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Alexandre de Freitas Barbosa. O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida: projeto, interpretação e utopia. São Paulo, Alameda, 2021. 580 pp.

Rômulo Almeida, o anônimo ilustre da economia política brasileira

Tendo por fio da meada a trajetória do economista baiano Rômulo Almeida (1914-1988), O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida, do historiador e professor universitário Alexandre de Freitas Barbosa (IEB-USP), resgata as tensões, os dilemas, os impasses e as disputas entre os projetos de desenvolvimento econômico entre 1945 e 1964, contestando a visão simplificadora dos que consideram o período 1930-1980 (do “nacional-desenvolvimentismo” ao “milagre econômico”) como um bloco homogêneo. O livro, que não pretendeu ser um escorço biográfico ou hagiográfico de Rômulo Almeida, é antes de tudo um esforço de interpretação global do “itinerário coletivo” do “fragmento de geração” daquele servidor público. Sem simplificações, Alexandre Barbosa introduz seus leitores na construção de uma nova consciência política de transformação das estruturas subdesenvolvidas no Brasil.

Segundo Alexandre Barbosa, longe de ter sido um projeto homogêneo, uma unanimidade ou uma conversa de economistas, o “Brasil desenvolvimentista” açambarcava múltiplas esferas da vida social (a cultura, a política, a educação, a economia, a arquitetura, a medicina/saúde), era disputado por diversas forças políticas e, em seu conteúdo substantivo, veiculava diagnósticos e prognósticos de diversas tendências ideológicas. Como diz o autor, a economia ainda não estava isolada da vida social e política e os economistas eram servidores públicos que disputavam os rumos da sociedade política no espaço democrático.

Recuando à história cultural e intelectual brasileira, o historiador mergulhou nos determinantes socioculturais do “fragmento de geração” de Rômulo Almeida, cuja formação política foi produto da confluência entre a nova consciência modernista, a sensibilidade social introduzida pelo romance regionalista da década de 1930 e o desenvolvimento das ciências sociais duas décadas depois, que inaugurou um estilo de reflexão sistemático sobre os problemas brasileiros - “A cultura age como um traço unificador da visão de mundo destes novos intelectuais do econômico e do social” (p. 114). Essa dimensão cultural, a origem social comum dos companheiros de trincheira de Rômulo Almeida nas classes médias nordestinas e o reformismo nacionalista de que eles se investiram geraram um “fundo comum de problemas, métodos e propostas que fazem parte do repertório dessa geração” p. 103).

Em uma época de transformações sociais e econômicas, marcada por conflitos políticos e crises institucionais agudas, emergiram novas posições sociais no aparato estatal e entraram em cena novos atores políticos com projetos concorrentes e que disputaram os fins do processo de desenvolvimento econômico, deslocando as frações oligárquicas e clientelistas que monopolizavam os postos-chave da estrutura político-administrativa. Dessa forma, ao invés de tomar o Estado brasileiro moderno como uma construção pronta e acabada, o autor procurou jogar luz sobre o aparecimento das novas agências estatais que - não sem resistências - abriram campo de ação para as novas gerações de agentes políticos legitimados em seus conhecimentos técnicos.

Rômulo Almeida se bacharelou na Faculdade de Direito da Bahia, foi preso três vezes por sua oposição ao Estado Novo (1937-1945), e, na década de 1940, o discípulo de Euclides da Cunha foi para o Acre chefiar a Divisão de Estatística do Departamento do IBGE e, no Rio de Janeiro, se tornou técnico de administração do Departamento Administrativo do Serviço Público, o Dasp, e assessor econômico da Comissão Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC), posto estratégico a partir do qual ele tomou parte no debate entre Eugênio Gudin vs. Roberto Simonsen, um marco na formação da economia política brasileira. Nesse mesmo período, ele assumiu funções de direção no Departamento Econômico da Confederação Nacional da Indústria (CNI), onde firmou sua reputação como uma das maiores inteligências no campo do planejamento de sua geração, tornando-se pouco depois o chefe da Assessoria Econômica do segundo Vargas (1950-1954). Nesse posto estratégico, o economista baiano reuniu os “boêmios cívicos” - Jesus Soares Pereira, Cleantho de Paiva Leite, Ignácio Rangel -, “intelectuais orgânicos do Estado” com um forte “senso de missão”, com “laços de lealdade” entre si, munidos dos mesmos valores éticos e republicanos, com uma utopia compartilhada (o desenvolvimento nacional, autônomo e socialmente justo), e que se entrincheiraram no aparelho burocrático para reformar as estruturas econômicas, sociais e políticas, e liberar o país das forças do atraso e do subdesenvolvimento. Exigindo “garantias”, “autonomia relativa” e “liberdade de formulação” para viabilizar seu projeto de nação, e apoiados em suas competências técnicas, esses “burocratas-intelectuais-políticos” ocuparam postos avançados no aparato estatal, na sociedade civil e nos partidos políticos - “faziam política a partir de sua experiência técnica” -, aglutinando forças em torno de suas propostas reformistas.

Rômulo Almeida e seus colegas militantes encontraram em nichos do Estado varguista espaço para montar a base de operações de sua “conspiração assessorial” e executar seus projetos de país. No entanto, além do idealismo dessa geração, que foi ao encontro das aspirações do chefe gaúcho com uma formação positivista, cabe ressaltar que, no contexto dos novos desafios do pós-guerra, aqueles técnicos se tornaram indispensáveis num aparelho burocrático cada vez mais complexo, que diversificava e ampliava seu raio de intervenção sobre as atividades econômicas. Recém-chegados ao Rio de Janeiro e ao aparelho estatal, especializando-se em economia, também ela uma disciplina recém-chegada à universidade, aqueles intelectuais foram integrados ao bloco de sustentação política do segundo Vargas, assessorando-o jurídica e tecnicamente.

A propósito, talvez o grande personagem do livro sobre Rômulo Almeida e o “Brasil desenvolvimentista” seja Getúlio Vargas. Sem romantizações, o autor mostra que a figura paradoxal de Vargas abriu passagem às ideias encampadas pelos novos elementos reformadores e, ao mesmo tempo, minou o avanço deles na sociedade política, cabendo-lhe parcela de responsabilidade pelo fracasso do projeto de desenvolvimento nacional que ele mesmo havia apoiado.

Vale destacar, também, que Alexandre Barbosa propõe um olhar crítico sobre o mitificado governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), mostrando que muitas das iniciativas e inovações geralmente atribuídas ao “presidente bossa nova” já haviam sido formuladas pelo governo Vargas. Kubitschek teria reorientado a política de substituição de importações, que Vargas associara a uma “postura nacionalista”, ao reduzi-la a uma estratégia de política econômica. Os governos militares teriam radicalizado a associação Estado central-capital estrangeiro-setor privado nacional, abrindo ainda mais a porteira para a espoliação do país pelas multinacionais e elevando a níveis estratosféricos a desigualdade social e regional.

Alexandre Barbosa também mostra que, diferentemente da vulgata em circulação sobre o “desenvolvimentismo”, o “projeto-interpretação-utopia” daqueles “intelectuais orgânicos” não se limitava à industrialização e ao planejamento estatal como fins em si mesmos. Para aqueles “técnicos em fins” e “produtores qualificados de ideologia”, a industrialização e a ação organizada do aparato central eram instrumentos estratégicos de “uma ideia mais rica de nação” e visavam à ativação das forças produtivas, à internalização dos centros de decisão (controlar as alavancas econômicas do processo de desenvolvimento), à superação das desigualdades sociais e regionais, à inclusão das demandas populares no planejamento central - “o povo era meio e fim do projeto nacional” (p. 218) - e à transformação das relações do país com o sistema internacional.

Eleito deputado federal pelo PTB (1955-1958), secretário da Fazenda da Bahia e um funcionário graduado do governo brasileiro no exterior, Rômulo Almeida foi expurgado da cena nacional com a emergência da nova aliança política na qual se sustentou o governo Kubitschek.

Emprego a seguir uma metáfora futebolística a fim de ilustrar os dramas da trajetória bloqueada de Rômulo Almeida. Um exímio articulador constrangido a atuar nos bastidores, o baiano jamais se livrou do estigma do “quase”, que marcou sua vida política. De certo modo, o tempo da bola parecia lhe escapar - ou ele se antecipava muito ou chegava ligeiramente atrasado nos lances do tempo histórico que lhe coube viver. Por diversas vezes, ele chegou muito perto de marcar um golaço e obter o reconhecimento por suas jogadas geniais. Mas, como se lhe faltasse alguma categoria (um plus de capital político, diriam os sociólogos), outros fizeram gol em seu lugar. Rômulo Almeida foi um grande driblador e armador, e é inquestionável sua importância nos lances decisivos do “Brasil desenvolvimentista” ao lado da equipe de alto nível que ele reuniu. Entretanto, o esquecido baiano terminou como uma presença borrada (“uma nota de rodapé”, nas palavras de Alexandre Barbosa) nos estudos da história daquele período. Daí, também, uma das novidades do livro: escrever uma história do “Brasil desenvolvimentista” a partir de um intelectual ativista que participou de quase todas as jogadas bem executadas do período, mas que não levou o crédito por nenhuma delas. Arquiteto das instituições do Brasil moderno (Petrobrás, CNPq, Capes, BNB, SPVEA e Eletrobrás), ele não capitalizou politicamente as próprias iniciativas e ideias. É como se em sua vida política ele tivesse se restringido ao papel de ajeitar para que outros finalizassem. A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), por exemplo, foi o gol de Celso Furtado (1920-2004), o líder da nova posição dos “intelectuais estadistas do campo nacionalista”, que o baiano quase fez como um idealizador do planejamento regional para o Nordeste brasileiro. É possível dizer, inclusive, que, não podendo ser goleador - é o que fazem os que têm um grande capital político -, Rômulo Almeida se tornou o maior armador tático de sua geração e deu passes magistrais para seus companheiros de militância. Já Celso Furtado era seguramente o maior finalizador daquela geração, sabia como ninguém o timming da bola e era um corredor de largo fôlego. A propósito, como a trajetória de Rômulo Almeida, a história do “Brasil desenvolvimentista” também pode ser vista como um “quase”, a de um projeto nacional, soberano, inclusivo e democrático que chegou perto de se efetivar. Ficou o gostinho de gol, que não aconteceu, e esse projeto terminou se tornando utopia e a esperança de um novo recomeço.

Outra contribuição do livro é a reconstrução detalhada da trajetória do economista “mercadista” Roberto Campos (1917-2001), cujas ideias mudaram à medida que o idealizador do antigo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) perdeu posição e prestígio no governo central no final da década de 1950 para os “intelectuais estadistas”. Vale destacar que Alexandre Barbosa não fez de Campos uma caricatura, como é praxe na intelectualidade reformista e nacionalista. Ele optou por mostrar a evolução da posição teórica e política e as contradições de Campos no quadro da conjuntura política e dos diferentes governos das décadas de 1950 e 1960. Entusiasmado com as formulações histórico-estruturalistas da Cepal na primeira metade da década de 1950, Campos adotou uma postura de desconfiança com relação às propostas nacionalistas em meados daquela década e, finalmente, se tornou um crítico do modelo de desenvolvimento nacional do qual Furtado foi a grande liderança entre 1959 e 1963.

Em síntese, escrito numa linguagem fluida, acessível e agradável, O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida: projeto, interpretação e utopia é uma referência obrigatória para os estudiosos e o público leigo interessado na vida política e no pensamento sociológico e econômico brasileiro do século XX, colocando-se ao lado de outras obras fundamentais sobre o período, como Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo, de Ricardo Bielschowsky, Ideias econômicas e decisões políticas, de Lourdes Sola, e Rumos e metamorfoses: Estado e industrialização no Brasil (1930-1960), de Sônia Draibe. Longe de tecer uma trama fria e neutra sobre o “Brasil desenvolvimentista”, num momento de profunda crise política, econômica, social e ética, o livro de Alexandre Barbosa desafia a intelectualidade brasileira a romper o cerco ideológico em que se encontra a sociedade brasileira e atualizar a “Utopia Brasil” (Ribeiro, 2008RIBEIRO, Darcy. Utopia Brasil. São Paulo, Hedra, 2008.) da geração de Rômulo Almeida e Celso Furtado, renovando-a no confronto criativo e crítico com as novas lutas e movimentos sociais.

Referências Bibliográficas

  • BARBOSA, Alexandre de Freitas. O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida: projeto, interpretação e utopia São Paulo, Alameda, 2021.
  • BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo Rio de Janeiro, Contraponto, 1988.
  • DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses. Estado e industrialização no Brasil (1930-1960) São Paulo, Paz e Terra, 2004.
  • RIBEIRO, Darcy. Utopia Brasil São Paulo, Hedra, 2008.
  • SOLA, Lourdes. Ideias econômicas, decisões políticas: desenvolvimento, estabilidade e populismo São Paulo, Edusp, 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2022
  • Aceito
    11 Mar 2022
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