Open-access A experiência universitária entre dois liberalismos

The university experience between two liberalisms

Resumos

O texto representa uma tentativa de tratar a experiência universitária situando-a entre dois liberalismos, o dos fundadores da USP, a que chamamos liberalismo ilustrado, e o neoliberalismo atual. Neste sentido, organiza elementos e esboça uma reflexão comparativa, de ordem histórica e institucional, sobre a universidade brasileira, muito especificamente a USP, focalizando o período compreendido entre os anos 30 e a atualidade. Com isso se pretende compreender a transformação de um projeto inicial e fundador num projeto terminal, aquele que está sendo implementado em nome de uma racionalização modernizadora. O objetivo do texto é, portanto, o entendimento do presente e dos compromissos que são solicitados a assumir aqueles que de alguma maneira vincularam suas vidas ao destino da Instituição.

liberalismo; política educacional; projeto universitário; história; ideologia; tecnocracia


This text represents an atempt to deal with the university experience placing it between the two liberalisms; one from the founders of USP, which is called lllustrated Liberalism, and the other one, that is the recent neo-liberalism. In this way, this text organizes topics and outlines a comparative reflection concerning the history and Institution of the Brazilian university, and more often of USP, highlighting the period between 1930 's and nowadays. This text tries to understand the transformation of an inicial project and its final project, which is being implemented nowadays due to a modern rationalization. In other words, the objective of this text is to understand the present situation of the university, and the compromises of whom, in some way, attached their lives to the destiny of the Institution.

liberalism; educational politics; university project; history; ideology; technocracy


DOSSIÊ UNIVERSIDADE

A experiência universitária entre dois liberalismos

The university experience between two liberalisms

Franklin Leopoldo e Silva

Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH - USP

RESUMO

O texto representa uma tentativa de tratar a experiência universitária situando-a entre dois liberalismos, o dos fundadores da USP, a que chamamos liberalismo ilustrado, e o neoliberalismo atual. Neste sentido, organiza elementos e esboça uma reflexão comparativa, de ordem histórica e institucional, sobre a universidade brasileira, muito especificamente a USP, focalizando o período compreendido entre os anos 30 e a atualidade. Com isso se pretende compreender a transformação de um projeto inicial e fundador num projeto terminal, aquele que está sendo implementado em nome de uma racionalização modernizadora. O objetivo do texto é, portanto, o entendimento do presente e dos compromissos que são solicitados a assumir aqueles que de alguma maneira vincularam suas vidas ao destino da Instituição.

Palavras-chave: liberalismo, política educacional, projeto universitário, história, ideologia, tecnocracia.

ABSTRACT

This text represents an atempt to deal with the university experience placing it between the two liberalisms; one from the founders of USP, which is called lllustrated Liberalism, and the other one, that is the recent neo-liberalism. In this way, this text organizes topics and outlines a comparative reflection concerning the history and Institution of the Brazilian university, and more often of USP, highlighting the period between 1930 's and nowadays. This text tries to understand the transformation of an inicial project and its final project, which is being implemented nowadays due to a modern rationalization. In other words, the objective of this text is to understand the present situation of the university, and the compromises of whom, in some way, attached their lives to the destiny of the Institution.

Keywords: liberalism, educational politics, university project, history, ideology, technocracy.

Dois liberalismos, no contexto do que se vai desenvolver aqui significa: duas concepções de modernização, dois processos dirigidos para um mesmo objetivo, que seria o de colocar a instituição universitária à altura da sua época, inseri-la na efetividade do tempo histórico. O primeiro liberalismo ou a primeira "modernização" geraram as idéias expressas nos propósitos dos fundadores da Universidade de São Paulo, o grupo de liberais ilustrados que, nos anos 20 e 30, concebeu um projeto político-educacional de regeneração da sociedade brasileira em que a Universidade aparecia como o mais importante instrumento de formação das elites dirigentes que deveriam promover o ingresso do país na modernidade política, aliviando-o do lastro incômodo das oligarquias atrasadas cujos vícios reiteradamente presentes na sucessão das conjunturas constituíam os maiores obstáculos ao aprimoramento da vida política e à realização dos ideais republicanos. O outro liberalismo é aquele sob o qual vivemos presentemente, que trocou a ilustração pela tecnocracia e, alheio a qualquer projeto emancipatório para o país, contenta-se em manter-se indiscutivelmente alinhado com as diretrizes econômicas globalizantes emanadas do centro do capitalismo. Embora não se possa falar de um grupo em que a coesão seria sustentada por uma identidade de propósitos tão nítida quanto a que guiava os liberais ilustrados de São Paulo, ainda assim creio que se pode falar da formulação de um projeto, atualmente em curso, e que mantém com os objetivos do primeiro liberalismo pelo menos uma simetria: os liberais ilustrados conceberam o projeto inaugural da Universidade; os liberais tecnocráticos formularam o projeto terminal da Universidade. O estabelecimento de algumas comparações no exame da trajetória entre o começo e o fim talvez permita a compreensão de certos aspectos importantes do processo, sobretudo no que diz respeito ao modo de participação dos agentes históricos na confluência entre os objetivos e os resultados. É preciso considerar também que, estando este projeto terminal em vigência, dele todos participamos, alguns porque a ele aderiram e o defendem, em nome da modernização necessária e até mesmo em nome da sobrevivência da instituição; outros, que mantêm fidelidade a uma outra idéia de universidade, procuram organizar de alguma maneira um espaço de resistência dentro das possibilidades restantes de atuação, a cada dia mais exíguas, seja em termos políticos, seja mesmo em termos estritamente universitários. Em ambos os casos talvez possa ser útil alguma tentativa de elucidação do sentido destes compromissos.

II

No projeto de fundação da Universidade de São Paulo, as determinações de origem estão marcadas por profundas contradições. Se é verdade que o mesmo acontece em todos os processos históricos, neste caso o interesse deriva do teor extremado de idealização de propósitos, expresso no discurso daqueles mais empenhados no projeto. Seria talvez analiticamente insuficiente atribuir esta característica à necessidade de racionalização e sublimação dos interesses de classe, algo muito próprio do discurso liberal. É preciso dar importância equivalente ao fato de que, no caso da intelectualidade liberal comprometida com o projeto, a coincidência entre a proposição de objetivos e a defesa dos interesses, certamente existente, passa pelo confronto com as oligarquias dominantes e por uma relação complicada com o poder, que se constrói ora por acordos estabelecidos à revelia de princípios, ora por confrontos em que a defesa intransigente de princípios aparece como marca de superioridade intelectual e moral. Para não simplificar a trama ideológica seria conveniente mencionar as idéias gerais considerando-as em primeiro lugar no seu momento afirmativo, aquele em que se enfatiza a prioridade da educação (e sobretudo da universidade) no horizonte de reordenação política da sociedade.

Tais idéias aparecem sempre melhor articuladas nos textos de Fernando de Azevedo, como por exemplo, o "Inquérito sobre a Instrução Pública em São Paulo", de 1926. Acompanhando a análise de Irene Cardoso, vemos que é possível destacar aí pelo menos 5 pontos1:

1. O estado é o principal, senão mesmo o único responsável pela educação, sobretudo a de nível superior. Na década de 20, a questão escola pública versus escola privada certamente não se colocava como um debate importante, tal como acontece nos nossos dias. Mas não deixa de ser digno de nota a afirmação do caráter público da educação por parte de liberais. O aprimoramento da educação se faz por via de uma convocação, que os cidadãos dirigem ao poder público, para que este assuma de forma mais efetiva e racional a sua responsabilidade. Certamente, mesclada ao caráter cívico de que se reveste esta posição, está também a idéia de que a pluralidade de concepções e diretrizes, inevitável numa situação em que o estado compartilhasse com a iniciativa privada a responsabilidade pela educação, prejudicaria a unidade de um projeto político-educacional. Em sentido semelhante são criticadas as variações e adaptações que ocorrem no plano educacional, mais sujeito aos caprichos da pequena política do que a uma orientação firmada em critérios tecno-pedagógicos, que só poderia existir se a educação fosse pensada como projeto fundamentado e de longo alcance, a salvo das injunções de grupos e partidos.

2. Nem por isto a educação estaria, contudo, desvinculada da política. Pelo contrário, liberada da pequena política que expressa tão somente a ambição de pessoas ou de partidos, poderia a educação, concretizada num sistema coerente e sólido de ensino, transformar-se num "maravilhoso instrumento político de coesão"2. Se a educação apresenta um quadro desconexo, que reflete a ausência de um projeto político mais amplo em todos os setores da vida nacional, somente a elite "educada" segundo os padrões cívicos, morais e intelectuais próprios do liberalismo poderá articular a coesão política a partir de critérios mais elevados do que aqueles que ordinariamente servem aos interesses imediatos dos partidos. A educação precisa, pois, estar acima da política partidária para exercer verdadeira influência política nos destinos da nação. A feição idealista de um discurso como este tem duas faces: em primeiro lugar, a falsa abstração, isto é, a colocação dos "interesses nacionais" nas alturas de um mundo supra-sensível faz com que o cuidado destes interesses só possa ser exercido pelos portadores das virtudes morais, cívicas e intelectuais que os liberais atribuem a si próprios, e que desejam transmitir às "elites" de cuja formação pretendem se encarregar. Em segundo lugar está a idéia, que o correr dos tempos tomou ingênua ou esdrúxula, de que o governante será tanto mais político quanto mais consiga ver, de uma perspectiva superior (que seria verdadeiramente a perspectiva política), os problemas técnicos que os governos devem resolver e, a partir desta posição, imprimir diretrizes políticas que orientarão as soluções técnicas. Daí a idéia de que a universidade somente formará este dirigente "de elite" se não estiver totalmente voltada para a profissionalização. A formação do dirigente político não pode ser a formação do profissional. Não há de ser o "profissional liberal" que dirigirá o país, mas o liberal não profissional.

3. E há um motivo para isto. O papel civilizador deste governante idealizado exclui que ele seja apenas treinado para exercer certas habilidades, a partir de informações que receberia, em variados graus de especialização. A elevada posição que lhe confere a sua função política é inseparável da "força criadora", sem a qual não poderá desempenhar o papel de imprimir à nação os rumos civilizatórios. Esta idéia repercute diretamente na proposta de universidade que está neste momento sendo gestada. A universidade não pode ser apenas transmissora de saber, mas deve também elaborá-lo. Somente quando elabora, desenvolve e transmite conhecimento a universidade pode ser considerada um "organismo vivo", constantemente sensível à sociedade em que está inserida, não só para satisfazer necessidades imediatas mas principalmente para dirigir a evolução social em todos os aspectos, o que está em consonância com a idéia de que as elites bem formadas compreendem as necessidades do povo melhor do que o próprio povo. Para cumprir esta "função superior e inalienável", a universidade será, essencialmente, um centro de alta cultura, em que o cultivo do saber desvinculado dos interesses imediatos terá um lugar destacado, que será a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

4. Por isso mesmo, no conjunto do sistema educacional, inegável predominância é atribuída à universidade. Assim o exige a concepção da necessidade, da superioridade e do caráter diretor das elites. "(...) a marca das civilizações não é dada pela amplitude da educação popular, mas pela força das elites dirigentes"(Cardoso, 1982, p. 30). Esta confluência entre um idealismo filosófico-histórico e a função política da universidade é que dá o tom característico deste projeto modernizante. Sendo a educação pública, o caráter democrático do processo de recrutamento das futuras elites estaria como que automaticamente assegurado. Não mais haveria a constante reprodução das oligarquias porque, por meio da educação universitária, a barreira das classes sociais seria vencida, qualquer um podendo ascender à condição de membro da elite pela demonstração de mérito. O encontro entre a universidade pública e a vocação é a condição para que o indivíduo transponha, de imediato, todos os obstáculos de uma sociedade dividida. Vistas as coisas desta maneira, a universidade cumpre função política em dois níveis: permite a compatibilização entre elite e democracia; e recruta, na totalidade do espectro social, para formá-los segundo os mais afinados padrões de saber e discernimento, os futuros membros da elite dirigente.

5. Como nem todos serão recrutados, cumpre pensar também na educação daqueles que permanecerão nos níveis das massas e das classes médias. No estado moderno o direito à instrução foi universalizado, e ele de fato é necessário, até para que o direito universal do voto possa ser exercido com efetividade. É preciso portanto estender o direito à educação a toda a sociedade, mas na justa medida, para que a coerência do todo faça ressaltar as diferenças, cuja anulação é fictício pretender. Assim, após as elites, com acesso à universidade, estão as classes médias, "elemento assimilador e propagador de correntes de idéias e de opinião", que Fernando de Azevedo considera imprescindível para a subsistência e desenvolvimento de uma democracia. Às classes médias corresponderia o ensino médio, isto é secundário, que é suficiente para a disseminação do saber elaborado na universidade. E finalmente as massas, para as quais o curso primário cumpre a função de inserção da parte na totalidade harmônica e funcional. A correspondência entre proposta educacional e concepção de divisão social é extremamente reveladora, e está em acordo com o teor idealista que permeia a definição da função política da educação. As classes sociais são fixas como categorias; mas isto não impede a democracia, desde que a mobilidade seja pensada em função do mérito, visto como o único fator de acesso à camada da elite, sempre aberta e receptiva à capacidade e ao valor.

Os pontos acima arrolados evidenciam a relação íntima entre educação e sociedade presente no projeto dos liberais ilustrados. Não apenas devido à mencionada correspondência entre projeto educativo e concepção da sociedade, mas também porque este projeto é visto como a única maneira de reverter o processo de degradação política que se expressa na "crise das oligarquias". A educação não deve ser vista como um elemento entre outros numa sociedade democrática. Ela tem que ser vista como procedimento construtor da democracia, e é isto que estaria faltando na visão dos governos. Já que a democracia é o governo do povo pelas elites ilustradas, e não o governo do povo pelo povo, definição imprecisa e precipitada, além de irrealista, é preciso que São Paulo, isto é, a ilustração paulista, marche mais uma vez para cumprir o seu destino pioneiro, mostrando com palavras e ações os caminhos para a solução dos grandes problemas nacionais. Como, dentre estes, nenhum excede em importância e profundidade o da educação, será o projeto da Universidade de São Paulo o passo decisivo nesta primeira investida modernizadora.

III

No entanto, os liberais ilustrados têm de se haver com os procedimentos autoritários característicos do Governo Provisório, instalado em 30. Isto os coloca, durante certo tempo, na posição de ambigüidade em que se manterão até 1932. Para compreender, deste ponto de vista, o quadro político no contexto imediatamente anterior à fundação da USP, é útil referirmo-nos ao modo como o jornal O Estado de S. Paulo, pólo aglutinador do grupo, se comporta em relação ao Decreto do Governo Provisório de 1931 que regulamenta o ensino universitário no Brasil (cf. Cardoso, 1982, p. 95 ss). Levando em conta as preocupações do grupo, já tão veementemente expostas publicamente, como vimos acima, seria de se esperar um noticiário farto e amplamente analítico, para o que não faltariam no jornal pessoas altamente abalizadas; mais do que isto, seria de se esperar ainda forte reação e oposição aberta a tudo aquilo que, no Decreto, contrariava os princípios e as expectativas do grupo acerca do que deveria ser uma universidade. Mesmo porque elementos deste teor estavam abundantemente presentes na regulamentação oficial, em todos os níveis, o que mostra as notáveis diferenças entre as regras que o governo autoritário da época ditou e o que preconizava o grupo liberal congregado em torno d' O Estado. Para citar apenas alguns poucos exemplos destas diferenças, podemos assinalar que a regulamentação do governo era, obviamente, centralizadora, criando mecanismos de controle federal sobre todas as instituições universitárias, a ponto de provocar sérias dúvidas acerca da viabilidade efetiva de uma universidade estadual. Acrescente-se a isto restrições explícitas no que concerne à autonomia universitária, que o governo entendia dever ser "conquistada" ao longo de um processo de maturação institucional e não imediatamente concedida. Do ponto de vista da organização institucional, sobressaía no Decreto a existência de uma Faculdade de Educação, Ciências e Letras, fundada na idéia de que se deveriam ajustar mutuamente os objetivos de cultivo do saber teórico (ciências básicas) com a necessidade urgente de formar professores para o ensino secundário e superior. Neste caso, é notória a disparidade na compreensão da função política do instituto medular: o grupo liberal entendia esta função em estrita conexão com o perfil de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mesmo porque se previa um Instituto de Educação para desempenhar sua função específica. Ainda que uma Faculdade de Filosofia pudesse e mesmo devesse, formar professores, isto não poderia, como vimos, sobrepor-se à sua outra função, esta sim, "inalienável", do preparo das classes dirigentes.

Pois bem, mesmo diante de todas estas diferenças, O Estado praticamente silenciou diante do Decreto, limitando-se ao noticiário convencional, sem maiores destaques, seja para atacar os muitos pontos divergentes, seja para enaltecer os poucos pontos comuns. Apenas o desenrolar histórico posterior esclarece este comportamento aparentemente insólito. Fora do poder, o grupo assume posição olimpicamente acima das querelas partidárias e dos interesses particulares ou setoriais. Não entra em confronto direto com o governo para melhor oferecer prova de que se mantém eqüidistante, pronto a aplaudir, pronto a condenar, mas segundo critérios que decorram objetivamente "dos mais altos interesses da nação", como só o jornal sabe interpretá-los. Até mesmo a ditadura pode ser boa, desde que "bem intencionada e provisória", pois o autoritarismo do decreto pode vir a resolver problemas urgentes. Enfim, é como se qualquer sistema pudesse ser aceitável, desde que os homens possuam reta intenção. Mas de qualquer maneira, enquanto não se está no poder, e portanto não se tem condições de controlar aquilo que vai sendo implantado, melhor calar, para que o consentimento que daí decorra não se confunda com adesão explícita. Isto não impede que se façam comentários gerais acerca das iniciativas educacionais do governo, que na época proliferam, todas afetadas dos mesmos vícios básicos derivados da obsessão centralizadora, no entender do jornal. Embora o tom crítico seja por vezes acentuado, não se abre polêmica acerca de um problema particular, mas da maior importância no ideário do grupo, o da concepção de universidade. O que isto parece indicar é que a discussão de projetos educacionais estaria, pelo menos neste momento, subordinada a interesses políticos mais gerais, vinculados à citada ambigüidade deste grupo liberal no estabelecimento e manutenção de relações com o governo autoritário. Há um jogo de aproximação e distanciamento cujos lances, embora envolvendo o problema da educação e da cultura, são de muito maior alcance, tanto naquilo que os jogadores podem perder quanto naquilo que podem ganhar. E isto estará demonstrado pela própria circunstância da fundação da USP. O momento propício para o grande passo cultural e educacional coincide com o momento político em que o representante do grupo liberal congregado em tomo d'O Estado, Armando de Salles Oliveira, assume a interventoria de São Paulo, isto é, o momento em que os liberais desfrutam de uma fatia do poder autoritário. Desta maneira fica clara a estreita vinculação, senão mesmo a subordinação, do projeto educacional ao projeto político. Ao fim e ao cabo estas observações servem apenas para nos predispor a ver como efetivamente esdrúxulas as interpretações que vinculam a fundação a um projeto educacional considerado como autônomo em relação ao jogo político que então ocorria. Se um projeto educacional está sempre vinculado a um projeto político, esta tese geral se torna ainda mais evidente quando o projeto educacional é elaborado por um grupo que tem ambições de poder, ainda que, para a época, singularmente fundadas nos critérios "modernos" de racionalidade, competência e amplitude cultural.

Creio, no entanto, que o mais importante a assinalar a propósito do que se descreveu acima, é que a Universidade de São Paulo, mesmo antes de sua fundação, nos últimos períodos de gestação de seu projeto, já se encontra, por assim dizer, numa situação de cruzamento histórico entre dois tempos, o que se repetirá muitas vezes, a ponto de se poder dizer que se trata de uma marca da Universidade. A discrepância, já apontada entre a concepção de universidade dos gestores do governo em 1931 e a idéia subjacente ao projeto da Universidade de São Paulo, já mostra que esta nascerá fora dos padrões requeridos pelo tempo histórico, notadamente fora das predeterminações conceituais de uma concepção autoritária em matéria de educação e de política. é claro que a concepção liberal de universidade foi concebida, nos moldes particulares em que foi adaptada ao nosso país, segundo interesses políticos determinados. Mas a extemporaneidade da Universidade também provocou a transformação destas determinações, operando um divórcio entre a causa e os efeitos, do que é testemunha eloqüente o perfil de universidade crítica que acabou prevalecendo na prática (Cardoso, 1996, p. 4). Isto não quer dizer de forma alguma que a Universidade possa escapar, por vocação, ao assédio das ideologias, mas sim que ela pôde, até há bem pouco tempo, fugir de um estrito ajustamento às determinações históricas.

O confronto político entre os liberais e o Governo Provisório, que vai se tornando rapidamente inevitável, transparece, no nível de política educacional e mais particularmente no que se refere a concepções de universidade, no manifesto redigido por Fernando de Azevedo e assinado por muitas figuras importantes do meio intelectual e educacional. Há dois aspectos a relevar quanto às discrepâncias em relação às iniciativas do governo federal. Em primeiro lugar, e como sempre ocorre nos documentos do grupo, são apontados o empirismo e a improvisação que caracterizam as reformas do governo, bem como a principal causa destas insuficiências, qual seja a recusa das autoridades em ouvir aqueles educadores que, orientando-se para horizontes mais amplos e a partir de uma fundamentação mais consistente, poderiam conferir aos planos educacionais uma articulação mais completa e um alcance mais sistemático, organizando um projeto verdadeiramente transformador e à altura das solicitações históricas da época. Como, em vez disto, o governo opta por organizar pacotes de medidas insuficientemente respaldadas no plano técnico e vulneráveis à interferência de grupos de pressão, o resultado é via de regra medíocre, representando inclusive um atraso em relação às iniciativas promissoras que teriam vindo à luz na década de 20 e que a revolução de 30 não soube aproveitar. No nível das propostas contidas no plano governamental, os liberais notam, além do costumeiro centralismo, que contraria as tendências modernas e a própria idéia federativa, a transigência em princípios que deveriam estar acima de qualquer negociação, como o enfraquecimento do monopólio estatal da educação, a instituição do ensino religioso, em ambos os casos para contentar a Igreja Católica, além de uma idéia primária de unidade que, a pretexto de salvaguardar a coesão nacional, impõe ao sistema de ensino uma uniformidade manifestamente incompatível com um país marcado por significativas diferenças regionais.

A iniciativa do Manifesto justifica-se portanto pelo dever cívico de oferecer à nação uma peça coerente, coesa, sistemática, solidamente fundamentada e susceptível de se transformar num instrumento eficiente para a reconstrução nacional, uma vez que a educação é o sustentáculo da democracia. O que se destaca, entre outras coisas, é a reivindicação de uma ampla autonomia para o setor educacional, com a finalidade de resguardá-lo dos interesses partidários e de manter a primazia da competência técnica no gerenciamento do sistema. É claro que esta autonomia implica descentralização, notadamente a possibilidade de que os estados venham a organizar suas universidades a partir de critérios significativamente distintos das regras elencadas no decreto de 1931. O cruzamento entre o educacional e o político adquire suficiente grau de nitidez quando se distingue o substrato ideológico do discurso que os liberais contrapõem ao projeto do governo autoritário: "Os pontos considerados, autonomia da função educacional e descentralização, opõem-se claramente aos defendidos pelas iniciativas federais em matéria de educação (...) Por outro lado revelam-se como de fundamental importância, quando se tem em mente a possibilidade de criação de uma universidade em São Paulo, nos moldes em que era projetada, como uma universidade paulista e como uma universidade da Comunhão" (Cardoso, 1982, p. 113). Mas este desideratum ligado à autonomia de São Paulo não se esgota obviamente na reivindicação de uma independência relativa e regional. O eixo político da reconstrução educacional é a reconstrução da nacionalidade, segundo o ideário da ilustração paulista. Por isto os temas que aparecem na discussão são tratados deliberadamente de forma ampla, não só porque assim o exige a dimensão "filosófica" do debate, que os paulistas querem impor à burocracia federal, mas também porque esta amplitude está inscrita na própria dimensão de um projeto de hegemonia.

Como exemplo desta atitude pode servir a conferência pronunciada por Fernando de Azevedo em fins de 1932, "O Estado e a Educação". O autor procura justificar a responsabilidade hegemônica pela educação por parte do estado argumentando que a evolução histórica do Estado na modernidade se tem caracterizado pela progressiva transferência para este de atribuições antes desempenhadas por outras instâncias sociais, no caso da educação, notadamente a família. Este processo histórico tem suscitado desconfianças e, na verdade, há razões para isto. Quando o Estado torna-se presa de grupos que o utilizam para promover seus próprios interesses, ocorre a subordinação do Estado a uma representação parcial dos interesses sociais e políticos. Esta é a tendência para confundir o "público" com um conjunto de aspirações próprias de uma determinada facção social. Isto se deve a que o Estado, em muitos casos, ainda não se organizou para desempenhar as suas funções a partir da universalidade requerida pela distinção entre interesse geral e interesse particular. Mas quando a esfera pública é concebida e coordenada de acordo com as finalidades gerais, por meio de procedimentos marcados pelo pluralismo, pela variedade e pela harmonia dos fins particulares, então todas as atividades públicas como que fluirão da "força coordenadora e reguladora do Estado", o que significa pôr em acordo todas as necessidades de todos os grupos sociais.

Para que isto ocorra, no entanto, é necessário que o Estado seja pensado de acordo com uma estrutura social piramidal: o Estado, isto é, as elites governantes, formam o ápice, e na base "fremem as massas", em relação às quais a idéia de autogoverno é totalmente descabida. Mas no seio destas massas, submetidas à educação, surgem, no modo de uma diferenciação dinâmica, as minorias que deverão governar. O que impede que tais minorias se instalem permanentemente como classe dominante é a "contínua renovação", fruto da seleção operada por meio dos sucessivos degraus da educação. A idéia que transparece aqui é a de que a substituição dos membros das classes dominantes impede que elas se consolidem como dominantes. Como a educação é o que garante o contínuo afluxo às posições dirigentes, o sistema escolar não pode ficar à mercê de interesses de facções, que tomem elas próprias o governo do sistema ou que imponham ao Estado a satisfação de seus interesses particulares. Somente o Estado, liberto de tais injunções e tecnicamente aparelhado para desempenhar as suas funções, pode evitar a transformação da educação em instrumento de poder político.

Daí a importância de uma universidade pensada em consonância com esta concepção das relações entre Estado e sociedade. Pois é a universidade que formará o dirigente esclarecido, capaz de pensar e gerir o Estado a partir do "interesse geral", que torna a vida democrática algo concreto e viável. Mesmo levando em conta o mascaramento ideológico, impressiona sobremaneira esta crença no poder da educação, e sobretudo na educação guiada por parâmetros generalistas e desinteressados, que é aquela que recebem os que se qualificam para integrar as elites. O grau extremo a que chega esta intelectualização da política é que permite projetar este equilíbrio praticamente divino entre poder e saber, como se conhecimento, moral e política pudessem se recobrir perfeitamente. A confiar nos discursos, quase se poderia dizer que Platão não esperaria mais do sistema educacional da República do que esperavam os Mesquita da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

IV

Ao traduzir a concessão getulista em aceitar a sugestão dos liberais paulistas para que Armando de Salles Oliveira fosse nomeado interventor no estado, devida unicamente à intenção do governo autoritário de estender sua base de apoio comprometendo segmentos da oposição, em vitória da razão e da liberdade, da ponderação e da competência, do respeito devido a São Paulo, como se as qualidades pessoais do interventor - entre as quais a maior era certamente a de fazer parte do grupo d'O Estado -, pudessem anular os princípios autoritários com os quais teria de comungar no desempenho de suas funções, os liberais procuram legitimar a adesão ao poder e justificar a situação de compromisso, transformando um episódio de adesismo político num passo significativo para a realização dos grandes objetivos que vinham eloqüentemente pregando. Veremos na seqüência dos desdobramentos desta participação no poder autoritário a manifestação reiterada do vezo liberal de assumir o autoritarismo como modalidade natural de reagir ao autoritarismo dos outros, reservando para o seu próprio exercício autoritário a justificativa de defesa dos "interesses gerais". O fato é que somente esta participação no poder propiciou ao liberalismo ilustrado as condições de implementação do projeto de universidade.

Não surpreende, pois, encontrar na redação do Decreto de fundação da USP as mesmas idéias e o mesmo tom retórico dos textos em que batalhavam pela instauração da universidade paulista. Mas há de se levar em conta, todavia, que, vistas a partir de hoje, isto é, da indigência e do amoralismo do liberalismo que sofremos na atualidade, certas pérolas daquela retórica possam até afigurar-se como dignas de nossa ambição. Assim, por exemplo, quanto ao que reza o Decreto no que se refere à responsabilidade do Estado pela educação: "é dever do Estado incentivar e fomentar o espírito científico, de pesquisa e de produção original, abrindo todas as possibilidades para o máximo desenvolvimento e utilização das vocações científicas e aperfeiçoando os recursos de expansão cultural, para que o ensino seja cada vez mais eficaz e as investigações contribuam para o progresso da ciência". Ou então, quando o texto do Decreto retoma as idéias insistentemente repetidas acerca do papel da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras:"(...) estudo desinteressado das questões que pairam nas altas esferas, que não podem atingir todos os cérebros, questões e problemas estes que entrosam diretamente com a orientação mental - portanto política e econômica - que deve seguir o país" (citado em Cardoso, 1982, p. 123)3. Nota-se a confluência daquilo que o Estado deve promover em termos de educação superior, ou seja, fazer expandir a cultura e fazer progredir a ciência através do fomento do espírito de investigação e de produção original, com a concepção de um ensino "realmente universitário", que se imagina voltado para as grandes questões, que os idealizadores da USP acreditam pairar "nas altas esferas", mas que ainda assim "entrosam diretamente" com a orientação política e econômica que deve seguir o país. Seria certamente notável o que uma análise mais acurada, que aqui não faço por falta de competência, poderia encontrar neste tipo de discurso, em termos de uma dialética entre o elemento ideológico-regressi vo, ligado ao esforço de uma classe para construir a justificativa racionalizadora do monopólio do poder, e o elementocivilizador-emancipatório, e mesmo liberador, contido na letra das propostas. Ou será isto uma ilusão proveniente da ótica de quem se situa na fase do liberalismo bárbaro incentivador do capitalismo predatório?

O fato é que a participação no poder, sobretudo nas circunstâncias do período pós-revolução de 32, teve conseqüências para a conduta política e para a imagem auto-constituída do grupo de liberais paulistas que idealizou a Universidade de São Paulo. é importante pensar a fundação da Universidade no contexto daquela atualidade, mais do que a partir das reconstituições posteriores, mesmo que feitas pelos próprios protagonistas, já que a simples mudança na ênfase dos fatores determinantes - sem mencionar as reinterpretações mais profundas e desviantes - tende a distorcer a compreensão do processo 3. As racionalizações idealizantes da vontade de poder político possuem um alcance incalculável, e a análise nestes casos sempre corre o risco da simplificação no julgamento dos resultados da correlação de forças. Para o propósito deste texto, no entanto, basta mencionar que o projeto de fundação da USP, elaborado pelo grupo liberal paulista, teve como condição de sua implementação a aliança deste grupo com o governo autoritário, o que não pôde deixar de repercutir no próprio projeto, em termos da continuidade imediata de sua realização. Não é possível ignorar a proximidade entre 1934 e 1937, isto é, entre a fundação da Universidade, sob o Governo Provisório, e o advento do Estado Novo.

Alfredo Bosi fala, a propósito, que "não convém subestimar a força real das determinações de origem. Elas pesam e resistem no centro da instituição (...)" (Bosi, 1982, p. 15)4. A questão difícil e delicada é conceder os pesos respectivos a estas determinações e ao movimento histórico que se lhes seguiu, e no qual elas se inserem não como causas absolutas mas como um elo no encadeamento de outras determinações. De fato, esta duplicidade originária detém, a meu ver, um alto poder explicativo, e a ela podemos remeter a ambigüidade que caracteriza a inserção da Universidade no seu tempo histórico, algo que já mencionei. Se de um lado temos um projeto de institucionalização de um instrumento de poder, e neste sentido um objetivo autoritário, de outro temos também um projeto elaborado contra o autoritarismo dos então ocupantes do poder, o que se observa concretamente na oposição dos liberais aos procedimentos centralizadores das instâncias de poder, e que evidentemente é mais do que uma luta contra a burocracia. O fato de que foi preciso o surgimento de uma situação contraditória para que a USP fosse fundada, e o fato de que a aparente vitória dos liberais na caracterização da função política da universidade somente foi possibilitada pela situação contraditória, já indica a ambigüidade que depois se manifestará de muitas outras maneiras. Creio que será possível observar mais adiante que esta ambigüidade, ao mesmo tempo em que "salvou" a Universidade da completa subordinação às "determinações de origem", fez também com que ela se mantivesse sempre pelo menos alguns passos aquém do total rompimento com estas determinações.

A história imediatamente posterior à fundação já nos revela que a aliança dos liberais com o governo autoritário tem como uma de suas primeiras conseqüências a reinterpretação autoritária, por parte destes mesmos liberais, das idéias propagadas na campanha pela fundação e registradas no próprio ato fundador. A educação é procedimento construtor da democracia; a educação superior tem como finalidade formar as elites dirigentes desta democracia; a relação entre universidade e democracia é, portanto, interna e constituinte. Logo, cumpre à universidade defender a democracia da investida dos totalitarismos, em especial do comunismo. Eis porque a liberdade de pensamento possui necessariamente limites, precisamente para que esta liberdade não chegue ao ponto de destruir-se a si própria, ao esposar o dogmatismo político totalitário. é preciso então adjudicar à liberdade de pensamento um predicado disciplinador, para que o seu exercício não resulte em auto-aniquilamento. Antes que sobrevenha a violência do totalitarismo, que é a morte do pensamento, é necessário que se estabeleça a força do esclarecimento, que é a condição de continuidade do pensamento livre. Em última análise, não basta mais a elite pensante, armada da razão; mas é preciso que a razão da elite esteja ela própria armada, para proteger a razão da "anarquia mental" e da instabilidade fruto de uma liberdade sem freios. "A Comunhão armada é a negação do estado-maior intelectual. O cérebro fortemente armado dispõe fundamentalmente da força para a imposição do seu projeto. A razão por si só não é capaz de se impor. Precisa estar armada" (Cardoso, 1982, p. 183). Esta inevitável encampação do autoritarismo, inclusive como restrição da liberdade de pensamento, dentro da Universidade, permanece sendo objeto de reiteradas justificativas, no âmbito de uma cruzada anti-comunista. Pelo menos até que o feitiço se volte contra o feiticeiro: em 1940 ocorre a invasão d'O Estado pelas forças de segurança. E então os liberais voltam a lembrar-se do liberalismo.

É preciso dizer, todavia, inclusive para a compreensão de diferenças que se estabelecerão posteriormente, que a cruzada anti-comunista não significa um alinhamento incondicional com as lideranças do "mundo livre", sobretudo com os Estados Unidos. Na imagem ideologizada, idealizada e algo megalômana que os liberais ilustrados tinham de si próprios, a defesa dos valores capitalistas se expressava como defesa dos valores universais da razão e da liberdade e a crença num poder de interferência real na preservação destes ideais sustentava a passagem da simples militância intelectual ao apoio explícito da ditadura, desde que houvesse alguma participação dos liberais neste poder ditatorial, que eles julgavam poder moderar pela simples força das idéias que defendiam, alicerçadas numa complicada e pouco coerente aliança da força com a democracia. Desta maneira era que se justificava o autoritarismo e mesmo a repressão dentro da universidade, pois o que estava em jogo era nada menos do que a razão e a liberdade, valores dos quais a universidade não poderia afastar-se sob pena de descaracterizar-se inteiramente. Vai a propósito lembrar que a defesa da "universidade livre" serviu como bandeira para que muitos professores aceitassem e justificassem a repressão a partir de 1964.

V

Se analisarmos as propostas implicadas na fundação da USP, em 1934, comparando-as com o que existia no Brasil em termos de Escola Superior, naquela época, não há como negar o avanço que o projeto representava. A respeito da "limitação estrutural" que caracterizou o ensino superior brasileiro desde o Império até a Primeira República, diz Florestan Fernandes: "A escola superior brasileira constituiu-se como uma escola de elites culturais, ralas e que apenas podiam (ou sentiam necessidade de) explorar o ensino superior em direções muito limitadas. Como a massa de conhecimentos procedia do exterior e a sociedade só valorizava a formação de profissionais liberais, a escola superior tornou-se uma escola de elites, de ensino magistral e unifuncional: cabia-lhe ser uma escola de transmissão dogmática de conhecimentos nas áreas do saber técnico-profissional, valorizadas econômica, social e culturalmente pelos extratos dominantes de uma sociedade de castas e estamental" (Fernandes, 1975, p. 51 -52). Este perfil "bacharelesco" do ensino superior no país pode ser de alguma maneira resumido nas seguintes características: a formação superior entendida como signo de distinção social, o que acarretava rigidez, hierarquia e exclusivismo; a idéia do professor como agente de controle das novas gerações, papel assumido como espécie de carga simbólica inerente à posição; isolamento da sociedade; ausência de criatividade e inovação; dependência, para sua própria valorização, de critérios extrínsecos, tais como a dignidade que a sociedade conferia ao bacharel. Em todas estas características podem ser encontrados os traços da sociedade fechada a que serviam estas escolas, que eram marcadamente as de Medicina e Direito. A inserção social destas escolas ocorria por via de seu isolamento. Este aparente paradoxo pode ser explicado se pensarmos que, nas condições vigentes, a escola superior deveria ficar à margem da dinâmica social para melhor adaptar-se à reprodução da sociedade rigorosamente estamentada. Sendo o saber universitário apenas mais um rito que a elite devia cumprir como requisito social para ocupar as posições de poder, a instrução superior marcava muito mais a diferença de classe do que a superioridade intelectual. Esta, quando aparecia, e sobretudo se tomava contornos críticos, ocorria à margem do sistema escolar, eventualmente contra ele e era, nestas condições, socialmente reprimida. A escola superior, assim entendida, rapidamente se converteu num ídolo cultural, congelado e distante da realidade histórica, embora mantivesse e até mesmo aumentasse o prestígio social no decorrer do tempo, fenômeno de que a educação superior brasileira se ressente até os dias atuais. Esta situação não permitiu o desenvolvimento de um horizonte intelectual crítico, o que se refletiu na impossibilidade de uma análise da sociedade brasileira no contexto da civilização ocidental moderna e na falta de uma posição crítico-analítica frente às grandes opções históricas com que a humanidade se defronta na modernidade.

Ora, o projeto fundador da USP trazia, ainda que de forma enviezada, propostas de transformação desta situação. Tanto é assim que, desde o princípio, as grandes escolas profissionais opuseram-se ao núcleo do projeto, que incidia precisamente sobre as mudanças na formação universitária, e que se concretizava na função da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Neste ponto, Florestan aponta para uma vocação profundamente arraigada no ensino superior brasileiro, mas que podemos, creio, estender para toda a vida institucional do país. Trata-se da tendência para erigir a patologia institucional em normalidade. A consolidação dos interesses rapidamente torna habitual o que deveria ser aberrante, e o absurdo passa a ser aceito como corriqueiro e inevitável. Isto está certamente ligado à inexistência de um espaço público como lugar do cruzamento de atitudes políticas, no verdadeiro significado da expressão. Como a política sempre significou imposição, alianças ou confrontos de interesses alheios à dimensão pública, não se concebe o resgate de algo cuja perda não é sentida pela simples razão de que nunca existiu, exceto num pensamento acadêmico ou contestador que se desenvolveu sempre à margem da vida política institucionalizada. Esta é a razão pela qual a atual degradação do ensino básico é, de fato, vista e assumida como processo irreversível, quando todos sabem, teoricamente, que se trata de uma conseqüência de ações políticas deliberadas. O Congresso Nacional é outro exemplo de patologia assumida de fato como normalidade: o fisiologismo, o tráfico de influências, a ausência de discussão de idéias e até mesmo atitudes criminosas acabam aparecendo como componentes corriqueiros da "vida democrática".

Este fator congênito mostrou-se mais forte do que as idéias transformadoras dos fundadores da USP. Florestan chama atenção para o fenômeno que se seguiu à tentativa de transformação. Uma vez posta a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como centro da Universidade, em termos de proposta de formação acadêmica, tratou-se logo de esvaziá-la como centro de poder universitário, para que a transformação acadêmica não repercutisse num deslocamento de poder. As escolas profissionais ocuparam este centro por meio da conquista de posições estratégicas no Conselho Universitário e por via da escolha dos dirigentes da instituição. Isto fez com que a nova Universidade tivesse que se haver, desde o seu nascimento, com a velhice precoce que lhe queriam impor. Os controles institucionais estabelecidos desde o início procuraram enquadrar a FFCL numa organização universitária pensada para limitar a expansão do núcleo inovador. Este propósito não foi realizado inteiramente nos 40 anos que se seguiram à fundação, devido à ambigüidade do que denominamos antes, a partir de Bosi, as "determinações de origem". Se estas não estavam de fato desvinculadas de um esquema de hegemonia e de conquista de poder, por outro lado, para que estes mesmos objetivos pudessem ser atingidos, haveria que se inocular certo grau de radicalismo, que não poderia ser pequeno, nas condições da época, para que a instituição viesse a enfrentar, com alguma possibilidade de êxito, o conservadorismo da organização do ensino superior e de seus pressupostos políticos. Este radicalismo foi, por assim, dizer, concentrado na FFCL, de onde esperava-se que ele se irradiasse para o conjunto da instituição, quebrando assim as resistências da patologia e do conservadorismo. O que aconteceu, no entanto, devido ao fator congênito de que se falou acima, foi uma forte oscilação da USP entre as opções crítica e conservadora, de modo que este processo veio a manifestar, bem cedo, os sinais de isolamento a que seria conduzida a FFCL por causa do radicalismo implicado na sua proposta e na sua posição no conjunto de uma Universidade que não assumira de modo decisivo esta determinação originária. Quando a celebração do espírito livre, que presidira na origem o discurso dos fundadores, cedeu rapidamente lugar ao enquadramento e por vezes ao controle ostensivo, foi sem dúvida a FFCL que assumiu de forma mais nítida uma nova figura da racionalidade, a marginalidade, o situar-se à margem do seu tempo, que nunca foi a atitude geral da USP, embora se possa dizer que teria sido também uma de suas "determinações de origem". A marginalidade, ao não ser compartilhada por toda a Universidade, acabou aparecendo como uma marca, por vezes uma pecha, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Esta localização do radicalismo no ponto que se constituía, bem ou mal, como o centro nervoso da Instituição, iniciou um processo que veio a calhar para o projeto regressivo das escolas profissionais: o do confinamento progressivo da FFCL, que somente não teve um percurso mais rápido e conseqüências mais imediatas devido à percepção, por parte das escolas profissionais e da administração superior da USP, da separação que a médio prazo viria a acontecer, e que colocaria o conjunto dos Institutos de Ciências Básicas como uma terceira força na determinação dos destinos da Universidade.

Não saberia dizer se a Universidade, no seu conjunto, e institucionalmente gerida pelos grupos conservadores oriundos das escolas profissionais, simplesmente diluiu o componente radical que fermentava no núcleo, ou se a própria FFCL, uma vez tendo que renunciar à irradiação das transformações, passou a concentrar todas as suas energias na tarefa de conservar-se radical, agora não apenas contra a oposição externa mas também contra o restante da Universidade - e sobretudo contra o poder universitário. Talvez a Faculdade não tenha tido sequer tempo para tomar esta decisão, o que só poderia ser feito, no caso da segunda alternativa, a partir de uma profunda reflexão acerca do projeto fundador, que viesse repor as funções da Faculdade e o seu lugar a partir de uma visão renovada da inserção histórica da universidade, calcada nas mudanças ocorridas em duas décadas. O fato é que, se havia um controle conservador antes de 1964, e a Universidade oscilava diante de suas opções históricas, o golpe consolidou este controle, exacerbando-o ideologicamente ao mesmo tempo em que reduzia a questão de repensar a universidade a um equacionamento de reformas inspiradas nas pressões modernizadoras provindas dos Estados Unidos.

A partir de 1963, a USAID, que até então concentrara seus esforços no sentido de apoiar a educação básica, de acordo com as diretrizes da "Aliança para o Progresso", passou a preocupar-se com o ensino superior, por entender que uma das dificuldades a vencer para a melhoria geral da educação no país seria justamente a de formar educadores, ainda que isto implicasse em pensar de forma menos imediata o crescimento e aprimoramento de recursos humanos para o desenvolvimento da mão de obra, visto como requisito indispensável para o desenvolvimento da produção. É preciso notar a presença de motivação ideológica nas duas atitudes. Se antes, em relação ao ensino básico, era preciso desviar desde o início a formação educacional de possíveis direções coincidentes com o comunismo, agora, em relação ao ensino superior, via-se como necessário prever para as gerações vindouras educadores e dirigentes que mantivessem o país alinhado com o "mundo livre". "The cold war is a battle for men's minds": a assistência ao ensino superior na América Latina apresentava-se como uma estratégia no tratamento do conflito americano-soviético (cf. Cunha, 1988, p. 167 ss). Está claro que, depois do golpe de 64 os consultores norte-americanos não apenas tiveram mais facilidades para desenvolver o seu trabalho como ainda passaram a ser solicitados com freqüência pelos órgãos governamentais ligados ao planejamento e à educação. Com efeito, o primeiro Acordo MEC-USAID foi assinado em início de 1965 e o segundo em 1967, esteja com o apoio consultivo, contratado pela USAID, do Consórcio de Universidades do Meio-Oeste: Indiana, Illinois, Wisconsin e Michigan. Não contente com uma equipe de tal envergadura, a Diretoria de Ensino Superior do MEC contratou, ainda em 1965, Rudolph P. Atcon para exercer a função de consultor e propor mudanças estruturais na organização e funcionamento das universidades brasileiras. Os textos de Atcon causam mais impacto do que os relatórios das comissões mistas de técnicos norte-americanos e brasileiros, efetuados no decorrer da vigência dos acordos. Talvez isto se devesse a que Atcon não tinha seus relatórios submetidos à filtragem dos técnicos do MEC, nem se submetia a diretrizes prudenciais da USAID. A diretriz principal de Atcon era decididamente tecnocrata: a reforma da universidade deveria ser tratada como um assunto eminentemente técnico: "uma universidade autônoma é uma grande empresa, não uma repartição pública". Cumpre adotar padrões de racionalidade administrativa que consistiriam, por exemplo, em separar o planejamento da execução; aquele deveria ser centralizado, esta poderia estar distribuída pelos institutos e departamentos, de acordo com as finalidades acadêmicas de cada um. Esta divisão traria o grande benefício de despolitizar as decisões, pois estas seriam tomadas na cúpula, pelo Conselho Universitário e por um Conselho de Curadores, para a formação do qual Atcon recomendava que se escolhessem "pessoas destacadas da comunidade", tais como industriais e banqueiros, mas também juristas e pessoas com projeção social, concedendo que nem todos os membros precisariam estar ligados ao "mundo financeiro", embora aí estivessem aqueles que poderiam colocar a experiência do sucesso a serviço do aprimoramento da universidade. Ainda na direção da racionalização de recursos está a proposta de um Centro de Estudos Gerais, que reuniria todas as disciplinas de ciência básica, humanidades, letras e educação, isto é, tudo aquilo que não demandasse o que Atcon entendia como formação especializada; espécie de College, com cursos mais curtos e mais baratos do que os profissionais, que poderiam absorver boa parte do contingente postulante, composta de pessoas sem condições de se tornarem profissionais. Menos geral, mas ainda assim congregando várias áreas do saber, teríamos o Centro Cibernético, composto por Direito, Ciências Sociais, Economia, Jornalismo e Administração. Vale a pena citar a justificativa da aglutinação, para marcar o talento profético do consultor: "são todas atividades ligadas ao controle social, razão pela qual não seria de todo inconveniente agregá-las sob o rótulo de 'cibernética', a ciência dos sistemas de controle e governo sociais." Todas estas propostas, pretensamente marcadas pela isenção ideológica, pela racionalidade técnica e pela despolitização da universidade, visavam a instalação do modelo privado de gerenciamento, que Atcon via como a única alternativa possível ao emperramento burocrático da máquina estatal. Para ele, "autonomia universitária" significava liberdade em relação às regulamentações oficiais, com a contrapartida da subordinação das decisões a curadores representativos da comunidade, notadamente dos setores financeiro e industrial. Estas iniciativas modernizadoras foram bem recebidas, em primeiro lugar, obviamente, pelo governo, mas também por várias universidades brasileiras, entre as quais a PUC do Rio de Janeiro, as Universidades Federais de Santa Catarina, Espírito Santo, Rio Grande do Norte e Fluminense. A denominação "Centros", freqüente na organização das universidades federais, tem sua origem no trabalho de Atcon. E as universidades que se estabeleceram ou se reorganizaram a partir de 1970 também assumiram este modelo: é o caso das Federais da Paraíba e de Santa Maria, bem como a de São Carlos.

Esta descrição sumária do malfadado Relatório Atcon não visa apenas rememorar absurdos, ou mostrar como a obsessão da despolitização pode levar a que se tomem a sério episódios anedóticos, como a proposta do Centro de Cibernética, o qual aliás, não foi adotado por nenhuma universidade, embora a Federal do Espírito Santo tenha se aproximado bastante do modelo. O objetivo aqui é mostrar que, qualquer que seja o teor de arbitrariedade contido nas propostas de Atcon, elas em boa parte vieram ao encontro de idéias que já estavam presentes nos escalões técnicos do MEC, no Conselho Federal de Educação e entre os dirigentes universitários5.0 que aparecia com destaque nas análises de Atcon e de outros consultores era a necessidade de adaptar a uma racionalidade técnica certas concepções que outrora haviam sido construídas por uma razão educativa contaminada de idealismo e incapaz de separar as instâncias técnico-educacionais das instâncias político-educacionais. Veja-se por exemplo a estrutura centro/departamentos: ela permite uma aglutinação de disciplinas em que a mesma atividade serve a múltiplos fins, principalmente quando se trata de um Centro de Estudos Gerais, em que as etapas básicas de vários cursos podem ser cumpridas num único lugar, impedindo assim a duplicação de meios. Como estas etapas são preliminares, parece haver então uma relação de complementariedade entre a formação geral e a formação especializada, no sentido profissional. Aqueles que não desejassem passar à segunda fase, e preferissem formar-se nas ciências básicas e nas humanidades, simplesmente teriam este curso básico estendido um pouco mais, para justificar o diploma. Vê-se que o objetivo deste agrupamento disciplinar não era a interdisciplinaridade, mas a generalidade, concebida de duas maneiras: como etapa inicial da formação especializada, o que seria o seu papel principal; e como meio de contentar os postulantes à "cultura geral", humanística ou científica, incapazes de ou resistentes à profissionalização. Isto permite não apenas a economia de meios, como o controle centralizado da formação básica em todos os aspectos, além de propiciar também a redução do custo do aluno que não se destina à profissionalização, pois ele aproveitaria uma parte daquilo que os profissionais teriam integralmente: uns ficariam com a generalidade e outros com a generalidade e a especialização.

Ora, pensando numa estrutura como a da USP, esta proposta aparecia como uma espécie de "atualização" da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Aquilo que os liberais ilustrados chamavam de "saber desinteressado", as ciências básicas e as humanidades, tornava-se agora informação básica organizada, espécie de alfabetização superior, a partir da qual os estudantes escolheriam seus destinos profissionais. De núcleo gerador do ideário cultural universitário, a FFCL, devidamente atualizada e reorganizada, se transformaria no curso de admissão à universidade. Esta instrumentalidade técnica de um curso básico compunha-se bem com os objetivos ideológicos dos governos autoritários, pois aquilo que, para os liberais fundadores, deveria ser a finalidade, isto é, a capacidade de refletir criticamente sobre a cultura e a política, transformava-se agora num verniz apressado, que o aluno receberia antes de passar às coisas realmente importantes. Para atingir a finalidade de colocar a universidade como formadora de recursos humanos para o desenvolvimento nacional seria preciso de um lado baratear a cultura propriamente universitária e, de outro, destituir a formação crítica da sua função central. Em termos de USP, isto significava destituir a FFCL da posição que ela ocupava no projeto fundador.

É preciso reconhecer que esta posição havia passado por significativas mudanças, após os anos 30. A necessidade de idealizar a Faculdade de Filosofia para que ela pudesse assim servir a um projeto ideológico havia sido pensada pelos liberais ilustrados sem que provavelmente se dessem conta das contradições aí envolvidas. Quando estas contradições apareceram, o radicalismo crítico tomou um rumo diferente do previsto pelos fundadores, que evidentemente não podiam controlar o movimento histórico. A Faculdade acabou exercendo esta radicalidade crítica numa dimensão que abarcava o próprio projeto fundador, ou pelo menos os pressupostos ideológicos do projeto. Assim a Faculdade de Filosofia viu-se, a certa altura, senão desvinculada de suas origens, ao menos criticamente afastada delas. Como na origem também estava a sua diferença em relação à própria universidade, diferença esta que veio crescendo através do tempo, a Faculdade acabou por assumir esta diferença como isolamento e oposição. Por seu lado, a Universidade, por via das grandes escolas e dos dirigentes superiores, passou a interpretar a diferença da FFCL como anomalia. De alguma maneira as duas visões convergiam: a Faculdade foi levada a entender a sua diferença como oposição ao conjunto; e esta oposição, pelos problemas que gerava, foi vista pela Universidade como a presença de um componente anômalo no sistema, ideologicamente incômodo e funcionalmente perturbador. Creio que aí se encontra a origem da anomia que vivemos hoje.

VI

A USP, como boa parte das grandes universidades, não adotou o modelo do Instituto de Estudos Gerais preconizado por Atcon. As razões para isto foram várias e não creio que as de maior peso se referissem a uma oposição ideológica à concepção geral de universidade que se depreendia das propostas do consultor. Parece-me que o decisivo no resultado da reestruturação da USP foi a divisão de poder. Os departamentos de ciências básicas, agregados na FFCL, por força de uma relação perversa entre a dimensão da Faculdade e sua possibilidade de interferir no jogo do poder universitário, acabaram por concluir que não valeria a pena partilhar o destino da Faculdade, já marcado pelos sinais da passagem da anomalia à anomia. Foram então exacerbadas as dificuldades técnicas de se permanecer naquela configuração e montou-se, por acordo, uma estrutura em que as ciências básicas se dividiriam em Institutos, nos quais as disciplinas seriam aglutinadas de modo a respeitar o princípio da não duplicação de meios, e as escolas profissionais se serviriam destas disciplinas nas diversas etapas de formação, principalmente no estágio básico. Isto representava a volta - ou a manutenção - da concepção de Universidade como "conglomerado", para utilizar o termo de Florestan Fernandes (1975, p. 175 ss)6. De um ponto de vista geral, a reforma da USP mostra, antes de mais nada, a espantosa vulnerabilidade da instituição, expressa na total incapacidade de reinventar o projeto universitário, embarcando, assim, na mistificação de uma reforma que, apesar de pensada a partir de dentro da USP, coincide em todos os pontos importantes com as pressões externas desintegradoras da idéia crítica de universidade. Há de se constatar, então que, mesmo sem estar subordinada às mesmas injunções legais por meio das quais o MEC podia interferir nas universidades federais, a USP optou por acompanhar de perto o modelo federal, inclusive nos pontos em que uma pretensa racionalidade de gestão e supostos critérios de aprimoramento organizacional encobrem escolhas doutrinais e ideológicas que incidem sobre o perfil histórico da instituição.

No relatório Atcon e de maneira geral nos textos dos consultores norte-americanos, o que predomina é a avaliação pragmática das mudanças propostas e as análises do modelo existente a partir de parâmetros de custo/ benefício e de atendimento às necessidades imediatas de desenvolvimento. Por isto não há como fugir a uma impressão de ridículo quando se vê que, no documento da reestruturação da USP, propostas muito semelhantes às dos americanos são precedidas por digressões filosofantes, em que a "idéia" de universidade, o "espírito" universitário, "racionalidade" criadora, e outras abstrações aparecem como condições primeiras da reestruturação, de tal modo que, no conjunto do documento, vêm a conviver inexplicavelmente Humboldt, Jaspers, Ortega y Gasset com diretrizes do acordo MEC-USAID e com o ideário tecnicista de Atcon. Apesar do ridículo, tais digressões cumprem dois papéis, que não podem ser considerados de pouca importância. Em primeiro lugar, do ponto de vista estritamente técnico, as idéias gerais desempenham a função de amparar abstratamente propostas mal formuladas do ponto de vista concreto. Assim é que uma racionalidade integradora exercida por um certo "espírito" da universidade fica responsável pela tarefa de fazer de uma universidade conglomerada uma universidade integrada, sem que se precise mencionar os meios reais que permitirão passar de uma coisa a outra. Em segundo lugar, as abstrações cumprem uma função política, na medida em que dispensam os proponentes da reforma de uma análise da inserção da universidade na realidade histórica, eximindo-os de tratar a questão complexa da relação entre universidade como produto histórico e como instância crítica do movimento histórico. A universidade aparece como um lugar absoluto e um valor absoluto, o que é tanto mais paradoxal quanto este absoluto é definido segundo os critérios do "espiritualismo liberal", em princípio anódino, e já por isto deslocado no contexto de uma sociedade complexa e contraditória, mas, mais do que isto, como instância superior capaz de dissolver os conflitos reais integrando-os numa estrutura transcendente e a-histórica.

A USP comprometeu-se prematura e atabalhoadamente com a onda das reformas. A questão é saber se as coisas poderiam ter ocorrido de outra forma. Em meados dos 60 a USP, embora jovem, já possuía uma densidade razoável, e um acúmulo de experiência enriquecida sobremaneira pelas missões estrangeiras que vieram instalar os cursos. Em teoria, seria o momento de voltar-se reflexivamente sobre si mesma, reapossar-se de sua história, avaliar o passado e entender que o que já tinha consolidado poderia servir de apoio para enfrentar as escolhas do futuro. Na prática, o golpe de 64 colocou a Universidade diante de uma situação, inesperada ou não, em que ela se viu apanhada pelo movimento histórico, no torvelhinho da barbárie e da violência, na urgência das escolhas em que, no limite, até mesmo a alienação de sua autonomia podia aparecer como estratégia necessária à sobrevivência. Em todo caso, e isto é algo que ainda está por ser analisado com a profundidade requerida pelo assunto, no decorrer da discussão das reformas, algumas vezes as reivindicações de professores e estudantes estiveram inexplicavelmente próximas das propostas governamentais, ou de grupos comprometidos com o status quo. A extinção da cátedra é um exemplo, mas há outros bem mais complicados, como a divisão da FFCL. Talvez o caráter conservador da modernização não aparecesse ainda com suficiente nitidez para todos os agentes envolvidos. Talvez o lugar da reflexão - a FFCL - já tivesse a esta altura perdido a radicalidade crítica, ou o poder de exercê-la de modo a alcançar a totalidade da instituição. O certo é que a Reforma Universitária da USP provocou muito mais a adaptação da instituição a um processo de modernização que ela ainda nem tivera tempo de pensar em todo o seu alcance, do que uma transformação da Universidade nascida de um movimento interno e orgânico de reconstituição de si mesma7.

Na apreciação do "Memorial Ferri", Florestan Fernandes, depois de criticar a indecisão das propostas, e a falta de um espírito radicalmente transformador, professa uma esperança, a de que as insuficiências da reforma proposta motivem um movimento de aprofundamento das mudanças - coisa que os conservadores teriam que aceitar como parte do processo histórico-social. Não saberia dizer se se trata de um otimismo encorajador ou se a afirmação é fruto da crença na inexorabilidade do processo histórico. Neste último caso, há que se qualificar este processo e detectar a sua direção. Visto a partir de hoje, ele não parece de forma alguma corresponder às expectativas de Florestan. Na sucessão de mudanças a que se tem submetido a Universidade, desde o período mais duro da ditadura militar até a nossa atualidade neoliberal, passando pela transição e pela Nova República, o que se vê é a constituição progressiva e cada vez mais firme de um processo de deterioração e de descaracterização, a pretexto de realinhar a universidade com a sua época. Há, no entanto, uma diferença inquietante. Se na década de 60 existiam aqueles que, professando implícita ou explicitamente uma ideologia conservadora, procuravam de todas as maneiras frear qualquer processo de mudança, pondo-se até mesmo contra a modernização conservadora, por entenderem que a universidade deve manter-se fora do movimento histórico, com o advento da Nova República e sobretudo com o neoliberalismo, surgiram aqueles que, no interior da Universidade, apoiam e promovem as mudanças impostas em nome do progresso e da racionalização modernizadora, e assim contribuem para acelerar, de dentro da instituição, o percurso desintegrador, cujo movimento foi, em tempos recentes, mais abertamente impulsionado pelos responsáveis pela educação. Cabe portanto tentar esclarecer estas duas causas dos mesmos efeitos: a forma como a Nova República e o neoliberalismo, fazendo-se neste ponto herdeiros da ditadura, aprofundaram e aceleraram o processo de desintegração da universidade, valendo-se para isto de estratégias, planos e técnicas mais eficientes do que os procedimentos institucionais dos governos autoritários; a concordância interna, por parte de professores (aqueles a quem repugna misturar-se com a "corporação"), da necessidade de mecanismos de controle que subordinem a totalidade do trabalho universitário a técnicas de gestão de produção, de índole cada vez mais privatista, o que significa a introjeção dos aspectos mais totalitários da racionalidade técnico-instrumental (avaliação e competição, por exemplo) como sendo o modo "natural" e "sensato" de organizar o trabalho intelectual e a convivência universitária. Ao contrário do que esperava o professor Florestan, a falsa reforma não motivou a verdadeira. é claro que não se quer dizer aqui que haveria condições de conduzir qualquer discussão democrática acerca da Universidade após a promulgação do AI-5.0 endurecimento do regime cortou qualquer possibilidade de manifestação, e o silêncio imposto à Universidade, com a conivência de suas próprias autoridades, impediu que de dentro dela se levantasse qualquer voz contestatória que pudesse contar com respaldo público-institucional. Mas é preciso reconhecer também que o advento da Nova República não propiciou a retomada - ou o início efetivo - das transformações projetadas em 68.0 que aconteceu foi, pelo contrário, uma fortíssima inflexão tecnicista e economicista nas propostas, apresentadas agora sob a égide da democracia.

Exemplo privilegiado do surto "democrático" de reformismo tecnicista foi a atuação do GERES (Grupo Executivo para a Reformulação do Ensino Superior), instalado no MEC em março de 1986 e que apresentou seus resultados em setembro do mesmo ano. Talvez seja simplório dizer que, em tão curto espaço de tempo, dificilmente teria sido possível uma discussão ampla e conduzida de forma pluralista, algo que se fazia necessário tanto em função da complexidade do assunto quanto devido ao longo tempo de ausência de um debate público que permitisse a manifestação livre de todas as idéias. Isto na verdade não é o mais importante. O decisivo é que o governo e o próprio GERES não estavam efetivamente interessados num debate amplo, mas sim na imposição de diagnósticos que justificassem sugestões e propostas marcadas, no mínimo, pela unilateralidade da concepção de universidade. Foi a razão pela qual esta iniciativa, que em princípio deveria se opor ao centralismo autoritário dos governos ditatoriais, revestiu-se entretanto de teor muito semelhante (cf. Cardoso, 1989)8. Em primeiro lugar há que se constatar o vício da forma: a prática de nomear comissões de notáveis para, a partir de um consenso obtido (ou confirmado) a portas fechadas, em pouco tempo apresentar análises e propostas de soluções para questões de grande relevância político-social. Assim procedia a ditadura, quando formava GTs, como o da Reforma Universitária, em 1968, que em cerca de 30 dias apresentou propostas de solução para todos os problemas da educação superior no país. A Nova República tentou disfarçar o autoritarismo reformista por via de uma estratégia mais perversa, que consistia no estabelecimento de uma divisão, na comunidade universitária, entre os "competentes" de um lado, e, de outro, os "corporativistas", os "assembleístas", os "populistas", o "baixo clero", os "radicais", os "medíocres", os "imobilistas". Assim se procurava justificar os pequenos grupos, sempre ligados ao governo, de sábios e competentes, únicos aptos para o exercício legítimo do poder acadêmico. O debate foi substituído pela desqualificação sumária dos opositores e a reflexão política apresentada como radicalismo inócuo frente à lógica da eficiência, que deveria guiar as propostas de mudança. O autoritarismo governamental soube servir-se muito bem de prepostos escolhidos dentro da própria comunidade, que se desincumbiam da tarefa de destituir os colegas da condição de sujeitos políticos capacitados para a discussão dos destinos da universidade. Foi nestas condições que se consolidou a concepção de "avaliação" até hoje vigente nos estratos de "competência técnica" da comunidade universitária, e que foi imposta por via da conjugação desta competência com uma pretensa postura "neutra" e "apolítica". Desnecessário dizer que estas características eram apregoadas como as únicas compatíveis com o imperativo da "modernização". "Avaliação" e "modernização" tornaram-se então os mais eminentes critérios para a análise da questão da universidade.

Nunca será suficientemente enfatizado que a "avaliação" proposta a partir deste contexto nasceu sob o signo da lógica da eficiência, profundamente marcada pelo propósito excludente em relação a todos os que se mostrassem renitentes quanto à sua aceitação como único parâmetro de juízo acerca do trabalho universitário. A complexidade do problema concernente à relação entre autonomia e avaliação nunca chegou a intimidar os defensores da modernização. A questão foi posta em termos de uma extensão semântico-operatória do conceito de "controle". A legislação prevê o controle de utilização dos meios de que a universidade dispõe para cumprir as suas finalidades, o que se expressa na obrigação que tem a instituição de prestar contas da utilização de recursos. Ora, na medida em que o Estado investe na universidade quando aloca tais recursos, o controle deste investimento deveria envolver naturalmente algo mais do que a legalidade da utilização dos meios: deveria chegar até as finalidades em que desemboca o emprego dos meios. Somente desta maneira, através do estabelecimento de relações entre o emprego dos meios e a obtenção de resultados, é que se pode proceder a uma real avaliação de desempenho. Se a avaliação se detém na mera forma de utilização dos meios, ela não passará de um ritual burocrático. É necessário portanto o controle dos fins, concretamente estabelecido por via de políticas educacionais voltadas para a projeção do desempenho. Aqueles que colocam em dúvida tal necessidade estão recusando o "controle social" da instituição, atitude descabida posto que é a sociedade que sustenta as instituições públicas de ensino, através dos impostos. Seria absurdo que a reivindicação da autonomia levasse a universidade a isolar-se da sociedade e das necessidades que esta espera ver atendidas como retomo daquilo que investe na educação superior.

Quem discordaria? O problema é que a letra do argumento esconde seu espírito falacioso. Não há dúvida de que a universidade está inserida num contexto histórico e que enquanto instituição social o seu sentido se constrói na interação com a sociedade. Mas há duas maneiras de conceber esta relação. Podemos considerar, num primeiro sentido, que a relação entre universidade e sociedade se estabelece por via da preservação do caráter autárquico da instituição universitária. Autarquia significa auto-suficiência como condição do cumprimento de finalidades específicas. O sentido de autarquia não é a desvinculação entre meios e fins, mas a ligação orgânica entre auto-suficiência e finalidades próprias. Isto quer dizer que a finalidade da universidade só pode ser alcançada na e pela auto-suficiência. Como conseqüência desta concepção, o atendimento das necessidades sociais por parte da universidade se faz de forma mediada, pois passa pela elaboração autônoma das formas de relacionamento. Ao manter uma relação indireta com as necessidades sociais, a universidade mantém o mesmo tipo de relação com o Estado. Esta relação é moldada pela instância específica caracterizada pela autonomia do trabalho acadêmico. Neste caso, a independência é condição para o cumprimento das finalidades. Num segundo sentido, considera-se que a universidade deve atender imediatamente às necessidades sociais. Ora, a imediatez supõe a definição concreta do que se precisa e do que se espera. "Necessidades sociais" permanece, assim, como alguma coisa abstrata enquanto não for definida pela instância que interpreta e coordena tais necessidades, bem como a expectativa de atendimento. O intérprete e o coordenador, no caso, é o Estado e, mais concretamente, os governos. Por exemplo, na época da ditadura o projeto do Estado era definido pelo binômio, desenvolvimento e segurança nacional. Na Nova República o projeto era recuperar a capacitação tecnológica. Em ambos os casos, o planejamento governamental estabelece diretrizes orientadoras da criação de prioridades para alocação de recursos, manutenção, expansão e aprimoramento do ensino e da pesquisa. O Plano de Metas para a Formação de Recursos Humanos e Desenvolvimento Científico (CAPES/CNPq), formulado em 1987, prescreve que "para poder atingir sua independência econômica, científica e tecnológica no próximo século, o Brasil precisa cuidar já, e muito seriamente, da formação de sua base científica, isto é, precisa formar seus cientistas em quantidade, qualidade e perfil adequados ao seu modelo de desenvolvimento." O que se necessita é de uma estratégia global "que tente orientar de maneira ordenada e progressiva os rumos e o novo perfil a ser coberto pelas áreas, face às necessidades do país definidas pelos programas prioritários e áreas estratégicas" (citado em Cardoso, 1989, p. 123). Este planejamento racional exigido pela lógica da eficiência é que supõe o controle dos fins, já que a atividade-fim da universidade se subordina obrigatoriamente a metas pré-fixadas a partir de macro-critérios ligados a uma determinada visão política de desenvolvimento do país e das prioridades que em conseqüência são estabelecidas. Nota-se que as metas de longo prazo são pensadas a partir de ações atuais, o que redunda no cumprimento imediato de diretrizes julgadas adequadas para a obtenção das finalidades, num escalonamento planejado de curto, médio e longo prazo. A universidade aparece como um instrumento organizado dentro de um grande plano racional; a lógica da eficiência exige que ela se organize de modo a servir aos objetivos propostos. Parece claro que a auto-suficiência se dilui, e a autonomia passa a significar, no máximo, a escolha da melhor forma de se adequar aos parâmetros da lógica da eficiência. A universidade perde, assim, o espaço das mediações que lhe permitia a inserção crítica em termos de julgamento e atendimento das demandas sociais, a partir da instância específica de autodeterminação.

As metas estabelecidas dentro de um planejamento racional determinam, ipso facto, os critérios de avaliação, que não podem ser de gênero distinto da lógica do planejamento e das metas finais. Como a lógica da consecução das metas é de ordem econômica, posto que a independência econômica é a primeira delas, a gestão do desenvolvimento planejado é econômica e portanto os critérios de avaliação devem ser da mesma ordem. Daí decorre o aparato técnico das metodologias de avaliação; mas o mais importante é que esta perspectiva avaliadora projeta uma universidade gerida segundo os padrões de organização e métodos econômico-administrativos, isto é, empresariais. "Instituições de ensino, como quaisquer outras instituições, funcionam muitas vezes em situações em que a qualidade do seu trabalho é estimulada, e em outras em que a qualidade do seu trabalho é desestimulada, ou impedida de florescer"9. A avaliação estimulará a qualidade na medida em que estabelecer uma competição entre as instituições, num mercado educacional em que o melhor desempenho resultará nos melhores professores, nos melhores alunos e nos melhores financiamentos. O concorrente que se deixar tomar pela entropia organizacional sucumbirá naturalmente; aquele que souber adaptar-se às exigências de eficácia organizacional sobreviverá.

É dito também que o que se busca com isto é a qualidade. Há que se entender no entanto que, numa estrutura concorrencial de mercado, o que conta é a qualidade do desempenho, que se mede pela quantidade dos resultados. Bom desempenho, no caso de universidades, significa medir: relação aluno/professor; taxa de evasão; relação ingressantes/graduados; indicadores de desempenho docente (publicações/docente; fluxo de mestrados e doutorados, etc). Tudo isto é uma extensão do binômio custo/benefício, relação básica neste tipo de avaliação. Na linguagem do Acordo MEC-USAID dizia-se: "máximo de rendimento com a menor inversão". é preciso considerar também que todos estes indicadores expressam, na sua variedade, o macro-critério de adequação da instituição à planificação racional em escala maior. Se forem vencidos a inércia dos escalões secundários do governo e o corporativismo da comunidade universitária, este padrão de desempenho empresarial adequar-se-á plenamente à execução dos planos de desenvolvimento econômico. A ciência é força produtiva; e a universidade deve estar a serviço da produção, planejada segundo condições racionais. Como dizia Atcon, na década de 60, "uma universidade autônoma é uma grande empresa, não uma repartição pública"10.

Compreende-se que, neste contexto, ganhe proeminência uma figura que no Brasil pós-64 passou a ser exaltada como o novo pensador universal: o economista. Ele não apenas ocupará os postos-chave nas áreas financeira e de planejamento, como estenderá sua influência sobre todos os setores do governo, inclusive aqueles concernentes à política social, talvez porque, sendo estas áreas as mais vulneráveis às discussões políticas, configuram-se precisamente como aquelas em que se faz mais urgente uma injeção de racionalidade, para que possam libertar-se das flutuações e imprecisões dos critérios estritamente político-sociais e adotarem o rumo firme da tecnicidade econômica. Esta tendência, constante desde 1964, não sofreu qualquer desvio com a "redemocratização" e acentuou-se na era neoliberal: as políticas públicas da área social ou são diretamente coordenadas por economistas, ocupantes dos ministérios correspondentes, ou então são inteiramente monitoradas pela equipe econômica, de modo a que nenhuma decisão seja tomada sem a interferência preponderante do critério econômico. Estando portanto a educação sujeita a esta diretriz geral, a universidade não poderia escapar do economicismo como padrão de gestão eficiente e racional.

Esta é a razão pela qual, a partir do final dos anos 80, instalou-se na USP a mentalidade do "gerenciamento", isto é, a definição clara e inequívoca da direção universitária como algo primordialmente ligado a organização e métodos administrativos, com a elevação dos critérios de eficácia empresarial ao primeiro plano na consideração dos requisitos de gestão universitária. Correlativamente construiu-se a visão retrospectiva de que todas as dificuldades anteriormente enfrentadas pela instituição foram decorrentes de deficiências de gestão, da falta de talento administrativo ou do desinteresse gerencial dos antigos dirigentes, equivocadamente escolhidos a partir de parâmetros estranhos à competência econômico-administrativa. Com isto operou-se uma redução de todos os problemas internos e externos da Universidade a quesitos de racionalidade administrativa, o que significou, ao mesmo tempo, a proposição "natural" do critério fundamental para a escolha do dirigente: o administrador eficiente. Nisto a Universidade acompanhou o país: o tecnicismo econômico como única esfera possível de discussão "racional" e base exclusiva para a tomada de qualquer decisão dissolveu o caráter político que deveria ser inerente ao governo, do país e da instituição. A tecnoburocracia economicista ocupou o espaço da discussão e da ação políticas. Dizer isto não é o mesmo que afirmar que não há "política". O império da tecnoburocracia tem uma origem política, evidentemente. Mas esta origem está ausente do cenário em que ocorre o dinamismo das decisões, embora ele tenha sido montado a partir dela. A opção pela racionalidade tecnocrática, naquilo que ela representa em termos de supressão do espaço de discussão política, é sem dúvida uma opção política, na medida em que ela desencadeia um processo político que tem como singularidade o fato de que nele a política não pode transparecer. Conseqüentemente a racionalidade tecnocrática é uma racionalização da política, com a diferença de que o recalque da política neste caso é originariamente deliberado, antes de ser vivido como a inutilidade ou a superação da política. E neste caso os agentes políticos da tecnoburocracia cumprem mais fiel e eficientemente seu papel quanto mais convencidos estão do caráter apolítico da tecnocracia.

Neste contexto desenvolveu-se na Universidade um processo de desqualificação da instância política em todos os níveis, que começou na Nova República e parece estar se completando nos nossos dias. O que dissemos mais acima, acerca de ser o "político" tomado como sinônimo de corporativista, assembleísta, radical, irresponsável, etc, ganha na atualidade uma dimensão mais nítida e definida, na medida em que há uma recusa institucional da política, como se a universidade se descaracterizasse ao reconhecer-se como peça de um processo político-institucional. Ora, é impossível afirmar que a universidade esteja fora deste processo: mesmo os mais ferrenhos adeptos da despolitização da universidade não chegariam, suponho, a negar a inserção político-institucional. O que se passa na verdade, analogamente ao que ocorre no cenário mais amplo da vida institucional, é que está em curso um projeto político de despolitização. A universidade "gerenciada" é parte de um projeto político de dimensões transnacionais11, que a tecnoburocracia brasileira leva a efeito naquilo que lhe compete e de acordo com as diretrizes de órgãos internacionais. Há, portanto, política de ensino superior, decidida nestes órgãos e executada tecnicamente pela burocracia dos organismos governamentais ligados à educação no país. Por isto não é necessário que haja discussão aprofundada, em plano nacional, de princípios de política educacional, pois isto só introduziria ruído no fluxo de comunicações entre os centros de decisão e os encarregados da execução. Esta é a razão pela qual são acoimadas de irracionais as atitudes que contestam ou põem em dúvida a lógica do processo em andamento. O que se pode discutir são as formas de implementação dos controles gerenciais, até como estratégia de economia de conflitos. A discussão da própria essência do processo está desqualificada a priori.

VII

A questão que se coloca a seguir é a de entender como a Universidade está assimilando esses controles e a maneira pela qual a comunidade convive com eles. Esta questão é importante porque tais controles não foram eventualmente estabelecidos, nem estão apenas extrinsecamente ligados à instituição, como uma simples modalidade, entre outras, de funcionamento da estrutura universitária. O grau de profundidade em que a instituição assimila a imagem de universidade gerenciada ao seu próprio modo de ser indica a introjeção, talvez definitiva e irreversível, de um paradigma externo, ainda que historicamente impositivo já que coincidente com o modelo moderno de organização racional. Se isto é verdadeiro, temos de convir que, já na instância do princípio do reconhecimento de sua identidade institucional, a Universidade estaria alienando sua autonomia. Compreenda-se: é bem verdade que os mecanismos de controle são estabelecidos pela própria Universidade, internamente regulamentados e geridos por membros de sua própria comunidade, o que poderia levar a julgar que, ao menos enquanto proceder assim, a Universidade não estará subordinada ao controle extrínseco. Mas a idéia do controle gerencial, que está na raiz da estrutura avaliativa adotada, é extrínseca. Qualquer que seja, o mecanismo montado a partir desta idéia, estará marcado pela heteronomia. A universidade gerenciada é, essencialmente, heterodeterminada, e o será tanto mais quanto mais tiver assimilado no seu próprio núcleo os procedimentos de gerenciamento. é por isto que o processo de despolitização, e os seus correlatos, a expansão e o aperfeiçoamento da estrutura gerencial, têm como horizonte a indiscernibilidade total entre autonomia e heteronomia12.

Esta perda progressiva de discernimento afeta a preservação e a reposição da identidade histórico-política da instituição, a tal ponto que ela vai aos poucos separando-se de si mesma. Este processo remonta a épocas nem tão recentes. Algo digno de atenção, até pelo caráter simbólico inscrito no fato, ocorreu por ocasião da comemoração do cinqüentenário da USP, em 198413 . Em 25 de janeiro o Conselho Universitário reuniu-se em sessão solene, com a presença das autoridades, como de praxe em atos dessa importância. Quis a ironia ardilosa da história que fosse então Ministra da Educação a professora Esther de Figueiredo Ferraz, reitora da Universidade Mackenzie em 1968, quando os alunos desta escola, apoiados por grupos paramilitares de direita e protegidos pela polícia, atacaram com tiros e bombas o prédio da rua Maria Antônia em que funcionava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, depredando-o e provocando um incêndio, o que motivou a antecipação da mudança para a Cidade Universitária dos cursos que lá eram ministrados. Para quem pôde ver, difícil seria apagar da memória a insólita cena: a ministra, o governador, o prefeito, o secretário da educação à época da fundação, o diretor d'O Estado, embaixadores, inclusive da Indonésia, além das autoridades da USP, formavam a mesa. Os membros do Conselho Universitário. A sessão foi a portas fechadas, pois um grupo de professores, estudantes e funcionários protestava na entrada, reclamando dos salários e das condições de trabalho. Discursando, a Ministra aquiesceu em lembrar que 'A USP soube, como sempre saberá, vencer suas próprias crises, olhos postos, antes e acima de tudo, nos ideais que inspiraram o ato de sua criação. Pois o futuro de nossas universidades (...) reside na renovação de seu espírito originário." Certamente a ex-reitora do Mackenzie referia-se ao espírito trancado na Sala do Conselho, protegido da irracionalidade do radicalismo político daqueles que se manifestavam lá fora. Provavelmente fora em nome deste espírito que ela saíra em defesa da ação dos estudantes do Mackenzie, e dos grupos agregados, em 1968.

Nada poderia figurar de modo mais nítido a separação da Universidade de si própria. E a ministra foi feliz na escolha de pelo menos uma de suas palavras: crise. Um Conselho Universitário de uma Universidade fundada e consolidada sob a égide da crítica, reunido a portas trancadas com uma ministra de um governo autoritário e ex-reitora de uma escola que dava abrigo a grupos fascistas organizados, para "comemorar" 50 anos de fundação. A perda de identidade reflete-se na crise de representatividade: aquele Conselho obviamente não representava a comunidade; o poder institucional estava completamente desvinculado da Universidade real, como num país ocupado, em que a data nacional tivesse que ser lembrada numa solenidade organizada pelos ocupantes. Um dos significados de crise é separação. Durante a ditadura, a Universidade estava separada de si mesma porque, estando silenciada, não podia assumir-se na identidade histórica que construíra ao longo de 30 anos. Na Nova República, a Universidade permaneceu separada de si mesma devido à desqualificação dos opositores do projeto de tecnocratização e empresariamento, que eram chamados de adeptos da "universidade alinhada", isto é, submetida a injunções políticas. Atualmente a Universidade continua separada de si própria porque perdeu a identidade política e se vê arrastada num projeto de completa destruição da esfera pública, percurso que vai rapidamente alterando seus traços institucionais. Como compreender a espantosa continuidade deste processo sem considerar que a instituição se fez de alguma maneira cúmplice de sua própria alienação?

Isto dito de maneira simples e direta soa como acusação injusta. Afinal houve um longo período de obscurantismo, de terror, de violência e de intimidação. Depois houve a longa transição. Não é possível retomar a história a partir do ponto em que ela foi usurpada. Mas é por isto também que importa compreender bem a continuidade da história. O que Florestan Fernandes escreveu em 1984, acerca de um passado recente, repercute com uma atualidade assustadora: "Pretendia-se destruir o fundamento moral de qualquer inconformismo de base institucional, converter a própria atividade docente, de aprendizagem e administrativa em um não-valor, em algo de importância intrínseca discutível ou desprezível. Se se observam as coisas deste ângulo, é fácil entender-se seja o tédio, o sentimento de impotência, a indiferença quanto à auto-realização, o cinismo compensatório, seja o trabalho árduo e sofisticado, de contextura neurótica, que aparece como o equivalente psicológico do refúgio. Esses aspectos, que atingiram mais os jovens e os estudantes, mas que se manifestaram com carga decuplicada nos mais velhos sensíveis a tal enredamento, revelam o quanto a tutela externa e a fascistização dos controles internos quebraram a cerviz dos quadros humanos em várias áreas da USP" (Fernandes, 1984, p. 63). Este texto pode ser lido em pelo menos três estratos de significação. Creio que o que diz Florestan, no plano mais geral da sua reflexão, é que não há proporção nem comensurabilidade entre os estragos da ditadura e a resistência que a instituição pôde oferecer. E nem é o caso de pensar nos expurgos, nos exílios, na expulsão direta e indireta de professores, alunos e funcionários. Florestan fala dos que ficaram: do desequilíbrio, da perda de referência, da desestruturação, do esvaziamento, da perda de sentido, da falta e da culpa. E também do caráter insuficiente de qualquer opção, da impossibilidade de se desvencilhar da suspeita de si, qualquer que fosse a escolha. Ir embora é assumir a desistência, ficar é racionalizar a desistência. A corrosão dos critérios desestabiliza a tal ponto a vontade que fica dissolvida a distinção entre ação e omissão. E nada do que aconteceu depois pode fazer reaparecer a certeza de que se agiu certo, porque o momento da certeza passou e não pôde ser vivido, teve de ser sobrevivido, atravessado sorrateiramente.

Um segundo estrato de significação diz respeito à dificuldade de se manter a integridade intelectual numa instituição tutelada. Sabemos que não se trata apenas de um monitoramento externo da atividade, mas de algo pior e mais profundo, a progressiva introjeção da auto-censura, e a conseqüente perda de parâmetros para discernir a resistência possível. O risco de se pôr voluntariamente até mesmo à frente do processo repressivo gera a diminuição gradativa do espaço de vida intelectual quando este se transforma num refúgio, tendendo para a dimensão de um esconderijo acanhado, em que qualquer palavra, qualquer movimento, qualquer pensamento podem denunciar a presença. A opção forçada pela clandestinidade intelectual, a impossibilidade de escapar da auto-vigilância, enfim, o disfarce que não se distingue da verdade, a máscara, mais do que colada, absorvida na pele, no sangue e nos nervos do rosto. O hábito do medo.

Um terceiro estrato de significação nos faz retomar a horrores mais prosaicos, como os que mencionamos antes acerca do tecnicização e do gerenciamento como estratégias de roubo da identidade política da Universidade. Acredito que a isto pode ser referida a expressão do texto de Florestan: "fascistização dos controles internos". Era comum, durante a Nova República, que as atitudes e os argumentos de oposição fossem sumariamente descaracterizados a partir do diagnóstico; "agora já não estamos mais sob a ditadura". Leia-se: não há mais desculpa, não há mais sentido em resistir, não se trata de repressão, mas de racionalidade e eficiência. Quem resiste só pode fazê-lo em nome do corporativismo ou da preservação da mediocridade. Os mecanismos de competição e de controle agora devem integrar-se plenamente à vida institucional. Confundir tais mecanismos com repressão é sofisma de preguiçosos. A competição pressupõe a liberdade (livre-iniciativa), e a sobrevivência dos melhores será o resultado natural do processo. é dever da Universidade promovê-lo. A prática-limite desta teoria da transparência democrática foi a publicação da "lista dos improdutivos", que ocorreu durante a gestão do primeiro reitor escolhido "democraticamente". Foi um sinal evidente da relação que se passou a estabelecer entre racionalidade gerencial e democracia, e foi também uma clara antecipação do que se deveria esperar dos controles internos. A fascistização destes controles não significa - diga-se preventivamente - que as pessoas que os exercem tornam-se fascistas ou que esta é a condição de serem recrutadas para as posições de controle. A fascistização é institucional, o que quer dizer que os critérios de racionalidade técnica e eficácia produtiva coincidem com elementos fortemente e intrinsecamente repressivos, institucionalmente interiorizados pela própria ideologia da eficiência produtivista e da sobrevivência dos mais aptos. Referindo-se à aceleração do processo de desintegração da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, simbolicamente marcado pelo ataque ao prédio da rua Maria Antônia em 1968, Florestan assim o resumiu: "(...) a posterior internalização da repressão fez o resto" (Fernandes, 1984, p.64).

É um diagnóstico de largo alcance, e que a história bem recente da Universidade foi tornando mais e mais exato. Não se pode dizer que o golpe de 64 e o AI-5 em 1968 encontraram a USP unida e coesa em tomo da democracia e da autonomia. Pelo contrário, a instauração da ditadura e o endurecimento do regime vieram ao encontro das expectativas de muitos, seja do ponto de vista ideológico, seja da perspectiva de ascensão acadêmica e acesso ao poder. Não é preciso lembrar o episódio da lista de cassações elaborada pela Congregação da Faculdade de Medicina, tão triste quanto eloqüente como exemplo extremado dos focos internos de esgarçamento institucional, e do poder de dilaceramento destes focos quando associados à violência do oportunismo e à inexistência de qualquer grau de discernimento ético entre os protagonistas. Mas a análise de caracteres não nos leva muito longe quando se trata de compreender o processo histórico-político do esgarçamento institucional. Por isto é interessante observar um pouco a evolução da "internalização" a que se refere Florestan no período da Nova República. Uma análise comparativa dos traços gerais do discurso repressivo utilizado pela ditadura para desqualificar qualquer atitude que visasse reconfigurar o significado político-institucional da Universidade com a maneira como os porta-vozes da modernização expressavam a necessidade de incorporação pela instituição dos critérios de competência tecnocrática pode ajudar-nos a entender a direção que desde então vem definindo o perfil da Universidade, bem como algo do projeto implícito nesta definição14. Já mencionamos pouco antes o exercício reiterado de desqualificação das oposições e das diferenças que caracterizou a apresentação de propostas das comissões oficiais e dos adeptos do que se convencionou denominar na época a "universidade do conhecimento", definida como aquela que "restaura o projeto modernizante de uma universidade (...) baseada em paradigmas de desempenho acadêmico e científico, protegida das flutuações de interesses imediatistas", em que "as formas de gestão precisam respeitar as condições peculiares da produção e transmissão de conhecimento", e na qual a "cidadania acadêmica, diferentemente do que se concede na sociedade global, não igualiza, ao contrário diferencia, em função do mérito e da competência"15.0 que nos interessa não é tanto a proposta expressa na letra do relatório mas muito mais o espírito ou a idéia que a orienta, e que se encontram melhor indicados quando a Comissão se pronuncia acerca daquilo a que esta proposta se opõe: "Desde os fins da década de 1960 sacudiu as sociedades ocidentais amplo movimento, tanto no plano ideológico quanto no da ação prática, de contestação de estruturas de poder existentes. Esta contestação se deu não apenas no âmbito da sociedade global, mas também, e com mais força, no interior de instituições específicas, como a Igreja, o Partido, o Sindicato e a Universidade. Extremaram-se, dentro da visão democrática, os componentes de origem rousseuniana, radicados na idéia de que a verdadeira democracia deve exercer-se de forma direta, sem as mediações representativas e ressuscitaram-se posturas anarquistas. Essas idéias chegaram rapidamente ao nosso País, onde o autoritarismo propiciou solo fértil para que germinassem com vigor. Dentro da universidade, que enfrentava prolongada conjuntura adversa, brotaram com ímpeto, numa lógica reativa, os movimentos de professores e servidores, empunhando, entre outras bandeiras, a da democratização interna das instituições."

Há que se atentar não apenas para a extrema clareza deste texto mas também para o que ele esclarece quanto à compreensão do que se encontra na citação imediatamente anterior. Os movimentos do final da década de 60 teriam feito surgir, sobretudo na instituição universitária, reações ideológicas que se prolongaram no plano da ação prática, e que teriam como finalidade subverter "as formas de gestão" adequadas à "natureza e as condições peculiares" de uma Universidade, que não é uma "sociedade em miniatura" e que portanto deve pautar-se por outros parâmetros de "cidadania acadêmica", precisamente os da diferenciação e não os do igualitarismo. O limite de tais reivindicações é a dissolução das "mediações representativas", atitude derivada de uma visão extremada de "componentes rousseunianos", e suficientemente radical para pleitear a "democracia direta" dentro da instituição, o que pode ser caracterizado como "postura anarquista". No caso da universidade brasileira, o autoritarismo propiciou a propagação da "bandeira" da "democratização interna das instituições". Parcial e aparentemente justificada pelo autoritarismo ao qual se opunha "numa lógica reativa", esta posição permaneceu sendo a de muitos professores e servidores quando já não haveria nada mais a que se reagir, isto é, durante a Nova República. Este discurso chega a ser fascinante pelo modo como deixa entrever certas rearticulações históricas operadas pelos defensores da "Universidade do Conhecimento". Tentemos aclarar algumas idéias. Os movimentos sociais do final dos 60 contestaram estruturas vigentes de poder e esta contestação expressou-se numa radicalização que, pelo que recusava e pelo que propunha, só poderia acabar no anarquismo. As condições brasileiras (ditadura) contribuíram para que esta postura se disseminasse como reação ao status quo, o que teria tido como resultado a incorporação de um pleito anarquista a certos projetos de transformação da universidade, fazendo com que a atitude anarquista passasse de reação a aparentes formas positivas de ação política. Como conseqüência, tem-se a proposta de "universidade politizada" ou "universidade alinhada", que inverte os valores da "universidade do conhecimento", uma vez que somente se preocupa em constituir-se como "arma na luta política maior". A quebra da hierarquia e das mediações representativas é a falência da "universidade do conhecimento", conseqüentemente o rebaixamento da Universidade.

Para entender melhor o que aí se contrapõe, é útil recordar como, em 1981, um Editorial d'O Estado de S. Paulo, referia-se ao mesmo problema: "Depois do vazio dos movimentos de 1968 - que esta folha caracterizou como a primavera do nada - chegou-se a ter a impressão que alcançávamos a idade do fim das utopias desvairadas que, geradas no século XIX, marcaram tão tragicamente o nosso século. Entretanto, a situação é muito mais complexa; infelizmente, os anos 80, pelo menos nos países latinos, seja nos europeus, seja nos da América, não se distanciaram o suficiente dos anos 60"16.

O texto do Relatório GERES, escrito em 1986, constata esta continuidade das utopias, fruto de que os supostos herdeiros dos movimentos sociais não teriam compreendido que 68 teria sido o prelúdio do nada: algo movido apenas pela "lógica reativa" e que, se continuado, seria no mínimo um romantismo anacrônico, mas que poderia tornar-se também um perigoso declive por onde a universidade escorregaria para a incompetência, o "populismo" e a "barbárie". A estratégia de salvação da universidade passaria então pela deslegitimação do discurso em favor da "universidade politizada", o que é feito por meio da desqualificação intelectual e acadêmica do interlocutor. Aparecem então os epítetos que mencionamos mais acima: medíocre, paranóico, histérico, radical, baixo-clero etc...

Ora, a salvação da universidade tem como condição a conquista do poder em dois níveis: nos órgãos governamentais que controlam as instituições universitárias, e nas próprias universidades, preferencialmente, quando se trata de escalões intermediários, nos postos de gerenciamento afetos às instâncias de controle. Isto explica porque, a partir de meados dos 80, a figura do professor que transitoriamente exercia, de modo mais ou menos competente, a tarefa de avaliar o trabalho acadêmico, e que só era aceito pela comunidade enquanto uma espécie de coordenador formal, com atribuições pouco nítidas do ponto de vista concreto e contando muitas vezes com um reconhecimento problemático por parte do corpo docente, torna-se agora um controller especializado, que alia a competência acadêmica na sua área de origem a um extenso conhecimento de metodologias de avaliação, técnicas de mensuração do trabalho acadêmico, critérios de produtividade, padrões de interação inter-institucional, mecanismos de determinação de impactos oriundos de geração de conhecimentos e tecnologias, etc. Trata-se de uma figura que deve ser compreendida num processo de continuidade que começou com a elevação do economista ao nível de pensador universal, pois o que se espera do controller acadêmico é que ele se oriente por padrões derivados de uma visão tecno-econômica da universidade, em que os critérios de prospecção e normatividade básicos sejam uniformemente aplicáveis. Tem-se como suspeita, por exemplo, a alegação de diferenças e especificidades de certas áreas e a conseqüente inadequação de critérios. No máximo se toleram algumas características peculiares de áreas "atrasadas" ou "pouco desenvolvidas", na suposição de que isto seja provisório e que tais setores estejam se esforçando para atingir o patamar das áreas de elite.

A novidade em relação à "desordem", ou à "falta de uma política de produção científica", à ausência de "parâmetros objetivos", da época pré-gerencial é que as instâncias de controle não são mais coordenadoras do trabalho acadêmico, mas passam a ser cada vez mais ordenadoras. A ordenação não significa, neste caso, um conjunto de normas emanadas do órgão controlador, com a finalidade de sujeitar estritamente e atividade acadêmica, mas a divulgação de expectativas que as instâncias de controle julgam adequado alimentar como condição preliminar do trabalho avaliativo. Estas expectativas, tecnicamente justificadas e devidamente apoiadas em modelos principalmente norte-americanos, explicitam de forma suficientemente clara os requisitos que o trabalho acadêmico deve obedecer para transitar com êxito nos órgãos de controle, basicamente preocupados com a produção, o que sinaliza também de forma explícita para o peso desta atividade em relação às demais.

Em suma, não se trata mais de uma coordenação da atividade universitária a partir de uma avaliação e compatibilização dos resultados do trabalho universitário realizado no contexto variado e pluralista, coordenação esta que teria como principal objetivo assegurar os meios para que o trabalho intelectual se realizasse nas dimensões múltiplas de sua possibilidade e de acordo com a autonomia do docente e das áreas que compõem a universidade, sem qualquer juízo prévio acerca daquilo a que o trabalho teria que corresponder. A perspectiva ordenadora tem uma visão prévia do trabalho intelectual, que somente é explicitada em parte (condições de publicação, por exemplo) e avalia muito mais a correspondência do que se faz a este modelo geral do que o trabalho em si mesmo. A causa disto é relativamente simples: se o trabalho fosse avaliado em si mesmo não se caminharia na direção de estreitar cada vez mais o espaço em que se exercita a diferença, entre as áreas e mesmo entre as pessoas. é por isto que as avaliações realizadas internamente pelas áreas e pelos departamentos estão sempre sob suspeita: supõe-se, provavelmente com razão, que a avaliação interna valoriza a diferença como meio de aferir a originalidade, e desta maneira despreza o paradigma formal e geral de avaliação.

A imposição do paradigma da competência exige que o poder seja ocupado pelos grupos "competentes" em todas as instâncias de avaliação e gerenciamento, dentro e fora da universidade. é por isso que o projeto da universidade competente, hierarquizada e gerenciada caminha necessariamente junto com um plano de articulação de lideranças acadêmicas preocupadas com a competência, que devem ocupar os postos de poder - aí compreendidas as instâncias de controle - e mantê-los permanentemente fechados a qualquer interferência dos grupos "politizados" e "incompetentes". Com isto se cria uma justificativa racional para o autoritarismo, para a instauração e reprodução indefinida do modelo produtivista, mercantilista e gerencial de universidade.

O autoritarismo exercido em nome da racionalidade e da competência deslegitima a priori qualquer discussão política acerca de sua pertinência ou validade. Isto significa que fica vedada qualquer possibilidade de questionamento do poder. São legítimas apenas as discussões técnicas visando alterações internas e pontuais do modelo, e são bem-vindas discussões técnicas quanto ao modo de adequação progressiva de todos os setores da universidade ao modelo. A inserção desta perspectiva de universidade num contexto geral de modernidade, pensada segundo os critérios de racionalidade técnica, mascara o exercício político da autoridade, conferindo a um projeto político de educação superior as marcas da universalidade e da necessidade puramente racionais. Já era irracional insurgir-se contra a proposta de universidade tecnocrática e gerenciada; no momento em que os tecnocratas realizam o projeto de ascender ao poder, torna-se irracional contestá-los, contestar o poder. Por vezes ainda se fala, em termos antiquados, de crise da representatividade, e parece que o que se quer dizer com isto é que a distância entre a comunidade e o poder aumentou de tal maneira que não pode mais ser percorrida, nos dois sentidos, pelos representantes da comunidade. Tudo indica que estes estão diante de duas opções: ou se mantêm próximos de seus representados e são ignorados pelo poder, isto é deslegitimados quanto à competência; ou se mantêm próximos do poder, caso em que são reconhecidos como competentes, mas não como representantes. Apesar de não tão longe, parece já bem distante o tempo em que o Relatório GERES podia falar, talvez até honestamente e com algum sentido, em "mediações representativas". A instalação definitiva da competência técnica como única instância válida de decisão as tornou desnecessárias. Como e para quê discutir questões de fundo sobre o presente e o futuro da universidade se o outro - politicamente falando - está de antemão desqualificado para esta discussão?

É interessante relembrar o argumento utilizado pelo discurso "competente" contra o interlocutor "politizado", que referimos mais acima: não estamos mais sob a ditadura; é hora de perder a mania de contestar. Há algo aí de mais profundo sob a sugestão da trivialização do protesto, e que explica muito do que estamos vivendo na universidade. O que faz com que o "competente" conclame seu interlocutor a deixar de se opor é a mudança de posição de parte do arco de oposição à ditadura. O advento da Nova República provocou diferenciações neste espectro amplo, e estas só fizeram aumentar desde então. A opção pela tecnicidade competente e pelo gerenciamento como modelo de universidade triunfou e levou parte da antiga oposição ao poder. Como isto ocorreu, ao menos do ponto de vista formal, "democraticamente", os que foram guindados ao poder sentem a sua competência legitimada pelo procedimento democrático. A conseqüência, algo paradoxal, é que isto reforça o autoritarismo, já por vezes latente, e o faz atingir graus bem acima da inevitável contaminação autoritária a que se expõe todo aquele que exerce poder. Não havendo mais ditadura, nada mais existe que possa qualificar minimamente uma oposição, e justificá-la. Por isto o opositor de agora está por definição desqualificado e sua atitude é injustificável. é "reação ideológica", quer dizer, é mera política, quando o que está em jogo é lógica e razão. Se o opositor for passivo e pacífico, será tratado como um utopista. Se for ativo e militante, será o populista, histérico, paranóico, baixo-clero, representante da barbárie corporativista. Sua desqualificação e a deslegitimação do seu discurso não são, pois, atos repressivos. Pelo contrário, é algo que se justifica como defesa da instituição - de sua qualidade e de sua excelência. A partir daí, estão justificados: a marginalização do representante combativo, pois é alguém que ainda não entendeu que "mediação representativa" é antecâmara do poder e não o espaço da sua contestação; a marginalização e a pressão para o esvaziamento político das associações e entidades representativas, se se comportam como corpos estranhos ao processo de modernização; a perda de sentido político dos colegiados em todos os níveis, que devem ocupar-se apenas da parte que lhes compete no gerenciamento institucional e na escolha dos modos de execução das ações burocráticas e administrativas decididas de forma centralizada nos escalões superiores. A preocupação principal é impedir a "politização" das discussões, que é vista como procedimento aberrante. Ora, trabalho tão bem feito de esvaziamento político das instâncias coletivas de discussão e de desqualificação de qualquer tentativa de reconfiguração política da instituição só poderia ter sido realizado por quem já participou intensamente neste gênero de atividade. Por aqueles que passaram da oposição ao poder e por aqueles que decidiram trocar a discussão pela anuência imediata, às vezes numa ânsia mal contida de "oficializar" o próprio discurso17. Neste entrecho que de ações e reações, que procurei comentar sumariamente, parece ocorrer, talvez de forma amplificada e mais complexa do que o próprio autor poderia prever, o que Florestan chamou de "internalização da repressão".

VIII

Da descrição do processo de internalização feita acima, embora sumária e superficial, creio que se pode depreender que este processo traz, na sua própria dinâmica de efetuação, os mecanismos que o ocultam, na vivência do cotidiano universitário. Tais mecanismos, entendidos como os meios de racionalização justificadora do controle gerencial, só podem ser compreendidos se vinculados a uma estratégia de camuflagem do poder. O poder, quando travestido de racionalidade e competência, assume um caráter absoluto que tende a ser visto como natural. Já vimos que é desta forma que se consolida a idéia de que opor-se ao poder é opor-se à razão. O tecnoburocrata é aquele que governa "por direito racional", o que o coloca acima das críticas e das oposições que pretendem questionar a origem do poder. O poder assim concebido e estruturado se torna tanto mais forte quanto se expressa numa rede de instâncias de controle que operam a partir de critérios racionais. Desta maneira fica dissolvido e mascarado o caráter no mínimo unilateral da concepção de universidade que orienta essa organização do poder. é assim que, embora sendo relativo a uma determinada opção de tradução teórico-política da cultura, o ideário tecnogerencial pretende aparecer como absoluto e naturalmente justificado. A isto se acrescenta a expressão sistemática da organização universitária, que confere a ela um teor de ordem racional, reforçado pelo contexto maior de racionalidade técnica do quadro histórico da modernidade.

Esta expressão sistemática atinge profundamente os indivíduos, repercutindo na maneira como concebem a inserção institucional. As regras gerais do sistema tendem a ser introjetadas como valores acadêmicos e até mesmo morais. Ora, tais regras são essencialmente funcionais: dizem respeito à eficiência do sistema e à sua integração na modernidade técnica; não foram concebidas por via de uma visão crítica e integradora do percurso histórico da universidade e, neste sentido, a recusa da tradição aí implícita é tributária apenas da hegemonia do presente enquanto característica de uma civilização tecnicamente orientada. Desta maneira instaura-se o paradoxo da assimilação de valores pretensamente culturais, civilizatórios, intelectuais e morais que entretanto têm origem nas regras pragmáticas de funcionamento do sistema. Para que tais valores se sustentem, é necessário que esta origem permaneça obscurecida - e este obscurecimento é continuamente reposto na adesão acrítica ao sistema, fundamentada, por sua vez, na imagem de racionalidade com que o sistema se apresenta e é aceito. O indivíduo assimila, de modo consciente ou não, a sua integração ao sistema como única forma de pautar a conduta universitária por esses "valores", que são na verdade as regras imanentes ao sistema. A inserção institucional significa então pôr-se de acordo com a funcionalidade do sistema. Os critérios operatórios são impostos como valores, e o indivíduo passa então a "operar" a sua conduta universitária - isto é, a sua vida intelectual - de modo a seguir as regras, entendendo que assim está se desincumbindo de sua responsabilidade universitária. Os que não seguem as regras são "irresponsáveis"18.

As regras tornadas valores expressam a ideologia orientadora da organização da universidade "competente". Referem-se àquelas expectativas que os órgãos de controle acadêmico mantêm como critérios avaliadores, a produtividade competitiva, por ex. Tem-se como exigência normal de desempenho que o docente produza de modo a competir internamente, nacionalmente e, se possível, internacionalmente. Sendo a competitividade critério de adequada inserção institucional, o procedimento privilegiado de inserção fica vinculado à iniciativa individual ou de grupos, que lutam entre si pela obtenção dos meios que permitam cumprir a regra da produtividade, batalha travada na universidade e, principalmente, nos últimos tempos, fora dela, na arena montada pelas agências de fomento. Já se disse muitas vezes que a submissão a critérios avaliativos das agências não constitui alienação da autonomia, visto que os que dirigem as agências, estabelecem os parâmetros e procedem aos julgamentos são membros da comunidade universitária. Este argumento é bastante irônico, já que somente se torna aceitável pelo seu lado negativo: se não há problema em que as agências indiquem o que se deve fazer na universidade, em termos de pesquisa, é porque há uma consonância, ainda que tacitamente estabelecida, entre a agregação institucional que deveria ser a característica da universidade e a atomização de indivíduos e grupos decorrente da concorrência pela obtenção de recursos, uma vez que as agências julgam projetos e não instituições. De qualquer modo, a valorização da iniciativa individual ou de grupos, associada ao regime de competição, distancia o indivíduo da instituição a que pertence. Esta passa a ser apenas o local de ancoragem para a promoção individual, não entrando em linha de conta a questão da relação entre interesses individuais e institucionais. O indivíduo será tanto mais valorizado no seu trabalho quanto mais estiver afastado da "corporação". Não seria o caso de se perguntar se o atual desinteresse pela instituição por parte de seus integrantes, e a desagregação que vem como conseqüência, não teriam algo a ver com esse distanciamento, que é encorajado na medida mesma em que o sistema prescinde da instituição como valor a ser preservado, como origem e finalidade do trabalho, e apenas se serve dela operatoriamente, como apoio para o seu funcionamento?

Creio que se pode dizer também que encorajar uma modalidade de inserção institucional em que paradoxalmente a própria instituição é desvalorizada, já que a relação é cada vez menos intrínseca, coaduna-se bem com uma perspectiva de dissolução do espaço institucional, da desconsideração do lastro histórico e da densidade política de um locus acadêmico acumulador de experiências, plurais e contraditórias, de que o indivíduo deveria participar, tanto pela atuação presente quanto pela preservação da memória, para melhor constituir o sentido da atividade individual. O desencorajamento de uma apropriação do passado que venha a integrar a atualidade é parte da estratégia de autonomização do sistema tecnocrático. Para o sistema basta que a atualidade fique suspensa no ar, pois o fundamento institucional atua por si mesmo como moderador da absolutização do presente imediato enquanto único critério de inserção. Não é por acaso que, na USP, seja a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas a unidade que tem apresentado maior grau de resistência à modernização, pois, apesar de tudo, nela ainda se preserva algo da memória institucional e esta carga histórica faz com que a Faculdade avance mais lentamente na sua integração ao sistema. Não é por acaso, também, que os setores mais "adiantados" da FFLCH, aqueles em que o processo de assimilação das regras do sistema vai fluindo com mais facilidade, sejam exatamente aqueles em que mais se nota o esforço deliberado para destruir a memória da instituição, aqueles que menos se sentem os herdeiros da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, aqueles que renegam o legado, aqueles em que mais se acelerou o processo de despolitização e aqueles que mais severamente criticam os setores ainda "atrasados", através do novo discurso desqualificador e deslegitimador gerado na Nova República. É preciso reconhecer, por outro lado, que o discurso e os procedimentos de oposição dentro da Universidade não têm encontrado em todos os momentos formas adequadas de resposta a esta situação. Em alguns casos, as dificuldades de mobilização provocaram um isolamento das entidades, que foram obrigadas a manter-se fechadas em si mesmas na medida em que têm sido sistematicamente ignoradas por aqueles que deveriam ser seus interlocutores. Este acanhamento forçado resulta numa perda de alcance do exercício crítico que se expressa por vezes em alianças precipitadas e incoerentes, custo demasiado alto a pagar por uma reconquista efêmera de um espaço de discussão e de interferência.

É preciso também acrescentar, embora seja óbvio, que a dissolução do espaço institucional vai sendo operada como parte de uma estratégia mais ampla de destruição do espaço público, o que tem sido objeto de grande empenho por parte do governo nos últimos quatro anos. Há portanto uma confluência entre os esforços do governo no sentido de inviabilizar a universidade como instituição pública e o esvaziamento político-institucional que vem sendo promovido pelas "lideranças acadêmicas" que, oficial e oficiosamente, se têm ocupado dos destinos da universidade brasileira desde a Nova República. Trata-se de mais um prolongamento da "internalização" de que vimos falando. A busca da eficiência e da modernização por parte das instâncias político-administrativas se reflete numa assimilação progressiva dos procedimentos de gestão privada, o que é feito em nome da racionalização. Na instância propriamente acadêmica, a despolitização, a ausência de discussão aprofundada dos rumos da universidade, a desqualificação das posturas críticas e a aceitação dos critérios tecnocráticos de gerenciamento e avaliação contribuem indiretamente para o enfraquecimento do caráter público da instituição, pois não há percepção clara de que não será possível por muito tempo preservá-lo e simultaneamente conviver com o avanço da mentalidade mercantil, que em alguns setores já domina totalmente, e com práticas de gestão empresarial. Haverá um momento em que se terá de escolher, e então se fará, da necessidade, virtude. A necessidade é, senão a privatização pura e simples, pelo menos a extensão a todos os níveis da instituição das práticas de gestão privada19. A confluência mencionada vincula-se, assim, à introjeção do modelo tecnicista - diríamos, sua "internalização", pois parece claro que a pretensa racionalidade consensual e a conseqüente desqualificação do oponente configuram procedimentos excludentes dos quais não está alheio um certo teor repressivo.

IX

A despolitização, o esvaziamento institucional, a prevalência de critérios economicistas e tecnocráticos, a descaracterização do trabalho acadêmico e a desfiguração da comunidade universitária sob a pressão das instâncias de controle gerencial provocam uma crise de identidade da universidade que tende a se transformar num estado permanente. As razões desta tendência para a anomia são de duas ordens. Em primeiro lugar a pressão gerencial fortemente apoiada no "discurso competente" de caráter oficializante produziu como resultado comportamentos conformistas ou reativos que não chegaram a configurar uma crítica profunda das mudanças estruturais que foram sendo introduzidas. Para isto contribuiu muito a estratégia "pragmática" dos competentes adeptos da universidade gerenciada, que recusam como inútil e fora de propósito qualquer discussão dos princípios fundamentais que se colocam em causa numa controvérsia acerca da essência da universidade. Não há condições de promover este tipo de debate porque ele foge por definição aos objetivos de tecnocratização da instituição. Em segundo lugar, a coincidência entre as posições que, do interior da universidade, defendem a sua adaptação imediata ao mundo da racionalidade produtiva contribuíram significativamente para amplificar as pressões externas, sobretudo governamentais, a ponto de não se vislumbrar mais qualquer possibilidade de vida acadêmica que fuja aos padrões impostos pelo novo liberalismo. Seria talvez exagerado dizer que já se fabricou inteiramente o consenso na Universidade, pois ainda há vozes discordantes, mas nota-se uma perplexidade significativa: desde a Nova República, a divisão, instituída pelos defensores da universidade gerenciada, entre universidade "do conhecimento" e universidade "alinhada" introduziu um novo divisor de águas. A comunidade universitária não tem que defrontar-se "apenas" com o governo, com as forças obscurantistas da sociedade, com os interesses imediatistas do "setor produtivo", com a proliferação de critérios exclusivistas e unilaterais de uma sociedade cada vez mais regida pelo consumismo desintegrador da atualidade; mas a própria comunidade encontra-se internamente cindida entre e resistência e a adaptação à modernização. Enquanto instância crítica, fora de seu tempo histórico e mal tolerada pelo entorno oficial e social, a universidade, principalmente a USP, habituou-se a resistir às pressões externas, valendo-se de uma certa coesão, relativa e difusa, por certo, em torno de algo a que se poderia chamar, um tanto vagamente, de idéia de universidade, e que, embora não muito bem definida, servia para aglutinar, opondo os defensores de "dentro" aos atacantes e detratores "de fora". Por cima de todas as divergências, havia uma identidade, expressa principalmente no esforço de auto-preservação do núcleo institucional: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Atualmente nem mesmo é possível localizar em algum estrato da instituição esta difícil identificação de propósitos. E a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas já não cumpre, desde há muito tempo, a função de guardiã da identidade universitária porque no seu interior fortifica-se a cada dia um movimento de autodesidentificação expresso na recusa do passado, da memória e do ideal. Num esforço caracteristicamente paradoxal, em que a vontade de sobrevivência parece internamente pautada pela tática suicida, a FFLCH, nisto retratando a instituição no seu todo, procura distanciar-se de si mesma para reencontrar-se numa projeção heterônoma, como se a única possibilidade de salvação estivesse na autonegação, proclamada e reiterada, mais do que isto, demonstrada praticamente, para que não paire dúvidas, junto a quem de direito, de que sua disposição para integrar-se nos novos tempos só é superada pelo empenho de anular em si mesma a última e incômoda lembrança que a Universidade poderia ter de si própria.

Isto não quer dizer que a FFLCH pretende se integrar num novo projeto universitário. Ela não poderia fazê-lo porque não existe um novo projeto institucional, pela simples razão de que o percurso atualmente seguido é justamente o de desintegração institucional. Nisto a universidade responde a solicitações de um contexto maior, nacional e internacional. Uma instituição se legitima na medida em que o reconhecimento coletivo de sua especificidade lhe garante a autonomia de que necessita para preservar-se e desenvolver-se. A universidade como instituição se legitima quando lhe é reconhecida a função de expressar os valores universais inscritos na finalidade de produção e transmissão de conhecimento. Para tanto ela deve incorporar criticamente a tradição e os valores para cumprir a finalidade de recriá-los historicamente e repor assim as condições de reconhecimento coletivo da identidade política, social e histórica dos indivíduos.

Ora, nada mais contrário ao projeto político de despolitização e de dissolução do espaço público atualmente em curso no mundo em vias de globalização. Este processo, na sua própria índole, é profundamente contrário à idéia de instituição, conforme se definiu acima. Ele só pode ser realizado pela aglutinação de interesses individuais e de grupos na forma da organização. A organização nada tem a ver com tradição e valores; ela pertence à ordem instrumental, e a sua sobrevivência se dá por via de uma constante auto-adaptação, com vistas à obtenção de fins particulares20. A justificativa de uma organização e a sua autosuficiência são inseparáveis do seu êxito em termos de eficácia operacional. Isto significa que o critério de legitimidade de uma organização é unicamente a utilidade. Conseqüentemente, a organização nunca pode ter uma destinação pública. A inserção pública de uma organização é essencialmente instrumental; ela faz uso da esfera pública para a obtenção dos seus fins. O critério de eficácia e êxito operacionais definem a organização como um organismo que vive de seu meio e não para o seu meio.

Um dos fenômenos mais característicos da contemporaneidade é a anulação da distinção entre instituição e organização. Esta indistinção provém da hegemonia dos critérios utilitários, tornados valores. Aqui se encontra uma explicação mais geral para a distinção que fizemos acima entre instituição e sistema. O sistema (a eficácia operacional) tende a destituir a instituição (regulação dos meios pelos fins) porque a atualidade vê a eficácia organizacional como um fim em si mesma e como a única finalidade. Na medida em que legitimidade e utilidade imediata se sobrepõem, e os critérios utilitaristas se transformam em normas, deixa de ter sentido qualquer instituição que se governe pela mediação crítica e pela recusa da normatividade extrínseca. A existência de uma tal instituição torna-se profundamente contrária à autoridade e ao poder, porque o lugar institucional neste caso se identifica com o espaço público do debate e da reflexão. Como não é possível o exercício imediato da autoridade numa sociedade em que prevaleça o espaço público, a universidade enquanto instituição torna-se um estorvo e um aparato arcaico em qualquer sistema de poder que pretenda substituir a mediação política pela imposição tecnocrática da autoridade, exercício direto de um poder que é respaldado na razão técnica e não no diálogo e na persuasão política. O caráter imediato deste poder não pode conviver com a institucionalização da crítica e do debate, já que substituiu as mediações propriamente políticas por instâncias autoritárias de formação e de controle de opinião. Por isto uma sociedade em que predomina a idéia de organização é uma sociedade de propaganda e de consumo, não de crítica e de discussão, e isto vale tanto para a preferência em relação ao creme dental quanto para a escolha do livro a ser lido, do filme a ser visto e do presidente que irá governar.

E não há dúvida de que esta é a razão política para que não haja projeto institucional em qualquer instância, e sobretudo na universidade. Mais uma vez nos encontramos com a razão política da inexistência do espaço político-institucional. Para tentar compreender como o sistema pretende incorporar esta contradição é preciso mencionar brevemente dois ou três motivos disseminados no discurso oficial acerca do ensino superior. Em primeiro lugar insiste-se no decantado arcaísmo da instituição universitária, que não foi capaz de acompanhar o progresso da modernidade. "Há uma percepção clara de que algo não vai bem no nosso ensino superior. Há uma nítida consciência de que muitos dos diplomas emitidos não servem para nada, não preparam nossos jovens para o mundo extremamente competitivo e exigente em que vivemos"21. Um dos motivos pelos quais é preciso reformar a Universidade é que ela não se adaptou à modernização da vida econômica, razão pela qual muito do que ela faz é inútil ou supérfluo, "muitos dos diplomas emitidos não servem para nada", o que é preocupante tendo em vista que os diplomas inúteis estão sendo financiados pelo Estado. Se não se nega a relevância da universidade, como o documento faz questão de acentuar, é necessário que esta relevância seja pensada em função da utilidade que a universidade pode ter num "mundo extremamente competitivo e exigente em que vivemos". Para que a universidade venha a cumprir esta função, é preciso retraduzir alguns de seus princípios fundamentais: é preciso mostrar que a gratuidade e a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, longe de serem princípios básicos, foram estratégias circunstanciais de implantação. "Na tradição brasileira (...) as universidades de pesquisa foram pensadas como instituições públicas, inclusive porque seu custo não podia ser coberto pelas mensalidades dos alunos. Mesmo os setores que defenderam a inclusão da autonomia universitária na Constituição, tinham como referência as instituições públicas e não se levou em consideração o que isto podia significar para o setor privado. O problema central reside no fato de que, se as universidades de pesquisa são necessárias em qualquer país desenvolvido, seu custo e sua organização não permitem que todo o ensino superior seja organizado sob esta forma. A indissociabilidade, portanto, implica num outro tipo de organização do sistema de ensino, no qual há poucas universidades e muitos outros tipos de instituições"22. Seria preciso operar dois tipos de redução. Em primeiro lugar, o custo da "universidade de pesquisa" obriga a renunciar ao princípio de indissociabilidade, que foi algo a que os idealizadores da universidade chegaram por via das circunstâncias e do momento em que as universidades foram pensadas. Num momento de ampliação do ensino superior, sobretudo devido à proliferação das empresas privadas de ensino, manter a indissociabilidade seria frear o processo de expansão. é preciso então modificar o perfil universitário para adaptá-lo à tendência histórica. Esta seria a primeira redução: diminuição das exigências para permitir a atuação de organizações de ensino superior. A segunda redução decorre da primeira: poderíamos manter um pequeno número de "universidades de pesquisa", gerenciadas segundo os padrões impostos pelas necessidades da modernização, e um grande número de organizações de ensino, que ocupariam a maior parte do espaço destinado à educação superior. Esta estratégia define o lugar da empresa privada de ensino superior de modo a não sobrecarregá-la com o ônus da pesquisa e de outras exigências próprias da antiga universidade. Fica desta maneira legitimada a implementação de um ensino superior fora dos moldes universitários convencionais, o que certamente estará mais de acordo com as exigências do "mundo competitivo". De acordo com este processo de racionalização haveria ainda que pensar na "questão do desenvolvimento tecnológico [que] não foi, de fato, equacionada, pois a relação da universidade com o setor produtivo é, ainda, muito limitada". Esta limitação provém de que a universidade, pelo menos em alguns de seus setores, tais como humanidades e ciências básicas, mantém ainda um certo distanciamento do mercado, o que é condição de autonomia no ensino e na pesquisa. é este distanciamento que torna a universidade alheia "ao mundo competitivo e exigente", em que certos diplomas não valem nada. O estabelecimento de uma relação mais orgânica com o setor produtivo serviria para a universidade assimilar os critérios que lhe permitiriam livrar-se do lastro inútil que ainda carrega por inércia.

Esta pequena amostragem do discurso oficial pretendeu ilustrar o processo de anulação das diferenças entre instituição e organização, que no Brasil assume o caminho de uma sistemática mutilação da instituição universitária, por via de pressões de várias ordens, corroboradas internamente, e que deve resultar, a médio prazo, na inviabilidade da instituição pública por força da hegemonia econômico-política das organizações privadas de ensino, que vêm recebendo estímulo e reforço dos organismos governamentais através de estratégias de legitimação, das quais a mais significativa é o Exame Nacional de Cursos (Provão). Creio que não seria exagerado constatar que há fortes indicadores de uma intenção deliberada de dissolver o perfil institucional de universidade, não apenas através do reforço da privatização mas também através do exercício de pressões para que a universidade pública vá progressivamente adotando o modelo organizacional.

Como dissemos, uma significativa parcela da própria comunidade universitária corrobora esta transformação. Cresce a cada dia, no interior da universidade, a crença de que todas dificuldades, obstáculos e mazelas da instituição derivam do modelo público de gestão. Por não ter que competir no mercado, a universidade pública acomoda-se no corporativismo e no isolamento das necessidades sociais, ignorando as solicitações de um mundo em acelerado processo de modernização econômica. Mas como não é possível separar a gestão administrativa da estrutura acadêmica, a intenção de integrar-se na modernidade torna-se inseparável das propostas de mudança radical na própria concepção de universidade. E significativo, por exemplo, que procedam da própria comunidade, declarações como esta: "Nos dias de hoje, em um grande número de universidades, observa-se que em lugar de adotar como lema a proteção de todos os conhecimentos e da ciência, elas preferem celebrar as suas realizações como produtoras de conhecimentos úteis"(Pudles, 1998, p. 26)23. Sempre se poderia questionar o critério a partir do qual se qualifica um conhecimento de "útil". No contexto atual esta seria uma objeção inócua e ultrapassada, pois a fixação de tais critérios já não passa mais por qualquer discussão de princípio ou teórica, mas ocorre naturalmente a partir de demandas concretas do "setor produtivo". Em vez das antigas formas de conhecimento ("conhecimentos proposicionais") a nova forma que desponta nas universidades norte-americanas é "construída em tomo do conhecimento em uso ou que está despontando, logo, endereçada à resolução de problemas que vão aparecendo de imediato. Isto significa, em essência, que a definição de conhecimento tem passado de uma visão 'contemplativa' para uma visão mais operacional e instrumental" (Pudles, 1998, p. 26). Não há nada de surpreendente no fato de que esta grande mudança no significado do conhecimento tenha sido originada nas exigências do mercado e não na reflexão epistemológica - a qual, aliás, já se apresta a justificar a mutação. A implicação, no entanto, é de largo alcance: o que se nota com suficiente clareza é que a inserção da universidade num contexto mercadológico repercute até mesmo na concepção de conhecimento que nela predomina. E como se a recusa de um certo perfil institucional historicamente construído estivesse em íntima relação com alguma revolução epistemológica, em que se passaria do conhecimento "contemplativo" para o "instrumental". Deixando de lado equívocos metateóricos, que no contexto não têm a mínima importância, o importante é assinalar que, mais do que modificar o seu perfil, o que a universidade faz neste caso é sujeitar-se inteiramente às exigências do entorno tecnológico e empresarial. Não se trata de reformular projetos; trata-se de renunciar inteiramente a qualquer projeto, já que a única finalidade é o serviço que deverá ser prestado. Coaduna-se com isso a proposta de uma nova visão de universidade: "Ela não é somente uma criadora de conhecimentos, formadora de jovens ou transmissora de cultura; é também considerada um dos maiores agentes de crescimento econômico. Nos dias de hoje, os governos consideram as universidades como laboratórios de pesquisa e desenvolvimento da nação e a instituição responsável pelo aumento do 'capital humano' que permite a um país obter melhores condições de competir na economia global"(Pudles, 1998, p. 24).

A clareza do texto nos dispensa de maiores comentários, inclusive porque interessa menos a maneira como são construídas as afirmações do que aquilo que elas representam em termos de uma tendência que já se tornou irreversível dentro e fora da universidade. As condições do mercado tecnológico nos Estados Unidos tornam apenas mais nítida e caracterizada uma atitude que em princípio é a mesma onde quer que a universidade seja vista como devendo servir ao crescimento econômico - que no nosso país é identificado com o atendimento das necessidades sociais. Para tanto a universidade deve organizar-se, isto é, renunciar ao perfil caracteristicamente institucional e público, tornando-se uma organização do setor terciário, isto é uma prestadora de serviços. O que se cobra da universidade é que ela deixe de entender que sua relevância é de ordem crítico-institucional, e passe a reconhecer que a sua função e o seu lugar estão previamente demarcados pelas regras de competição na "economia global", competição na qual ela se insere ao organizar-se de modo a fornecer insumos para o desempenho econômico.

Estamos algo distantes dos ideais dos liberais fundadores dos anos 30. Naquele momento, com a sociedade em formação, pretendia-se que a Universidade fosse a instância orientadora dos rumos políticos do país, e a esta orientação deveriam subordinar-se, pensava-se, todas as decisões que viessem a definir a conduta do estado e da sociedade. Com isto se poderia instalar uma oposição efetiva ao exercício oligárquico da autoridade, que era visto como a ação bruta e não pautada pelo pensamento. Quaisquer que fossem os interesses em jogo, acreditava-se que alguma relação deveria existir entre pensamento e ação política, razão pela qual a fundação de uma instituição que abrigasse o pensamento podia fazer parte de um projeto político de "regeneração".

Atualmente a Universidade vê-se de novo às voltas com o liberalismo. é tempo de retomar a nossa questão inicial: a relação entre o projeto fundador daquele liberalismo e a intenção terminal do neoliberalismo. Liberalismo indicaria algum traço comum, subjacente de forma profunda à distância histórica e ideológica que marca a diferença entre a criação e a destruição? Creio que se pode fazer uma primeira distinção. Os liberais fundadores tinham um projeto político-educacional essencialmente vinculado à institucionalização de uma concepção de educação e cultura para o que era absolutamente necessário o comprometimento do Estado. De alguma maneira a força propulsora da idéia coincidia com a contradição que a atravessava: de um lado o caráter público e gratuito vistos como componentes intrínsecos do projeto; de outro a intenção de formar elites para introduzir na dominação política os componentes intelectual e cultural que a justificasse. O neoliberalismo não tem propriamente um projeto. O desaparecimento de qualquer justificativa humanista da estrutura ideológica e a hegemonia do economicismo tecnocrático torna desnecessário o projeto político. Talvez não fosse totalmente fora de propósito diferenciar os dois liberalismos qualificando o primeiro de político e o segundo de tecnocrático. A ausência de projeto político no liberalismo tecnocrático não é acidental; é conseqüência da desvalorização da política, contrapartida da hegemonia da técnica. Mas há de se notar um outro efeito: a autonomia tecnocrática do neoliberal possui uma outra face que é a da alienação política, razão pela qual ele só pode participar do cenário político em condição heterônoma, de mercenário ou servidor. Conseqüentemente, ele assumirá ou trabalhará para algum projeto, visto que isto é requisito para participar do jogo político. Ele colocará sua capacidade tecnogerencial a serviço de algum projeto político. Ora, num contexto de modernização conservadora, as forças mais fundamentalmente conservadoras, que são as oligarquias, necessitam de um cabedal de racionalidade técnica para satisfazer as exigências gerenciais impostas pelos organismos representativos do capitalismo central, como condição para que o país seja admitido na esfera da economia global. Então dá-se o encontro entre o tecnocrata à procura de um projeto que o sustente e o oligarca à procura de um tecnocrata que viabilize o seu projeto. Não se trata propriamente de uma aliança, visto que não houve fusão de projetos políticos. Há um só projeto político, e uma tecnocracia que o implementa: algo do gênero de uma contratação de serviços, mas com autonomia técnica do profissional, porque a competitividade internacional exige um gerenciamento técnico que o oligarca conservador descuidou-se de adquirir.

Não se pode deixar de notar algo como a ironia da história, que fez com que os liberais de hoje se unissem e servissem àqueles aos quais se opunha o projeto político dos liberais de ontem. Mas aí pode residir também alguma explicação, que nos ajude inclusive a compreender a ânsia arrasadora dos espaços institucionais de que estão tomados os neoliberais e que não se explica inteiramente pela visão de seus mentores políticos. A história do liberalismo no Brasil parece mostrar que ele tem uma espécie de vulnerabilidade congênita, isto é, deixa-se contaminar pelo autoritarismo com o qual convive e ao qual se opõe. Já vimos isso a propósito da associação entre os liberais paulistas e o Estado Novo. Isto significa duas coisas. Em primeiro lugar, toda vitória do liberalismo sobre o autoritarismo é sempre meia-vitória, e as duas partes sabem disso. Em segundo lugar, o liberalismo, quando no poder, ou mesmo quando aliado do poder, torna-se inevitavelmente autoritário, porque a concepção liberal de liberdade convive mal com a liberdade do outro. São de extrema perspicácia as palavras usadas por Alfredo Bosi para definir o liberalismo: "liberalismo é a liberdade de ser autoritário" (Bosi, 1982). Ora, o oligarca autoritário precisa, para manter a sua autoridade, dar ao liberal, seu preposto tecnocrata, a liberdade de ser autoritário. E a partir deste casamento que se compreende como a tecnocracia pode ser o traço de união entre o liberalismo e o autoritarismo, de modo que não deve surpreender os rompantes totalitários do neoliberal quando compartilha o poder.

O componente tecnocrático fortalece o autoritarismo, porque o tecnocrata julga que sua autoridade está justificada pela competência, e assim ela não seria acidental, gratuita ou apenas politicamente herdada, mas algo que lhe é devido por mérito. Nesta situação, é como se a intolerância ganhasse um fundamento objetivo. Daí a impropriedade de qualquer crítica e de qualquer oposição. A auto-legitimação exacerbada evidentemente não necessita do espaço político de legitimação, que supõe a mediação da pluralidade. No limite, todos os espaços político-institucionais de crítica, reflexão e debate só podem acarretar atraso no processo de modernização tecnocrática e conservadora: o que há de se conservar não está em discussão, por definição: o que há de se impor tecnicamente tampouco, posto que é assunto de especialistas.

Eis-nos diante de um quadro de surpreendente continuidade. O autoritarismo da ditadura apoiado na repressão; o autoritarismo da Nova República apoiado na competência que desqualifica qualquer diferença; e o autoritarismo da tecnoburocracia neoliberal que pretende suprimir todas as instâncias críticas de pluralismo. A universidade resistiu ao primeiro autoritarismo; sobreviveu ao segundo; ainda não há sinais de que esteja decididamente enfrentando o terceiro, até pelo contrário: parece ter assumido a modernização tecnocrática como o perfil definitivo, finalmente encontrado. Neste caso, a resistência se transformará em incorporação. E a hipótese que está em questão. Se confirmada, esta "velha senhora"24não morrerá com dignidade.

Recebido para publicação em fevereiro/1999

Referências bibliográficas

  • Cardoso, Irene. (1982) A universidade da comunhão paulista. Uma crônica das origens. São Paulo, Cortez.
  • _______.(1985) A USP e o "espírito de instituição". Revista de Política e Cultura. Presença,5: 93-100, janeiro.
  • _______.(1987) A Universidade e o poder. Revista da USP, São Paulo, 6: 59-70, julho-setembro.
  • _______.(1989) A modernização da universidade brasileira e a questão da avaliação. In: Martins, C. B. (org.). Ensino superior brasileiro: transformações eperspectivas. São Paulo, Brasiliense.
  • _______. (1996) Apresentação da Universidade de São Paulo, catálogo da USP. São Paulo, EDUSP.
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  • Cunha, L. A. (1988) A universidade reformanda. São Paulo, Francisco Alves.
  • Fernandes, Florestan. (1975) Balanço da situação atual do ensino superior. In:_______. Universidade brasileira: reforma ou revolução. São Paulo, Alfa-ômega.
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  • Freitag, M.( 1995) Le naufrage de l'université. Québec/Paris. Nuit Blanche/ La Découverte.
  • Pudles, J. (1998) Desafios tecnológicos e as exigências da sociedade. Revista ADUSP, São Paulo, 13, abril.
  • 1
    (Cardoso, 1982, p.28 ss). Todas as citações são tiradas deste livro, no qual estão também calcadas as análises e os comentários que faço no meu texto.
  • 2
    Azevedo, F.,
    A Educação Pública em São Paulo - Problemas e Discussões, citado em Cardoso (1982, p. 29).
  • 3
    Grifos meus.
  • 4
    Acerca deste aspecto são particularmente argutas e de largo alcance as análises de Irene Cardoso (1982) principalmente na Apresentação, no capítulo 1 da Parte I, no capítulo 4 da Parte II e no capítulo 5 da Parte III.
  • 5
    Uma das mais significativas contribuições de Cunha, foi, no meu entender, mostrar que os consultores norte-americanos não semearam em terra absolutamente virgem. Desde os anos 50, senão antes, já havia sinais de uma vontade "modernizadora", ainda que as finalidades pensadas junto com esta modernização não coincidissem ideologicamente com os modelos norte-americanos. Exemplo deste amálgama interessante foi a Universidade de Brasília, pelo na qual conviveram, por algum tempo, uma estrutura organizacional "moderna", no sentido norte-americano, e linhas de compromisso fortemente marcadas pelo propósito de transformação social. O que aconteceu a partir de 1964 foi uma absorção do modelo norte-americano num projeto mais amplo, que visava não apenas a modernização administrativa e organizacional, mas a reversão do paradigma crítico de universidade (cf. Cunha, 1988, p. 166, e também todo o capítulo 4 em que o autor mostra as coincidências entre as expectativas de certos setores educacionais brasileiros e as propostas dos consultores norte-americanos).
  • 6
    Trata-se de uma brilhante análise do "Relatório Ferri", texto da Comissão de Reestruturação da USP, que saiu em 1968. Remetemos ao texto de Florestan para uma visão mais pormenorizada e concreta dos problemas suscitados por esta reestruturação.
  • 7
    é possível pensar em ruptura, do ponto de vista institucional? O radicalismo da USP, que parece ter-se ocultado no processo de reforma, reapareceu por breve momento, de forma intensa e fulgurante, em 1968, quando a Universidade, na urgência da resistência à opressão, como que reapossou-se de sua determinação radical, numa conjunção dramática entre o pensamento e a ação. Repensando-se, retomando-se, viveu a sua radicalidade com a intensidade e a rapidez com que a memória faz desfilar a vida no momento em que se está para morrer. A FFCL teve o seu destino nas mãos, mas nos últimos momentos de sua existência. Por isto a ruptura não teve conseqüência. Mas é verdade também que os herdeiros recusaram o legado, e a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas é a sobra, não a herança. Um pedaço tanto mais frágil quanto recusa, cada vez mais, a memória da integridade perdida. Mas este é outro pedaço da história.
  • 8
    Sigo de perto a análise que faz a autora desta peripécia infeliz que, no início da "re-democratização", já deixava claro, para quem soubesse ver, que o processo de desagregação do ensino público não seria revertido pelos governos "democráticos".
  • 9
    Simon Schwartzman,
    Funções e metodologias de avaliação do Ensino Superior. (citado em Cardoso, 1989, p. 125).
  • 10
    Cf. J. Serrano,
    Atcon e as Universidades Brasileiras (citado em Cunha, 1988, p. 207).
  • 11
    " Cf. a respeito um texto extremamente elucidativo:
    Ensino Superior na América: Latina e no Caribe: um Documento Estratégico, elaborado pela Divisão de Programas Sociais do Departamento de Programas Sociais e Desenvolvimento Sustentado do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Aí são expostas claramente as prioridades do BID no setor de educação superior e as condições que os governos devem atender para ter acesso aos subsídios. E muito interessante a comparação deste documento com aqueles que foram elaborados pelo Ministério da Educação no atual governo.
  • 12
    Exemplo ilustrativo deste processo é a substituição de uma política de recursos humanos por um gerenciamento da máquina administrativa e do corpo docente de tal modo a obter resultados relevantes do ponto de vista econômico-administrativo, como o decantado enxugamento e o elogiadíssimo índice de comprometimento orçamentário da tolha de pagamento. O baixo índice de comprometimento - quando comparado a épocas anteriores - é mostrado como troféu de eficiência, contentamento que só é possível a partir da abstração do que isto representa para os corpos docente e funcional. Procedimento normal para uma tecno-burocracia que ignora sistematicamente a relação entre resultados econômicos e trabalho humano. A pergunta que cabe fazer é se esta subordinação da Universidade a mecanismos internos de subjugação de seus quadros à eficiência dos "executivos" é autonomia ou heteronomia.
  • 13
    " Uma reflexão profunda e de grande alcance crítico sobre o significado desta comemoração, na forma como foi feita, encontra-se em Cardoso (1985, p. 93-100).
  • 14
    Serve-nos de apoio para refletir acerca deste assunto o texto de Cardoso (1987, p. 59-70).
  • 15
    Trecho do Relatório GERES, citado por Cardoso (1987, p. 64). As demais citações do relatório que aparecem a seguir são extraídas deste artigo.
  • 16
    "O Estado de S. Paulo, Editorial, 07/06/81. citado por Cardoso (1987).
  • 17
    "Reestabelecida a continuidade entre o final dos anos 60 e a situação presente da universidade brasileira, elaborada no próprio discurso oficial da Nova República, vai ficando cada vez mais difícil discernir o que significa esquerda e direita, categorias aparentemente tão claras nos anos da ditadura militar." (Cardoso, 1987, p. 65). Estas linhas foram escritas em 1987, mas são de inquestionável atualidade e ajudam a compreender a vida política nacional até num contexto mais amplo do que a universidade. O fato de que aqueles que foram "de esquerda" não consigam conviver com um discurso dissonante sem desqualificá-lo é no mínimo instigante e talvez constituísse um tema interessante para uma antropologia política.
  • 18
    A partir da Nova República tem se tornado freqüente, mormente na USP, um discurso "oficioso" ou "oficializante" que apresenta argumentos contra movimentos de greve ou de contestação. Este discurso, em geral proferido por "notáveis" da comunidade, reiteradamente evoca a "responsabilidade" como razão para dissuadir os demais de qualquer contestação de decisões do poder, como por exemplo, reajustes salariais. A "responsabilidade" (para com a instituição, com os alunos, com a sociedade) paira acima de qualquer motivação reivindicatória. O sinal evidente de que esta "responsabilidade" é para com o sistema, na verdade, aparece na desqualificação sumária do argumento segundo o qual a responsabilidade para com a universidade e os alunos estaria presente também na reivindicação por melhores condições de trabalho. Faz parte da lógica do sistema qualificar de anti-universitária qualquer atitude de oposição a este sistema universitário.
  • 19
    "Para indicar que tais prognósticos não são infundados - ou seja, que o autor não é "paranóico" - basta referir alguns trechos do documento do BID, já citado
    (Ensino Superior na América Latina e Caribe: um Documento Estratégico, Divisão de Programas Sociais, Departamento de Programas Sociais e Desenvolvimento Sustentado do Banco Interamericano de Desenvolvimento, 1996). "O mecanismo chave de controle de que a formação profissional necessita é o mercado. E o mercado que deveria determinar as necessidades básicas em termos de números e de conteúdos curriculares. (...) O mercado determina a competência, não apenas os diplomas. O mercado dos formados não precisa ser inteiramente provado, nem podemos negar uma utilidade social para além dos parâmetros de mercado strictu-sensu, mas a formação profissional deve ser guiada mais pelas demandas econômicas do que pelas demandas sociais e políticas." (p. 9). "A formação semi-profissional deveria receber um nível muito menor de subsídios do que ocorre atualmente. Quando se aproxima do modelo das
    liberal arts e de forma competente, seria concebível alguma justificativa de subsídios públicos. (...) De qualquer modo, os subsídios públicos à formação generalista no ensino superior em hipótese alguma deveriam ocorrer às expensas de uma melhoria das instituições de ensino primário e secundário que poderiam exercer a função igualmente bem ou até melhor." (p. 16) "é no campo da formação semi-profissional que a necessidade de um sistema de credenciamento institucional se faz mais sentir, mesmo no caso em que funciona como um programa efetivo de
    liberal arts. Neste setor, o mercado é por demais vagaroso, tangencial e indireto, embora também tenha o seu papel a cumprir." (p. 20). Resumindo: 1) A formação "profissional" que a universidade oferece deve ser regulada pelo mercado, desde o número de matrículas até os conteúdos curriculares. 2) A formação "semi-profissional" (humanidades) não deve receber subsídio público. 3) A formação "semi-profissional". como não é inteiramente regulada pelo mercado, deve ser objeto de atenção dos órgãos educacionais, para manter o perfil adequado, isto é, coincidente com o que se denomina nos Estados Unidos
    liberal arts.
  • 20
    Cf. a respeito Freitag (1995, p. 31): "Les universités, avant d'être des organizations, sont des institutions. L'éffaccment de cette distinction est en fait au coeur du problème qui est traité ici. En un mot, l'institution se définit par la nature de sa finalité, qui est posée, définie et rapportée sur le plan global de la societé, et elle participe du développement 'expressif" des valeurs à prétention universelle qui sont propres à la fin qu'elle sert. Cela implique pour l'institution l'exigence d'une réconnaissance collective ou publique de légitimité (culturelle, idéologique, politique) et, à l'intérieur de celle-ci, la disposition d'une marge essentielle d'autonomie. (...) L'organization se définit par contre de manière instrumentale: elle appartient à l'ordre de l'adaptation des moyens en vue de l'atteinte d'un but ou d'un objectif particulier. (...) L'aspect institutionnel renvoi à la priorité des fins, l'aspect organizationnel, à la priorité des moyens".
  • 21
    Pronunciamento leito pelo Ministro da Educação Paulo Renato Souza no Seminário sobre Ensino Superior realizado em Brasília, em 16/12/96. Texto distribuído na ocasião, p. 02.
  • 22
    Pronunciamento feito pelo Ministro da Educação Paulo Renato Souza no Seminário sobre Ensino Superior realizado em Brasília, em 16/12/96. Texto distribuído na ocasião, p. 09.
  • 23
    O autor é professor do ICB da USP e foi pesquisador do CNRS e das Universidades de Zurich, Paris, Harvard, Tóquio e Brandeis. Fala, portanto, respaldado numa experiência muito ampla, que lhe permite detectar o rumo que tende a tomar a universidade em todo o mundo.
  • 24
    Gérard Lebrun escreveu, em 1986, a propósito das reformas discutidas a partir do relatório GERES: "(...) eu me espanto de ver que os médicos mais zelosos dessa velha senhora lhe prescrevem uma beberagem que lhe será fatal. Todos devem ter o direito de morrer em paz."
    (Folha de S. Paulo, 31/8/86,
    apud Cardoso, 1989, p. 120).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Maio 1999

    Histórico

    • Recebido
      Fev 1999
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    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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