Introdução
Nas últimas décadas, as mudanças demográficas brasileiras vêm determinando alterações na estrutura etária da população, caracterizada por um aumento progressivo e acentuado da população adulta e, especialmente, a idosa. A queda dos níveis de fecundidade combinada à redução da mortalidade têm acarretado um processo de envelhecimento populacional e de aumento da longevidade da população no Brasil 1. Interligado à transição demográfica, o país tem experimentado um processo de transição epidemiológica, marcado pelo aumento da participação das doenças crônico-degenerativas em substituição às doenças infectocontagiosas no total de mortes 2. Assim, a tendência atual é ter um número crescente de indivíduos que vivem mais e apresentam maior número de condições crônicas.
A síndrome de fragilidade caracteriza-se pela redução da reserva energética e da resistência fisiológica, com um declínio cumulativo de órgãos e sistemas corporais e consequentes alterações neuromusculares, desregulação do sistema endócrino e disfunção do sistema imunológico 3,4. No Brasil, a prevalência varia de 10% a 25%, enquanto em chineses, americanos e europeus é de 4,9%, 6,9% e 17%, respectivamente 5,6. É, por ora, considerada um dos grandes problemas enfrentados pelas sociedades que envelhecem, por afetar a qualidade de vida dos idosos e estar diretamente associada a desfechos negativos em saúde, como as quedas, fraturas, hospitalização e institucionalização 7,8.
Em relação às principais doenças crônicas, como as cardiovasculares, câncer, diabetes, enfermidades respiratórias e neuropsiquiátricas, estudos têm mostrado uma forte associação com o consumo de tabaco e álcool, excesso de peso, baixo consumo de frutas e verduras e sedentarismo, sendo o monitoramento da prevalência das doenças e seus fatores de risco basilar para definição de políticas de saúde voltadas à prevenção desses agravos 9. No entanto, a relação de características ligadas à alimentação com a síndrome de fragilidade em idosos ainda é pouco estudada, como evidenciado em revisão sistemática acerca de fatores associados à síndrome 10.
A perda de massa muscular interagindo com a nutrição deficiente caracterizam um ciclo autossustentado, com potencial decrescente de energia além do observado como normal do envelhecimento, levando à redução da atividade física e consequente subnutrição crônica, sarcopenia, redução da força física e do gasto total de energia 11,12.
A perda de massa muscular pode ser identificada por meio de uma abordagem mais abrangente, factível de execução nos serviços de saúde, que inclui avaliação do consumo alimentar e medidas antropométricas que mensuram não somente o peso total, mas buscam diferenciar a massa muscular da gordura corporal. Medidas simples de adiposidade central como circunferência da cintura, relação cintura-quadril e índice de conicidade, e indicadores antropométricos de massa muscular como circunferência muscular do braço e da panturrilha, poderiam ser avaliadas na rotina de atendimento para se ter mais precisão do quadro nutricional do idoso. A investigação mais detalhada dos hábitos alimentares, levando em consideração a quantidade, variedade, disponibilidade de alimentos, condições, procedimentos e preparo também possibilitaria uma intervenção dietoterápica mais eficiente 13,14. Isso permitiria maior potência na prevenção de doenças relacionadas à alimentação e ao acúmulo excessivo de gordura abdominal, tais como as crônico-degenerativas, e aquelas relacionadas à diminuição dos estoques de proteína, como a incapacidade funcional e síndrome de fragilidade 4,15.
Sendo assim, o objetivo deste estudo foi estudar a síndrome de fragilidade em idosos moradores de uma comunidade de contexto socioeconômico e ambiental vulnerável e a relação dela com parâmetros antropométricos e de consumo alimentar.
Materiais e métodos
Desenho do estudo e amostra
Este é um estudo transversal, de base domiciliar, cujos participantes (idosos de 60 anos ou mais de idade, ambos os sexos) foram identificados pelo Inquérito sobre Condições de Saúde e Utilização de Serviços de Saúde no Território de Manguinhos, Município do Rio de Janeiro, Brasil, estudo mais abrangente em uma área de favelas realizado no período de 2012-2013 16.
O referido inquérito teve amostra probabilística de domicílios (n = 955) e moradores (n = 2.918), com seleção sistemática de um domicílio a cada dez, de modo que toda a comunidade tivesse igual probabilidade de ser entrevistada. Todos os idosos identificados no inquérito foram convidados a participar de etapa complementar da pesquisa, com coleta de informações adicionais do presente estudo. Houve a aplicação de questionários domiciliar e individual compostos por questões fechadas, construído por perguntas extraídas da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 17 e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 18.
O tamanho amostral foi validado pela equação de Lwanga & Lemeshow 19, sendo N = P x Q/E/1,96)2, onde: N = tamanho mínimo da amostra; P = prevalência média de síndrome de fragilidade em idosos maiores de 65 anos, segundo o Ministério da Saúde em 2006 5; Q = 100 - P; E = margem de erro amostral tolerado. Considerou-se um erro amostral de ± 7% e confiabilidade do estudo em 95%. Assim: N = [17,5 x (100-17,5)]/(7/1,96)2 = 1443,75/12,75 = 113 sujeitos. Adicionando-se 5% de perda, deveriam ser selecionados 119 idosos.
A seleção dos participantes teve como critério de inclusão idosos de ambos os sexos, com 60 anos ou mais de idade e residentes nos domicílios sorteados pelo Inquérito de Saúde-Manguinhos. Foram excluídos do estudo aqueles que se encontravam acamados ou cadeirantes, pois não poderiam realizar um dos testes (velocidade da marcha) que faz parte do critério diagnóstico adotado para a síndrome. As entrevistas e avaliações ocorreram nas unidades básicas e/ou nos domicílios dos participantes por dois pesquisadores treinados e equipamentos calibrados.
Variáveis estudadas
A síndrome de fragilidade foi avaliada segundo o critério proposto por Fried et al. 4, composto por cinco itens: perda de peso não intencional de pelo menos 4,5kg ou pelo menos 5% do peso corporal no último ano, fadiga autorreferida, força diminuída de preensão palmar medida com um dinamômetro na mão dominante, baixo nível de atividade física medido pelo dispêndio semanal de energia em Kcal, redução da velocidade da marcha em segundos.
A perda de peso foi analisada de acordo com o relato do entrevistado. A fadiga foi considerada mediante resposta afirmativa em pelo menos uma de duas perguntas da escala de depressão do Center for Epidemiological Studies (CES-D) 20, versão validada em idosos brasileiros 21. A força diminuída de preensão foi estimada com dinamômetro do tipo JAMAR, modelo NC 701/42 (North Coast Medical Inc., Gilroy, Estados Unidos), e foram considerados como apresentando síndrome de fragilidade para esse critério os idosos que tiveram medidas abaixo do percentil 20 de força de preensão dentro de cada quartil de índice de massa corporal (IMC) da amostra, ajustado por sexo. A atividade física foi investigada por meio da versão reduzida do Questionário Internacional de Atividade Física (International Physical Activity Questionnaire - IPAQ) e foram definidos como apresentando baixos níveis aqueles que tiveram dispêndio semanal abaixo do percentil 20 de calorias da amostra, ajustado por sexo. A velocidade da marcha foi mensurada pela cronometragem do tempo de marcha em segundos gasto para percorrer uma distância de 4,6 metros em velocidade habitual, e foi considerada velocidade baixa aqueles que revelaram tempo acima do percentil 80 ajustado por sexo e média de estatura.
Os idosos apresentando pelo menos três dos cinco itens foram considerados frágeis. Aqueles com presença de um a dois componentes foram classificados como pré-frágeis e os que não preencheram nenhum dos critérios foram considerados não frágeis.
Para avaliação antropométrica, foram aferidas massa corporal (MC), estatura, circunferência da cintura (CC), do braço (CB), da panturrilha (CP), dobra cutânea triciptal (DCT), e calculados o IMC, a circunferência muscular do braço (CMB), a relação cintura-estatura (RCE), e o índice de conicidade (IC). Todas as medidas foram aferidas segundo protocolo da Organização Mundial da Saúde (OMS) 22 e de acordo com as técnicas preconizadas por Gomes et al. 23 e Harrison et al. 24. O IMC foi calculado pela fórmula: IMC = MC(kg)/estatura2 (m2). A CMB foi obtida pela equação: CMB(cm) = [CB (cm) - (π x DCT(cm))] 25. A RCE foi determinada pela fórmula: RCE=CC(cm)/estatura(cm), e o IC pela expressão: IC = CC(m)/(0,109) 26,27.
A avaliação do consumo alimentar foi feita por meio da aplicação de um Questionário de Frequência de Consumo de Alimentos (QFCA), de natureza quantitativa e qualitativa, que computou a ingestão diária, semanal e mensal de uma lista de alimentos. Esse QFCA foi baseado na proposta de Sichieri 28, com 83 itens, validado para adultos da cidade do Rio de Janeiro. Os dados obtidos foram distribuídos em grupos alimentares e convertidos em unidades e frações de porções de consumo diárias. As porções estimadas foram comparadas com as porções sugeridas pelo Ministério da Saúde, no guia Alimentação Saudável para a Pessoa Idosa - Um Manual para Profissionais de Saúde29.
Análise estatística
A análise da síndrome de fragilidade com as variáveis sociodemográficas e parâmetros antropométricos e alimentares foi feita por meio de proporções para as variáveis categóricas (Tabela 1) e média e intervalo de mais ou menos um erro-padrão para as variáveis contínuas (Figuras 1 e 2).
Os dados foram armazenados no software EpiData (Epidata Association, Odense, Dinamarca) e as análises empreendidas no pacote estatístico R versão 3.0.2 (The R Foundation for Statistical Computing, Viena, Áustria; http://www.r-project.org).
Resultados
Foram estudados 137 idosos, sendo 44 homens (32,1%) e 93 mulheres (67,9%). A idade variou de 61-97 anos, com mediana de 69,0 anos e média e desvio-padrão de 70,2 e 7,4 anos, respectivamente. Dos idosos convidados a integrar o estudo, 2% foram excluídos de acordo com os critérios de elegibilidade e 6,5% se recusaram a participar. A maioria relatou não estar trabalhando (77,4%), ter de um a sete anos de estudo (60%) e receber até um salário mínimo corrente da época (R$ 622,00) (72,5%), o que evidencia um perfil de população de baixa renda e escolaridade. A Tabela 1 apresenta as frequências das principais características sociodemográficas segundo a síndrome de fragilidade.
Quanto à condição de síndrome de fragilidade, 12,4% dos idosos foram considerados frágeis e 61,3% pré-frágeis. A única variável significativamente associada à classificação da síndrome foi a idade. No que se refere à frequência dos componentes do fenótipo da síndrome, destacam-se: perda de peso em 20,4% dos idosos (n = 28); fadiga em 33,6% (n = 46); e baixo nível de atividade física, força diminuída de preensão palmar e velocidade de marcha em, respectivamente, 20,4%, 23,4% e 21,2%.
Na Figura 1, observa-se que, embora os valores de IMC sejam maiores com a gradação da síndrome, os parâmetros de aferição de massa muscular (CMB e CP) tendem a ser menores e os de medidas de tendência central (CC, RCE e IC), a ser mais elevados nos grupos pré-frágeis e frágeis, mesmo com a quantidade pequena de idosos frágeis na amostra, evidenciada pela ampliação do intervalo em torno da média do parâmetro.

Figura 1 Médias de parâmetros antropométricos segundo a classificação de síndrome de fragilidade dos idosos de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil, 2013.
A Figura 2 apresenta a média de consumo de porções diárias dos grupos alimentares segundo a classificação da síndrome. A linha horizontal tracejada representa a recomendação do Ministério da Saúde 29 para cada grupo e a linha vertical tracejada em torno do ponto, o intervalo referente ao erro-padrão. Em relação às recomendações, verifica-se que todos os idosos superaram o consumo recomendado para frutas, carnes e, sobretudo, alimentos ricos em açúcares e gorduras, e não alcançaram o sugerido para laticínios e cereais. Em relação às verduras e legumes, verifica-se que os não frágeis não alcançaram a recomendação proposta. Quanto aos feijões, todos atingiram a recomendação. Comparando-se os grupos, o consumo de cereais tende a ser maior no grupo frágil; o de feijões tende a ser menor quão mais grave é a síndrome, assim como o de frutas; o consumo de verduras e legumes, laticínios e alimentos ricos em açúcares e gorduras têm seu pico de consumo no grupo dos pré-frágeis; e o consumo de carne tende a ser semelhante nos três grupos.
Discussão
O presente estudo encontrou uma elevada prevalência das condições de pré-fragilidade e fragilidade, sendo superior em mulheres e na idade mais avançada, uma tendência de IMC mais elevado nos grupos pré-frágeis e frágeis e de menor consumo de feijões e frutas com a gradação da síndrome nessa amostra. Cabe ressaltar que a pesquisa ocorreu em área favelizada, com um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano do Estado do Rio de Janeiro, o que retrata uma condição de maior vulnerabilidade dos residentes. Além de o idoso ter dificuldades inerentes ao próprio processo de envelhecimento, as pessoas que residem em favelas vivem num contexto social histórico de urbanização e saneamento precários, falta de investimentos em educação, habitação e saúde, desigualdade social, baixa qualidade de vida e violência, com escassez de pesquisas, particularmente as relacionadas ao consumo alimentar e síndromes associadas ao avanço da idade.
Tal prevalência difere da grande parte dos estudos internacionais que utilizaram o mesmo método diagnóstico da síndrome, em que os índices variam de 34,6% a 50,4% para pré-frágeis e de 4,9% a 17% para frágeis 6. Contudo, em áreas de condições socioeconômicas piores, a prevalência se assemelha, como no caso de estudo realizado no Nordeste do Brasil, em que as prevalências foram de 60,1% para pré-frágeis e 17,1% para frágeis 30. Observa-se também que a frequência de pré-fragilidade é mais elevada em locais com processo de transição demográfica mais recente, como é o caso de Manguinhos e dos países em desenvolvimento quando comparados aos desenvolvidos, dados que ainda não possuem uma quantidade elevada tanto em números absolutos quanto relativos de idosos muitos idosos 31,32. Esse grupo é o mais acometido pela síndrome, que tende a aumentar com o envelhecimento e a maior longevidade da população 33,34.
No que diz respeito à relação entre síndrome de fragilidade e condições nutricionais em idosos não frágeis, pré-frágeis e frágeis, evidenciou-se uma situação adversa nos idosos estudados: nos grupos pré-frageis e frágeis, os valores de IMC e de medidas de centralização de gordura abdominal (indicadores de obesidade) foram mais elevados; os parâmetros de massa muscular apresentaram valores menores (perda de massa magra); assim como o consumo de feijão e de frutas. Há escassez de estudos acerca dessas relações em nosso meio, aspecto inovador e relevante do presente estudo.
O padrão de elevação do IMC nos grupos pré-frágeis e frágeis aqui evidenciado é corroborado em estudos internacionais, nos quais a proporção de mulheres americanas e italianas pré-frágeis e frágeis aumentou com o incremento no IMC 35,36. A utilização de diferentes indicadores antropométricos foi importante e mostrou que a avaliação do estado nutricional somente pelo uso do IMC é insuficiente para um diagnóstico adequado, visto que não detecta perda de massa muscular e centralização de gordura corporal, agravos passíveis de detecção e intervenção precoce. Nos serviços de atenção primária à saúde no Brasil, o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) orienta apenas aferição de MC e estatura para cálculo do IMC 37. Especialmente em idosos, cabe atentar para o uso crítico do IMC para avaliação nutricional devido à tendência de centralização de gordura com o aumento da idade 38. Além disso, a perda progressiva de massa magra e a regionalização de gordura, presentes no envelhecimento, podem não levar à redução do IMC, o que ocasionaria um diagnóstico equivocado de eutrofia, mascarando, desse modo, um déficit nutricional importante e maior risco de desenvolvimento da síndrome de fragilidade.
Reforçando tal discussão, há estudos que relataram ser frequente em idosos frágeis a presença da chamada obesidade sarcopênica, caracterizada pelo aumento de MC por conta dos depósitos de gordura, concomitantemente à supressão de massa muscular nas extremidades, tornando o idoso mais fragilizado e suscetível a problemas nos membros inferiores, redução de atividade física e quedas 35,39. Dessa forma, adaptações quanto ao uso do IMC e a adoção de outros métodos de avaliação do estado nutricional em idosos são sugeridas há bastante tempo 40.
Nesse sentido, foram testados outros parâmetros relacionados à mensuração da massa muscular, no caso a CP e CMB, e à centralização de gordura corporal, como a CC, a RCE e o IC, segundo a classificação de síndrome de fragilidade. Percebeu-se que todos os indicadores de massa muscular foram menores com a gradação da síndrome, ocorrendo o contrário com os indicadores de adiposidade abdominal. Esses resultados concordam com os encontrados em outros estudos. Em idosos italianos de ambos os sexos com idade acima de 80 anos, foi constatada uma relação inversa entre medida de CP e classificação de síndrome de fragilidade 41. Já em idosos ingleses com 65 anos ou mais de idade, verificou-se que aqueles que apresentavam medidas mais elevadas de CC eram mais frágeis 42. Vale ressaltar que são escassos os estudos associando tais indicadores com a síndrome, especialmente com utilização da RCE e do IC, além do fato de todos os indicadores, exceto o IMC, não ter um ponto de corte específico para idosos, o dificulta um diagnóstico baseado em tais parâmetros, suscitando a realização de pesquisas com esse fim. Os perímetros são medidas fáceis de obter porque necessitam apenas de uma fita métrica, e se utilizados como medidas complementares às de rotina clínica, como peso e estatura, tornam a avaliação de saúde mais informativa para tomada de decisões e prescrições.
Quanto à avaliação do consumo alimentar, ela foi feita mediante o uso do QFCA, convertendo-se os resultados em quantidade de porções diárias de grupos alimentares. A opção por essa análise objetivou ampliar o debate sobre formas de se gerar informações com base no consumo alimentar que sejam mais práticos para formulação de políticas voltadas para a alimentação saudável e utilização nos serviços de saúde. A sugestão de porções diárias e as instruções simples para alimentação e nutrição têm sido a diretriz adotada pelo Ministério da Saúde para orientação nutricional por meio de guia alimentar específico para tal grupo etário 29. Essa ação facilita o entendimento e a comunicação entre profissionais e usuários na atenção primária em saúde do que é entendido como alimentação adequada, tornando a informação mais objetiva e promovendo maior adesão às intervenções.
Os estudos que relacionam alimentação com síndrome de fragilidade na literatura científica em geral analisam a associação entre macro e micronutrientes com a síndrome, o que dificulta a comparação com os nossos resultados, ficando, dessa maneira, restrita à análise do comportamento de consumo entre os grupos e sua relação com o agravo.
Ao se compararem os resultados encontrados com as porções diárias sugeridas pelo Ministério da Saúde 29, observou-se que, para a maioria dos grupos alimentares, os idosos da amostra superaram a recomendação, salvo verduras e legumes, laticínios e cereais. Contudo, a amostra do estudo é de uma região específica (um complexo de favelas), diferente da maioria das pesquisas com essa faixa etária, o que pode gerar padrões de consumo alimentar diferentes do habitualmente encontrado em outras literaturas. Além disso, tais resultados devem ser analisados com cautela quanto à comparação entre o que é recomendado para populações sadias e para idosos em condições de síndrome de fragilidade. Um panorama sobre hábitos de consumo alimentar na população brasileira foi estudado pela PNS, que investigou como marcadores de padrão saudável de alimentação o consumo recomendado de frutas, legumes e verduras e de feijão 17. No Brasil, o percentual de pessoas de 18 anos ou mais de idade que consumiam cinco porções diárias de frutas e hortaliças foi de 37,3%, proporção que aumentava com a idade (40% nos idosos) e com o grau de escolaridade. Já o consumo regular (em cinco ou mais dias da semana) de feijão foi referido por 71,9% das pessoas (e 71% dos idosos).
Em relação ao maior consumo de cereais nos grupos frágeis, ressalta-se que esses idosos, em geral, são mais velhos; assim, uma hipótese é a de que com o avanço da idade, há modificações fisiológicas importantes que afetam o consumo alimentar, como a redução das papilas gustativas, diminuição do olfato e da visão e maior degeneração cognitiva, o que diminui o prazer durante as refeições e aumenta a dificuldade em cortar e consumir alimentos mais fibrosos e consistentes, como frutas, verduras e carnes 43. Isso pode interferir na ingestão e escolha de alimentos, ocasionando a preferência por alimentos menos densos, como raízes cozidas, arroz e pães, presentes no grupo de cereais.
A ingestão reduzida de laticínios chama a atenção pelo fato de esse grupo ser composto de alimentos ricos em cálcio, nutriente que é fundamental para o fortalecimento ósseo e muscular, o que pode influenciar diretamente na síndrome 44.
Observou-se especialmente um consumo elevado de alimentos ricos em açúcares e gorduras saturadas em todos os grupos de participantes, como doces e frituras, contribuindo para a ocorrência de obesidade e doenças crônico-degenerativas. O consumo de carnes também foi superior ao recomendado nos três grupos, especialmente a bovina e a de frango. Embora carnes de uma forma geral sejam boas fontes de proteína de alto valor biológico, deve-se ficar atento se tal consumo provém de carnes magras, pois aquelas ricas em gorduras saturadas também podem ocasionar o aumento de peso e ocorrência de dislipidemias. No presente estudo, igualmente foi verificado um alto relato de consumo de frutas, principalmente laranja, banana e suco de frutas naturais ou de polpa.
Quanto à tendência observada de maior consumo de feijões nos grupos não frágeis e menor consumo com a gradação da síndrome, destaca-se que as leguminosas são alimentos fontes de proteína, o que auxilia na manutenção da massa muscular, de custo mais baixo quando comparado a outras fontes proteicas, pobres em gordura e comuns na alimentação brasileira diária 45. Além disso, têm textura macia e palatabilidade que facilitam seu consumo, dado que os idosos têm maior dificuldade de mastigar em razão da redução da secreção salivar e gástrica e falha na mastigação pela ausência de dentes ou uso de próteses impróprias. Salienta-se que o consumo de arroz com feijão, hábito no Brasil, é considerado mundialmente uma combinação adequada e nutritiva, pois juntos conseguem fornecer a maioria dos aminoácidos essenciais, que são grandes responsáveis na formação dos tecidos musculares e manutenção de diversos sistemas fisiológicos 44.
A presente pesquisa apresenta como principal contribuição a ampliação da discussão em torno da avaliação nutricional de idosos e sua relação com a síndrome de fragilidade, contribuindo para a reorientação de modelos de atenção que fortaleçam a atenção primária à saúde integral, robusta e resolutiva. Idosos sob risco ou com quadro de síndrome de fragilidade já instalados são grupos prioritários para identificação e manejo resolutivo na atenção primária à saúde, evitando-se consequências indesejáveis, como quedas, fraturas, depressão e dependência funcional, que prejudicam a saúde e o envelhecimento ativo, tanto quanto acarretam ônus cada vez maiores para o sistema de saúde. Os não frágeis e pré-frágeis são ainda sensíveis à prevenção e tratamento que impediriam a progressão para a síndrome, como melhoria da alimentação, uso de suplementos nutricionais e realização de musculação para desacelerar a perda de massa muscular. Tais práticas podem ser fomentadas com o trabalho de equipe multiprofissional, o suporte do Núcleo de Apoio à Saúde da Família, o estímulo ao estilo de vida ativo, a articulação com as Academias da Saúde atuando próximas às unidades básicas, considerando as vulnerabilidades e singularidades dos idosos 46. No caso daqueles com a síndrome já instalada, essas ações preservariam por mais tempo a qualidade de vida e autonomia do indivíduo.
Na atenção à saúde dos idosos, é preciso facilitar condições de trabalho e processos de educação em saúde que permitam o diagnóstico precoce de condições comuns na velhice, como desnutrição, sobrepeso, doenças crônico-degenerativas, incapacidade funcional e síndrome de fragilidade. Estudos com esse foco auxiliam na aplicação e validação de métodos simples de avaliação nutricional que podem ser utilizados nos sistemas locais de saúde, na detecção precoce e manejo da síndrome e de agravos nutricionais. Essa avaliação alimentar e nutricional, se incorporada às práticas de saúde no acompanhamento longitudinal da população, especialmente no âmbito da atenção primária à saúde, é potente para promoção de saúde, prevenção e manejo de situações como a síndrome de fragilidade em idosos, mormente em seus estágios iniciais, quando são maiores as chances de regressão do fenômeno 47,48,49. Considerada a porta preferencial de entrada dos usuários na Rede de Atenção à Saúde, a atenção primária à saúde deve prover acesso e resolutividade às necessidades de saúde mais frequentes da população, atuando ainda segundo atributos da integralidade, da longitudinalidade, da coordenação do cuidado das pessoas, da família e da comunidade 46,50.
Como limitações, cumpre mencionar que o tamanho da amostra é pequeno, ainda que represente em torno de 10% da população desta faixa etária na região. É importante também ter em vista que o instrumento de avaliação do consumo alimentar utilizado, apesar de validado para a população adulta da cidade do Rio de Janeiro, não incluiu especificamente a população idosa e como instrumento de natureza quanti-qualitativo detalhada, depende da memória do entrevistado sobre seus hábitos alimentares em um tempo determinado. Portanto, seus resultados poderiam subestimar ou superestimar o consumo de determinados alimentos 13. Somados a isso, avaliação e pontos de corte de alguns componentes da síndrome, como força de preensão, atividade física e velocidade da marcha, sofreram adaptações com o objetivo de se adequar à realidade local da pesquisa, o que pode propiciar algumas divergências ao se comparar com os resultados de outros estudos.
Considerando o desenho transversal do estudo, não é possível estabelecer uma relação de causa e efeito. De fato, o menor consumo de feijão nos grupos frágeis, por exemplo, pode ser posterior à instalação da síndrome, possivelmente por limitações da atividade diária, inclusive cozinhar, caracterizando o efeito de causalidade reversa. Além disso, a própria síndrome é definida como um ciclo autossustentado, em que a redução de força física, modificações alimentares e subnutrição interagem de forma circular. É necessário realizar estudos longitudinais para elucidar melhor a relação entre nutrição e a síndrome de fragilidade, com amostras maiores.
Finalmente, uma alimentação adequada, colorida, equilibrada em nutrientes e rica em fontes de proteína é fundamental para garantir uma boa nutrição e evitar a perda de nutrientes e do tecido muscular, que são fatores relacionados à síndrome de fragilidade. O diagnóstico clínico dos componentes que compõem a síndrome e a avaliação antropométrica e do consumo alimentar durante os atendimentos rotineiros nos serviços de saúde se fazem necessários para avaliar com maior precisão a população idosa, garantir uma intervenção precoce e se evitar prejuízos nutricionais e de saúde.