de grande parte da população brasileira com o universo mágico-espiritual.

Ao criar no romance, com a licença estética literária, uma narrativa na qual a Umbanda nem de longe correspondia à realidade sociocultural da nova religião, Lourenço Braga ultrapassava o próprio projeto identitário umbandista desenvolvido em suas obras doutrinárias, exercendo o que é característico da literatura: a criação de uma narrativa orientada pelo desejo de não se submeter à pretensa facticidade do real.

Referências

  • ANDRADE, Carlos Drummond de. O zombeteiro Exu. Correio da Manhã, Quarto Caderno, 17 jun., 1951, p. 1.
  • ANJOS, José Carlos dos. A filosofia política da religiosidade afro-brasileira como patrimônio cultural africano. Debates do NER, v. 7, n. 13, p. 77-96, 2008.
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  • BÍBLIA SAGRADA. Português. São Paulo: Ave Maria, 2018.
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  • 1
    Este autor umbandista fez um interessante levantamento dos escritores da Umbanda, no qual aparece Lourenço Braga, sem, contudo, mais informações biográficas.
  • 2
    Para Vagner Gonçalves da Silva, os anos 1950 foram reveladores da pressão de alguns segmentos umbandistas no sentido de aproximar a religião dos “valores africanos” (SILVA, 1994).
  • 3
    A lógica ocidental, na esteira de Aristóteles e São Tomás de Aquino, não reconhecia a possibilidade de “ser isso e aquilo” concomitantemente, alicerçada nos seus três princípios fundamentais: o da identidade, o da não contradição e do terceiro excluído. Assim, tanto a teologia tomista quanto a sociologia francesa do final do século XIX e início do XX, no rastro de Durkheim, reconheciam a oposição entre religião e magia.
  • 4
    A referência à atuação de Lourenço Braga junto ao Clube Municipal do Rio de Janeiro aparece aqui como evidência da representatividade do autor em relação aos funcionários públicos municipais dos quais fazia parte, conforme aparece na imprensa carioca dos anos 1940 e 1950. O clube, localizado no bairro da Tijuca, é conhecido ainda hoje como o “quartel general dos servidores públicos”, lutando pelos “interesses dos servidores públicos do Rio de Janeiro e do Brasil” (CLUB MUNICIPAL, 2020, s.p.).
  • 5
    O PAPEL das Associações Esportivas nas lutas. O Jornal. Rio de Janeiro, Segunda Secção, 26 set. 1950, p. 2.
  • 6
    A fisiognomia de Lavater (1741-1801) era um estudo que propunha decifrar a personalidade a partir das feições humanas.
  • 7
    A circulação das crenças mágicas na sociedade brasileira já foi apreendida, por exemplo por: Souza (1996), referindo-se ao período colonial; Sampaio (2009), referindo-se ao século XIX; Maggie (1992), referindo-se ao século XX.
  • 8
    Obviamente, é necessário considerar-se o contexto histórico e teológico no qual se enquadram essas traduções. A menção aos sátiros não corresponde, absolutamente, à pureza do texto bíblico, conforme Lipinski (2013).
  • 9
    Em Silva (2012) há alusão às associações dos demônios masculinos e femininos existentes no Antigo Testamento. Os primeiros com bodes, chacais, gatos selvagens e os segundos com répteis, aves de rapina, animais carniceiros.
  • 10
    Trindade (1985), Prandi (2001; 2005) e Silva (1994) enfocaram o Orixá Exu a partir das suas especificidades no Candomblé e na Umbanda.
  • 11
    O autor incorreu em equívoco, visto que, à época em que o romance é ambientado, a moeda vigente no Brasil era o mil réis. O cruzeiro só foi instituído durante a ditadura do Estado Novo, em 1942.
  • 12
    Autores como Clement Greenberg (2002), Mattei Calinescu (1977) e Abraham Moles (1972) insistiram no caráter conservador do kitsch. Insistiram também na tendência à imitação de manifestações artísticas reconhecidas pela crítica. Especificamente no campo literário, a estética kitsch apostou no melodrama e nos romances ligeiros. Para Moles (1972) é possível falar-se mesmo em uma “ética kitsch”, presente na vulgarização dos valores da classe média e da burguesia, fenômeno visível, sobretudo, no final do século XIX e primeiras décadas do XX.
  • 13
    A relação entre as ideias de carma, reencarnação e processo evolutivo, esposadas pelo Espiritismo, aparece claramente em Kardec (1876), no quarto capítulo.
  • 14
    O nivelamento das práticas mediúnicas afro-brasileiras como espíritas não teria o reconhecimento unânime daqueles que desenvolveram o projeto de falarem pelo Espiritismo brasileiro. Sobre isso, ver: Isaia e Amorim (2014).
  • 15
    A autora faz menção à ironia com que Milan Kundera refere-se à idealização do amor romântico de Betina von Armin por Goethe no livro A imortalidade. Para Le Grand, o amor de Betina Von Armin por Goethe acena “para o caminho secular que o amor-sentimento percorre, sob o verniz de nossa civilização pretensamente racional, como evidenciado em grande parte pela história da literatura europeia” (LE GRAND, 1996, p. 55).
  • 16
    Conforme a realidade ritual, o termo egun adquire significação própria. Na literatura umbandista, o termo refere-se a espíritos, àqueles considerados “desencarnados” (DUTRA, 1957). No pensamento antropológico, Prandi (2001; 2005) defende que os termos egun e egungun são sinônimos. Há um culto específico aos egunguns, com o propósito de “tornar os espíritos ancestrais visíveis, manipular o poder que emana deles e atuar como um veículo entre os vivos e os mortos (SANTOS; SANTOS, 2011, p. 232). Para o chefe religioso Balbino Daniel de Paula (2016), o egungum é um egun que passa por uma “preparação ritualística” tornando-o apto a retornar ao convívio dos vivos em cerimônias específicas.
  • 17
    João do Rio escreve que “o egun é uma cerimônia quase pública, a que os feiticeiros convidam certos brancos para presenciar a pantomina do seu extraordinário poder” (RIO, 1976, p. 44). Os registros do autor parecem ir ao encontro do fenômeno do esvanecer da memória ancestral africana no Sudeste defendido por Bastide (1971) e Ortiz (1978).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2020
  • Aceito
    10 Mar 2021
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