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Ninguém faz a guerra sozinho. O trabalho da memória nos encontros de ex-combatentes portugueses da guerra colonial/de libertação em Angola

No War is Fought Alone. The Work of Constructing Memory During the Annual Reunions of Portuguese Veterans of the Colonial/Liberation War in Angola

Nadie hace la guerra solo. El trabajo de la memoria en los encuentros de los excombatientes portugueses de la guerra colonial/de liberación en Angola

RESUMO

Este artigo examina o trabalho coletivo de construção de memória nos encontros de veteranos da guerra colonial/de libertação de Angola. Partindo de observação etnográfica de reuniões anuais de uma companhia portuguesa de artilharia que combateu no país entre 1971 e 1973 e de entrevistas em profundidade com ex-combatentes, o artigo propõe um olhar etnográfico sobre a revisitação contemporânea de um passado ainda sob escrutínio. Analisam-se os encontros anuais de veteranos enquanto espaços de negociação e produção do passado, incluindo a construção de intermediação com a obra literária de António Lobo Antunes, um dos conscritos dessa unidade. Argumenta-se que essas reuniões anuais de veteranos são atos íntimos de comemoração que, baseando-se no imaginário e nas dinâmicas de proximidade familiar, na despolitização do conflito enquanto acontecimento histórico, na partilha dos aspetos solares e de narrativas experienciais, constroem uma linha invisível entre o passado e o presente.

Palavras-chave:
guerra colonial/de libertação de Angola; memória; comemoração; António Lobo Antunes; silêncio

ABSTRACT

This article examines the collective work of constructing memory during the annual reunions of veterans from a Portuguese artillery division that fought at the Colonial/Angolan Liberation War (1971-73). Based on ethnographic observation of these meetings and on ­ in-depth interviews with ex-combatants, this article puts forward an ethnographic approach to the contemporary revisitation of a past still under scrutiny. These annual meetings offer privileged spaces for the production and negotiation of the past, including intermediation with the literary work of António Lobo Antunes, one of the unit’s conscripts. We argue that veterans’ reunions are intimate acts of commemoration that build an invisible line between the past and the present based on the imaginary and the dynamics of family ties, on the depoliticization of the conflict as a historical event, and on privileging central aspects and experiential narratives.

Keywords:
Colonial War/Angola Liberation War; Memory; Commemoration; António Lobo Antunes; Veterans

RESUMEN

Este artículo examina el trabajo colectivo de la construcción de la memoria en los encuentros de veteranos de guerra colonial/de liberación de Angola. Partiendo de la observación etnográfica de reuniones anuales de una compañía portuguesa de artillería que combatió en el país entre 1971 y 1973 y de entrevistas en profundidad con excombatientes, el artículo propone una perspectiva etnográfica sobre la revisión contemporánea de un pasado todavía sobre análisis. Se analizan los encuentros anuales de los veteranos como espacios de negociación y producción del pasado, incluyendo la construcción de intermediación como la obra literaria de António Lobo Antunes, uno de los reclutas de esa unidad. Se argumenta que esas reuniones anuales de veteranos son actos íntimos de conmemoración que, basándose en el imaginario y en las dinámicas de proximidad familiar, en la despolitización del conflicto en cuanto a acontecimiento histórico, en el intercambio de los aspectos solares y de narrativas de experiencia, construyen una línea invisible entre el pasado y el presente.

Palabras clave:
guerra colonial/de liberación de Angola; memória; conmemoración; António Lobo Antunes; veteranos

Coimbra, dez e meia da manhã de um sábado de junho de 2012. No Parque D. ­Manuel I, junto às docas do rio Mondego, juntam-se várias dezenas de homens e mulheres de meia idade, algumas pessoas mais jovens e várias crianças. O ambiente é de alegria, entre a simpatia cerimoniosa das mulheres e a familiaridade ruidosa dos homens. Quem olhe de fora não consegue compreender a inusitada concentração de pessoas muito diferentes entre si. Trata-se do 12º almoço anual da Companhia de Artilharia 3313 (Cart 3313), uma das 72 companhias operacionais que o exército português enviou em 1971 para a guerra colonial/de libertação em Angola.1 1 Os termos que se usam para designar esse conflito são, ainda hoje, alvo de debate e discórdia. “Guerra do ultramar” é uma expressão usada pelos setores mais conservadores da sociedade portuguesa, ecoando os argumentos e a construção ideológica do Estado Novo. O termo “guerra de libertação” traduz o ponto de vista africano e reconhece a centralidade das lutas de libertação nacional, ao passo que a expressão “guerra colonial” se baseia na perspetiva e experiência do lado português e simultaneamente reconhece a natureza colonialista do conflito que foi travado. Neste texto, adoto a expressão guerra colonial/de libertação para dar conta dos dois lados da mesma guerra. Em 1971, ano em que a Cart 3313 foi mobilizada para Angola, foram enviados 24 batalhões do exército para este território, cada um dos quais constituído por três companhias operacionais (BRANDÃO, 2008). Nesse ano, o efetivo militar em Angola alcançou os 62.060 homens; os contingentes na Guiné-Bissau e em Moçambique eram então de 29.210 e 44.505, respetivamente (ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO, 1988). Desde 2001, estes antigos militares juntam-se para longas horas de convívio distendido, que são muito mais do que o ocasional reencontro de velhos conhecidos. São horas nas quais se homenageiam os ausentes, se partilham histórias do passado comum e se repete a determinação de não deixar desaparecer o passado.

Este artigo examina o trabalho coletivo de construção de memória nas reuniões de ex-combatentes da guerra colonial/de libertação.2 2 Tal como tantas pessoas da minha geração, sou “filha da guerra” (RIBEIRO, 2013; RIBEIRO; RIBEIRO, 2018): o meu pai foi enviado para Angola como alferes médico miliciano, e cresci rodeada de objetos e histórias de um passado que não vivi. Seis anos após ter regressado de Angola, o meu pai publicou aquele que viria a ser um dos mais importantes romances portugueses sobre o conflito (ANTUNES, 1979). O interesse por esta guerra enquanto tema de pesquisa surgiu depois de ter editado, junto com a minha irmã, as cartas que o meu pai enviara à nossa mãe desde Angola (ANTUNES, 2005). Nesse momento, a memória emprestada da guerra (esse passado que de alguma forma também é meu, mas do qual não me lembro) criou a vontade de ir para além daquilo que conhecia (as histórias, as fotografias, pedaços soltos de um tempo perdido no tempo). Com a pesquisa de doutorado em Antropologia, construí uma etnografia da memória de guerra a partir da comissão de serviço da Cart 3313, através do cruzamento de memórias pessoais dos ex-combatentes, a narrativa literária de António Lobo Antunes, o relato oficial da instituição militar e as retóricas públicas que, durante o Estado Novo e no Portugal contemporâneo, forneceram as ideias e as palavras com as quais o país e o mundo eram pensados. Baseando-se em pesquisa etnográfica em torno da Cart 3313 e da sua comissão de serviço em Angola (1971-1973), pretende-se contribuir para debates transdisciplinares sobre a reconfiguração narrativa de passados difíceis associados à violência e ao colonialismo (BRANCHE, 2020BRANCHE, Raphaelle. Papa, qu’as-tu fait en Algérie? Enquête sur un silence familiale. Paris: La Découverte, 2020.; GAPUD, 2020GAPUD, Alex J. Displacing Empire: Aphasia, ‘Trade’, and Histories of Empire in an English City.History and Anthropology, v. 31, n. 3, p. 331-351, 2020.; PASSMORE, 2016PASSMORE, Leith. The Apolitics of Memory: Remembering Military Service under Pinochet through and alongside Transitional Justice, Truth, and Reconciliation. Memory Studies, v. 9, n. 2, p. 173-186, 2016.; KALTER, 2022KALTER, Christoph. Building Nations After Empire: Post-Imperial Migrations to Portugal in a Western European Context.Contemporary European History, p. 1-22, 2022.). O caso da guerra colonial/de libertação que opôs Portugal aos movimentos de libertação em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique oferece um singular ângulo de observação. Muitos dos protagonistas, anônimos ou célebres, estão vivos e a guerra ainda não se tornou num acontecimento distante: ela habita os corpos e as memórias dos ex-combatentes, ao mesmo tempo que se constitui como uma fonte contemporânea de incerteza e debate (CARDINA; MARTINS, 2018CARDINA, Miguel; MARTINS, Bruno Sena(orgs.).As voltas do passado: a guerra colonial e as lutas de libertação. Lisboa: Tinta-da-China, 2018.; POWER, 2001POWER, Marcus. Geo-politics and the Representation of Portugal’s African Colonial Wars: Examining the Limits of ‘Vietnam Syndrome’. Political Geography, n. 20, p. 461-491, 2001.). Este é ainda um território sob escrutínio, onde se confrontam visões e ligações distintas com o passado. Foi uma guerra justa ou injusta? O colonialismo português foi tão mau quanto os restantes? Essas questões, e outras semelhantes, são capazes de incendiar opiniões e alimentar debates nos jornais e em fora virtuais, revelando o longo caminho de reflexão, investigação e debate que existe pela frente. Com a viragem do século, a guerra e o colonialismo português emergiram gradualmente do silêncio público que sobre eles tombara após a revolução que depôs o regime em 1974. Até então, esse silêncio fora rompido ocasionalmente por meio da ação de associações de ex-combatentes pelo reconhecimento do trauma causado nos veteranos (ADFA, 2017ADFA. Associação dos Deficientes das Forças Armadas. Deficientes das Forças Armadas. A Geração da Rutura. Lisboa: Parsifal, 2017.; QUINTAIS, 2000QUINTAIS, Luís. As guerras coloniais portuguesas e a invenção da história. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2000.) e pela literatura que partiu de experiências pessoais para rasgar a quietude (MEDEIROS, 2006MEDEIROS, Paulo de. Hauntings: Memory, Fiction and the Portuguese Colonial Wars. In: ASHPLANT, T. G; DAWSON, Graham; ROPER, Michael (orgs.). Commemorating War: The Politics of Memory. New Brunswick: Transaction, 2006. p. 201-221.; RIBEIRO, 2004RIBEIRO, Margarida Calafate. Uma história de regressos: império, guerra colonial e pós-colonialismo. Porto: Afrontamento, 2004.). Uma das mais proeminentes vozes literárias surgidas no final da década de 1970 foi a de António Lobo Antunes, alferes médico miliciano da Cart 3313, cuja obra é atravessada de forma decisiva pela experiência no conflito. Com a viragem do século, a guerra iniciou o seu lento caminho de visibilização, cruzando a produção memorialística (BATISTA, 2000BATISTA, Etelvino da Silva. Angola 1961-63. Diário de guerra. Lisboa: Três Sinais, 2000.; MÚRIAS, 2009MÚRIAS, Manuel Beça. O Salazar nunca mais morre. Cartas de África em tempos de guerra e amor. Lisboa: Planeta, 2009.; NIZA, 2012NIZA, José. Golden Gate. Um quase diário de guerra. Lisboa: D. Quixote, 2012.), acadêmica (ALEXANDRE, 2017ALEXANDRE, Valentim. Contra o vento. Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960). Lisboa: Temas e Debates; Círculo de Leitores, 2017.; CAMPOS, 2017CAMPOS, Ângela. An Oral History of the Portuguese Colonial War. Conscripted Generation. Londres: Palgrave Macmillan, 2017.; CARDINA; MARTINS, 2018CARDINA, Miguel; MARTINS, Bruno Sena(orgs.).As voltas do passado: a guerra colonial e as lutas de libertação. Lisboa: Tinta-da-China, 2018.; PONTES, 2019PONTES, Joana. Sinais de vida. Cartas da guerra 1961-1974. Lisboa: Tinta-da-China , 2019.), literária e artística (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Joana Miguel. “Uma história que se pode tocar”: apropriações artísticas da Guerra Colonial a partir de Sandro Ferreira.Vista, n. 2, p. 165-184, 2018.; FARIA, 2016FARIA, Paulo. Estranha guerra de uso comum. Lisboa: Ítaca, 2016.; MADEIRA, 2016MADEIRA, Cláudia. Arte da performance e a guerra colonial portuguesa: relações no tempo histórico.Media & Jornalismo, v. 16, n. 29, p. 15-25, 2016.) e jornalística (GOMES, 2018GOMES, Catarina. Furriel não é nome de pai. Os filhos que os militares portugueses deixaram na guerra colonial. Lisboa: Tinta-da-China, 2018.; SILVA, 2020SILVA, Marta Martins. Madrinhas de guerra. A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar. Porto Salvo: Desassossego, 2020.). Quase cinco décadas após o fim do império, este é um território sob escrutínio.

Partindo do conceito de lugar de memória (NORA, 1984NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire. La problématique des lieux. In: NORA, Pierre(org.). Les lieux de mémoire. La République. Paris: Gallimard, 1984. p. xv-xlii.), este texto examina a construção de uma linha imaginária entre passado e presente. O fio narrativo é fornecido pela descrição etnográfica do almoço de 2012, que permite revelar os protagonistas e as dinâmicas da celebração privada do passado. Combinando o formalismo de momentos rituais e a informalidade das interações entre convivas, o encontro cria um espaço de celebração íntima que se concentra nos aspectos experienciais da guerra, evitando o potencial embaraço e desacordo político gerado por um passado ainda demasiado próximo. O combate ao esquecimento é feito do reencontro dos presentes, da evocação dos ausentes, e de um patrimônio intangível de narrativas, onde se combinam episódios que alguns viveram e outros que foram fixados pela obra de António Lobo Antunes, escritor e antigo alferes médico conscrito da unidade. Como se relacionam as memórias pessoais dos ex-combatentes com a narrativa literária do camarada? Onde se situam as fronteiras que marcam o que deve ser lembrado e esquecido? Que memória é esta que se constrói na comemoração anual?

Memória, família, camaradagem

Amigos, mais uma vez vamos realizar, no dia 16 de Junho, o convívio anual que será o 12º e desta feita em pleno coração da Bairrada. Preparem-se as tropas e a família para o “ataque” à Bairrada! Se descobrirem algum “desertor” encaminhem-no para regressar às nossas “fileiras”. Vamos fazer deste dia mais um momento inesquecível... 3 3 Carta convite para o 12º almoço anual da Cart 3313, 1º jun. 2012.

Assim começava o convite que, dois meses antes da data, anunciava o almoço da Cart 3313. O recado era claro: o passado comum, ressuscitado pelo emprego da linguagem militar no tempo de paz, era a razão da convocatória para que todos fizessem parte de mais um encontro memorável. Décadas após a desmobilização, o inimigo é o esquecimento. O almoço da Cart 3313 aproxima-se, por isso, de um lugar de memória: a sua razão fundamental é a de “parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para (…) fechar o máximo de sentidos no mínimo de sinais” (NORA, 1984, p. xxxv).4 4 Trad. livre da autora: “la raison d’être fondamentale d’un lieu de mémoire est d’arrêter le temps, de bloquer le travail de l’oubli, de fixer un état de choses, d’immortaliser la mort, de matérialiser l’immatériel pour (…) enfermer le maximum de sens dans le mininum de signes”. Os lugares de memória, afirma Pierre Nora, existem em três sentidos: material, funcional e simbólico. Um depósito de arquivos, um testamento, uma associação de antigos combatentes, todos podem ser lugares de memória desde que sejam o objeto de um ritual que lhes conceda uma “aura simbólica” singular (p. xxxiv). A existência do almoço da Cart 3313 enquanto lugar de memória é limitada à duração do almoço anual e aos vestígios materiais que dela vão sobrando: os convites anuais, as fotografias de grupo, o cartaz comemorativo, os livros de Lobo Antunes constituem objetos-recordação que atravessam o tempo e projetam a perenidade da experiência partilhada. Mas são as dimensões funcional e simbólica que transformam esse evento num espaço privado de comemoração do passado e de promessa da sua não dissolução. Ano após ano, a liturgia comemorativa desenrola-se através da repetição de momentos, palavras e gestos, desenhando de forma coletiva as linhas invisíveis que unem o passado ao presente.

À chegada ao restaurante, confirmo o que suspeitara: este é o almoço com mais pessoas. Cento e doze, dizem-me.5 5 Em 2012, de acordo com o portal Ultramar Terraweb, realizaram-se 344 encontros de ex-combatentes; dois anos mais tarde, em 2014, ter-se-á atingido o maior número (360) desde que esses dados começaram a ser recolhidos em 2006. Ver: http://ultramar.terraweb.biz/index.htm. Acesso em: 16 set. 2022. Mas nem todos são antigos militares. Quando partiram para Angola, fizeram-no sozinhos. Por força da conscrição, deixaram para trás a vida civil, o trabalho, os amigos, a família. Os anos da guerra foram um tempo de solidão. Rodeados de outros rapazes que, como eles, foram forçados a abandonar tudo em nome da defesa da “nação pluricontinental” apregoada pelo Estado Novo, esses homens aproximaram-se de mundos desconhecidos e de pessoas com quem de outra forma não se cruzariam. Anos mais tarde, o sentimento de desterro associado à comissão de serviço foi substituído pela comemoração partilhada do passado: o encontro dos camaradas é uma festa de família. São raros os antigos militares que vão sozinhos aos almoços. A maioria leva as esposas, vários convidam filhos e netos. Afinal de contas, como todos lembram, esta é a outra família que a guerra lhes trouxe: uma família que não se baseia em laços de consanguinidade ou aliança, mas no passado partilhado em Angola.

Éramos todos família: era com quem a gente convivia, com quem a gente conversava. Não podíamos ser uns contra os outros, tínhamos de ser como uma família. A minha família naquele tempo era aquela.6 6 Entrevista presencial da autora com Manuel R., ex-soldado condutor. Braga, 25 jan. 2012.

A guerra marca as pessoas porque na guerra dependemos uns dos outros. Ninguém faz a guerra sozinho. E é essa a imagem que eu tenho, de proximidade com os outros. Eu estou aqui porque vós estáveis perto de mim. É uma coisa que não se apaga.7 7 Entrevista presencial da autora com Manuel S., ex-cabo atirador. Guimarães, 23 jan. 2012.

Esta outra família, construída numa situação de violência, isolamento e dependência mútua, aproxima-se do conceito de família de recordação (family of remembrance) proposto por Jay Winter: uma agremiação de sobreviventes da guerra que se organiza em torno da relação criada pela partilha da mesma experiência militar. Os laços que os unem são sociais e experienciais, aproximando-se do parentesco fictício; um parentesco construído, baseado na solidariedade fraternal. É nessas famílias de recordação, afirma Winter, que se pode observar o trabalho liminar da memória, construída entre o território privado da memória pessoal e o teatro nacional da memória coletiva: “Isso implica a criação de um espaço no qual a história da sua guerra, na sua forma local, particular, paroquial, familiar, possa ser contada e recontada” (WINTER, 2000WINTER, Jay; SIVAN, Emmanuel. Setting the Framework in the Aftermath of the Great War. In: WINTER, Jay; SIVAN, Emmanuel (orgs.). War and Remembrance in the Twentieth Century. Nova York: Cambridge University Press, 2000. p. 6-39., p. 40).8 8 Trad. livre da autora: “This entails their creating a space in which the story of their war, in its local, particular, parochial, familial forms, can be told and retold”. E é precisamente essa guerra - a guerra contra guerrilheiros angolanos na vastidão das chanas do Leste, a guerra da ação psicossocial na Baixa do Cassanje - que é contada, negociada, repetida, nos almoços que todos os anos juntam a família de recordação que sobrou dos vinte e seis meses em Angola.

A multidão dispersa-se à volta das mesas de aperitivos. Na entrada da sala, junto ao palco, Licínio M. instala o cartaz que fez para esse almoço. Tal como todos os anos, nas semanas que antecedem o encontro, Licínio dedica-se a criar um novo cartaz. Em 2012, este conjuga o brasão de armas da Companhia de Artilharia 3313 (“Força e Audácia”), desenhos evocativos de Angola (cubatas, um pirão, esculturas de bustos africanos, uma catana), os nomes das terras por onde passaram, uma frase de Lobo Antunes (“Passámos muito tempo a morrer juntos”). Licínio é um guardador de memória. Na garagem do seu apartamento, numa pequena cidade do distrito de Viana do Castelo, montou um museu amador. Dossiers cheios de recortes de jornal sobre a guerra, ementas e convites de almoços anuais, crônicas de Lobo Antunes sobre Angola, álbuns fotográficos, livros e séries documentais, esculturas africanas. Reformado desde os 52 anos, esse antigo eletricista dedica uma boa parte do seu tempo livre a organizar os vários objetos que começou a colecionar quando regressou da África. “Não é trabalho, é um prazer”, explica-me a esposa que conhece o empenho de Licínio que, todos os anos, cria uma comemoração gráfica diferente para o almoço da Cart 3313.

Depois do banquete, a atenção da sala é chamada para o início do ritual. As cabeças viram-se para o pequeno palco que se encontra num dos topos da sala. É lá que, ao microfone, é anunciada a homenagem a um furriel desaparecido nos anos 90. São chamados ao palco o alferes que comandava o primeiro pelotão e a família do falecido, que então se estreou nos almoços da Cart 3313: viúva, filhos e netas. As breves palavras do ex-alferes são quase impercetíveis. Com a voz contida de emoção, explica a dificuldade de homenagear um grande amigo que já não está ali. Nas suas mãos, a placa comemorativa (“Dos Camaradas da Cart 3313”) é entregue à viúva. O filho mais novo, capitão do exército português, agradece a distinção recebida no “convívio desta família” que espera se continue a encontrar por muitos anos. Dedicado à memória de um homem, presenciado pela família, esse inédito evento implicou o discurso de reconhecimento do oficial que comandava o pelotão e a entrega de um objeto que, em nome dos camaradas da companhia, representa a ligação que a todos une e que sobrevive à morte. A oferta de uma placa comemorativa à viúva e filhos do furriel constitui como instância daquilo que Emmanuel Sivan chamou de objetificação da memória9 9 Num texto sobre dor privada e recordação pública, Emmanuel Sivan analisa uma das mais populares formas de homenagem privada dos soldados israelitas que morreram na guerra: os opúsculos de comemoração (commemorative booklets). Esses opúsculos resultam da colaboração de um pequeno grupo de pessoas próximas (família, amigos, camaradas) e têm como objetivo tornar única e individual a memória do desaparecido (SIVAN, 2000). , processo através do qual a natureza impalpável daquilo que é recordado é transformada em matéria evocativa que, de forma simbólica, fixa a vida do homenageado e a memória que dele têm os que lhe sobreviveram.

A afirmação solene da memória da guerra repete-se todos os anos sob forma do minuto de silêncio, convocado pela voz de Firmino. As conversas detêm-se, os sorrisos fecham-se e toda a sala se ergue para, de pé e durante largos segundos, lembrar os que caíram em ­Angola e os que foram desaparecendo ao longo dos anos. Essa evocação partilhada do passado durante o minuto de silêncio é o exemplo mais extremo da significação simbólica dessa comemoração como lugar de memória (NORA, 1984NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire. La problématique des lieux. In: NORA, Pierre(org.). Les lieux de mémoire. La République. Paris: Gallimard, 1984. p. xv-xlii.). O seu poder reside no duplo corte que realiza no contínuo temporal, interrompendo a ação e chamando ao presente um pedaço irremediavelmente perdido do passado. Lugar de memória dentro de um lugar de memória, o minuto de silêncio anual é investido de um protagonismo ritual ímpar: na sua curtíssima duração convergem e condensam-se acontecimentos de vários momentos do tempo. Tal como no ano anterior, uma salva de palmas resgatou toda a sala do comedimento comovido que se tinha instalado.

O ritual prosseguiu com a partilha de histórias ao microfone. Durante mais de uma hora, vários veteranos desfilaram pelo palco. O tom era de boa disposição. Contaram-se histórias de jovens conscritos tomados pela loucura temporária da guerra: o cozinheiro e o soldado que se puseram à pancada por causa de uma reclamação com o arroz do rancho, o soldado que inventava dores para evitar saídas para o mato, o oficial que entrou de jipe pela cubata de uma jovem angolana que disputava com o comandante.10 10 Com muita frequência, a recordação de episódios com mulheres angolanas vem romper a contenção narrativa que habitualmente rodeia os relatos de guerra. Num artigo recente mostrei como, naturalizada por anos de colonialismo e dominação, a memória da violência sexual sobre as mulheres se tornou aparentemente invisível e não problemática (ANTUNES, 2022). Ver também McClintock (1995), Garraio (2019) e Stucki (2019). Enquadradas pela ideia de cacimbo, apresentada como a loucura inevitável causada pela experiência de guerra, essas histórias consideradas risíveis introduzem de modo inesperado instâncias diversas de violência, desordem e imprevisibilidade.11 11 Vasco Gil Calado analisa a centralidade da ideia do “cacimbo” nos relatos orais e escritos de ex-combatentes portugueses na África, e afirma que essa ideia é frequentemente usada como contextualização do surgimento de práticas transgressoras, tal como a indisciplina, a violência, ou o abuso de substâncias psicoativas (CALADO, 2020, p. 181-187). O riso surge como uma forma de redenção. A natureza concentracionária da vida militar, a violência que irrompia inesperada, os mortos e feridos, desaparecem dos relatos partilhados nessa ocasião. No seu lugar, surgem os aspectos cômicos e absurdos de uma experiência extrema, episódios risíveis que resultam da transfiguração narrativa pela qual o passado se torna um lugar suportável ao qual se consegue regressar.

O repertório daquilo que “merece ser lembrado” não inclui apenas os incidentes anedóticos. Outro dos temas favoritos é a camaradagem. São vários os exemplos: as filas de soldados que respondiam ao pedido de doação de sangue, a partilha da água do cantil com os camaradas que não a poupavam nas saídas em operações, o furriel que apesar de doente com uma hepatite recusou ser evacuado de helicóptero e terminou a operação com os seus camaradas. Contadas perante a plateia de camaradas e famílias, a maioria dessas histórias correspondem ao lado solar de uma experiência dolorosa. Subtraídas ao contexto (o que provocou a súbita necessidade de dádivas de sangue?, o que aconteceu na operação em que o furriel doente não foi evacuado com os soldados feridos?), elas resultam de um cuidadoso regresso narrativo à memória da guerra, através do qual só é formulado em palavras aquilo que merece ser lembrado. A dor que possa ter restado (a memória da violência, do medo, da morte) é rodeada de silêncio e, no seu lugar, são contados os fragmentos dizíveis de momentos que nenhum daqueles homens pode esquecer. Aos que, como eu, assistem à reunião dessa família de recordação, resta imaginar tudo o que está para além das palavras ditas. O vasto território do que não é pronunciado só é acessível aos homens que viveram juntos aquela guerra.

Convívios privados e comemorações públicas da guerra

Para a esmagadora maioria dos entrevistados, o almoço anual da Cart 3313 é o único contato social que têm com o passado de guerra. A ligação a associações de antigos combatentes é residual e as comemorações públicas são uma quase ausência nas vidas desses homens12 12 Em 31 entrevistados, só dois referiram ter proximidade com o mundo do associativismo de ex-combatentes: um deles colabora ocasionalmente com uma organização de veteranos do seu concelho, outro recorreu à psicoterapia de grupo oferecida em uma associação em Lisboa. . Quase ausência porque, de entre os trinta e um entrevistados, pelo menos três já o fizeram: no dia 10 de junho de 2010, acompanhei uma pequena comitiva de antigos militares da Cart 3313 às comemorações organizadas por associações locais junto ao monumento aos combatentes de Vila Praia de Âncora, no concelho de Caminha.13 13 Para uma análise da monumentalização da guerra nas últimas seis décadas e às dinâmicas memorialísticas que rodeiam os mais de 400 monumentos aos ex-combatentes que se encontram dispersos por Portugal, ver Caiado (2021). A cerimônia foi presidida por um veterano que, vestido a civil, mas com boina militar na cabeça, chamou todos aqueles que se preparavam para receber a condecoração. No final da cerimônia, os três camaradas e as suas mulheres foram visitar o museu que Licínio instalou na garagem de casa. A compostura que tinham mostrado durante a cerimônia deu lugar ao entusiasmo em torno dos objetos que ali encontraram. Todas as peças evocavam a guerra que viveram em Angola. Já não se tratava da distante realidade da “guerra do ultramar” das comemorações públicas, descrita na linguagem nostálgica do mundo de emblemas (POWER, 2001) e associada a palavras como heroísmo, espírito de sacrifício e amor à pátria. Ali, no museu amador de Licínio, entre peças trazidas da tropa em Angola, fotografias e livros, a guerra era a das chanas do Leste de Angola e da imensidão da Baixa do Cassanje, feita de paisagens, personagens e histórias que bem conheciam.

As cerimônias públicas evocam o conflito combatido em três territórios durante treze anos. Cabem aqui experiências muito diversas: diferentes armas e ramos das Forças Armadas, distintas realidades operacionais, diversos empenhamentos políticos na causa. Só de uma forma marginal esse passado corresponde às memórias de cada um dos sujeitos. Pelo contrário, nas comemorações privadas tudo se organiza em torno da experiência concreta e única da guerra tal como foi vivida; a comemoração pública é um ato político e a celebração privada um ato íntimo. E é precisamente aqui que se situa a fronteira que separa o desinteresse do entusiasmo: a familiaridade é o elemento crítico que distingue o modo como os entrevistados se relacionam com o mundo das comemorações públicas ou privadas.

No 10 de junho, dia em que a Presidência da República organiza a comemoração oficial do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, vários locais do país assistem a homenagens aos veteranos da guerra que são promovidas por associações de combatentes e autarquias. O Encontro Nacional dos Combatentes, junto ao Monumento aos Combatentes em Lisboa, é a mais importante dessas celebrações convocadas pela sociedade civil.14 14 Para uma análise do Monumento aos Combatentes do Ultramar inaugurado em Lisboa em 1994, sua história, apropriação simbólica e performatividade, ver Peralta (2017). A escolha dessa data nada tem de inocente: foi com a guerra colonial/de libertação que a comemoração do 10 de Junho adquiriu um notável peso político para o Estado Novo. A partir de 1963, a comemoração do Dia de Portugal passou a incluir uma homenagem às Forças Armadas, bem como a atribuição de condecorações aos militares que se tivessem distinguido na África. Envolta num “rigoroso protocolo, destinado a conferir a maior solenidade ao acontecimento e um carácter marcial” (JOÃO, 2002JOÃO, Maria Isabel. Memória e Império. Comemorações em Portugal (1880-1960). Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002., p. 139), a comemoração do 10 de Junho transformou-se, nessa altura, num apelo oficial à unidade em torno da manutenção da integridade da nação pluricontinental apregoada pelo regime. Depois do 25 de Abril, o 10 de Junho perdeu a importância política que tivera nos derradeiros anos do Estado Novo e tornou-se uma comemoração oficial da qual a generalidade da população portuguesa se encontra alheada.

Na ausência de uma política de memória que enquadrasse e homenageasse a experiência daqueles que tinham combatido na guerra, o Encontro Nacional de Combatentes estabeleceu-se a partir de 1994 como o locus cerimonial de uma narrativa alternativa que utiliza dispositivos rituais e simbólicos associados ao formalismo dogmático da cultura oficial (BODNAR, 1994BODNAR, John. Public Memory in an American City. In: GILLIS, John R. (org.). Commemorations. The Politics of National Identity. Princeton: Princeton University Press, 1994. p. 74-89.). Apesar da natureza não oficial, essa comemoração inclui desfiles militares, discursos e o hino nacional. O ambiente é protocolar e grave. Por meio de gestos e palavras, a guerra é inscrita na continuidade intemporal da nação e integrada na narrativa sobre o país e a sua história (CAIADO, 2018CAIADO, André. Reconfiguração do ‘Dia da Raça’ e das Forças Armadas portuguesas (1963). In: CARDINA, Miguel; MARTINS, Bruno Sena (orgs.).As voltas do passado: a guerra colonial e as lutas de libertação. Lisboa: Tinta-da-China, 2018. p. 121-127.). A dimensão e importância política desta arena de articulação da memória é evidente: é aqui que se alcança o reconhecimento público que julgam ser devido a todos aqueles que combateram em nome de Portugal. Centenas de veteranos e as suas famílias, ligados por associações de antigos combatentes, saem à rua para reivindicar a visibilidade que julgam merecer.

Embora nenhum dos entrevistados tenha por hábito frequentar o Encontro Nacional de Combatentes ou outras comemorações públicas pelo país, alguns referem o incômodo causado pelo insuficiente reconhecimento dos veteranos. Há quem fale de ingratidão, há quem refira os efeitos psicológicos e físicos da guerra, há quem acuse o Estado de ter abandonado os veteranos. Esses discursos traduzem o desconsolo com situações que lhes são próximas, tal como é o caso daquele que é considerado o herói da companhia: o cabo Fernando S., que todos veem como o mais corajoso dos elementos da unidade, vive em situação de múltiplas vulnerabilidades, agravadas pela ausência de apoios do Estado aos veteranos. Quando falam desse assunto, os veteranos da Cart 3313 não estão a falar dos combatentes enquanto anônima massa de indivíduos recrutados para o conflito; estão a falar de camaradas da guerra, pessoas de carne e osso de quem conhecem o nome e a história. Regressa-se, por isso, à questão da familiaridade e de como ela condiciona a adesão a retóricas baseadas no sentido de pertença e de união em torno de uma causa comum. Longe de qualquer ativismo associativo, distantes das reivindicações em torno da visibilidade pública dos combatentes, esses entrevistados identificam-se com aqueles com quem partilharam a guerra. A nação que conheceram e pela qual combateram era feita das dezenas de homens que pertenciam à mesma unidade militar. Mais do que o território nacional ameaçado na sua integridade, era a lealdade para com os camaradas que os fazia aguentar a guerra. Essa é a ligação à realidade nacional que sobrou da guerra: uma ligação baseada na dependência mútua e na interação próxima sob condições extremas, que criou a família de recordação que todos os anos se reúne nos almoços. É nesses grupos de pequena escala, afirma o sociólogo Siniša Malešević, que se constrói o sentido de pertença nacional: a exposição cotidiana à violência e ao risco de morte iminente torna a solidariedade de grupo uma condição essencial de sobrevivência. São, por isso, esses “grupos pequenos e seletos, e não as entidades de grande escala como as nações, que funcionam verdadeiramente como o ‘povo escolhido’” (MALEŠEVIĆ, 2011MALEŠEVIĆ, Siniša. The Chimera of National Identity. Nations and Nationalism, v. 17, n. 2, p. 272-290, 2011., p. 285).15 15 Trad. livre da autora: “small, selected groups, not large-scale entities such as nations, that truly operate as the ‘chosen people’”.

É este “povo escolhido”, compatriotas da mesma guerra, que ocupa o espaço comemorativo dos almoços anuais da Companhia de Artilharia 3313. Ao contrário das celebrações públicas, o léxico da nação, do dever e do heroísmo está ausente desses encontros. Nessa comemoração privada - lugar de memória refúgio que é um “santuário de fidelidades espontâneas e de peregrinações do silêncio” - não há espaço para os aspectos “espetaculares e triunfantes, impositivos e geralmente impostos” que tecem a solenidade das comemorações oficiais (NORA, 1984NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire. La problématique des lieux. In: NORA, Pierre(org.). Les lieux de mémoire. La République. Paris: Gallimard, 1984. p. xv-xlii., p. xl). No seu lugar, é a linguagem da camaradagem e da coragem que constrói as histórias que vão sendo contadas e recontadas.

A premissa do silêncio paira sobre os incômodos que possam ter sobrado do passado. As considerações políticas sobre a justiça ou injustiça da guerra, as tomadas de posição sobre o colonialismo e a descolonização, as reivindicações de reconhecimento público e de compensação material pelos danos sofridos pelos veteranos, tudo o que possa criar desacordo desaparece sob a repetida afirmação do laço indestrutível que a todos une. Em contexto de entrevista, pelo contrário, a avaliação retrospectiva da experiência da guerra foi inevitável: como não rever o passado à luz do presente? Como escapar à negociação do sentido de um passado tornado anacrônico com a deposição do regime e a descolonização? O que importa é afastar tudo o que possa criar divisão e celebrar o que merece ser lembrado. O confronto com a memória dolorosa é rigorosamente evitado. A história comum que se constrói naquele lugar de memória é uma história de remissão do mal e do sofrimento, uma história feita apenas com os episódios apaziguadores do passado.

O escritor

Um ônibus fretado saiu do Porto às primeiras horas da manhã naquele sábado de junho de 2012. Lá dentro, veteranos da Cart 3313 e as suas famílias viajaram juntas para o encontro em Coimbra. No vidro da frente da viatura, um pequeno cartaz explicava quem ali viajava: ao lado do brasão de armas da unidade, podia ler-se “Convívio Anual Os Príncipes do António Lobo Antunes”. Firmino A. lembra a história dessa frase. Na apresentação de um livro de Lobo Antunes, o intelectual Eduardo Lourenço disse então à audiência que, durante a guerra, o escritor viveu rodeado de homens humildes. O “doutor”, conta Alves, contrariou a afirmação: “Não são homens humildes; são príncipes”. O episódio, presenciado pelo antigo furriel da Cart 3313, é contado uma e outra vez com orgulho. O reconhecimento público da nobreza de caráter resgatou esses homens do anonimato. Aqueles que fizeram parte dessa companhia são “os príncipes” com quem o escritor viveu durante vinte e seis meses. As paisagens, personagens e histórias da experiência que partilharam em Angola não são apenas suas: são de todos aqueles que, através dos livros e crônicas de Lobo Antunes, puderam conhecer a guerra das picadas arenosas do Leste e na imensidão na Baixa de Cassanje. De que forma se relacionam esses antigos militares com a obra literária do médico? De que modo as suas palavras, histórias e imagens concedem ordem e sentido a experiências cuja nitidez tende a perder-se com a passagem do tempo?

Os livros de Lobo Antunes são indissociáveis da figura que ele representa para os seus companheiros da Companhia de Artilharia 3313. Ao contrário da esmagadora maioria dos camaradas, Lobo Antunes não era um militar como os restantes: com outros dois médicos, integrava o Estado Maior do Batalhão de Artilharia 3835, composto pelos comandos e por oficiais subalternos de especialidades diversas16 16 O Estado Maior do Batalhão era constituído pelo primeiro e segundo comandante (um tenente-coronel e um major, ambos do Quadro Permanente) e por sete oficiais subalternos: alferes milicianos de transmissões, reabastecimento e manutenção automóvel, três médicos e um capelão. A Cart 3313 era uma das três companhias operacionais do Batalhão de Artilharia 3835. . Estes três homens não eram identificados pelo posto militar: Lobo Antunes e os seus dois colegas eram os “doutores”, e não os “alferes”. Durante o primeiro ano da comissão, os médicos rodaram entre a sede do batalhão, em Gago Coutinho, atualmente Lumbala N’guimbo, e os destacamentos das companhias operacionais (Sessa, Mussuma, Chiúme e Ninda). Os dias eram passados entre o apoio médico ao pessoal militar e as consultas à população civil. Embora não fossem geralmente chamados para a atividade operacional, eram os médicos que tratavam dos feridos e que os acompanhavam nas evacuações para o hospital da cidade mais próxima do Luso, atual Luena. No segundo ano, a rotação dos médicos entre as várias unidades do Batalhão não existiu. Lobo Antunes passou os restantes catorze meses em Marimba, sede da Cart 3313. A estadia prolongada junto de uma mesma companhia criou, inevitavelmente, uma relação de proximidade especial. Vários lembram o desleixo da farda que enfurecia os comandos, os jogos de futebol com o médico à baliza, as campanhas de vacinação, os raspanetes que dava aos soldados por causa das doenças venéreas (“O doutor dizia ‘Se vos apanho a ir às meninas sem usarem este medicamento, sabeis que levantais voo!’”).

Durante a comissão de serviço em Angola, António Lobo Antunes destacava-se das centenas de militares do batalhão em virtude da sua especialidade. Mas foi já depois da desmobilização que alcançou uma dimensão maior do que a história dos vinte e seis meses na África faria supor. Seis anos após o regresso a Portugal, foram publicados os seus dois primeiros livros: Memória de elefante e Os cus de Judas. Décadas mais tarde, é impossível saber em que momento e circunstâncias os antigos militares da Cart 3313 souberam que o médico se tinha tornado escritor. Com a desmobilização, o contato com os camaradas perdeu-se. Dispersos pelo país, viveram a estranheza do regresso à vida civil: a guerra permanecia dentro deles e manifestava-se na irritabilidade e inquietação desconhecidas com que reagiam a situações banais. Depois disso, veio a vida e o que ela trouxe: casamento, filhos, emprego. Entretanto, o país mudava. O 25 de Abril fez cair o regime e inaugurou um tempo de profunda transformação. No final de 1975, o país que os chamara às armas tinha desaparecido. No espaço público celebravam-se as mudanças que tinham deposto o Estado Novo e enaltecia-se o papel dos militares no processo de transformação. Do colonialismo e da guerra, pelo contrário, pouco se ouvia falar, anacronismos incômodos no momento em que o país se reconstruía a partir dos despojos do império e do caminho para a Europa que se adivinhava.

No meio desse estranho silêncio sobre a guerra e o fim do império, o romance Os cus de Judas fez parte de um movimento literário que constituiu um “poderoso instrumento de anamnese”, capaz de romper o vazio historiográfico, social e político sobre os últimos anos do império (MEDEIROS, 2006MEDEIROS, Paulo de. Hauntings: Memory, Fiction and the Portuguese Colonial Wars. In: ASHPLANT, T. G; DAWSON, Graham; ROPER, Michael (orgs.). Commemorating War: The Politics of Memory. New Brunswick: Transaction, 2006. p. 201-221.). Partindo de uma função individual de exorcização de um trauma, essa literatura abriu-se a uma “função de reparação moral”, por meio da “denúncia d[a] situação trágica, tão ambiguamente esclarecida, de alerta contra o esquecimento, de absolvição dos sujeitos narradores e do país face a si mesmos e face aos Outros, e de reflexão sobre a nossa identidade e o nosso lugar no mundo” (RIBEIRO, 2004RIBEIRO, Margarida Calafate. Uma história de regressos: império, guerra colonial e pós-colonialismo. Porto: Afrontamento, 2004., p. 251). Com a narrativização das experiências africanas, a exposição das dolorosas marcas da guerra, a perplexidade perante o destino de um país obrigado a inventar-se outra vez, livros como o de Lobo Antunes convocaram para o debate público um tema que desaparecera do mapa.

Teria sido interessante resgatar as memórias que os camaradas de armas guardam do primeiro contato com a obra do médico tornado escritor e da reverberação que teve na maneira como recordavam os anos de Angola. Teria sido interessante, mas foi impossível. Mais de quatro décadas após a edição d’Os cus de Judas, esse momento dissolve-se numa nebulosa, sob o peso da dimensão pública que, entretanto, o escritor ganhou. Ao longo dos meses em que recolhi entrevistas por Portugal, descobri relações muito diferentes com a obra de Lobo Antunes: havia quem tivesse os seus livros na estante, quem colecionasse entrevistas nos jornais, quem se irritasse ao recordar os desmentidos públicos feitos por oficiais do Exército às passagens sobre a violência das tropas e a utilização do napalm em Angola. Mas houve também quem confessasse nunca ter lido nenhum dos livros. Por falta de oportunidade ou de hábitos de leitura, para esses homens o contato com a narrativa literária do antigo médico do batalhão dá-se sobretudo por intermédio dos almoços onde, através da voz de Firmino, excertos são lidos para uma plateia atenta às descrições de personagens e situações familiares.

Mas há um momento decisivo que todos recordam: o dia em que aceitaram o convite para o lançamento do livro das cartas de guerra de Lobo Antunes. Trinta e quatro anos após a chegada a Angola, a Companhia de Artilharia 3313 regressava ao cais de onde partira. Naquele fim de tarde de novembro de 2005, a Gare Marítima de Alcântara, em Lisboa, assistiu ao reencontro do escritor com os camaradas que perdera de vista após a desmobilização. A sala estacou quando o antigo alferes médico e os seus camaradas se abraçaram. Nesse momento, os militares da Cart 3313 transformaram-se nos protagonistas de carne e osso do tempo que os livros do escritor tinham fixado. Os discursos de apresentação foram feitos por três alferes milicianos e um furriel enfermeiro. Cada um, de forma diferente, evocou memórias do tempo em Angola: o isolamento, a camaradagem, o trabalho social do Exército junto das populações. Depois das palavras, vieram as imagens. Num grande ecrã, foi projetado o filme de super 8 feito por um camarada entretanto desaparecido. O antigo furriel Firmino pegou no microfone e, perante a plateia que enchia a sala, fez uma visita guiada pelas imagens. Jogos de futebol com o “doutor” à baliza, paisagens imensas de Marimba, os habitantes das aldeias próximas.

Ali, naquela sala, assistiu-se a uma dupla comemoração. Em primeiro e mais evidente lugar, o lançamento do livro abriu um espaço público de encontro do passado. Para todos aqueles que não viveram a guerra, o momento oferecia um singular ângulo de observação, ao cruzar o que dela restou (os homens que foram conscritos em Angola e as suas memórias) com o tempo africano fixado nas cartas, nas fotografias e no filme que toda a sala viu. Para os que viveram os vinte e seis meses de comissão de serviço, aquelas horas ofereceram uma oportunidade inédita de celebrar a negação do esquecimento. Com a publicação das cartas, todos os leitores poderiam vir a aceder ao mundo de experiência do quotidiano de guerra em Angola.

As narrativas pessoais de guerra, afirma Samuel Hynes, constituem o mais poderoso dos memoriais: é através das imagens em si contidas, do tom e das histórias que contam, que emerge a “recordação coletiva vicária” (vicarious collective remembrance), memória em segunda mão nascida do cruzamento de muitas memórias de outros (HYNES, 2005). O imediatismo das cartas enviadas da frente faz delas “a mais pura e imediata das versões da guerra”, combinando o quotidiano anônimo e os acontecimentos excepcionais, o banal e o insólito, num registo que conserva intacta a estranheza da experiência de guerra. Narrativas como essas (cartas, diários e memórias) constituem, diz Hynes, “atos de comemoração” que fixam as vidas e memórias das pessoas que viveram a guerra. As vozes dos protagonistas da história e dos heróis, demasiado próximas do mundo de emblemas da guerra, são preteridas a favor das narrativas pessoais dos homens comuns (HYNES, 2005HYNES, Samuel. Personal Narratives and Commemoration. In: WINTER, Jay; SIVAN, Emmanuel (orgs.). War and Remembrance in the Twentieth Century. Nova York: Cambridge University Press, 2000. p. 205-220., p. 213). Longe do heroísmo e das afirmações solenes de lealdade a causas, essas narrativas concedem voz a todos aqueles cuja existência e experiência seria dissolvida no relato monumental dos acontecimentos históricos. As narrativas pessoais tornadas públicas vêm subverter o relato coletivo da história militar. Ainda que enquanto indivíduos possam ter sido irrelevantes para o curso que os acontecimentos militares tomaram, são as suas vozes que testemunham a irredutível singularidade da experiência pessoal da guerra.

E é aqui que a figura de Lobo Antunes adquire para os homens da Cart 3313 uma relevância única. Através dos seus romances, das crônicas que foi publicando, das cartas de guerra, das entrevistas em que regressa uma e outra vez ao passado angolano, o escritor tornou inapagável a guerra que com ele partilharam. Mas as palavras de Lobo Antunes são também importantes pela maneira como ajudam a conceder ordem e sentido à amálgama de imagens que sobrou dos vinte e seis meses em Angola. Mesmo para os que nunca leram o que o médico escreveu, essas palavras reaparecem todos os anos no encontro da companhia, por meio de leituras de excertos escolhidos por Firmino. Nesses momentos, surgem nítidos e intactos alguns personagens que todos conheceram (o comandante severo, o major mulherengo, os negros dos quimbos, o dono do café de Gago Coutinho), paisagens descritas nos minúsculos detalhes da sua singularidade, banais ou invulgares episódios de um quotidiano feito de rotina, tensão e espera.

A voz do escritor, a sua pessoalíssima e literária versão dos acontecimentos, é incorporada na narrativa que os homens da Cart 3313 vão construindo e repetindo nos almoços anuais. Às suas palavras são reconhecidas a capacidade de representação da experiência comum. E é por isso que, mais uma vez, Lobo Antunes é convidado a encerrar o ritual de partilha de histórias para o qual todos foram chamados. No palco, o antigo médico fala dos grãos de felicidade no meio do horror e da precariedade da guerra: a alegria que, de uma forma extraordinária, conseguia romper a miséria em que viviam; a camaradagem que fazia filas de voluntários dispostos a doar sangue; a forma como os desaparecidos continuam vivos na memória daqueles que lhes sobreviveram. Tal como os camaradas que partilharam histórias no palco, o escritor escolhe celebrar com os presentes os instantes memoráveis que sobraram do tempo sombrio da guerra. Tudo o que é intolerável (a violência, o medo, os mortos e feridos) é cuidadosamente rodeado por uma cerca de silêncio.

Palavras e silêncios

Numa tarde do verão de 2013, encontrei-me em Lisboa com um antigo cabo cripto da companhia: Jorge P. tinha desaparecido do mapa dos contatos da Cart 3313 desde que emigrara em 1976. Foi por meio de um comentário num blog que o localizei. A troca de e-mails resultou numa conversa que gravei numa esplanada cheia de turistas. As memórias de Jorge P. descreviam as paisagens africanas com um detalhe inesperado: a localização exata dos edifícios do quartel, as colinas e riachos da zona. Mas a sua memória sobre os vinte e seis meses em Angola era muito diferente das dos seus camaradas. A história da guerra de Jorge P. parecia ser feita de um longo e sempre igual quotidiano de onde irrompiam raros episódios memoráveis: o acidente de viação que causou várias baixas, a autópsia a um negro a que assistiu, breves saídas de caça na região de Marimba. Para além desses momentos de exceção onde se entrevê a presença dos outros militares, a memória de Jorge P. descreve o deserto da rotina no quartel onde os dias eram sempre iguais. Envoltos pela redoma destinada a proteger a segurança dos que lidavam diretamente com os códigos de comunicação militares, os operadores cripto não podiam fazer colunas pela picada. A especialidade que lhe calhou na sorte garantia uma vida privilegiada de relativo sossego, que anos mais tarde recorda como a “maldição do arame farpado” que o fechou durante meses a fio no perímetro reduzido do quartel. Mas não é esta a principal razão pela qual a sua memória é tão vaga. José A., o outro cabo cripto que dividia o quarto e o trabalho com Jorge P., apresenta uma outra visão do passado. Apesar de ter sentido na pele os mesmos constrangimentos de segurança, a memória de José A. é viva, repleta de pormenores sobre a vida nos tempos da guerra e de histórias que incluem os seus pares.

O que distingue a narrativa de Jorge P. da de José A. é o fato deste último ser uma presença assídua nos encontros de camaradas. Tal como a esmagadora maioria dos entrevistados, José conhece o espaço de negociação e de construção da narrativa comum que os almoços proporcionam. Pelo contrário, Jorge nunca foi a nenhum desses encontros. Quando regressou de Angola, recorda ter sentido a necessidade de se afastar da guerra e começar uma vida nova; a emigração para os Estados Unidos trouxe o corte definitivo com o passado. Foi muitos anos mais tarde que, na internet, decidiu pesquisar a Cart 3313 e deixou um comentário num blog - o mesmo comentário que me fez chegar até si. A sua narrativa depende somente do que conseguiu conservar na memória. Distante dos camaradas ou dos livros do antigo alferes médico, afastado do país e dos seus acontecimentos, arredado dos debates sobre o colonialismo e sobre a guerra que têm surgido nos últimos anos, restam-lhe fragmentos dispersos de um tempo longínquo com os quais compõe um relato distanciado.

Os almoços anuais constituem, para os veteranos, um instrumento de anamnese semelhante ao desempenhado pela literatura na reposição da guerra no debate público português. Até ao momento em que pela primeira vez se cruzaram com os camaradas e as suas memórias, são vários os que mencionam o apagamento dos contornos do tempo angolano. No processo de composição do passado, tudo o que não é formulado em palavras tende a ser dissolvido na massa indistinta de acontecimentos que vão desaparecendo da memória. A revisitação narrativa constitui uma condição essencial para a sobrevivência do passado no presente: um “acontecimento não lembrado é quase algo não acontecido” (MACHADO, 2011MACHADO, Paulo Pinheiro. Guerra, cerco, fome e epidemias: memórias e experiências dos sertanejos do Contestado. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 12, n. 22, p. 178-86, 2011., p. 178). Nos almoços da Cart 3313 cada um dos antigos militares está rodeado de pares. Todas as conversas se baseiam na premissa da experiência comum e implicam o convite para a reconstrução partilhada de uma história que supere as lacunas das memórias pessoais. A pergunta mais ouvida é “Lembras-te?”. Sempre que ela é repetida, há quem acrescente pormenores, quem imite gestos e frases do passado, quem acrescente credibilidade à narrativa que vai sendo construída. Ensaiadas em todos os convívios da Cart 3313, as histórias do repertório ganharam a solidez de um fato por força da repetição a várias vozes; em cada encontro, ele é negociado e atualizado com pequenas variações das mesmas histórias. À distância de quarenta anos, os tempos da guerra são feitos de uma coleção de episódios que apenas alguns viveram, mas que todos tomam como seus.

Mas a memória da guerra não foi apenas o alvo do desgaste imposto pelo tempo. Nos discursos de alguns entrevistados é possível distinguir uma intervenção pessoal destinada a apagar os aspectos incômodos do passado. Há quem revele não falar sobre a guerra com a família (“São memórias da minha vida que não dizem muito à minha mulher e filhos”), há quem mencione ter feito um esforço para não se lembrar (“Vivi? Vivi. Mas procuro não me lembrar”). Um de entre estes, foi apenas por três vezes aos almoços e, das suas palavras, depreende-se a improbabilidade de a eles regressar. O incômodo é mais forte do que o prazer de reencontrar os camaradas. Entre os quilômetros que o separam dos encontros anuais, o desinteresse da família e o desconforto que a guerra lhe causa (“Não é que eu tenha más recordações daquilo, mas não vejo grande motivo para me orgulhar”), esse veterano prefere apartar-se do regresso ao tempo de Angola; só assim consegue conter a recordação que procura evitar.

A maioria desses homens tem uma relação ambivalente com a experiência de guerra. O tempo em Angola é, ao mesmo tempo, a dolorosa memória de um desterro hostil (o isolamento, a tensão, as emboscadas, as baixas) e da juventude despreocupada (as aventuras africanas, o mundo que se descobria, a alegria no meio do caos). É precisamente essa ambivalência que faz regressar esses homens, ano após ano, aos almoços da Cart 3313. O passado que ali se celebra não é o da violência: é o da camaradagem, da união que sobrevive ao tempo, da alegria e do riso, da coragem e resistência. É aqui que se desenha a linha que separa as memórias pessoais da grande narrativa comum que vai sendo construída e atualizada nos encontros dessa companhia. Nas entrevistas, esses homens falaram do medo, da incerteza, da covardia, da agressividade que rebentava em circunstâncias inesperadas, do desespero com o isolamento e com o tempo que demorava a passar. Nos almoços, falaram da camaradagem e de coragem. Nas entrevistas, contaram a descoberta das populações negras daquela região de Angola e das suas formas de vida, denunciaram a descoberta da opressão colonial ou confirmaram a justeza da disciplina necessária para combater o que consideravam ser a natural ociosidade dos africanos. Nos almoços anuais, Angola é o exótico cenário do passado, guardado em imagens soltas de paisagens imensas e habitantes de modos considerados extravagantes (ANTUNES, 2015ANTUNES, Maria José Lobo. Regressos quase perfeitos. Memórias da guerra em Angola. Lisboa: Tinta-da-China, 2015.).17 17 A presente pesquisa não se debruçou sobre a transmissão oral de histórias da guerra entre ex-combatentes e suas famílias, mas publicações recentes que cruzam a academia e o jornalismo (GOMES, 2014; RIBEIRO, 2013; RIBEIRO; RODRIGUES, 2022) têm explorado as pós-memórias e as muitas formas pelas quais o passado colonial português habita e assombra ainda as vidas dos “filhos do império”. A memória do fim do regime e da descolonização, as interrogações retrospectivas sobre o sentido da experiência de guerra, as inquietações sobre o destino do país - temas inevitavelmente percorridos nas entrevistas - desaparecem nos encontros anuais. As palavras e silêncios de uma e outra ocasião não são os mesmos.

Considerações finais

Ninguém faz a guerra sozinho, afirmou um ex-combatente para explicar a força dos laços que o unem aos camaradas. Décadas mais tarde, os encontros anuais garantem que ninguém a lembra sozinho. A ideia de família desempenha um papel central. Em primeiro lugar, ela é invocada para explicar a indestrutibilidade das ligações geradas na guerra e para delimitar as fronteiras no interior das quais é seguro contar e recontar o passado. Por outro lado, e ao contrário da solitária experiência de guerra, esses encontros abrem-se às famílias dos veteranos que, assim, se juntam à família de recordação constituída pelos compatriotas da mesma guerra. Essa abertura da comemoração a quem não viveu diretamente o conflito permite a transmissão intergeracional do repertório de histórias que, dessa forma, cruza socialidades, se enraíza e expande o alcance da memória coletivamente construída. Atualizada em cada encontro anual, a versão apolítica e experiencial da guerra combina a imaterialidade da narrativa partilhada e a materialidade dos objetos-recordação (convites anuais, fotografias de grupo, cartazes comemorativos, livros do escritor camarada) que evocam o passado e se projetam no futuro.

Entre as memórias individuais e as memórias públicas situa-se a “atividade palpável e desarrumada que produz a recordação coletiva” (WINTER; SIVAN, 2000WINTER, Jay. Forms of Kinship and Remembrance in the Aftermath of the Great War. In: WINTER, Jay; SIVAN, Emmanuel (orgs.). War and Remembrance in the Twentieth Century. Nova York: Cambridge University Press, 2000. p. 40-60.). Apesar das décadas que passaram e que transformaram os rapazes que chegaram a Angola em homens maduros, apesar da revolução que depôs o regime e o império, apesar da ameaça do esquecimento que vem com os anos que passam, a realização dos almoços anuais abre uma nova arena onde cada um se torna um agente ativo da memória e se junta aos camaradas para garantir que o passado não será esquecido. É precisamente aqui que se revela a criatividade dos sujeitos. O passado existe na representação que sobre ele constroem, nas imagens e nos episódios que compõem a história que é contada e repetida, ano após ano. É nessa atividade palpável e desarrumada que negoceiam o critério que irá circunscrever as palavras e os silêncios, o que será lembrado e o que deverá ser omitido: “as histórias dos soldados reforçam as decências que sobrevivem às indecências do combate” (WINTER; SIVAN, 2000WINTER, Jay; SIVAN, Emmanuel. Setting the Framework in the Aftermath of the Great War. In: WINTER, Jay; SIVAN, Emmanuel (orgs.). War and Remembrance in the Twentieth Century. Nova York: Cambridge University Press, 2000. p. 6-39., p. 33).18 18 Trad. livre da autora: “soldiers’ stories reinforce the decencies that survive the indecencies of combat”. São precisamente as decências que sobrevivem às indecências da guerra que os veteranos querem lembrar e comemorar nos encontros anuais. Incapazes que são de mudar o que aconteceu, de apagar imagens de violência, de rasurar episódios incômodos, resta-lhes construir regressos quase perfeitos ao passado.

Fontes primárias

  • Entrevista presencial da autora com Manuel R., Braga, 25 jan. 2012.
  • Entrevista presencial da autora com Manuel S., Guimarães, 23 jan. 2012.

Referências

  • ADFA. Associação dos Deficientes das Forças Armadas. Deficientes das Forças Armadas A Geração da Rutura. Lisboa: Parsifal, 2017.
  • AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos Matos. Guerra colonial Porto: Porto, 2020.
  • ALEXANDRE, Valentim. Contra o vento Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960). Lisboa: Temas e Debates; Círculo de Leitores, 2017.
  • ALMEIDA, Joana Miguel. “Uma história que se pode tocar”: apropriações artísticas da Guerra Colonial a partir de Sandro Ferreira.Vista, n. 2, p. 165-184, 2018.
  • ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas Lisboa: Vega, 1979.
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  • 1
    Os termos que se usam para designar esse conflito são, ainda hoje, alvo de debate e discórdia. “Guerra do ultramar” é uma expressão usada pelos setores mais conservadores da sociedade portuguesa, ecoando os argumentos e a construção ideológica do Estado Novo. O termo “guerra de libertação” traduz o ponto de vista africano e reconhece a centralidade das lutas de libertação nacional, ao passo que a expressão “guerra colonial” se baseia na perspetiva e experiência do lado português e simultaneamente reconhece a natureza colonialista do conflito que foi travado. Neste texto, adoto a expressão guerra colonial/de libertação para dar conta dos dois lados da mesma guerra. Em 1971, ano em que a Cart 3313 foi mobilizada para Angola, foram enviados 24 batalhões do exército para este território, cada um dos quais constituído por três companhias operacionais (BRANDÃO, 2008). Nesse ano, o efetivo militar em Angola alcançou os 62.060 homens; os contingentes na Guiné-Bissau e em Moçambique eram então de 29.210 e 44.505, respetivamente (ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO, 1988).
  • 2
    Tal como tantas pessoas da minha geração, sou “filha da guerra” (RIBEIRO, 2013; RIBEIRO; RIBEIRO, 2018): o meu pai foi enviado para Angola como alferes médico miliciano, e cresci rodeada de objetos e histórias de um passado que não vivi. Seis anos após ter regressado de Angola, o meu pai publicou aquele que viria a ser um dos mais importantes romances portugueses sobre o conflito (ANTUNES, 1979). O interesse por esta guerra enquanto tema de pesquisa surgiu depois de ter editado, junto com a minha irmã, as cartas que o meu pai enviara à nossa mãe desde Angola (ANTUNES, 2005). Nesse momento, a memória emprestada da guerra (esse passado que de alguma forma também é meu, mas do qual não me lembro) criou a vontade de ir para além daquilo que conhecia (as histórias, as fotografias, pedaços soltos de um tempo perdido no tempo). Com a pesquisa de doutorado em Antropologia, construí uma etnografia da memória de guerra a partir da comissão de serviço da Cart 3313, através do cruzamento de memórias pessoais dos ex-combatentes, a narrativa literária de António Lobo Antunes, o relato oficial da instituição militar e as retóricas públicas que, durante o Estado Novo e no Portugal contemporâneo, forneceram as ideias e as palavras com as quais o país e o mundo eram pensados.
  • 3
    Carta convite para o 12º almoço anual da Cart 3313, 1º jun. 2012.
  • 4
    Trad. livre da autora: “la raison d’être fondamentale d’un lieu de mémoire est d’arrêter le temps, de bloquer le travail de l’oubli, de fixer un état de choses, d’immortaliser la mort, de matérialiser l’immatériel pour (…) enfermer le maximum de sens dans le mininum de signes”.
  • 5
    Em 2012, de acordo com o portal Ultramar Terraweb, realizaram-se 344 encontros de ex-combatentes; dois anos mais tarde, em 2014, ter-se-á atingido o maior número (360) desde que esses dados começaram a ser recolhidos em 2006. Ver: http://ultramar.terraweb.biz/index.htm. Acesso em: 16 set. 2022.
  • 6
    Entrevista presencial da autora com Manuel R., ex-soldado condutor. Braga, 25 jan. 2012.
  • 7
    Entrevista presencial da autora com Manuel S., ex-cabo atirador. Guimarães, 23 jan. 2012.
  • 8
    Trad. livre da autora: “This entails their creating a space in which the story of their war, in its local, particular, parochial, familial forms, can be told and retold”.
  • 9
    Num texto sobre dor privada e recordação pública, Emmanuel Sivan analisa uma das mais populares formas de homenagem privada dos soldados israelitas que morreram na guerra: os opúsculos de comemoração (commemorative booklets). Esses opúsculos resultam da colaboração de um pequeno grupo de pessoas próximas (família, amigos, camaradas) e têm como objetivo tornar única e individual a memória do desaparecido (SIVAN, 2000).
  • 10
    Com muita frequência, a recordação de episódios com mulheres angolanas vem romper a contenção narrativa que habitualmente rodeia os relatos de guerra. Num artigo recente mostrei como, naturalizada por anos de colonialismo e dominação, a memória da violência sexual sobre as mulheres se tornou aparentemente invisível e não problemática (ANTUNES, 2022). Ver também McClintock (1995), Garraio (2019) e Stucki (2019).
  • 11
    Vasco Gil Calado analisa a centralidade da ideia do “cacimbo” nos relatos orais e escritos de ex-combatentes portugueses na África, e afirma que essa ideia é frequentemente usada como contextualização do surgimento de práticas transgressoras, tal como a indisciplina, a violência, ou o abuso de substâncias psicoativas (CALADO, 2020, p. 181-187).
  • 12
    Em 31 entrevistados, só dois referiram ter proximidade com o mundo do associativismo de ex-combatentes: um deles colabora ocasionalmente com uma organização de veteranos do seu concelho, outro recorreu à psicoterapia de grupo oferecida em uma associação em Lisboa.
  • 13
    Para uma análise da monumentalização da guerra nas últimas seis décadas e às dinâmicas memorialísticas que rodeiam os mais de 400 monumentos aos ex-combatentes que se encontram dispersos por Portugal, ver Caiado (2021).
  • 14
    Para uma análise do Monumento aos Combatentes do Ultramar inaugurado em Lisboa em 1994, sua história, apropriação simbólica e performatividade, ver Peralta (2017).
  • 15
    Trad. livre da autora: “small, selected groups, not large-scale entities such as nations, that truly operate as the ‘chosen people’”.
  • 16
    O Estado Maior do Batalhão era constituído pelo primeiro e segundo comandante (um tenente-coronel e um major, ambos do Quadro Permanente) e por sete oficiais subalternos: alferes milicianos de transmissões, reabastecimento e manutenção automóvel, três médicos e um capelão. A Cart 3313 era uma das três companhias operacionais do Batalhão de Artilharia 3835.
  • 17
    A presente pesquisa não se debruçou sobre a transmissão oral de histórias da guerra entre ex-combatentes e suas famílias, mas publicações recentes que cruzam a academia e o jornalismo (GOMES, 2014; RIBEIRO, 2013; RIBEIRO; RODRIGUES, 2022) têm explorado as pós-memórias e as muitas formas pelas quais o passado colonial português habita e assombra ainda as vidas dos “filhos do império”.
  • 18
    Trad. livre da autora: “soldiers’ stories reinforce the decencies that survive the indecencies of combat”.
  • Este texto é o resultado de pesquisa apoiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através das bolsas BD/SFRH 46989/2008 e SFRH/BPD/116134/2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
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