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Semiótica da cidade: corpos, espaços, tecnologias1 1 Este texto foi originalmente publicado em italiano: "Semiotica della città. Corpi, spazi, tecnologie. Epekeina, vol. 2, n. 1 (2013), pp. 187-203 - Mind and Language Ontology, ISSN: 2281-3209. DOI: 10.7408/epkn.epkn.v2i1.40. Publicado on-line por: CRF – Centro Internazionale per la Ricerca Filosofica, Palermo (Itália) - Disponível em: www.ricercafilosofica.it/epekeina.

Semiotics of the city: bodies, spaces, technologies

Resumo:

A cidade é feita de espaços, corpos, tecnologias. A semiótica tem estudado há tempos todos estes três fenômenos de significação. Todavia, o estudo semiótico do espaço urbano quase nunca foi articulado pela semiótica dos objetos técnicos, nem pela do corpo. Entrelaçar estes três âmbitos, como este artigo busca fazer, aparece, portanto, como um gesto teórico tão urgente quanto necessário. Nestas páginas analisa-se um velho desenho animado de Walt Disney em que o personagem de Pateta muda radicalmente os próprios programas de ação e paixão, condicionado por estar no espaço urbano, como pedestre ou automobilista. Um ator, dois actantes, e consequentemente, dois espaços de significação diferentes.

Palavras-chave:
espaço urbano; corpos; espaços; tecnologias; espaços de significação; desenho animado

Abstract:

Cities are made of spaces, bodies and technologies. Semiotics has been working for a long time on these phenomena of meaning. However, the semiotic study of urban spaces have rarely met both semiotics of technical objects and semiotics of body. Dealing with these three fields as this paper aims to do, seems to be an urgent and necessary theoretical move. In its pages an old Walt Disney’s cartoon is analyzed; the main character is Goofy, who changes his passion and action programs depending on he is pedestrian or driver. One actor, two actants and, as a consequence, two meaning spaces.

Keywords:
urban space; bodies; spaces; technologies; meaning spaces; cartoon

Espaços urbanos e subjetividade

Entre os estudiosos de espaços urbanos já é convenção difundida que a cidade não é exaurida na diferenciação de seus espaços (ruas, praças, jardins, rios e praias, terrenos vagos...) e na articulação das coisas que a preenchem (edifícios, igrejas e monumentos, sinalética, propagandas, luzes, serviços diversos). Insiste-se no fato que na construção de uma cidade – de qualquer dimensão e complexidade, densidade ou rarefação – são acima de tudo os cidadãos, sejam eles sedentários ou não, residentes ou de passagem, a trabalho ou turistas, que vivem os lugares urbanos, atravessam-nos de acordo com percursos variavelmente estabilizados, valorizando, desvalorizando e revalorizando continuamente estes lugares. De um lado estaria, então, o espaço, natural e construído, condição de possibilidades do ambiente urbano como forma ideal abstrata; de outro se situariam, ao contrário, as pessoas, sujeitos individuais e coletivos que, em determinado espaço, se encontram posicionados de diversas formas, constituindo sua substância social. O todo no interior de uma história e de uma memória que atenua as forças entrópicas do tempo, consolidando homens e coisas, construindo e mantendo retalhos de identidades.

A perspectiva dos estudos semióticos, junto a diversas outras ciências humanas e sociais, tentou tornar, ao mesmo tempo, mais complexa e radical a questão: espaços e sujeitos não existem enquanto tais para então encontrar-se e conjungir-se, ora por vontade, ora por destino; muito diferentemente, eles se constituem reciprocamente, são os polos de uma relação que os precede e, fundando-os, os transcende. A cidade nasce na cansativa instituição e na manutenção histórica e identitária de tal relação. Ela não é a somatória de duas entidades autônomas, mas a forma relacional de seu recíproco constituir-se. Não existem espaços autônomos e sujeitos independentes que, em segunda instância, se reúnem mais ou menos casualmente em um determinado ambiente ou situação. Eles se realizam como sujeitos espaciais que, desde o início, se reúnem internamente nos seus corpos e lugares, traduzindo-os uns nos outros e produzindo assim novas formas de subjetividade.

Mas o que queremos dizer quando falamos de sujeitos espaciais? A esta pergunta devemos responder com atenção. Se não, porque, precisamente, a semiótica não é a única ou a melhor disciplina a ocupar-se de ambientes urbanos como realidades sociais. Ela intervém antes sobre um status questionis já discutido, explorado, atestado. E deve declarar, a partir de uma mesma correspondência teórica e analítica, as próprias intenções explorativas específicas e os mapas metodológicos que pretende colocar em jogo. Deve ser recordado então que – à diferença da sociologia, antropologia, psicologia, etc. – os sujeitos dos quais fala a teoria da significação são entidades abstratas e formais, posições sintáticas de corte narrativo que, à semelhança de seus parentes frásticos (os da análise lógica, para que entendamos), têm um papel muito preciso – desenvolver ou sofrer uma ação, experimentar uma paixão ou provocá-la a outros – de encontro a posições sintáticas concomitantes (objetos, antissujeitos, destinadores, etc.) dentro de um plano de ação pré-constituído e sobre o panorama de um mecanismo estrutural geral de transformação. A subjetividade se constitui dentro de um programa narrativo, no quadro de certa projetualidade que, almejando um objetivo, faz sim com que entre o início e o fim de cada história haja um resíduo, uma diferença, talvez uma reviravolta, seguramente uma transformação. No fim das contas, ninguém é mais o mesmo.

Assim, não devem ser confundidos os sujeitos como forças sintáticas (tecnicamente actantes) com as figuras do mundo, que, concretizando-os semanticamente, encarregam-se deles (atores): que podem ser indivíduos e pessoas, mas também instituições coletivas, criaturas abstratas, feras, entidades espirituais, coisas, tecnologias. Se ao mesmo sujeito actante podem corresponder diversas fisionomias de atores (um tapete voador, nas fábulas, é um objeto que pode desenvolver o papel de sujeito), apresenta-se evidente que nossos sujeitos espaciais possam ter mais naturezas, consigam manifestar-se sob diversas e falsas aparências, espreitar ou se esconder tanto a partir de pessoas quanto de edifícios, de objetos ou de paisagens, de casas e coisas, multidões humanas e bairros inteiros, incluindo todas as disciplinas ou artes que materialmente constroem uma cidade – urbanística, engenharia, arquitetura, planificação territorial, etc. – e todos os objetos que, em uma cidade, vivem e se movimentam assim como os sujeitos humanos: automóveis, ônibus e transportes coletivos, trens e metrôs, motocicletas e bicicletas, carroças e riquexós, caminhões comuns e de reboque, scooters, patins e muitos outros.

Tudo isso para dizer que, no fundo, de acordo com tal perspectiva teórica os automóveis são sujeitos espaciais, logo sociais, para todos os efeitos: se comportam e são interpretados como tais. E assim como esses, os outros meios de transporte que em um espaço urbano se encontram a existir e a consistir – incluindo os pés do pedestre, ou pé-móveis como deveríamos mais exatamente chamá-los, que com as outras tecnologias de deslocamento na cidade se encontram a conviver e a conflitar-se. Além disso, para sermos mais precisos, os sujeitos espaciais que vagam pelos itinerários metropolitanos são sempre sujeitos híbridos, feitos de corpos e coisas, de pessoas e tecnologias, de substância humana e não humana: não existem pessoas + carros, mas motoristas em carros, automobilistas, assim como motociclistas, ciclistas, patinadores velozes, usuários de ônibus ou do metrô, etc. Assim como em um poema cavalheiresco, um paladino que por acaso se encontra dotado de uma espada invencível se torna de repente ele próprio invencível, assumindo de fato outros semblantes e novas oportunidades, ao menos até que a espada lhe seja eventualmente subtraída, de forma análoga um sujeito que antes andava – ou depois andará – a pé, não tem as mesmas oportunidades, a mesma vontade de fazer e de andar, as mesmas paixões, o mesmo caráter. A carteira de motorista, sabe-se, torna profundamente diferente a subjetividade do motorista, ou mesmo a reconstitui, caminhando para fundar um sujeito híbrido, metade humano metade não humano, corpo e tecnologia que, entrelaçando-se, se amalgamam em um único programa de ação e de paixão. Um tal híbrido, porém, nunca está sozinho, mônada mais ou menos diabólica, mas vive e opera em um contexto em que outros sujeitos humanos e não humanos, outros híbridos – semelhantes ou diferentes – interagem com ele, transformando-o ulteriormente e sendo por ele transformados. É demasiado fácil falar da antropomorfização do carro ou da mecanização do automobilista. O cenário citadino – de Limoges a Los Angeles, de Monteriggioni a Dubai – é muito mais intrincado, constitutiva e felizmente: de modo que qualquer sonho nostálgico, ânsia naturalística ou hipótese essencialista precisa obrigatoriamente – é o caso de dizê-lo – de ajuda divina.

Ânsias automobilísticas

Isso é demonstrado e motivado, oferecendo-nos mais de uma pista de reflexão, por um saboroso desenho animado de Walt Disney de 1950, Motormania2, em que Pateta-Goofy se encontra às voltas com o automóvel pelas ruas de uma típica pequena cidade norte-americana. As obras de arte são frequentemente impregnadas de teoria. Não necessariamente conscientes de seu alcance filosófico, elas manifestam em todo caso nas dobras de seus dispositivos textuais e discursivos, graças aos meios semióticos para sua disposição específica, uma própria e verdadeira teoria sobre o mundo humano e social, algum movimento conceitual no jogo estratégico das culturas – destinada a permanecer implícita e silenciosa, a menos que uma análise a posteriori, com os instrumentos de uma metalinguagem metodológica ad hoc, não queira e não saiba explicitá-la, traduzi-la, redizendo-a quase da mesma forma. Talvez não apenas as obras de arte tradicionais, plásticas e figurativas, mas também, como no caso que gostaríamos de brevemente ilustrar aqui, textos midiáticos de alguma espessura e profundidade, sejam eles anúncios publicitários, transmissões televisivas, filmes comerciais ou, precisamente, desenhos para crianças.

A mensagem explícita e aparente, do texto em questão, faz evidente referência a Stevenson de doutor Jekill e Mr. Hide: por trás das pessoas comuns, os average men da burguesia abastada, se esconde sempre uma alma obscura, para cada bom Jekill corresponde assim um terrível Hide. E mesmo o cidadão norte-americano médio, homem totalmente comum, pacífico, honesto e respeitável, esconde uma metamorfose próxima futura: basta que entre no carro para se tornar um indivíduo terrível, briguento, irritante, em meio a indivíduos violentos e ruins como ele. A partir disso tem-se a história de Mr. Walker (um pé-móvel já pelo nome), personagem absolutamente dócil e respeitoso em relação à vivência civil, que logo que tira o estrondoso automóvel para fora da garagem, se transforma no opressor Mr. Wheeler, pronto para atropelar (nomen est omen também aqui) qualquer um que apareça em sua frente. A cidade é o pano de fundo mais característico dessas contínuas metamorfoses entre Walker e Wheeler, típico duplo narrativo que entra e sai constantemente do carro saltitando ao mesmo tempo entre suas personalidades opostas. O espaço urbano se torna assim a clássica selva metropolitana onde automobilistas e automóveis travam uma guerra extrema e cruel, correm como se estivessem em Indianápolis, apreciando acidentes contínuos e catástrofes mais curiosas quando ocorrem ao outro, ou mesmo sofrendo os abusos gratuitos e os risos sarcásticos e sádicos que o mais forte da vez lhes inflige sem piedade.

Uma análise um pouco mais estreita do texto convida, porém, a uma interpretação menos moralista e bondosa desse divertido desenho disneyano, e com ela propõe uma teoria sociossemiótica da cidade como lugar onde os híbridos – em suas contínuas transformações e desregramentos, figurações e reconfigurações – constituem absolutamente a norma. O espaço urbano, em suma, surge como dispositivo de construção e desconstrução incessante da subjetividade individual e coletiva, onde corpos, espaços e tecnologias – mesclando-se em hierarquias variáveis – aparecem como atores de graus semelhantes, sujeitos precisamente, dotados de programas análogos de ação e de paixão.

Segmentação textual

Tentaremos segmentar o texto – de pouco mais de seis minutos – em diversas sequências narrativas, a partir das relações de disjunção e conjunção entre o corpo de Pateta e seu veículo, ou seja, das passagens actoriais entre Walker e Wheeler. Para cada uma dessas se identificará um espaço específico e um relativo percurso em seu interior, e com isso uma série de procedimentos de temporalização, aspectualização, agogia, algumas passagens tímicas e modais, escalas de tensão e intensidade e, consequentemente, como êxito semiótico de tudo isso, um barômetro passional muito movimentado. Propomos para isso a seguinte segmentação:

  1. O cemitério do carro: final

  2. Walker 1: o jardim de casa

  3. Wheeler 1: em direção à cidade

  4. Walker 2: na cidade

  5. Wheeler 2: o acidente

  6. Walker-Wheeler: final

Como já aparece evidente, a estrutura do texto é circular: a narração começa pelo fim (o carro no cemitério) e se reconecta ao fim nas últimas cenas (o carro se dirige ao cemitério). O que faz imediatamente suspeitar que seja também e, sobretudo, o carro, e não apenas Walker/Wheeler, o protagonista da narrativa, o sujeito que causa as repentinas metamorfoses do average man e lhe impõe as consequências apropriadas. Mais que um simples auxiliar por trás do qual se esconde um perigoso adversário, como poderia parecer à primeira vista, o carro é um ponto central fortíssimo da história, verdadeiro e próprio sujeito operador que ocasiona as transformações narrativas e se transforma ele mesmo. Neste sentido, semelhante ao sujeito duplamente humano que lhe é análogo. Mas vejamos um pouco mais no detalhamento sequência por sequência.

O cemitério do carro: final

As primeiras imagens mostram o carro em péssimo estado, abandonado junto a vários outros em uma espécie de garagem-cemitério da qual, inferimos, nunca mais sairá. A tomada dinâmica se afasta, mostrando a amplitude do local em que o carro se encontra, e então a densa, triste companhia que o circunda. A voz externa nos informa, enquanto isso, com falsa profecia de tonalidade vagamente darwiniana, que o carro “está destinado à extinção rápida” uma vez “nas mãos de um indivíduo normal (average man)”. Por que tudo isso acontece? O filme pretende demonstrar com sua história edificante. E pergunta-se, antes de qualquer coisa, o que é um indivíduo normal? Distanciando a imagem sobre uma simples casa residencial qualquer, e passando assim para a sequência sucessiva por debreagem espacial e actorial, a voz em offtenta responder rapidamente a essa segunda questão.

Walker 1: o jardim de casa

Aprendemos que o average man, normal, uma vez que igual a qualquer outro (e todos os personagens da história serão representados como tantos outros Patetas, com fisionomias e caráteres idênticos uns aos outros), é na realidade uma “criatura de comportamentos estranhos e imprevisíveis”. Basta tomar um desses casos para demonstrá-lo. “Take the case of Mr. Walker”, diz a voz em offintroduzindo aquele que se tornará o herói da história [fig. 1], o qual sai alegremente de casa interpelando o espectador e ao mesmo tempo cumprimentando o narrador invisível. Os adjetivos e epítetos positivos que descrevem tal herói se esvaem: tranquilo, respeitável, de inteligência média, honesto, não faria mal a uma mosca. Além do que as imagens confirmam isso, enquanto ele cumprimenta passarinhos que gorjeiam e evita esmagar formigas invisíveis em seu caminho, que se protegem jovialmente.

Fig.1.
Mr. Walker

Em um regime temporal de iteratividade – estamos em uma manhã qualquer de um belo dia qualquer do ano – Walker percorre o breve trecho que da saída de casa o leva até a porta da garagem. Um deslocamento mínimo no espaço que comporta uma mudança semântica e narrativa muito forte. A porta da garagem em breve se revelará de fato como uma espécie de porta para o inferno, atrás da qual, prensada até um nível irreal entre milhares de típicas coisas inúteis, repousa o carro maligno que, uma vez ligado, provocará a imediata transformação de Walker em Wheeler.

Espaços, corpos e tecnologias, em suma, desde o início se constituem e se reconstituem em sua relação recíproca: se a casa é o espaço próprio de Walker, e a garagem o espaço próprio do carro, o percurso de um a outro implica uma colocação em continuidade dos dois espaços e, com isso, a constituição, por tradução, de um novo sujeito, dado pela conjunção do corpo ao veículo, que será, precisamente, Wheeler [fig. 2].

Fig. 2.
Mr. Wheeler

Wheeler 1: em direção à cidade

Para sermos precisos, a metamorfose não é tão automática dado que, como todas as metamorfoses sérias, é mais interessante pelo processo que comporta do que pelo resultado que obtém. A música fica mais alta, também o volume da voz do narrador, mas sobretudo, o motor do carro estrondeia cada vez mais forte, prestes a dar a partida e sair. Ora, ao aumento do barulho do motor corresponde a intensidade da transformação de Pateta, de Walker em Wheeler. O ritmo progressivo do motor de arranque do veículo é acompanhado pelo ritmo ascendente-descendente dos braços de Walker: ritmos em uníssono que se intensificam cada vez mais até que, com o fundo do desenho tornado vermelho escuro, o personagem assume os típicos traços do monstro: olhos amarelos, dentes afiados, um riso maligno infernal, garras, braços para o alto como que sinalizando a passagem seguinte para a ação maléfica. O corpo do humano torna-se um com o não humano: não é o primeiro que se transforma em função do segundo; em um olhar mais atento, ambos mudam profundamente e são ligados ao mesmo tempo, adquirindo a “sede de poder” que o enunciador designa com uma tonalidade fria e didática que, agora, contrasta intensamente com o pathos enunciado. Assistiremos a outros fenômenos do gênero, espécies de rimas rítmicas e figurativas entre o corpo de Wheeler e o do carro.

Neste ponto, o híbrido está constituído, a tecnologia está encarnada ou, o que seria o mesmo, o corpo se tornou máquina, e com isso tem-se a criação de um novo ser, um “monstro incontrolável”, um “demônio do volante” pronto para voar entre as vias periféricas em direção ao centro da cidade, cruzando e se embrenhando junto com outros tantos monstros que correm com ele. Atropelará um pedestre (um walker, como ele era até pouco antes), se chocará com um carro à saída da viela de casa [fig. 3], e depois partirá em direção à grande via de quatro pistas que se revela ser – como assinala a tomada do alto – uma espécie de videogame ante litteram. O fato é que Wheeler, como declara a si mesmo, satisfeito, acredita ser “o dono da rua”, imagina assim que todas as vias – avenue, street, drive, boulevard, place, way, turnpike, detour, o caminho que sejam – portem o seu nome próprio porque, precisamente, no fundo lhe pertencem [fig. 4]. Para conseguir o que quer, entre os carros enlouquecidos e enfurecidos, faz uma voz grossa, se impõe pela força, range os dentes e encontra espaço entre as buzinas insuportáveis e o asfalto quente. Expressões como “abram caminho”, “saiam da frente”, “eu quero passar”, “calem a boca” constituem o discurso regular do average man no volante.

Fig. 3.
Conflitos entre Wheelers
Fig. 4.
Todas as estradas são de Wheeler

Ao ponto que, para desprezar os outros automobilistas, não é regra que a velocidade seja o melhor instrumento: desacelerar pode ser igualmente irritante, tática agógica sutil que ocupa o lugar da ânsia pela intensidade a todo custo. E essa é outra rima figurativa importante: enquanto o carro segue vagarosamente ao centro do boulevardda cidade, impedindo a ultrapassagem dos outros, a capota se abre, e com ela o chapéu de Wheeler, como predispondo ambos ao eufórico “ar fresco” identificado pelo narrador. Assim, não é apenas o corpo do humano que deseja um pouco da brisa irascível que causa tanto nervosismo aos carros engarrafados e barulhentos, e aproveitar a música do rádio do carro, mas o híbrido em sua completude, ou melhor, a matéria que o constitui. Há uma espécie de curiosa intercorporeidade acolhida em um único invólucro, ao mesmo tempo humano e não humano: uma espécie de sensorium commune que não é o sinestésico, do corpo antes de ser dividido em modalidades sensoriais, mas outro, que precisamente, equipara os dois seres que o senso comum tende a manter separados por princípio: o guia de um lado, o guiado de outro.

Surge então um terceiro ator, tornando ainda mais complicado o cidadão híbrido: o rádio do carro, não um puro acessório com finalidade de proporcionar um prazer estético superficial e insensível, mas carga modal ulterior que se adjunge, traduzindo-o, junto ao corpo-máquina precedente. Uma coisa é dirigir um carro, outra é dirigi-lo com o rádio ligado, como sabemos bem, e como nos recorda sub-repticiamente nosso texto exemplar. É outro hábito discutível e totalmente diferente: muda o modo de dirigir, de pensar e valorizar o próprio fato de estar no carro: muda a afetividade, muda até mesmo, em certos casos, a relação de pressuposição entre programa de ação final e programa de uso: o rádio me acompanha enquanto vou para qualquer lugar de carro? Ou ao contrário, para qualquer lugar que eu vá, será apenas para ouvir o rádio no carro?

Hoje os celulares, os iPods, as pequenas telas televisivas das quais são dotados os veículos atuais, tornam as coisas muito mais confusas, e os híbridos ainda mais encaixotados e instáveis. Na época de nosso desenho, em todo caso, não havia aparelhos para se envolver, como Wheeler sabe muito bem, interagindo com os inimigos nos outros carros – novo Sun Tzu – em uma espécie de tática de esgotamento, e obrigando-os todos a seguir, como punição, o ritmo doce e embalante da valsa de Strauss que o rádio propaga no ar. Isso dá lugar a uma ulterior rima entre o humano e o não humano. Logo que alguém, de trás, insulta Wheeler chamando-o de “suíno”, eis que o indivíduo – como um ato de desprezo a mais – assume as feições de um porco [fig. 5] e toca a buzina do carro que, em uma metamorfose simultânea (híbrido no híbrido), grunhe (oink!). A série das transformações paralelas poderia assumir desta forma uma representação do seguinte tipo:

Carro => carro com rádio => buzina que grunhe   dimensão do não humano Wheeler => Wheeler que ouve o rádio => suíno   dimensão do humano
Fig. 5.
Wheeler suíno

Para modificar novamente a disposição pragmática e passional, intervém na cena um novo ator da cidade: o semáforo. Bem quando o rádio havia predisposto Wheeler à desaceleração e a um relaxamento durativos (embora com o objetivo de irritar os outros híbridos idênticos), eis que o stop do sinal vermelho provoca no sujeito homem/máquina um desespero neurótico pelo tempo que ele é obrigado a desperdiçar (“trinta segundos da vida perdidos! Por que comigo? Maldição, não é possível!”), tornando necessária a ativação de um programa de busca pelo tempo perdido. É então que o semáforo imediatamente se torna outra coisa: não um instrumento de regulação do tráfego urbano, mas algo muito similar a seu contrário: uma espécie de gongo a partir do qual se empreende uma verdadeira corrida automobilística. Os carros se dispõem nervosamente ao longo da linha de partida [fig. 6], de modo que, assim que surge o sinal verde, todos disparam como loucos, até... o sinal vermelho seguinte, e assim continuando até o exaurimento nervoso, ou melhor, até a demasiado humana perda de controle do veículo. Wheeler bate contra o poste de outro sinal vermelho e então, como enésima variação, o carro quase destruído, em uma pausa obrigatória, torna-se lugar de passagem para um cortejo de passageiros que desce do ônibus parado ao lado [fig. 7]. Não mais meio de transporte, portanto, mas um tipo de passarela formada inesperadamente e uma criativa bricolagem urbana. Até que o último passageiro, muito educado, feche a porta do carro cumprimentando o pobre Wheeler, derrotado pelo vergonhoso acontecimento que está suportando. Menos mal – como válvula de escape infantil – que há pé-móveis desventurados para descontar: é ótimo espirrar água suja sobre eles, passando com velocidade sobre poças de água.

Fig. 6.
Carros parados ao semáforo, posicionados em posição de partida
Fig.7.
Carro-passarela para passageiros do ônibus

O último ato das aventuras de Wheeler na cidade é o reencontro do objeto de valor supremo: a vaga para estacionar. Uma ótima vaga para o carro se delineia no horizonte, reavivando nele a sede de domínio do homem sobre o homem. Impondo-se sobre outros automóveis desejosos de parar, não sem antes ter maltratado outros carros estacionados, Wheeler obtém finalmente a conjunção com o almejado objeto de desejo, sem compreender – todavia – o que virá a acontecer com sua própria identidade. Perdida, voltará a ser a partir daquele momento, com efeito, o virtuoso Mr. Walker, entre as calçadas da cidade.

Walker 2: na cidade

Com o carro diabólico estacionado, Wheeler assume subitamente as feições de Walker (nota-se que, enquanto a transformação de Walker em Wheeler é longa e espetacular, a inversa é oculta e imediata). O espaço que é propriamente dele, apesar de si mesmo, é dessa vez o centro da cidade, por onde os carros passam seguindo suas vidas, enquanto os cidadãos normais passeiam tranquilos em compras ou simples caminhadas. Pelo menos a princípio. Na realidade, a guerra entre pé-móveis e automóveis sempre continua. Basta que se proponha o problema de atravessar uma rua. É impossível ou – o que seria o mesmo – uma tentativa extremamente arriscada para qualquer transeunte: os carros o recusam, devolvendo-o imediatamente às calçadas, quase demarcando o território com limites espaciais muito fortes – de um lado os pedestres, de outro os carros – que uma vez cruzados, a própria integridade física é seriamente posta em risco. E quando Walker, concentrando-se, se carrega modalmente com o dito muito fácil “querer é poder”, e tenta atravessar mais uma vez, a reação é implacável: o logotipo do carro da vez, uma estrela, situado na ponta do capô frontal, se torna subitamente a mira de um fuzil, e assim é utilizado para melhor atingir o sujeito iludido. Os carros se tornam por fim animais ferozes que, com o capô dessa vez transformado em uma grande boca dentada, tentam agarrar o pobre Walker [fig. 8].

Fig.8.
Walker perseguido por carros enfurecidos

Como um adjuvante inesperado, entra em cena o jornal. Ou melhor: o híbrido Walker que lê o jornal, atravessando a rua distraído. A leitura do cotidiano – embora traga a má notícia do aumento vertiginoso dos acidentes de trânsito – é para Wheeler algo muito similar à aquisição do meio mágico nas fábulas russas: o pé-móvel que cruza o território do outro, neste caso do carro, quando imerso no jornal se torna como que invisível, certamente invulnerável, e milagrosamente consegue alcançar a calçada, enquanto os carros, atirando-se em torno sem ao menos atingir-lhe de raspão, acertam-se a si mesmos sucessivamente [fig. 9].

Fig.9.
A mágica leitura do jornal salva Walker dos carros, que se colidem sucessivamente

Mas mais uma vez as coisas são mais complicadas do que parecem: os atores em jogo – na cidade – são sempre novos e continuamente imprevisíveis. Entra em cena um híbrido particular, de fato, metade menino e metade patinete, que se atira não pelas ruas urbanas, mas pelas calçadas, arremessando o pobre Walker de ponta cabeça com seu bem-amado jornal, além de zombar com prazer [fig. 10].

Fig.10.
O menino no patinete marca seu veículo com outro Walker atropelado na calçada (ao fundo o jornal, já abandonado)

Assim, o único lugar seguro, a única âncora de salvação é o próprio carro, para o qual Walker retorna sendo um pouco menos walker do que antes, pois destruído, agora caminha a quatro patas. E eis que inevitavelmente, assim que liga o motor, a metamorfose, digamos, básica, é representada, e Mr. Walker reassume as feições e paixões do terrível Mr. Wheeler, com o mesmo processo de antes.

Wheeler 2: o acidente

Neste ponto a narrativa faz economia de si mesma: em vez de repropor iterativamente os mesmos eventos, suficientemente previsíveis, parte em direção ao final encadeando uma temporalidade por definição singularizante e uma aspectualidade de fato pontual: a do acidente. Tentando sair do estacionamento de forma ruidosa e desajeitada – uma batida à frente, outra atrás – Wheeler não percebe um carro em disparada ao longo da rua e é atingido em cheio. Seu carro fica compassivamente em pedaços, e enquanto ele continua insensível a buzinar, sentado no veículo, é rebocado por um caminhão guincho que parte piedosamente em direção ao cemitério [fig. 11].

Fig.11.
Carro e caminhão guincho

Walker-Wheeler: final

O final nos apresenta assim uma nova metamorfose paralela, dupla. Por um lado, não há mais o híbrido homem-automóvel, mas uma figura mais complexa que poderíamos esquematicamente representar como:

(homem + automóvel) + caminhão guincho

Por outro, em uma observação aprofundada, não há mais o Wheeler de sempre, sistematicamente oposto ao dócil Walker, mas uma espécie de termo complexo entre os dois personagens: um Walker-Wheeler que, tendo encontrado um inimigo em comum, se aliam inesperadamente entre si. De quem se trata? Obviamente do narrador, que enquanto expõe sua óbvia moral benfeitora – “que isso lhe sirva de lição, dirija com atenção, respeite as regras...” – recebe um conclusivo, e útil, “shut up!” [fig. 12].

Fig.12.
Olhar de Walker/Wheeler no carro

Uma outra moral

Assim, ao invés de alinhar-nos com a ideologia do narrador, o texto parece sugerir outras conclusões teóricas diversas, que vão além da moral banal em relação ao devido respeito ao código de trânsito.

Se considerarmos o texto em sua linearidade narrativa, não será difícil reconhecer ao longo de seu desenvolvimento sintagmático as célebres quatro etapas de um esquema narrativo profundo: haveria o momento da manipulação (em que o enunciador se constrói como Destinador que institui o sistema de valores e o usa para estipular um contrato com Walker/Sujeito do querer); o momento da competência (em que o carro pode ser interpretado como falso adjuvante do Sujeito, tecnicamente um poder-fazer ilusório, ou seja, uma espécie de trickster que leva o herói em direção a destinos e valores absolutamente diversos daqueles previstos no contrato); o momento da performance (em que Walker encontra em si mesmo, transformado em Wheeler, o próprio Antissujeito interno); o momento da sanção (em que o enunciador retorna sob a forma de Destinador Julgador que considera negativamente a ação do Sujeito, reforçando os valores corretos do cidadão modelo).

Todavia, conforme dito acima, o texto parece manifestar ao menos uma estrutura circular, em que a introdução já prevê o final da história, sugerindo uma reprodutibilidade ao infinito dos eventos narrados, uma constitutiva ciclicidade dos fatos urbanos e sociais. E a zombaria final de Walker/Wheeler aliados contra o presumido Destinador julgador – junto a um olhar, do carro, que convida o espectador a tomar posição, de fato calando-o – parece provar esta segunda hipótese hermenêutica. Motormania não é uma história contra a geral e moderníssima mania do carro, mas uma teoria implícita sobre espaços urbanos e sobre aquilo que, nesses e com esses, sempre e todavia ocorre. Trata-se de um texto que mostra e motiva a multiplicação dos híbridos, que mal se esconde por trás de uma duplicidade - Walker/Jekill vs Wheeler/Hide – de fato simplificadora. A cidade, como nos é ratificado, não é apenas seu centro, mas começa onde ainda não existe, fora dela mesma, e na relação que vive com suas periferias, com os bairros residenciais externos que, segmentando-a em partes, ao mesmo tempo são mantidos junto, articulados sensivelmente. Assim, ela é também e sobretudo a rede viária que conecta e desconecta suas zonas e bairros, com tudo aquilo que ocorre nesses locais: conflitos frequentes e contratos raros entre entidades de natureza aparentemente diversa – humana e não humana – que se conectam entre si dando lugar a seres que de híbrido têm, em uma observação aprofundada, o único lado da substância da expressão, enquanto pelo do conteúdo, são absolutamente sensíveis, claros, funcionais ao contexto e à situação que, construindo-os, os leva a agir e a sentir. Por trás da metamorfose de fundo da cidade moderna (abstrata), do pedestre em automobilista e vice-versa, pululam inúmeras outras (concretíssimas) transformações, em que tecnologias como o rádio do carro, a buzina, os semáforos, o ônibus, o patinete, mas também articulações topológicas como rua/estacionamento/calçada/sinalética (vertical e horizontal) etc., contribuem para a produção, algumas vezes, de figuras actoriais diferentes, cada uma com paixões próprias, programas próprios, e o próprio caráter.

Como ulterior e implícita demonstração do fato que, do ponto de vista sociossemiótico, espaços, sujeitos, corpos, coletividades e tecnologias devem ser considerados de acordo com uma única perspectiva teórica e metodológica, realçando como esses não são entidades separadas, nitidamente distinguíveis entre si, se não por uma abstração filosófica banal que o senso comum – frequentemente subordinado a muitas ciências humanas – apoia. Consequentemente, nenhum desses elementos – um lugar, um instrumento, um corpo, um grupo... – possui valências e funções próprias, desejos ou paixões específicos, se não por conotações sociais mais ou menos estáveis e naturalizadas. Assim (como nosso desenho nos diz explicitamente), não existem sujeitos bons ou maus por si mesmos, uma vez que é em suas traduções com meios e lugares que são determinadas suas personalidades reais. O Pateta em casa, no jardim, na garagem, no carro percorrendo vias arteriais, no carro com o rádio ligado, na cidade, em busca da vaga para estacionar, passeando pelas calçadas, na tentativa de atravessar a rua, imerso na leitura do jornal, não é absolutamente a mesma pessoa, não tem os mesmos programas e os mesmos sentimentos. Além do que também o carro é um “personagem” diferente no cemitério, na garagem, estacionado, correndo com outros carros, preso no caminhão guincho, etc. Analogamente (como nosso desenho diz com os próprios meios audiovisuais), não existem meios de transporte bons ou ruins por si mesmos (o carro negativo e a bicicleta positiva, por exemplo), dado que é sempre o contexto narrativo que lhes fornece uma “alma” de qualquer tipo, em suas relações constitutivas e dinâmicas com os sujeitos humanos que os utilizam, com os outros meios de transporte, com os lugares que percorrem. Wheeler se torna mau no carro se em conflito com outros híbridos como ele; torna-se perversamente tranquilo quando liga o rádio, transformando a si e ao carro em suínos provisórios; torna-se triste e passivo quando suporta a gentileza dos passageiros do ônibus que usam seu carro destruído como uma conveniente passarela. Ainda (e nosso desenho claramente destaca) não há espaços positivos por si mesmos e outros negativos por si mesmos: a faixa de rodagem é um lugar perigosíssimo para os pedestres, a menos que mergulhados na leitura do cotidiano, que, isolando Walker do resto do mundo, como por magia o torna invulnerável; da mesma forma, a calçada é um território seguro para Walker, a menos que por acaso se encontre com o menino do patinete que, na verdade, o atropela sem nenhuma dificuldade. Além de tudo, rindo dissimuladamente: “mais um!”.

Nota

  • Este artigo pretende se inserir, sobre o panorama dos estudos sociológicos, antropológicos e urbanísticos acerca do ambiente da cidade e do território metropolitano, na já vasta bibliografia sobre a semiótica da espacialidade urbana (Barthes, Greimas, Lotman, Marin, De Certeau, Hammad, etc.), pelos quais reenviamos a nosso trabalho recente: Figure di città. Discorsi sociali e spazi urbani, Milano, Mimesis 2013. A ideia é cruzar a reflexão sobre a significação urbana (que considera espaço e sujeito constituindo-se reciprocamente) com a observação sobre o sentido da tecnologia, conduzida sempre com a escolta da teoria semiótica, de Bruno Latour e de sua escola (cf. para todos, Il senso degli oggetti tecnici, organizado por Alvise Mattozzi, Meltemi, Roma 2006), em que a ideia do híbrido “humano-não humano” é constitutiva. Assim como com a pesquisa semiótica sobre o corpo (cf. Jacques Fontanille, Séma et soma: les figures du corps, Paris, Maisonneuve et Larose, 2004; Gianfranco Marrone, La Cura Ludovico, Torino, Einaudi 2005).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    Jan 2015
  • Aceito
    Mar 2015
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