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Maria Luiza Tucci Carneiro, Impressos subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964. São Paulo, Intermeios, 2020, 212 pp.

Carneiro, Maria Luiza Tucci. , Impressos subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964 . São Paulo, Intermeios, 2020, 212 pp.

Lembro-me de que em 2015 (estava na direção da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo) havíamos iniciado uma prospecção em diversas bibliotecas públicas país afora, com vistas a criar um grande repositório digital de periódicos nacionais. Deparei-me, nessa ocasião, com um acervo interessantíssimo depositado na Biblioteca dos Povos da Floresta, em Rio Branco. Tratava-se de folhetos, mimeografados, panfletos e bilhetes escritos, de caráter subversivo, que informavam sobre as ações de Chico Mendes e do grupo de seringueiros contra os altos mandatários locais, políticos e exploradores

dos recursos florestais e dos povos amazônicos. As reuniões desse grupo eram clandestinas e secretas, pois havia uma brutal forma de repressão contra seus integrantes. Somada a isso, a carência de recursos econômicos para manter um jornal, ou algo equivalente, contribuiu para que as mensagens do grupo se dessem em forma de volantes, pequenos cartazes e outras coisas improvisadas. Seria ótimo tê-los dentro do projeto, mas havia um problema conceitual: aquele material não se enquadrava dentro da categoria periódicos. Voltando a São Paulo, comuniquei ao bndes, patrocinador do projeto, que eu faria uma mudança naquela categoria, a fim de que o material achado no Acre pudesse ser compreendido e integrado ao repositório. Então, mudei o verbete. O substantivo periódico passou a ter, para a finalidade que pretendíamos, o seguinte significado:

Para efeitos de delimitação do escopo deste projeto - i.e., um repositório digital de periódicos nacionais considerados raros e/ou especiais - define-se periódico como uma publicação (jornal, revista, artigo acadêmico etc.) que aparece ou tenha aparecido em intervalos regulares e cujas coleções físicas constituem-se atualmente como hemerotecas. Diz-se periódico também a documentação primária de relevância inconteste para a história brasileira com vistas a ser publicada sob essa forma, com os meios técnicos disponíveis, em data próxima de seu contexto originário, mas que não o foi por conta de circunstâncias econômicas, sociais, políticas ou ideológicas forçosamente contrárias a essa intenção.

Infelizmente, com o fim de meu mandato à frente da Mário de Andrade e a troca de comando no poder executivo municipal, no início de 2017, esse projeto em torno da constituição de um repositório público digital brasileiro, assim como muitos outros foram sepultados pela nova administração que chegava, esposada com o neoliberalismo e a ausência por completo de uma política cultural integradora.

Citando Jorge Luis Borges, essa lembrança veio até mim, como “uma reprovação que era quase um remorso”, ao ler o novo livro de Maria Luiza Tucci Carneiro, Impressos subversivos: Arte cultura e política no Brasil, 1924-1964. O livro trata particularmente dos impressos confiscados pelas forças policiais do Estado de São Paulo, bem como da vigilância sobre o aparato cultural tradicional, no período referido, sob a alegação de que esses impressos ou ações artísticas constituíam então ameaças à ordem pública social. O tema da censura é abrangente, compreendendo, no Brasil, desde a época dos tempos coloniais até, principalmente, o momento histórico da ditadura militar, de 1964 a 1983. De certo modo, é possível pensar a vigilância, a censura e a repressão sempre como consequências da manutenção do status de poder e de sua influência sobre tudo e sobre todos, qualquer que seja a forma de governo. Justifica-se, assim, como uma estratégia e, ao mesmo tempo, como parte do modo de ser do Estado à medida que este é subsumido na representação de um ente totalitário, tendo na sua autopreservação a sua principal finalidade. Contudo, Maria Luiza opta por fazer um recorte em sua pesquisa, cuja data inicial coincide com a criação do Deops/SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo) em 1924, até o ano de 1964, quando houve o golpe e a intervenção dos militares no processo democrático brasileiro. Segundo a autora, nos cerca de 150 mil prontuários e quase 10 mil dossiês temáticos produzidos pelo Deops, é possível “desenhar uma cartografia dos impressos subversivos que, por sua vez, nos levam aos ativistas, partidos políticos, instituições e movimentos sociais que atuaram no estado de São Paulo entre 1924 e 1964”. Esses arquivos possuíam “status de evidência” para o aparato repressor do Estado, pois supunham que imagens e textos eram veículos cabais de manifestação política subversiva, desagregadora e maliciosa, sendo classificados como contingencialmente sediciosos à ordem moral, social e política vigente. Pensando dialeticamente, Maria Luiza nos propõe que “a radicalização por parte dos regimes saneadores de ideias influenciou a gestação de uma arte, literatura e imprensa alternativas”. Por outro lado, a ação repressora pautada pela burocracia estatal, não se limitando a destruir, mas, principalmente, a colher e a documentar as evidências dos atos subversivos por meio da descrição e do arquivamento de impressos, textos e fotografias, permitiu a preservação de uma espécie de memória da intolerância. Dito de outro modo, foi graças a esse nefasto serviço de policiamento das ideias por parte do Estado que se tem hoje a possibilidade de se resgatarem as mensagens dos diversos grupos minoritários que compunham a sociedade paulista daquele período e de se compreenderem muitos dos seus anseios, reivindicações e utopias. A sedição e a doutrinação por meio do aparato cultural, de manifestos e da propaganda, oficial ou subversiva, foram instrumentos utilizados por ambos os lados, Estado e ativistas em protesto, fossem esses proletários ou integrantes de uma elite educada formalmente. Para a autora, entre 1924 e 1964, os agentes artistas de esquerda no Brasil tinham em comum “a revisão crítica da teoria da arte desinteressada”, pretendendo uma relação mais estreita entre arte e ativismo político-social, portanto, privilegiando formas de manifestação artística coletivas. Dessa feita, a sua opção foi trazer à pesquisa duas categorias que, embora sejam muito diferentes entre si, vistas de um modo panorâmico, complementam-se quanto ao seu escopo político: a sublevação por meio de imagens e textos impressos contra a repressão e a censura no Brasil na época estudada. Por essa razão, de um lado, a autora propõe as ações dos “artistas vanguardistas de protesto”, ou seja, daquelas pessoas com formação “acadêmica” ou cultural que se utilizaram das suas produções e das instituições nas quais circulavam, ou apresentavam as suas obras como frentes para propagar as suas ideias. Para Maria Luiza, esse grupo estava comprometido “não apenas para propagar uma ideologia”, mas principalmente com a possibilidade do papel transformador da arte “no interior da sociedade”. Por outro lado, a autora reúne informações da atuação de um grupo de “artesãos panfletários”, pessoas sem “formação acadêmica”, vinculados a associações de classe e sindicatos, ou “treinados” em Liceus de Artes e Ofícios. Eram “artistas-operários brasileiros” que permaneceram “à margem dos principais movimentos culturais e artísticos da arte moderna, sem dispor de um ateliê e sem frequentar os circuitos dos vanguardistas de protesto”. Mas se há uma diferença grande quanto à formação e mesmo quanto à origem social entre os membros desses dois grupos, uma preocupação em comum deve ser observada: “Em comum têm o mundo da dor, da miséria e fome, sintomas da República em agonia, representações ricas em significados”.

Os artistas de vanguarda engajaram-se na produção de um tipo de arte que metaforizava o sofrimento dos excluídos e das classes trabalhadoras por meio de representações contundentes, deformadas e expressionistas, difundida principalmente por meio da gravura, segundo a autora. De Lasar Segall, que veio ao Brasil em 1913, aqui radicando-se depois, em 1923, passando por Käthe Kollwitz, cujas obras causaram uma forte impressão na China e no Brasil, a partir de 1926, até Lívio Abramo, Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, Renina Katz e outros, o grupo de artistas vanguardistas de protesto assemelhou-se quanto à liberação das forças criativas do espírito contra as convenções ou padrões estabelecidos e cultivados pelo Estado.

Um ponto importante a se destacar, embora anacrônico em relação à arte brasileira feita antes da década de 1930, é o entendimento da gravura como um meio artístico por excelência a servir aos anseios revolucionários ou de protestos em prol da democracia. Deve-se provavelmente essa opinião à leitura de Walter Benjamin (1936BENJAMIN, Walter. (1936), A obra de arte na época da sua reprodução técnica. Tradução da primeira versão francesa abreviada de Pierre Klossowski em Zeitschrift für Sozialforschung V, Paris - Cahier n. 1, Lib. Alcan. Retomado nas Œuvres choisies, 1959, tradução de Maurice de Gandillac. Texto alemão completo em Schriften I.), mais precisamente à noção da reprodutibilidade da imagem (coisa que a gravura e a fotografia têm como uma premissa técnica) como um critério para se entender a dissolução da aura da obra de arte, sucedendo à perda de sua unicidade o ganho para a práxis política. Esse entendimento, contudo, não era o de Lovis Corinth, por exemplo, que foi ocasionalmente professor de Anita Malfatti, entre 1910 e 1914, conforme nos lembra Maria Luiza. Malfatti, por sua vez, se estudada fora do que foi convencionado pela recente história da arte brasileira, e, em especial, pela história do modernismo brasileiro, nunca se filiou verticalmente a qualquer vanguarda moderna. Quando muito, tentou se adaptar, entre 1923 e 1928, às convenções classicistas da assim chamada Escola de Paris, sem voltar a obter, contudo, o mesmo vigor das pinturas apresentadas em sua segunda exposição individual em São Paulo, em 1917, e que foram feitas em seu período de estudo nos Estados Unidos. Foram essas pinturas os alvos da crítica virulenta de Monteiro Lobato, publicada mais tarde com o título “Paranoia ou mistificação?”, que as entendeu como “futuristas”. Um exame mais detido na crítica de arte exercitada naquela época nos permite entender que futurismo era então um adjetivo malicioso usado para vilipendiar qualquer produção associada à arte moderna. Aliás, uma outra correção, que em nada retira o brilho do estudo de Maria Luiza Tucci Carneiro, quando menciona que “o expressionismo, o cubismo e o abstracionismo” chegaram por aqui “com certo atraso”. Por aqui, do início da década de 1910 até finais da década de 1920, o que tivemos foram manifestações diversas associadas ao naturalismo, impressionismo e ao pós-impressionismo, praticados tanto dentro da Escola Nacional de Belas Artes quanto fora dela, assim como de vertentes ligadas ao fim das vanguardas modernas. Essas vertentes tiveram como denominador comum a reapresentação mais amena, ordeira ou palatável ao público, de alguns dos pressupostos estéticos e plásticos formais das vanguardas (como se fossem vacinas carregando o vírus inativado), fazendo parte de uma corrente que se deu entre 1914 e 1925, e que foi denominada genericamente de “Retorno à Ordem”. Esta foi, aliás, a noção de moderno (o futurismo paulista) apresentada em 1922 na célebre Semana de Arte Moderna. O expressionismo raiz, por assim dizer - em especial, o da Nova objetividade berlinense, mais engajado política e socialmente -, teve por aqui a adesão, temporária, apenas de Lasar Segall e de Wilhelm Haarberg.

Há certas afirmações, no entanto, no texto de Maria Luiza, que tendem a simplificar por demais essa questão: “De imediato, alguns artistas modernistas emergentes no Brasil e com formação na Alemanha contribuíram para a produção de gravuras como estratégia de levar arte para o povo. Com gravuras apresentadas em importantes exposições modernistas e/ou reproduzidas em periódicos da esquerda militante, este grupo deixou marcas na arte de protesto veiculada no Brasil e no exterior”. Porém, se de fato essa afirmação faz sentido para uma determinada fase da obra de Lasar Segall ou de Lívio Abramo, ou mesmo para a obra inicial de Renina Katz, não se pode generalizá-la para todos os artistas citados em sua pesquisa. Por exemplo, as gravuras de Anita Malfatti (que teve parte de sua formação na Alemanha, como referido) presentes nas suas exposições individuais de 1917, 1921 e 1922 não podem ser enquadradas nessa classificação; nunca tiveram intenção alguma de se insurgirem contra o sistema ou de serem vistas como imagens de combate social.

O tipo de militância ao qual a autora se refere é com razão mais perceptível nas produções, diversas, dos artistas brasileiros, ou de artistas estrangeiros vivendo no Brasil, trabalhando durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), muitos dos quais foram filiados ao Partido Comunista. Algumas associações aproximando artistas e ideologias antifascistas foram formadas nessa época, como o CAM (Clube dos Artistas Modernos), no qual Mário Pedrosa fez a sua famosa conferência sobre a obra de Käthe Kollwitz, em 1933. A partir da década de 1940, sobretudo impactado pelo Manifesto por uma arte revolucionária, de Diego Rivera e André Breton, Pedrosa ratificará a sua tese fundamental, de que a arte sempre deva ser produzida sob “a mais plena e absoluta liberdade de expressão pelo seu potencial libertário e revolucionário em si”. A manifestação de revolta e de contestação política não dependeria estritamente da figuração de temas socialistas, mas estaria presente na libertação das forças criativas per se, tese que abriu caminho para a implantação e para a defesa da arte abstrata no Brasil.

De outra sorte, os artesãos ou panfletários associativistas, segundo a autora, eram pessoas provenientes de classes mais humildes; eram autodidatas ou possuíam apenas uma formação técnico profissional. Provinham dos Liceus de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e de São Paulo, não pertenciam a qualquer vanguarda artística e, no mais das vezes, auxiliavam os seus partidos ou associações produzindo panfletos modestos, sem requinte algum e de maneira clandestina, que circulavam “fora do círculo dos artistas modernos”. Associações como a UTG (União dos Trabalhadores Gráficos) ou a Frente Operária de São Paulo, entre outras, foram policiadas pelo aparato censor do Estado, tendo os seus impressos recolhidos e pautados como mensagens subversivas. Maria Luiza os ordena por categorias, divisando aqueles impressos que também eram feitos como propaganda de afirmação positivada dos valores do Estado. Procede, por fim, à análise de alguns daqueles panfletos considerados subversivos, elencando o conteúdo em primeiro lugar e, depois, a “razão da apreensão”. Juntos, a descrição do conteúdo e a justificativa por ter sido retirado de circulação respondem àquela necessidade de construção de evidências, como a declarar que ao Estado caberia o monopólio da razão, usada para produzir as provas necessárias à acusação, ao julgamento e à condenação.

O livro perfaz, desse modo, a dupla via da estratégia de saneamento ou de higienização levada a cabo pelo regime totalitário, operando simultaneamente a serviço da propaganda que reafirmava os valores familiares, morais e patrióticos e censurava qualquer tipo de mensagem que pudesse inocular o vírus da desconfiança em relação ao discurso oficial.

Segundo Maria Luíza, depois de um período no qual os protestos se ampliaram, contribuindo também “para o aumento das condenações populares ao segundo governo Vargas (1951-1954)”, houve um recuo tanto de artistas vanguardistas quanto de artesãos panfletários, “fragilizados com o suicídio de Vargas, ato que recuperou a popularidade do ex-presidente e facilitou as estratégias que culminaram com o golpe militar em 31 de março de 1964”.

Por isso, entre outras tantas razões, a leitura deste livro torna-se fundamental para o momento no qual vivemos. Simbolicamente, ele se inicia com o afastamento de uma presidente legitimamente eleita e culmina no atentado à facada, de 2018, como o ato farsesco inicial da escalada de autoritarismo e de violências civis perpetradas em nosso país atualmente, em nome de um grupo de militares ressentidos, de famílias de classe média que consumiram além da conta a propaganda oficial da ditadura militar em seu imaginário pouco exercitado, além, é claro, de uma família em especial, de agafanhadores de salários da República.

Referências bibliográficas

  • BENJAMIN, Walter. (1936), A obra de arte na época da sua reprodução técnica. Tradução da primeira versão francesa abreviada de Pierre Klossowski em Zeitschrift für Sozialforschung V, Paris - Cahier n. 1, Lib. Alcan. Retomado nas Œuvres choisies, 1959, tradução de Maurice de Gandillac. Texto alemão completo em Schriften I.
  • BRETON, André. (2001), Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro, Ed. Nau.
  • CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. (2020), Impressos subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964. São Paulo, Intermeios/ USP/Capes/Fapesp, 2020, 212 p.
  • LOBATO, Monteiro. (20 dez. 1917), “A propósito da Exposição Malfatti” [“Paranoia ou mistificação?”]. O Estado de S. Paulo.
  • PEDROSA, Mário. (1986), Mundo, homem, arte em crise. São Paulo, Perspectiva.
  • TELES, Gilberto Mendonça. (1982), Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. Rio de Janeiro, Vozes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2021
  • Aceito
    11 Maio 2021
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