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Desenvolvimento tecnológico, padronização de comportamentos no trabalho e exclusão social

Technological development, behavior standardization at work and social exclusion

Resumos

A dinâmica organizacional na atualidade é marcada pela competitividade exacerbada e a padronização de condutas, fenômenos que se observam em todo mundo e que trazem consequências bastante contundentes para países em desenvolvimento, intensificando mecanismos de exclusão social, de intolerância em relação às diferenças individuais e dificuldades em manter e promover a saúde nos ambientes de trabalho. Quanto ao trabalho e às expectativas de atuação do trabalhador, ocorre uma intensificação dos fenômenos de exclusão do trabalho e no trabalho, à medida que esses trabalhadores passam a fazer parte da categoria "estranhos" ou "estrangeiros", a partir dos atributos "desempregados" ou "desqualificados" ou, ainda, "desadaptados". Este artigo tem por objetivo trazer algumas reflexões sobre o processo de exclusão social no trabalho e pelo trabalho, considerando sua relação com o processo de desenvolvimento tecnológico. As discussões serão desenvolvidas sob a forma de ensaio teórico a partir de textos de Benjamin e Simmel, que tratam do "estrangeiro", e de ideias desenvolvidas por Mumford e Marcuse acerca do desenvolvimento tecnológico. Além disso, buscamos estabelecer uma análise acerca da maneira como os psicólogos que trabalham em organizações podem se apresentar no sistema produtivo: incrementando as formas de controle social ou atuando na promoção da saúde nos ambientes de trabalho, distanciando-se de uma prática profissional visando a excessiva padronização e nivelamento de comportamentos.

Desenvolvimento Tecnológico; Comportamento no trabalho; Exclusão social; Psicologia no trabalho


Current organizational dynamic is marked by excessive competition and the establishment of standard of conducts, which can be observed everywhere in the world, and that bring strong consequences to developing countries, intensifying the mechanisms of social exclusion, of intolerance to individual differences and making it hard to keep and promote health in the working environment. Concerning work and the worker's expectations, there is an intensification of the social exclusion at work and by work, as the employees become part of a category "strangers" or "foreigners" as of the classification "unemployed" or "disqualified", or even "not adjusted". The present article aims at bringing some reflections on the process of social exclusion at and by work, considering its relation with the technological development process. Discussions will be conducted as theoretical essays from texts by Benjamin and Simmel, who deal with the "foreigner" and with the ideas developed by Mumford and Marcuse about the technological development. Additionally we tried to establish an analysis on how psychologists working in organizations can be seen in a productive system: developing ways of social control or promoting health in the working environment, keeping themselves away from the practice of excessive standardization and leveling of behavior.

Technological Development; Behavior at Work; Social Exclusion; Psychology at work


ARTIGOS

Denise Alves Guimarães

Mestre em Psicologia. Doutoranda em Psicologia Social pela PUC-SP. Professora Titular da Fundação Educacional de Divinópolis da Universidade do Estado de Minas Gerais. Endereço: Rua Itapecerica, 648, apto. 301, Centro, CEP 36500-018, Divinópolis, MG, Brasil.E-mail:guiclara@bol.com.br

RESUMO

A dinâmica organizacional na atualidade é marcada pela competitividade exacerbada e a padronização de condutas, fenômenos que se observam em todo mundo e que trazem consequências bastante contundentes para países em desenvolvimento, intensificando mecanismos de exclusão social, de intolerância em relação às diferenças individuais e dificuldades em manter e promover a saúde nos ambientes de trabalho. Quanto ao trabalho e às expectativas de atuação do trabalhador, ocorre uma intensificação dos fenômenos de exclusão do trabalho e no trabalho, à medida que esses trabalhadores passam a fazer parte da categoria "estranhos" ou "estrangeiros", a partir dos atributos "desempregados" ou "desqualificados" ou, ainda, "desadaptados". Este artigo tem por objetivo trazer algumas reflexões sobre o processo de exclusão social no trabalho e pelo trabalho, considerando sua relação com o processo de desenvolvimento tecnológico. As discussões serão desenvolvidas sob a forma de ensaio teórico a partir de textos de Benjamin e Simmel, que tratam do "estrangeiro", e de ideias desenvolvidas por Mumford e Marcuse acerca do desenvolvimento tecnológico. Além disso, buscamos estabelecer uma análise acerca da maneira como os psicólogos que trabalham em organizações podem se apresentar no sistema produtivo: incrementando as formas de controle social ou atuando na promoção da saúde nos ambientes de trabalho, distanciando-se de uma prática profissional visando a excessiva padronização e nivelamento de comportamentos.

Palavras-chave: Desenvolvimento Tecnológico; Comportamento no trabalho; Exclusão social; Psicologia no trabalho.

ABSTRACT

Current organizational dynamic is marked by excessive competition and the establishment of standard of conducts, which can be observed everywhere in the world, and that bring strong consequences to developing countries, intensifying the mechanisms of social exclusion, of intolerance to individual differences and making it hard to keep and promote health in the working environment. Concerning work and the worker's expectations, there is an intensification of the social exclusion at work and by work, as the employees become part of a category "strangers" or "foreigners" as of the classification "unemployed" or "disqualified", or even "not adjusted". The present article aims at bringing some reflections on the process of social exclusion at and by work, considering its relation with the technological development process. Discussions will be conducted as theoretical essays from texts by Benjamin and Simmel, who deal with the "foreigner" and with the ideas developed by Mumford and Marcuse about the technological development. Additionally we tried to establish an analysis on how psychologists working in organizations can be seen in a productive system: developing ways of social control or promoting health in the working environment, keeping themselves away from the practice of excessive standardization and leveling of behavior.

Keywords: Technological Development; Behavior at Work; Social Exclusion; Psychology at work.

Introdução

Este texto pretende apresentar algumas reflexões sobre o processo de exclusão social no trabalho e pelo trabalho, buscando perceber quem são os indivíduos ou grupos que atualmente fazem parte da categoria "estranhos" ou "estrangeiros", considerando, para isso, o processo de desenvolvimento tecnológico de nossos tempos.

A relevância do tema para as discussões multidisciplinares, imprescindíveis para pensarmos as relações entre saúde e sociedade, deve ser enfatizada, uma vez que os autores escolhidos promovem uma discussão sobre as novas formas de percepção do mundo e das relações que os seres humanos passaram a estabelecer entre si a partir de avanços técnicos. Além disso, o tema possibilita a análise do caráter regressivo dos avanços técnicos uma vez que a realidade atual mostra a relação patente entre destruição e técnica1 1 Neste artigo os conceitos de técnica e tecnologia são apresentados considerando a abordagem de Munford (1982), que trata do complexo tecnológico como o conjunto de diferentes instrumentos técnicos e de Marcuse (1999), que estabelece alguns avanços em relação ao autor mencionado. Vale ressaltar que a conceituação de tecnologia de Marcuse (1999) avança ao ser apresentada como ideologia de controle e dominação do homem sobre si mesmo, sobre outros homens e sobre a natureza. , colocada em evidência não só pelos meios técnicos de destruição utilizados nas guerras como também pelo controle da força de trabalho e o parcelamento das tarefas realizadas pelo trabalhador. Esse tema exige esforço dos profissionais de saúde, especialmente dos de psicologia, em investigar quais seriam as consequências advindas das questões anteriormente mencionadas no processo de socialização, com destaque para aspectos que dizem respeito às intolerâncias em relação às diferenças individuais e a tendência em estabelecer padrões de comportamento que nivelem os seres humanos em diferentes aspectos da vida.

Quem seriam os "novos estrangeiros?" Aqueles que vêm de um outro lugar ou aqueles que percebem e pensam de uma outra forma? Pensar a condição de "estrangeiro" é pensar no que essa figura traz de diferente em termos da percepção; portanto, traz uma possibilidade de pensar a diferença não só em termos de espaço e tempo, mas também de dimensão psicológica. É a possibilidade de pensar em tudo aquilo que a diferença suscita e as reações que ela provoca e por que esses fatos têm importância no dia-a-dia.

Simmel (1976) falava na resistência que os indivíduos estabelecem em relação ao nivelamento e à uniformização impostos pelo mecanismo sociotecnológico; reflexões de uma atualidade impressionante em tempos de crescente avanço técnico e padronização de comportamentos. Não poderíamos deixar de estabelecer a articulação entre esses temas e as discussões feitas por Mumford e Marcuse sobre os desenvolvimentos tecnológicos, bem como sua relevância para examinarmos a maneira como a Psicologia vem se colocando no sistema produtivo. Se considerarmos, principalmente, a aplicação da Psicologia nas organizações, vale perguntar que papel essa área de conhecimento vem assumindo em tempos de excessiva padronização de comportamentos no trabalho e quais as possibilidades de ela atuar visando à saúde do trabalhador.

A competitividade exacerbada e a excessiva busca por nivelamento, uniformização e padronização nos ambientes de trabalho intensificam os mecanismos de exclusão social e de intolerância em relação às diferenças individuais. Toda a massa de excluídos, elevados à categoria de "estranhos" pelos atributos de "desempregados" ou "desqualificados" ou, ainda, de "desadaptados para o trabalho", ou seja, aqueles que não estão nivelados e uniformizados poderiam compor mais uma categoria de estrangeiros. No entanto, não podemos deixar de pensar que mesmo para aqueles que estão inseridos no trabalho os padrões de comportamento estabelecidos como adequados e desejáveis acabam provocando um progressivo isolamento. Nessa medida, os indivíduos autômatos, portanto, destituídos de autonomia e crítica, seriam estranhos a si mesmos e a outros indivíduos dentro do grupo de trabalho. As formas de resistências individuais ou coletivas ao trabalho padronizado acabam criando também situações em que apareçam "estrangeiros" ou "estranhos".

A história tem nos mostrado inúmeros episódios de agressividade e rejeição ao estrangeiro. Por isso não podemos deixar de refletir sobre as formas de intolerância vinculadas a todos aqueles que apresentam algum tipo de diferença ou divergência em relação aos padrões de comportamento que nivelam os seres humanos numa estrutura produtiva com relação a todas as formas de não adaptação ao trabalho. Como ficam as ações do profissional de Psicologia no contexto organizacional? Contribui para a manutenção da estrutura social que tende a crescente padronização e adaptação às exigências do sistema produtivo ou se compromete com a busca de formas de viabilizar o desenvolvimento e bem-estar dos indivíduos? De que maneira esses profissionais têm utilizado as diferentes técnicas psicológicas nos ambientes organizacionais? Nas atividades de seleção para o trabalho, é possível fazer outra coisa sem se detectar as inaptidões, tendências à inadaptação e aos comportamentos indesejáveis para a dinâmica organizacional? É possível detectar o potencial que os candidatos têm de se adaptar e se sujeitar às exigências de uniformização e submissão? Nas atividades de qualificação para o trabalho, tem sido feito outra coisa além de se reproduzir a cartilha da uniformização e submissão aos interesses do sistema produtivo como única possibilidade de formação do homem? Enfim, quando se emprega conhecimentos psicológicos na detecção de características individuais, qual a responsabilidade em relação ao processo de exclusão do trabalho e no trabalho? Como área de conhecimento, qual tem sido a contribuição da Psicologia e suas responsabilidades em evidenciar os "estranhos" ou "estrangeiros" em relação ao padrão de indivíduos que possam se vincular a um emprego?

O Ritmo das Metrópoles de Georg Simmel

Por certo a escolha de Simmel (1976) em falar sobre o ritmo de vida na metrópole e suas repercussões sobre a vida mental refletiam a necessidade de pensar as transformações que os avanços técnicos já produziam, àquela época, no cotidiano dos indivíduos e na sua organização da percepção e do pensamento. A metrópole, em grau bem mais elevado do que as pequenas cidades, já se apresentava como expoente em termos de concentração de técnicas, mudanças de ritmos e percepções e isolamento dos indivíduos.

A influência da técnica na metrópole é abordada pelo autor ao mencionar fenômenos produzidos no cotidiano a partir da mais alta divisão do trabalho. Àquela época, as cidades já possuíam a capacidade de absorver uma variedade altamente diversificada de serviços. Ao mesmo tempo em que a cidade lutava por consumidores, compelia os indivíduos a também lutar por uma crescente especialização para que não fossem substituídos por outros. Na cidade, a luta com a natureza pela vida tornou-se a luta entre os homens pelo lucro e o circuito do consumo impelia à busca de novos produtos e novos clientes.

Simmel (1976) analisa que o século XVIII conclamou o homem a uma ideia de maior liberdade em relação a instituições como o Estado, religião, a moral e a economia, ao mesmo tempo em que a especialização funcional do homem e seu trabalho produziram, de forma concreta, uma maior dependência dele em relação às atividades de outros. Buscando, então, a preservação da autonomia e individualidade as pessoas buscariam resistir ao nivelamento e à padronização advindos do mecanismo sociotecnológico. Diante disso o autor investiga a maneira "como a personalidade se acomoda nos ajustamentos às forças externas" (Simmel, 1976, p. 14), procedendo, então, a uma análise da vida na metrópole.

Simmel (1976) parte do princípio de que a vida na metrópole estaria caracterizada por uma intensificação de estímulos, que se traduziriam em uma descontinuidade nas impressões e no inesperado de impressões súbitas. No que se refere à base psicológica, o autor destaca que o tipo de vida da metrópole levaria ao desenvolvimento de reações e relações mais intelectuais, uma vez que o intelecto seria a camada mais alta do psiquismo, mais adaptável e que mais facilmente se acomodaria à mudança e ao contraste dos fenômenos.

Assim, as novas formas de perceber e lidar com o mundo levariam ao domínio do intelecto e estabeleceriam como ponto comum com o dinheiro, a indiferença com toda a individualidade genuína. As reações intelectualizadas, tanto quanto as relações de equivalência com o dinheiro reduziriam toda qualidade e individualidade em aspectos quantitativos, ou seja, de caráter mensuráveis. Assim, a relação que o homem da metrópole estabelece com outros homens assume um caráter de negociação. Do ponto de vista psicológico, a metrópole estruturaria homens genéricos, anônimos e calculistas e que nas formas de organização do cotidiano, se mostrariam como indivíduos guiados pela mais alta impessoalidade e um individualismo exacerbado.

Segundo Simmel (1976), a reserva assume a forma de socialização do indivíduo metropolitano e essa reserva se apresentava como comportamento de natureza social negativo, impedindo contatos e mostrando frieza nos relacionamentos. Na verdade, o aspecto interior da reserva aparece não só como indiferença, mas como aversão, estranheza, e repulsão mútuas, que resultarão em ódio e luta nos momentos em que os contatos forem mais próximos.

Em relação às discussões sobre os fenômenos de vizinhança ou estranhamento, Simmel (1968) desenvolveu a ideia de que o limite seria a função sociológica que levaria consigo uma ação recíproca em que cada um dos elementos atuaria sobre o outro limitando as ações de um sobre o outro. Esse conceito geral de mútuo limite mostraria que o que se limita mutuamente não são os países ou as terras e sim os habitantes e proprietários que exercem a ação mútua de limitar.

Percebemos, assim, que a ação de limitar define não só padrões de comportamento, atitudes e valores próprios de um grupo ou modo de existência, como também quem são os estrangeiros, os não-pertencentes ao padrão, atitudes e comportamentos definidos. O limite define, além do pertencimento ou exclusão, as relações e os sentimentos possíveis no contato com tudo e todos que se apresentam como diferentes e que poderiam reavivar os limites, ao mesmo tempo em que poderiam representar uma ameaça aos sentimentos de coesão, pertencimento e identidade assegurados pela noção de interioridade.

Simmel (1976) conclui que se, por um lado, o homem metropolitano poderia ser considerado mais livre dos preconceitos que envolviam os homens de pequenas cidades, por outro, ele estaria preso à solidão metropolitana. Para o autor, a liberdade do homem metropolitano apareceria como desconforto, solidão, e expressaria-se pela reserva, indiferença recíproca, vida intelectualizada, proximidade física e estreiteza de espaço, que tornariam a distância mental mais visível.

Assim, pretendemos examinar a categoria de "estranhos" ou "estrangeiros" considerando que ela está relacionada ao indivíduo isolado de si mesmo e dos outros. O "estranho" seria, pois, o indivíduo reservado, indiferente, acrítico e destituído de autonomia, que se desenvolveu juntamente com o avanço tecnológico.

A Impossibilidade da Transmissão de Experiências para Walter Benjamin

Benjamin, que fora bastante influenciado por Simmel, faz uma análise da importância da transmissão de experiências que ocorria no cotidiano dos homens através de histórias, narrativas, relato de pessoas mais velhas e provérbios, para em seguida questionar o que aconteceu com esse processo de transmissão.

Na verdade, para Benjamin (1994a) não são as experiências que estão em baixa e sim a possibilidade de transmiti-las que se apresentam empobrecidas ou que são radicalmente desmoralizantes, como é o caso das experiências vividas na Primeira Guerra Mundial. O autor chama atenção para uma série de problemas da sociedade em função do que ele denominou de "monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem" (Benjamin, 1994a, p. 115).

Para o autor, esse parece ser o marco em relação à transmissibilidade da experiência humana a partir do poder destrutivo da técnica. Os motivos que impossibilitam a transmissão da experiência estão circunscritos ao fato de que "... nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes" (Benjamin, 1994a, p. 115).

Benjamin (1994a) diz haver uma dissociação entre patrimônio cultural e experiência humana e que o empobrecimento pertence à humanidade, fazendo surgir uma nova barbárie. A barbárie vai representar a falta de vinculação com a tradição e com a experiência, constituindo-se como marca característica do homem contemporâneo. Para o autor, a pobreza em que vivemos se traduz pelo abandono da tradição, da história e da memória para viver o atual, o momento. Essa falta de vinculação é o que nos torna cada vez mais bárbaros.

As observações de Benjamin intensificam ainda mais o que Simmel percebeu em relação às dificuldades do indivíduo em preservar sua autonomia e individualidade, uma vez que ele se encontra desvinculado de tradição, memória e história. Preservar autonomia e individualidade passa necessariamente por um processo de reconhecimento da alteridade para definir limites que criem o significado de interioridades e exterioridades. Um indivíduo solitário, sem história, memória ou tradição, dificilmente conseguirá estabelecer essas diferenciações, cedendo facilmente ao processo de nivelamento e uniformização, impostos pela técnica.

O Desenvolvimento Tecnológico para Mumford e Marcuse

Não podemos compreender as transformações na relação do ser humano com a natureza e dele com outros seres humanos, bem como as transformações do ritmo de vida, da percepção e da transmissão de experiências antes de compreender as relações recíprocas que cada um desses elementos estabelece com o desenvolvimento técnico.

Mumford (1982) alerta para o fato de que tanto os triunfos técnicos do complexo tecnológico2 2 Mumford compreende o complexo tecnológico (la máquina) como o conjunto de conhecimentos, as perícias e artes derivadas da indústria e que se estendem a outros aspectos da vida, cita várias formas de ferramentas, instrumentos, aparatos, obras e máquinas. Para o autor, no complexo tecnológico o homem que trabalha e o conjunto dos mais diferentes instrumentos técnicos não podem ser separados. A técnica apresenta-se como procedimento que pode conter instrumentos que possuem diferenças em relação ao grau de especialização ou de impessoalidade que exigem. quanto os desperdícios, suas perdas, seus insucessos e retrocessos são indissociáveis dos valores, desejos, costumes, ideias e escolhas da humanidade. Ressalta que a técnica e a civilização em conjunto são os resultados de eleições, atitudes, e esforços que podem ser pensados ou inconscientes, de aparência irracional ou pautados em objetivos científicos, mas que nascem no interior da sociedade e não se apresentam como forças externas. Para ele, por mais que a técnica repouse em procedimentos objetivos das ciências, só pode ser compreendida como elemento da cultura que promove o bem ou o mal, de acordo com as definições de bem e de mal dos grupos que exploram a cultura. Além do mais, ressalta que as mais importantes repercussões que o aparato tecnológico tem provocado referem-se aos produtos sociais e culturais dele derivados. Assim, a técnica é compreendida como elemento da cultura humana em conjunto. A técnica não é um sistema independente, uma vez que "La máquina misma non tiene exigencias ni fines: es el espíritu humano el que tiene exigencias y establece las finalidades" (Mumford, 1982 p. 24).

O autor destaca o papel dominante desempenhado pela técnica na civilização moderna, na qual a mecanização e a arregimentação passaram a dominar cada aspecto de nossa existência. Ele constata que na sociedade Ocidental não é o complexo tecnológico que se adapta às necessidades humanas; pelo contrário, adaptamos todos os aspectos de nossa vida ao complexo tecnológico. Assim, ao estudar a história do desenvolvimento das técnicas, o autor demonstra que a busca do homem por ordem e regularidade, bem como a necessidade de controlar, explorar e dominar a natureza, convertem-se no controle, na exploração e no domínio dos homens sobre outros homens.

Mumford (1982) considera a influência contundente do capitalismo ao formar a mente do homem para compreender as quantidades em detrimento de todas as outras coisas. Em termos de percepção, ocorre uma primazia das quantidades sobre as qualidades e "desgraçadamente" o complexo tecnológico foi condicionado, desde o início de seu desenvolvimento, às instituições capitalistas.

O autor chama atenção para o fato de que o desenvolvimento capitalista ocorreu a partir de uma progressiva desvalorização da vida, do orgânico, do corpo, da experiência, da história e do bem-estar da humanidade como um objetivo coletivo a ser alcançado e de um processo de mecanização dos hábitos humanos a partir do controle, disciplina e submissão.

O avanço acrítico do complexo tecnológico provoca uma redução da vida ao trabalho, à disciplina do trabalho e ao que Mumford (1982) chama de "evangelho do trabalho". O complexo tecnológico, em vez de salvar o homem das formas indignas do trabalho, intensificou as formas de exploração e degradação dos trabalhadores.

A degradação do trabalhador intensifica-se à medida que ocorre a divisão do trabalho e a especialização da tarefa. O homem passa a ser um homem dividido em uma tarefa dividida, perde habilidades, autonomia e liberdade e passa a competir com a máquina, agir como a máquina ou submeter-se a ela. No entanto, não podemos esquecer que se a vida foi reduzida ao trabalho, mesmo sendo um trabalho degradante, incessante e concentrado, ele passa a representar a única forma de existência e de sobrevivência. Assim, estar fora do "evangelho do trabalho" representa não só um risco à sobrevivência como também a existência dos desempregados, desadaptados ao trabalho e desqualificados cria um estranhamento em relação à própria disciplina do trabalho e à condição de trabalhador. O "evangelho do trabalho", como forma prioritária de existência, demonstra o fracasso social para outras formas de socialização como a arte, o jogo, o ócio ou outras formas de desenvolvimento humano e valorização da vida.

Mumford (1982) ressalta que a visão desenvolvida acerca da mão-de-obra é que ela representa um recurso a ser explorado, aproveitado, esgotado e descartado. O trabalho aparece como fator de exclusão social e de isolamento do indivíduo, tanto para os que são considerados aptos para o trabalho quanto para os considerados inaptos, ou seja, tanto para trabalhadores quanto para os "amos". O trabalho passa a representar possibilidade de sobrevivência e existência circunscrita ao aprisionamento em operações parciais no processo de trabalho, às situações de miséria e submissão, à perda de autonomia, às enfermidades, aos riscos, aos excesso de esforço físico e aos acidentes de trabalho.

As análises de Marcuse (1999) sobre técnica e tecnologia moderna apoiam-se nas discussões de Mumford (1982) e avançam no sentido de perceber como elas produzem novas formas de controle social e como a tecnologia apresenta-se como forma de totalitarismo.

Na visão de Marcuse (1999), a tecnologia é um processo social no qual a técnica (aparato técnico da indústria, dos transportes e da comunicação) é um fator parcial e que "por si só pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo" (Marcuse, 1999 p. 74). Os indivíduos são também parte integral e fator da tecnologia, não só como inventores ou operadores das máquinas, mas como grupos sociais que direcionam sua aplicação e utilização. Como processo social a tecnologia é, ao mesmo tempo, modo de produção, totalidade dos instrumentos, dispositivos e inovações que caracterizam a era da máquina, instrumento de controle e dominação, forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais e manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes. A manipulação do poder aparece como um fator inerente à tecnologia.

Segundo o autor, ao longo do desenvolvimento tecnológico e sua ampla disseminação na sociedade, surge uma nova racionalidade, a racionalidade tecnológica, e novos padrões de individualidade. Se antes os padrões e valores vinculados aos indivíduos relacionavam-se à liberdade do pensamento e ao desenvolvimento das faculdades e habilidades do homem guiado e controlado pelo pensamento autônomo, atualmente, o princípio do individualismo coloca o indivíduo contra a sociedade, submetido à lógica da produção e consumo em massa, destituído de autonomia e isolado. De acordo com Marcuse (1999), a racionalidade tecnológica e a ideologia que lhe dá sustentação organizam a realidade contemporânea e representam um conjunto de transformações sociais e o estabelecimento de padrões de vida, modos de agir, de pensar e de se comportar.

Assim, o processo de produção de mercadorias opera transformações profundas a partir da mecanização, da racionalização e do princípio da eficiência competitiva. Sob o impacto do aparato3 3 Nesse caso, a referência é ao aparato técnico-social que se coloca a serviço do desenvolvimento econômico capitalista e exige cada vez mais submissão à crescente dominação e administração totais. Representa o conjunto das instituições, dispositivos e organizações da dinâmica industrial em situação social dominante e que estabelece o controle e padronização sociais. , a racionalidade individualista transforma-se em racionalidade tecnológica, que passa a representar o modo difundido de pensamento, que estabelece padrões de julgamento e fomenta atitudes que predispõem os homens a aceitar e introjetar os ditames do sistema produtivo.

Marcuse (1999) discute também as contradições da era do complexo tecnológico, uma vez que não é o homem que faz uso da máquina em seu trabalho; ao contrário, seu trabalho surge para suplementar o processo da máquina. Além disso, as necessidades convertem-se em necessidades de manter o aparato. Nessa medida, ser bem-sucedido é adaptar-se ao aparato, ou seja, submeter-se à lógica do sistema produtor de necessidades de consumo.

O Estrangeiro para Georg Simmel

Para Simmel (1968), o caráter sociológico do estrangeiro compreenderia uma vinculação espacial específica. O estrangeiro seria o emigrante por natureza, aquele que vem e se fixa, não por completo, mas dentro de determinado círculo, trazendo qualidades que são exteriores a esse círculo. O estrangeiro atualizaria a união entre proximidade e distanciamento presentes em todas as relações humanas: a distância existente na relação com o estrangeiro significa que o próximo está distante e que o distante está próximo. Assim como os pobres, o estrangeiro faria parte do que o autor chamou de "inimigos internos", pois, se de um lado, têm uma posição no grupo, por outro, estão fora dele, ameaçando a estabilidade do grupo e mostrando que o grupo poderia ser outro.

Simmel destaca que a objetividade do estrangeiro seria uma virtude e trataria-se não de indiferença ou falta de interesse, mas do caráter imparcial nas relações. Como o estrangeiro não estaria vinculado ao grupo por relações orgânicas, acabaria se afastando dos interesses e, por isso, teria condição de ser mais justo. Essa atitude objetiva constituiria também uma mescla de proximidade e distanciamento e poderia ser compreendida como a liberdade de perceber, compreender e avaliar os objetos.

Para Simmel (1968), o estrangeiro seria próximo do ponto de vista humano (geral) e afastado em relação a outras qualidades e diferenças individuais (particular). Essa situação seria produtora de tensão, uma vez que ter em comum apenas o geral, ou seja, a condição humana faria com que as diferenças se acentuassem.

Considerando a relação entre o grego e o "bárbaro" e todas as outras situações que, como essa, negam ao outro as qualidades propriamente humanas, Simmel (1968) chamou atenção para a impossibilidade de estabelecer com esses outros uma relação, mesmo que de distanciamento. O autor anuncia que o que teríamos com esse outro seria uma não-relação na medida em que ao estrangeiro estaria negada a condição de indivíduo com qualidades comuns à humanidade.

O Distanciamento e Proximidade para Walter Benjamin

Em 1933, Benjamin analisa a tradição como um elemento que aproxima e também distancia os indivíduos. No texto "O narrador", ele aborda questões que Simmel já havia apontado em relação àquele que tem um distanciamento espacial e temporal e aponta o narrador como a pessoa que conta tanto as experiências próprias quanto as de outros com os quais teve contato, mas, em ambos os casos, experiências que representam um sentido para a vida. Não há história sem um narrador e não há conhecimento sem certo distanciamento. O conhecimento, portanto, surge também da relação de proximidade e distância.

O caráter perturbador do estrangeiro associa-se à relação de distanciamento que ele possui com os objetos, as pessoas e as situações, permitindo-lhe um olhar mais justo. Simmel já falava dessa questão em 1902, ao evocar a positividade da posição objetiva do estrangeiro. Além disso, o distanciamento que favorece o aparecimento de um novo olhar e, portanto, um novo conhecimento, que não apareceria na situação de proximidade, não deixa de representar uma ameaça no sentido de algo que abale a segurança ou a identidade de determinado indivíduo ou grupo.

Benjamin (1994b) associa a extinção da arte de contar histórias, da narrativa e da transmissibilidade de experiências com o avanço técnico, a partir da prevalência de conteúdos que não repassem experiências que façam sentido para a existência humana. Nesta medida, podemos compreender o estrangeiro como o que teria conhecimentos sobre outras formas de existência que poderiam suscitar, no ouvinte, tanto aspectos positivos quanto negativos diante da novidade.

O Estranho para Sigmund Freud

Anterior às contribuições de Benjamin e buscando uma dimensão psicológica para a análise do fenômeno, Freud escreve em 1919 um texto intitulado em alemão "Das Unheimliche", que se refere ao que não é familiar (Freud, 1976).

Dos vários significados pesquisados, Freud chama atenção para o fato de que o estranho se relaciona àquilo que seria assustador, provocaria medo e horror, mas que remete, ao mesmo tempo, ao que é conhecido pelo sujeito e é, portanto, familiar. Para isso, demonstra que os significados mais importantes da palavra heimlich denotariam sua ambiguidade e não sua contradição. Heimlich significaria familiar, agradável, mas também aquilo que se mantem oculto e fora da vista, aquilo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas se desvela.

Examinando as conexões entre sentidos ambivalentes, o autor percebe que heimlich assume a conotação de algo inacessível ao conhecimento, afastado do conhecimento ou inconsciente. A noção de algo oculto que deveria ficar afastado do conhecimento assume portanto, o caráter de algo que é também perigoso e que, por isso, pode se expressar a ponto de que heimlich assuma o significado de unheimlich, ou seja, heimlich seria uma palavra cujo significado se desenvolveria na direção da ambivalência, até que finalmente coincidiria com o seu oposto, unheimlich, ou seja, vai do sentido de estranhamento suscitado por algo que é secretamente familiar até assumir a conotação do não familiar, daquilo que é rude, do estranho.

Os Desenvolvimentos Tecnológicos e o Isolamento do Indivíduo em Mumford e Marcuse

Em relação ao desenvolvimento do complexo tecnológico e às características assumidas por cada uma das fases que o caracteriza, Mumford (1982) observa que o processo social caminhou lado a lado com a nova ideologia de mecanização, disciplina do corpo para o trabalho, submissão e o controle do homem sobre outros homens, ou seja, não se pode associar os avanços técnicos ao desenvolvimento humano, uma vez que o desenvolvimento do complexo tecnológico volta-se ao seu próprio engrandecimento e aparece dissociado da realização humana.

Na história do desenvolvimento do complexo tecnológico, o período marcado pelo crescimento desordenado do sistema industrial é analisado pelo autor como um processo de quantificação da vida e, do ponto de vista social, o que ele chamou de "salto para a barbárie", caminho que mesmo assim foi considerado um desenvolvimento benéfico e humano.

Segundo Mumford (1982), nesse período, observa-se a intensa degradação do trabalhador, que se traduz nas expectativas sobre seu desempenho, esperando que ele se adapte às exigências do trabalho industrial: ritmo frenético, rígida disciplina e espantosa monotonia das tarefas. Além disso, Mumford (1982) fala da existência de três requisitos para a adaptação do homem à disciplina industrial: o primeiro, implica na castração de sua perícia, ou seja, sua especialização e aprisionamento em operações parciais no processo de trabalho; o segundo, é a disciplina e a miséria como forma de domínio e submissão pela perda da autonomia; e o terceiro, o impedimento a toda ocupação alternativa mediante o monopólio da terra e a deseducação.

De acordo com Mumford (1982), não é possível falar do "salto para a barbárie4 4 Bárbaro pode ser tanto o indivíduo sem civilização, grosseiro, rude, inculto, quanto o cruel, desumano, sanguinário, invasor e estrangeiro. " em tempo passado, uma vez que todos os métodos e hábitos de pensamento de nosso tempo, bem como os avanços técnicos, têm servido de apoio ao avanço das empresas capitalistas, subordinando os interesses vitais e humanos aos interesses econômicos. Pode-se perceber que o que o autor denomina de "salto para a barbárie" representa um progressivo estímulo para o isolamento do homem, para uma radical uniformidade das ações humanas e para a redução do homem a um mecanismo de trabalho. Dito de outra forma, uma regressão que leva ao estranhamento em relação aos valores da vida e do desenvolvimento do próprio homem e da sociedade, caminho que aponta para outra forma de existência, mas que evoca também o caráter cruel e desumanizante da existência submetida aos ditames do complexo tecnológico dissociado do bem-estar do homem e da vida.

A perda, ou caráter regressivo demonstrado por Mumford (1982), está justamente no fato de que a maior parte do desenvolvimento do complexo tecnológico ocorreu sem o processo de avaliação social, ou seja, dissociado da análise de seu valor para a vida. No entanto, o autor alerta para o fato de que não podemos esquecer que a disciplina mecânica e muitas invenções constituem um esforço deliberado para alcançar uma forma de vida mecânica, na qual a felicidade é compreendida como o poder do homem sobre outros homens. Além disso, uma sociedade em que o povo trabalha para viver e vive para trabalhar é considerada socialmente ineficaz.

A personalidade objetiva descrita por Munford (1982) aparece como o conjunto de disposições e atitudes que estão de acordo com a ciência e a técnica. A personalidade objetiva ou racional representa uma indispensável adaptação ao funcionamento do complexo tecnológico. A nova objetividade leva a uma tendência à reação diante do inesperado ou imprevisto, como se estivéssemos diante de um acontecimento comum. Assim, a relativa passividade de populações disciplinadas pelo complexo tecnológico seria uma das características da objetividade dos nossos tempos.

Assim, apoiados nas discussões apresentadas até o momento, sustentamos a ideia de que a excessiva padronização dos comportamentos, a partir dos interesses do aparato tecnológico, cria situações em que os "novos estranhos" surgem em referência ao trabalho, estando nele ou fora dele. Assim, os "novos estranhos" são todos os seres humanos impelidos e limitados pelo aparato à adaptação, distanciados dos interesses da vida e do desenvolvimento humano; estranhos para si mesmos, para suas necessidade, desejos e para a própria vida.

Marcuse (1999) sustenta a ideia de que "As distinções individuais de aptidão, percepção e conhecimento são transformadas em diferentes graus de perícia e treinamento a serem coordenados a qualquer momento dentro da estrutura comum dos desempenhos padronizados" (Marcuse, 1999, p. 78). Para o autor, o avanço individual converte-se em eficiência padronizada, ou seja, ao conjunto de comportamentos, ações, tarefas e funções pré-determinadas pelo aparato, definidos externamente ao indivíduo.

Pelo imperativo de adaptação ao aparato racional, o homem perde sua liberdade e espontaneidade; suas ações transformam-se em reações semiespontâneas que demonstram sua obediência ao aparato. De acordo com o autor, "Não há lugar para a autonomia" (Marcuse, 1999, p. 80). O homem perde sua capacidade de abstrair e pensar além dos ditames do aparato e de transcender pela crítica e reflexão a realidade imediata dos fatos observáveis.

Analisando o processo de perda de autonomia e de individualidade, Marcuse (1999) observa que a Psicologia Industrial se apoiava na definição de que o desempenho humano estava transformado e reduzido a uma série de reações confiáveis. Para ele, "o processo da máquina impõe aos homens os padrões de comportamento mecânico e as normas de eficiência competitiva são tanto mais impostas de fora quanto menos independente se torna o concorrente individual" (Marcuse, 1999, p. 82).

Nessa medida, é possível perceber as constatações do autor em relação ao posicionamento da Psicologia como tecnologia, ou seja, instrumento de controle e dominação, contribuindo para adequar os comportamentos dos homens às expectativas do aparato. Neste sentido, vale analisar em que medida a Psicologia aplicada ao trabalho continua oferecendo seus conhecimentos e técnicas ao incremento do processo de adaptação do homem às exigências do sistema produtor de mercadorias, além de contribuir para a manutenção das relações sociais pautadas na eficiência padronizada e no domínio do homem sobre outros homens.

É preciso ficar atento, principalmente, às diversas relações que se estabelecem entre o aparato tecnológico e sua racionalidade nos mais amplos aspectos da vida, abrangendo, inclusive, os conhecimentos em Psicologia e sua aplicação. Nesse sentido, são pertinentes, portanto, as reflexões e críticas sobre as relações entre Psicologia e a racionalidade tecnológica na busca pela compreensão de fenômenos psicológicos e do possível controle a ser estabelecido sobre eles. Na verdade, o problema é maior, uma vez que é necessário questionar em que medida temos nossos pensamentos voltados para um padrão estabelecido pelo avanço tecnológico em detrimento do desenvolvimento do homem e da vida, o que abala seriamente nossas possibilidades críticas e reflexivas a respeito de da atuação do psicólogo e seu compromisso social.

Sendo assim, em quais momentos o psicólogo tem transformado seu compromisso social em compromisso com a manutenção das relações sociais de dominação e adaptação à eficiência padronizada? Em quais momentos suas possibilidades de atuação para o desenvolvimento da vida e do homem em ações de supressão do pensamento, da criatividade e da autonomia dos indivíduos são transformadas? Em que medida ele contribui, no cotidiano do trabalho e fora dele para a ampla difusão de um sistema de vida que produz um estranhamento generalizado dos homens consigo mesmos e com outros homens? Em que medida tem contribuído para a adaptação do trabalhador, para a intensificação do trabalho, para o aumento do individualismo e para o incremento da ideia da eficiência submissa?

Recorrendo às discussões feitas anteriormente por Marcuse (1999) sobre o "salto para a barbárie", é pertinente observar sua análise acerca da liberação de impulsos agressivos. Para o autor, o indivíduo reduzido a membro da multidão torna-se "sujeito padronizado da autopreservação bruta" (Marcuse, 1999, p. 89), ou seja, a busca competitiva dos indivíduos pelo interesse próprio e a redução da individualidade a autopreservação padronizada, levaria à liberação de impulsos agressivos de sujeitos isolados que competem entre si.

Assim, ao afirmar que é interessante para o aparato que os indivíduos se tornem membros da multidão, o autor avalia o comportamento do indivíduo em busca do interesse próprio dizendo que: "Pode-se afirmar que suas explosões de ódio são aterrorizantes e violentas, mas estas são prontamente direcionadas contra os competidores mais fracos e os 'forasteiros' de destaque (judeus, estrangeiros, minorias nacionais)" (Marcuse, 1999, p. 90). Nesse ponto, é possível supor que essa agressividade, direcionada a outros competidores ou forasteiros (que também são potencialmente competidores). ganha uma amplitude alarmante em um cenário de desemprego crescente e de constantes ameaças em relação à manutenção do emprego e das formas de sobrevivência.

Ao analisar a Psicologia aplicada ao treinamento vocacional, novamente Marcuse (1999) demonstra sua utilidade ao incremento e manutenção do aparato, na medida em que modela o comportamento do homem para o desempenho de uma determinada tarefa. Assim, analisando a Psicologia como tecnologia o autor afirma que sua aplicação no campo do treinamento vocacional promove uma regressão na medida em que a personalidade é aprisionada na função, ou seja, a personalidade completa perde lugar para a especialidade com seus conhecimentos restritos aos conhecimentos técnicos. Além disso, o comportamento do indivíduo, sua espontaneidade e experiências são dirigidos ao desempenho da função no processo produtivo.

Considerações Finais

Em relação às ideias de Simmel, Benjamin e Freud sobre o estrangeiro e o fenômeno do estranhamento, foi possível perceber três pontos de convergência que merecem ser evidenciados.

Em primeiro lugar, os três autores consideram a relação de proximidade- distanciamento ou interioridade-exterioridade como pontos inquestionáveis das relações do homem consigo mesmo, com outros homens e com os objetos.

Em segundo lugar, os sentimentos suscitados pelo "estrangeiro" ou pelo "estranho" remetem ao que é simultaneamente próximo e distante, interior e exterior, familiar e ameaçador, gerador de sentimentos de conforto e de ansiedade, evidenciando a dimensão ambígua, mas não contraditória, do fenômeno de estranhamento.

Em terceiro lugar, os sentimentos de ansiedade, intolerância e repulsa, advindos de pessoas, objetos e situações que se apresentam como "estranhos", atualizariam, do ponto de vista sociológico e psicológico, uma situação de ameaça e questionamento em relação ao que demarca os limites entre o interior e o exterior, entre o eu e o outro e principalmente em relação à identidade. Sendo assim, acreditamos que o "estrangeiro" ou "estranho" traz sempre a possibilidade de abalar nossas certezas em relação ao que se é, ao que se escolheu e ao que se acredita, apontando para tudo aquilo que se poderia ser, poderia ter escolhido ou que se poderia crer. Isso acabaria por tornar presente, em última instância, o temor do aniquilamento por algo ou alguém que se coloca como inimigo ou ameaçador ou, ainda, que aponta formas de existência que diferem das nossas.

Não poderíamos deixar de dizer o quanto essas questões nos fazem pensar nas situações cotidianas em que nos deparamos com pessoas e fatos que mostram que o conjunto das relações sociais poderiam ser outras. No entanto, poderíamos pensar que os sentimentos de intolerância e de antipatia gerados pelo "estranho" deveriam expressar mais sobre nós mesmos, nossas escolhas e nossa identidade do que sobre um potencial inimigo externo, opositor ou competidor.

Estabelecendo uma correlação entre as ideias dos três primeiros autores citados e as análises de Mumford e Marcuse sobre o desenvolvimento tecnológico, fica evidente a maneira como o desenvolvimento tecnológico divorciado da avaliação social acerca de seus benefícios para o desenvolvimento do homem e da vida favoreceu a aparição dos "novos estranhos", considerado aqui como o indivíduo cada vez mais isolado de si mesmo e da sociedade.

Julgamos haver uma tendência da atual fase do sistema produtor de necessidades em conduzir os indivíduos à categoria de "estranhos", uma vez que eles se encontram distantes de si mesmos e de outros homens; em relação de oposição com a sociedade e guiados pela competitividade geradora de impulsos agressivos. Ao mesmo tempo em que representam a figura do "estranho" quando estão adaptados ao padrão de comportamentos padronizados, também o são quando apresentam formas de resistência, apelando para as capacidades críticas e reflexivas, ou seja, quando demonstram outras formas de existência que se distinguem da racionalidade tecnológica. Essa forma ampla de estranhamento que vivemos na atual fase do desenvolvimento tecnológico se confirma na afirmação de Mumford (1982) de que vivemos uma fase marcada pela influência barbarizante.

Outro ponto que merece destaque é a maneira como a tecnologia, enquanto relação social de dominação do homem sobre outros homens vem acentuando a competição entre os indivíduos, a busca pelo interesse individual e consequentemente a crescente agressividade diante das diferenças individuais que demonstram as falhas no impulso de massificação e padronização de comportamentos.

E, finalmente, em relação à análise da Psicologia aplicada ao trabalho, sustentamos a necessidade de empreender pesquisas que busquem elucidar o papel que os psicólogos têm desempenhado junto ao sistema produtivo. Consideramos pertinentes as reflexões que busquem analisar em que medida a Psicologia se apresenta "como ciência aplicada ao exercício do controle social" (Sass, 2005, p. 161) e em que medida ela poderia representar um conjunto de conhecimentos, práticas e técnicas que buscassem promover e facilitar o amplo desenvolvimento humano, voltando-se para as questões pertinentes à promoção da saúde nos ambientes de trabalho.

Apoiados nas análises de Marcuse (1999) sobre as vantagens da democratização dos benefícios da técnica para o homem, para a sociedade e para a vida, consideramos que, na medida em que buscarmos avaliar o papel que a Psicologia vem desempenhando no sistema produtor de necessidades, poderemos contribuir para liberar o homem das formas de trabalho degradantes, das necessidades da produção material, da escassez, da competitividade e do isolamento. Se, como afirma o autor, o processo tecnológico pode promover e facilitar o desenvolvimento humano, também a Psicologia aplicada ao trabalho, visando à promoção da saúde no ambiente de trabalho, pode contribuir para expandir as diferenças essenciais entre os homens, libertá-los do reino das necessidades e favorecer um encontro do homem consigo mesmo em uma sociedade que não se apresentasse hostil e que favorecesse a autonomia.

Recebido em: 25/09/2007

Reapresentado em: 17/09/2008

Aprovado em: 11/10/2008

Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais.

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  • BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994b. p. 197-221.
  • FREUD, S. O estranho. In: Uma neurose infantil e outros trabalhos Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 17, p. 275-315.
  • MARCUSE, H. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In: ______. Tecnologia, guerra e fascismo São Paulo: Unesp, 1999. p. 71-104.
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  • Desenvolvimento tecnológico, padronização de comportamentos no trabalho e exclusão social

    Technological development, behavior standardization at work and social exclusion
  • 1
    Neste artigo os conceitos de técnica e tecnologia são apresentados considerando a abordagem de Munford (1982), que trata do complexo tecnológico como o conjunto de diferentes instrumentos técnicos e de Marcuse (1999), que estabelece alguns avanços em relação ao autor mencionado. Vale ressaltar que a conceituação de tecnologia de Marcuse (1999) avança ao ser apresentada como ideologia de controle e dominação do homem sobre si mesmo, sobre outros homens e sobre a natureza.
  • 2
    Mumford compreende o complexo tecnológico (la máquina) como o conjunto de conhecimentos, as perícias e artes derivadas da indústria e que se estendem a outros aspectos da vida, cita várias formas de ferramentas, instrumentos, aparatos, obras e máquinas. Para o autor, no complexo tecnológico o homem que trabalha e o conjunto dos mais diferentes instrumentos técnicos não podem ser separados. A técnica apresenta-se como procedimento que pode conter instrumentos que possuem diferenças em relação ao grau de especialização ou de impessoalidade que exigem.
  • 3
    Nesse caso, a referência é ao aparato técnico-social que se coloca a serviço do desenvolvimento econômico capitalista e exige cada vez mais submissão à crescente dominação e administração totais. Representa o conjunto das instituições, dispositivos e organizações da dinâmica industrial em situação social dominante e que estabelece o controle e padronização sociais.
  • 4
    Bárbaro pode ser tanto o indivíduo sem civilização, grosseiro, rude, inculto, quanto o cruel, desumano, sanguinário, invasor e estrangeiro.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Aceito
      11 Out 2008
    • Revisado
      17 Set 2008
    • Recebido
      25 Set 2007
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