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#FiqueEmCasa: responsividade ativa na propaganda política institucional frente à pandemia da Covid-19

RESUMO

Esta pesquisa filia-se aos postulados do Círculo de Bakhtin no que se refere ao dialogismo da linguagem, em especial, à responsividade ativa atribuída a todo discurso que se faz em resposta a outros. Situada no âmbito da Análise Dialógica do Discurso, propomos uma interface com alguns elementos da Gramática Discursivo-Funcional para a análise linguística dos enunciados. Nosso objetivo é avaliar como a atitude responsiva se instaura no discurso do Governo do Estado de São Paulo em relação a declarações do governo federal, de modo a construir uma política institucional em tempos de pandemia da covid-19. Por meio da análise de dois vídeos, constatamos que a atitude responsiva que o Governo de São Paulo procura demonstrar não configura, necessariamente, atitudes de responsabilidades perante os menos favorecidos, entretanto, alcança seu objetivo, que é contrapor o discurso do governo federal para orientar as atitudes da população no cenário pandêmico.

PALAVRAS-CHAVE:
Dialogismo; Responsividade ativa; Discursos governamentais; Pandemia

ABSTRACT

This research is in line with the postulates of the Bakhtin Circle regarding the dialogism of language, particularly, the active responsiveness assigned to any utterance in response to others. Within the scope of Dialogic Discourse Analysis, we propose an interface with some elements of the Functional Discourse Grammar for linguistic analysis of utterances. Our objective is to evaluate how the responsive attitude is established in the discourse of the Government of São Paulo in regard to statements by the Federal Government, in order to build an institutional policy in times of covid-19 pandemic. Through the analysis of two videos, we have found that the responsive attitude which the Government of the State São Paulo seeks to demonstrate does not necessarily configure attitudes of responsibility towards the less fortunate. However, it reaches its objective, which is to oppose to the Federal Government’s discourse guiding the attitudes of the population in the pandemic scenario.

KEYWORDS:
Dialogism; Active Responsiveness; Government Discourses; Pandemic

No final do ano de 2019, a China divulgou a descoberta do Sars-CoV-2, o novo coronavírus, causador da doença denominada covid-19 e, em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde confirmou a situação pandêmica vivenciada, a qual colocava em alerta o mundo todo e indicava a única providência possível para seu controle: o isolamento social. No Brasil, a pandemia se instaurou em meio a um conturbado contexto político vivenciado desde as eleições de 2014, que se agravou no período eleitoral de 2018: a polarização entre a ala conservadora/direitista e a ala progressista/esquerdista.

Essa polarização da sociedade brasileira foi ressignificada no contexto da pandemia, colocando, de um lado, os que, junto à Organização Mundial da Saúde, consideravam a gravidade da situação e, de outro, os que diziam se tratar de uma simples “gripezinha”. Assim, aqueles defendiam o isolamento da sociedade como um todo, fechando comércios e escolas, por exemplo, para evitar quaisquer tipos de aglomerações e proliferação mais rápida do vírus; enquanto estes defendiam que apenas parte da população deveria ficar isolada, de modo a não prejudicar a economia do país. É nesse contexto, cujo conteúdo temático se volta ao enfrentamento de uma pandemia, que delineamos nossa pesquisa, com o objetivo de avaliar como a atitude responsiva se instaura no discurso do Governo do Estado de São Paulo em relação a declarações do governo federal, de modo a construir uma política institucional em tempos de pandemia da covid-19.

Assim, a partir da perspectiva bakhtiniana do discurso (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.261-306.; VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio Introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.), pretendemos analisar os elementos que indicam a responsividade ativa estabelecida no vídeo #FiqueEmCasa (doravante vídeo 2 ou segundo vídeo), de autoria do Governo do Estado de São Paulo1 1 O vídeo #FiqueEmCasa pode ser acessado no canal do Governo do Estado de São Paulo no YouTube, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=D2zESBXbauA. Acesso em: 25 abr. 2020. , elaborado e divulgado em resposta ao vídeo #oBrasilNãoPodeParar (doravante vídeo 1 ou primeiro vídeo), cuja autoria foi negada pelo governo federal2 2 Levando em consideração a indefinição sobre a autoria do vídeo, não é possível acessá-lo em canais oficiais de divulgação. No entanto, pode ser visto no YouTube, a partir do endereço https://www.youtube.com/watch?v=hQQZE7LQIGk&t=1s . Acesso em: 25 abr. 2020. , mas que, aqui, conforme fontes que apresentaremos no decorrer do artigo, atribuímos ao governo de Bolsonaro. Os enunciados que compõem as duas propagandas políticas institucionais, situadas no contexto da pandemia da covid-19, argumentam em prol das diretrizes governamentais, apresentando orientações consideradas opostas: o vídeo do governo federal, divulgado nas mídias sociais no dia 28 de março de 2020, indica medidas de flexibilização do isolamento social e de retomada das atividades econômicas do país em meio às ações de combate à disseminação do coronavírus. O vídeo do Governo do Estado de São Paulo, publicado dois dias depois, explicita a necessidade do isolamento social como modo de preservação da vida diante da pandemia.

Para efetuar a análise linguística dos enunciados, utilizamos algumas diretrizes da Gramática Discursivo-Funcional (GDF) (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008HENGEVELD, K.; MACKENZIE, L. Functional Discourse Grammar. A Typologically-based Theory of Language Structure. Oxford: Oxford University Press, 2008.), especialmente como forma de reforçar e balizar a análise dos gêneros discursivos multissemióticos selecionados. A escolha pela GDF deu-se pela orientação pragmática desse modelo de gramática, que tem como ponto de partida as intenções comunicativas para a estruturação semântica e morfossintática do dado linguístico. Além dessa escolha teórica, por se tratar de textos hipermidiáticos, utilizamos a semiótica (SANTAELLA, 2007SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.; 2012SANTAELLA, L. Leitura de imagens. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012.) para a análise dos elementos multissemióticos (ROJO, 2013ROJO, R. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In: ROJO, R. (Org.). Escola conectada: os multiletramentos e as TICS. São Paulo: Parábola Editorial, 2013, p.13-36.; ROJO e MOURA, 2012ROJO, R.; MOURA, E. (orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012.) que corroboram para a atribuição de sentido ao corpus selecionado.

Por fim, este artigo está estruturado em três seções, além da introdução (momento em que apresentamos o tema abordado nos gêneros discursivos selecionados - a pandemia - e indicamos a situação concreta de enunciação - posicionamentos políticos antagônicos em relação ao modo de se combater a pandemia) e da conclusão, a saber: (i) apresentamos, de forma breve, a fundamentação teórica que orienta o nosso olhar para a discussão da responsividade ativa posta nos discursos institucionais materializados nos dois vídeos em análise; (ii) delimitamos o percurso teóricometodológico, com base na fundamentação dialógico-discursiva que tomamos para a escrita deste artigo; e (iii) apresentamos a análise dos vídeos, com atenção à fundamentação teórica e ao percurso metodológico desenvolvidos neste trabalho.

1 Perspectivas teóricas

As possibilidades de ampliação de nossos olhares sobre os estudos de língua/linguagens certamente não seriam as mesmas sem as reflexões divulgadas por pesquisadores como Mikhail Bakhtin, Volóchinov e Medviédev, que formavam o Círculo de Bakhtin. A partir da segunda década do século XX, guiados por teorias fundamentadas em abordagens filosóficas tanto da linguagem quanto das artes, os pesquisadores distanciaram-se das visões estruturalistas e formalistas, próprias do formalismo russo, e introduziram estudos de linguagens para além dos elementos estruturais dos textos, valorizando a relação entre linguagem e sociedade (GRILLO, 2017GRILLO, S. Ensaio introdutório. In: VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2017, p.7-80.), pois, para eles, o “enunciado é de natureza social” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio Introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.200).

Entre os assuntos discutidos nas obras do Círculo, como carnavalização, cronotopo, polifonia, filosofia da linguagem e psicologia objetiva, centralizamos nossas discussões nas questões que envolvem, de modo geral, os gêneros discursivos e o dialogismo, e, de modo específico, a responsividade ativa intrínseca a esses elementos da linguagem. Desse modo, embora reconheçamos a importância de outros temas, e até mesmo recorramos a eles em alguns momentos do artigo, fizemos esse recorte por compreender que, por meio dele, seria possível alcançarmos o objetivo almejado para este artigo.

Assim, iniciamos com a definição de gêneros discursivos enquanto “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.261-306., p.262). Para Bakhtin, “[o] emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana” (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.261-306., p.261). Ou seja, o emprego da língua se realiza porque tem quem o materialize em enunciados, numa relação dialógica da linguagem. Relação dialógica essa que se explica pela imersão do sujeito na língua(gem). Dito de outro modo, o falante, ao produzir um enunciado - unidade real de comunicação discursiva -, ancora esse dizer numa fronteira interior que a interlocução do diálogo externo constitui. Tratase do caráter de réplica intrínseco a qualquer enunciação, um dialogismo construído num jogo do dizer e do já-dito que abre para a possibilidade de outros enunciados, em razão do princípio de alternância que localiza um outro responsivo ativo no funcionamento do enunciado. Assim, compreender um enunciado pressupõe uma “[...] natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta e, nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante” (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.261-306., p.271).

Para além dos aspectos dialógicos/responsivos que recobrem a materialização de um enunciado, encontramos, em Volóchinov (2017, p.220), o que o autor denomina como “ordem metodologicamente fundamentada para o estudo da língua”:

1) formas e tipos de interação discursiva em sua relação com as condições concretas; 2) formas dos enunciados ou discursos verbais singulares em relação estreita com a interação da qual são parte, isto é, os gêneros dos discursos verbais determinados pela interação discursiva na vida e na criação ideológica; 3) partindo disso, revisão das formas da língua em sua concepção linguística habitual (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio Introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.220).

Desse modo, no diálogo com a análise discursiva do gênero propriamente dita, este trabalho lida também com a análise multissemiótica e com a análise linguística dos enunciados. Para a realização dessa última, tal como pontuamos na introdução do artigo, orientamos nosso olhar com base em alguns pressupostos do funcionalismo, especialmente na proposta da Gramática Discursivo-Funcional (GDF), por meio da qual se explica o funcionamento da gramática de uma língua explorando a relação entre o sistema e o uso, tendo sempre em vista o caráter multifuncional das construções linguísticas e, em consequência, a interação entre seus diversos componentes - pragmático, semântico, morfossintático e fonológico. A escolha por uma teoria funcional como a da GDF baseia-se no enfoque essencialmente pragmático de sua arquitetura: por se organizar de forma descendente, motivada pela suposição de que um modelo de gramática será mais eficaz quanto mais sua organização se assemelhar ao processamento linguístico, a GDF toma como categoria de análise o Ato Discursivo, categoria interpessoal (pragmática, portanto) que representa a menor unidade do comportamento discursivo e, assim, maximiza a relação entre sistema linguístico, intenção comunicativa e conexões discursivas, sendo compatível com a análise discursivamente orientada deste trabalho.

Em relação à análise multissemiótica, dialogamos com as contribuições de

Santaella (2007SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.; 2012SANTAELLA, L. Leitura de imagens. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012.), Rojo e Moura (2012)ROJO, R.; MOURA, E. (orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012. e Rojo (2013)ROJO, R. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In: ROJO, R. (Org.). Escola conectada: os multiletramentos e as TICS. São Paulo: Parábola Editorial, 2013, p.13-36., já que

[...] não basta mais a leitura do texto verbal escrito - é preciso colocálo em relação com um conjunto de signos de outras modalidades de linguagem (imagem estática, imagem em movimento, som, fala) que o cercam, ou cercam, ou intercalam ou impregnam. Inclusive, esses textos multissemióticos extrapolam os limites dos ambientes digitais e invadiram hoje também os impressos (jornais, revistas, livros didáticos) (ROJO, 2013ROJO, R. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In: ROJO, R. (Org.). Escola conectada: os multiletramentos e as TICS. São Paulo: Parábola Editorial, 2013, p.13-36., p.20-21; grifo no original).

Assim, trilhar nossos estudos a partir da teoria bakhtiniana, mais precisamente com base na Análise Dialógica do Discurso, é compreender, enquanto linguistas/professoras de línguas, o valor dos elementos linguísticos que constituem os enunciados, produzidos em contextos reais, por meio de gêneros discursivos atrelados às esferas de atuação de sujeitos, que se situam em contextos históricos e socioculturais específicos; de modo que “o estudo do enunciado como unidade real de comunicação discursiva permitirá compreender de modo mais correto também a natureza das unidades da língua (enquanto sistema) - as palavras e orações” (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.261-306., p.269). Assim, dentre as possibilidades conferidas aos estudos de língua/linguagem a partir da epistemologia em questão, centralizamos nossas discussões a partir do dialogismo, mais precisamente às “variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.261-306., p.297), por meio da multimídia, caracterizada pela aglutinação das mídias (hibridismo), cujas linguagens que a formam/transformam se configuram como hipermídias (SANTAELLA, 2007SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.).

Portanto, ao escolhermos como corpus de análise dois vídeos, que se constituem como enunciados produzidos no contexto temático da pandemia da covid-19, os quais circulam na multimídia e se utilizam de múltiplas linguagens, pautamo-nos no aspecto dialógico da linguagem instaurado pelo segundo vídeo #FiqueEmCasa em resposta ao primeiro #oBrasilNãoPodeParar. Por se tratar de textos/enunciados de natureza multissemiótica, ampliamos, com base em Rojo (2013)ROJO, R. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In: ROJO, R. (Org.). Escola conectada: os multiletramentos e as TICS. São Paulo: Parábola Editorial, 2013, p.13-36., a percepção das teorias bakhtinianas para análise de textos/discursos, levando-nos a considerar não só o tema, a forma composicional e as unidades linguísticas que compõem os gêneros discursivos, mas também as multissemioses (referentes à forma composicional) e as unidades semióticas (relacionadas ao estilo dos textos).

2 Percurso teórico-metodológico

Tendo em vista o objetivo a ser alcançado nesta pesquisa - avaliar como a atitude responsiva se instaura no discurso do Governo do Estado de São Paulo em relação a declarações do governo federal, de modo a construir uma política institucional em tempos de pandemia da covid-19 - optamos por, na introdução do artigo, abordar o primeiro passo de análise proposto por Volóchinov (2017, p.220), que compreende “formas e tipos de interação discursiva em sua relação com as condições concretas [de produção dos enunciados]” - apresentado por nós na parte teórica do artigo (bem como os dois passos que descreveremos a seguir, os quais foram apreendidos pela Análise Dialógica do Discurso). Decidimos por apresentar, na parte introdutória do artigo, essas condições concretas por compreendermos que, dessa forma, estaríamos possibilitando aos leitores, logo no início do texto, o acesso ao contexto histórico e sociocultural em que se situa o corpus em análise, de modo a haver maior proximidade com a realidade que atravessa os discursos em pauta no momento de sua constituição.

No segundo passo de análise - “formas dos enunciados ou discursos verbais singulares em relação estreita com a interação da qual são parte, isto é, os gêneros dos discursos verbais determinados pela interação discursiva na vida e na criação ideológica” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio Introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.220) - inicialmente, apresentamos as características gerais dos vídeos e, em seguida, voltamos nosso olhar para elementos discursivos do primeiro vídeo, como a questão autoral, de modo a realizarmos o levantamento de enunciados que corroboram a afirmação de que o vídeo #oBrasilNãoPodeParar é de autoria do governo federal. Para isso, buscamos nos apoiar em fontes diversas como web jornais, declarações da assessoria de comunicação da presidência e o pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro de 24 de março de 2020 (quatro dias antes do “vazamento” do vídeo em redes sociais); ainda nesse passo da análise, abordaremos a responsividade ativa/dialogismo que se faz presente nos dois vídeos, em relação aos discursos que os atravessam.

A análise do estilo de linguagem, ou seja, dos elementos linguísticos/multissemióticos presentes nos dois vídeos configurou o terceiro passo de análise - “revisão das formas da língua em sua concepção linguística habitual” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio Introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.220), constituindo, assim, a análise do gênero discursivo em sua totalidade (conteúdo temático, forma composicional, análise linguística) de acordo com a Análise Dialógica do Discurso, que, como apresentamos anteriormente, abrange também os elementos multissemióticos que compõem os vídeos em questão. Nesse último passo da análise, após o levantamento e a geração dos dados, observamos quais elementos (linguísticos e multissemióticos) são mais relevantes para evidenciar a natureza da atitude responsiva no posicionamento ideológico #FiqueEmCasa, do Governo do Estado de São Paulo, em resposta ao #oBrasilNãoPodeParar, do governo Bolsonaro, para que, em momento posterior, pudéssemos organizar os dados analisados, de modo a selecionar os elementos mais significativos para o alcance do nosso objetivo.

Seguindo essas diretrizes, dispusemos na análise os quadros 2 to 3, que mostram o texto verbal dos vídeos elencados em paralelo ao tempo de veiculação de cada agrupamento de imagens referente aos oito enunciados do vídeo 1, e aos nove enunciados do vídeo 2. Desse modo, em relação ao vídeo #oBrasilNãoPodeParar, foram identificados oito enunciados e 25 cenas, com 1’27” (um minuto e vinte e sete segundos) de duração; já o vídeo #FiqueEmCasa tem a duração de um minuto e é formado por nove enunciados e 26 cenas. O intuito de apresentarmos essa configuração dos vídeos (enunciados/cenas/tempo de duração) é possibilitar ao leitor acompanhar, de forma mais didática, os recortes empreendidos no corpus em questão e, ao acessar os vídeos na íntegra, poder verificar as ocorrências dos elementos multissemióticos em correlação aos enunciados linguísticos neles presentes.

No quadro a seguir, sintetizamos o percurso metodológico delineado no artigo para a análise dos dados.

Quadro 1
Percurso metodológico da análise dos dados

3 Contextualização histórica e sociocultural: características discursivas e estruturais dos vídeos

Em relação à situação concreta de enunciação referente à produção do corpus em análise, os vídeos #oBrasilNãoPodeParar e #FiqueEmCasa resultam como respostas aos modos de combate à covid-19 no Brasil. O primeiro estabelece-se como uma resposta aos diversos discursos de enfrentamento pandêmico do coronavírus, a exemplo, o da Organização Mundial de Saúde, que orienta o isolamento social como medida de proteção à vida, uma vez que o vírus coloca em risco a população em proporções globais. Já o segundo se assume como uma resposta de posição contrária ao vídeo ligado ao governo federal. Ambos os vídeos de propaganda política institucional ganharam circulação nas redes no mês de março de 2020, quando a pandemia começou a tomar proporções preocupantes no Brasil.

No que se refere ao primeiro vídeo, é importante destacar que, conforme informações do presidente Jair Bolsonaro, ele não foi disponibilizado por sua equipe de governo, mas teria sido vazado (SABINO, 2020SABINO, M. Bolsonaro diz que vídeo da campanha “O Brasil Não Pode Parar” vazou. In: Estadão/UOL, Brasília, 29 de mar. 2020. Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/03/29/bolsonaro-dizque-video-da-campanha-o-brasil-nao-pode-parar-vazou.htm. Acesso em 25 abr. 2020.
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noti...
). E, apesar de o presidente não explicar com qual propósito isso teria ocorrido, nem quem teria interesse em divulgá-lo sem autorização, sua autoria foi assumida por órgãos do governo. A Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), embora tivesse postado em redes sociais o slogan “O Brasil não pode parar”, apagou as publicações e negou a existência de uma campanha em favor desse posicionamento ideológico, alegando que o vídeo era um projeto experimental, sem o aval do governo para divulgação (SECOM, 2020SECOM apaga posts e diz que campanha “O Brasil Não Pode Parar” não existe. Exame, 28 de mar. 2020. Disponível em https://exame.com/brasil/secom-apaga-posts-e-diz-quecampanha-o-brasil-nao-pode-parar-nao-existe/. Acesso em 25 abr. 2020.
https://exame.com/brasil/secom-apaga-pos...
). Ainda assim, na noite do dia 26 de março, o enunciado, em forma de hashtag, #OBrasilNãoPodeParar também foi postado em redes sociais por pessoas ligadas diretamente à presidência, como o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente (BOLSONARO, 2020BOLSONARO, F. #OBrasilNãoPodeParar. Twitter, 2020. Disponível em https://twitter.com/FlavioBolsonaro/status/1243367365254868992?s=20. Acesso em 25 abr. 2020.
https://twitter.com/FlavioBolsonaro/stat...
). Além disso, o vídeo circulou em redes sociais de órgãos ligados ao governo, especialmente via WhatsApp, sendo repercutido, principalmente, nas redes bolsonaristas.

A divulgação do vídeo não foi positiva na imprensa e na justiça3 3 Não foi apenas no Brasil que campanhas contra as medidas de isolamento social como forma de controle da disseminação da doença foram produzidas. Em Milão, no final de fevereiro, a prefeitura divulgou o vídeo “Milano NON si ferma”. Um mês depois, com um número alto de casos e mortes na região da Lombardia, o prefeito de Milão pediu desculpas e admitiu ter errado com a campanha, conforme informações da imprensa (PREFEITO, 2020). . Como resposta à solicitação do Ministério Público Federal, a Justiça Federal do Rio de Janeiro proibiu sua veiculação, por parte do governo federal, em redes de televisão, emissoras de rádios, jornais, revistas e sites (STRUCK, 2020STRUCK, J. P. Justiça suspende campanha “O Brasil Não Pode Parar”. In: DW Brasil, Brasil, 28 mar. 2020. Disponível em https://www.dw.com/pt-br/justi%C3%A7asuspende-campanha-o-brasil-n%C3%A3o-pode-parar/a-52948560. Acesso em 25 abr. 2020.
https://www.dw.com/pt-br/justi%C3%A7asus...
), pelo fato de ela se configurar como parte de uma política de desinformação, ou seja, uma fake news (prática presente no dia a dia dos brasileiros, que resultou na CPI das Fake News4 4 A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News tem como finalidade investigar (i) os ataques cibernéticos que atentam contra a democracia e o debate público; (ii) a utilização de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições 2018; (iii) a prática de cyberbullying sobre os usuários mais vulneráveis da rede de computadores, bem como sobre agentes públicos; e (iv) o aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio (BRASIL, 2020). ). Assim, se, por um lado, o vídeo aparece como uma peça alinhada discursivamente ao governo do Brasil, por outro, sua validade institucional é negada pelas autoridades competentes. Nesse contexto de produção de autoria não assumida, o vídeo, que irrompe e circula nas plataformas virtuais, parece sumarizar a visão da Presidência da República no combate ao coronavírus, tendo em vista que seu conteúdo reflete diversas manifestações do governo federal brasileiro5 5 O pronunciamento do presidente da República, Jair Bolsonaro, em Cadeia de Rádio e Televisão, em 24 de março de 2020, explicita essa posição. O vídeo com o pronunciamento está disponível para visualização no YouTube, no link: https://www.youtube.com/watch?v=Vl_DYb-XaAE. Acesso em: 25 abr. 2020. e, embora não reconhecida a autoria, como já mencionado, esse governo foi judicialmente responsabilizado por sua divulgação e promoção.

No que diz respeito ao vídeo #FiqueEmCasa, ele se configura como uma resposta ao posicionamento ideológico do governo federal, pois não só explicita sua autoria, uma vez que apresenta aos seus interlocutores a assinatura do Governo do Estado de São Paulo, como traz enunciados que refutam a ideologia divulgada discursivamente no vídeo #oBrasilNãoPodeParar. Corrobora essa leitura a entrevista do governador do estado, João Dória, no lançamento da campanha de combate à pandemia. Em tal ocasião, ele afirmava, explicitamente, que as pessoas deveriam atender às recomendações médicas e não se guiarem por informações difundidas em redes sociais, além de não seguirem “as orientações do presidente da República do Brasil” (SÃO PAULO, 2020SÃO PAULO lança campanha ‘Fique em casa’ em contraponto ao vídeo ‘O Brasil não pode parar’. Huffpost, 30 de mar. 2020. Disponível em https://www.huffpostbrasil.com/amp/entry/sao-paulo-campanha-fique-emcasa_br_5e823772c5b623d8e5384939/. Acesso em 01 maio, 2020.
https://www.huffpostbrasil.com/amp/entry...
).

Sobre as características estruturais e discursivas dos vídeos, destacamos que o primeiro, #oBrasilNãoPodeParar, foi produzido a partir de 24 cenas estáticas, em cores, organizadas em formato fílmico. A voz que enuncia os dizeres ali presentes apresenta a sonoridade grave de uma voz masculina, pronunciada de forma serena, mas ao mesmo tempo firme; a qualidade e o timbre de voz, somados à entoação do narrador, denotam um tom de autoridade e também de compaixão por aquelas pessoas ali figurativizadas, representadas como a classe trabalhadora brasileira. Já o segundo vídeo, #FiqueEmCasa, é composto por 25 cenas em movimento, exibidas numa sucessão de imagens em preto e branco, ora de espaços públicos vazios da cidade de São Paulo, ora de imagens de diversas pessoas em ambientes domésticos. A exibição das cenas se encerra com uma imagem urbana dos prédios da cidade em foco.

Ao ser elaborada numa simultaneidade de modos de enunciação que envolvem aspectos sonoros, imagéticos e gráficos, a construção composicional dos vídeos se aproxima entre si, mas o segundo traz uma particularidade: o acréscimo da imagem de um intérprete de Libras. Assim, o modo como os enunciadores dos gêneros discursivos em análise “[...] selecionam diferentes recursos semióticos e diversas combinatórias possíveis entre eles para atingir suas finalidades e ecoar seus temas [...]” (ROJO, 2013ROJO, R. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In: ROJO, R. (Org.). Escola conectada: os multiletramentos e as TICS. São Paulo: Parábola Editorial, 2013, p.13-36., p.29) demonstra como refletem/refratam a realidade em que estão inseridos, explicitando, nesse caso, maior ou menor engajamento em relação à política de inclusão social.

4 Responsividade ativa dos vídeos em análise

Passando ao terceiro passo de análise, no quadro a seguir, apresentamos a transcrição dos enunciados verbais (E1, E2, E3...) que compõem o primeiro vídeo, em paralelo com o número das cenas (imagens) e o tempo de duração destinado a cada um deles.

Quadro 2
Descrição do vídeo #oBrasilNãoPodeParar

Na transcrição linguística apresentada, enfatizamos, em itálico: (i) a estrutura Para x, #oBrasilNãoPodeParar nos cinco primeiros enunciados; (ii) a mudança dessa estrutura configurada como Para x, Para y, Para z, #oBrasilNãoPodeParar no enunciado seis; e (iii) a inclusão do modalizador “definitivamente” em meio à hashtag #oBrasilNãoPodeParar no sétimo enunciado, modalizador que atribui a esse dizer maior peso argumentativo em relação aos demais.

Essa estrutura Para x é mostrada no discurso nos modos de enunciar falado e escrito, simultaneamente à apresentação das imagens de trabalhadores brasileiros. Tal procedimento de construção do enunciado, num processo de dialogização, se une a outras exterioridades discursivas exibidas nessas imagens, como, por exemplo, a dos últimos sete segundos do vídeo, em que se focaliza um homem de costas envolto na bandeira nacional, e se ouve a intensificação do coro de vozes da trilha sonora da propaganda. Nesse momento do vídeo, o interlocutor fica diante do último enunciado do Hino Nacional Brasileiro, Pátria Amada Brasil, o qual foi ressignificado pelo atual governo como slogan da sua campanha presidencial, que se apropriou desse enunciado, de modo a associá-lo à “marca” que divulga o próprio governo: Pátria Amada Brasil/Governo Federal. Essas marcas linguístico-discursivas, juntamente a outros elementos linguísticos e multissemióticos que serão analisados, refletem/refratam (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio Introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.) o posicionamento ideológico do governo federal, que se apropria de símbolos nacionais, criando a ilusão de que todos/todas, brasileiros e brasileiras, compactuam com suas ideologias.

Ainda sobre a estrutura Para x, que permeia os enunciados verbais, é interessante notar sua composição interna em cada uso, uma vez que sua organização sintática tem implicações relevantes para a construção dos sentidos do discurso em pauta. Essa estrutura (Para x) aparece sempre na primeira posição da expressão linguística e pertence, segundo a teoria da Gramática Discursivo-Funcional (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008HENGEVELD, K.; MACKENZIE, L. Functional Discourse Grammar. A Typologically-based Theory of Language Structure. Oxford: Oxford University Press, 2008.), a um ato discursivo que opera no Nível Interpessoal. Por ocupar a primeira posição da estrutura linguística, tal construção assume a posição típica dos elementos em função pragmática Tópico6 6 Levando em consideração a arquitetura e a notação específicas da GDF, por ser uma função pragmática do Nível Interpessoal, a notação da categoria Tópico é sempre feita em letra maiúscula. , ou seja, assume a posição daquilo que é entendido, na interação, como informação de estatuto conhecido e partilhado pelos interlocutores. Nesse sentido, Pezatti (2012)PEZATTI, E. G. Ordenação de constituintes em construções categorial, tética e apresentativa. DELTA (online), v. 28, n. 2, p.353-385, 2012. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-44502012000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 25 abr. 2020.
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destaca que o Tópico, enquanto função pragmática, marca informações que podem ser inferidas pelo contexto ou que podem ser ativadas pela memória episódica dos interlocutores. De um ponto de vista discursivo, o elemento nessa posição ocupa o lugar do já-dito. Segundo Pezatti (2012)PEZATTI, E. G. Ordenação de constituintes em construções categorial, tética e apresentativa. DELTA (online), v. 28, n. 2, p.353-385, 2012. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-44502012000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 25 abr. 2020.
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, a língua portuguesa é uma língua orientada para o Tópico, já que reserva a primeira posição de construções categoriais para a função Tópico7 7 Pezatti (2012) explica que as diversas possibilidades de atribuição da função pragmática Tópico a constituintes de categorias gramaticais distintas - como subatos referenciais em função de sujeito, como em “a criança cresceu”, subatos referenciais sem função de sujeito, como em “mousse de barbear também temos”, subatos que servem para indicar o cenário de estado-de-coisas evocado, como em “no primeiro dia fizemos uma visita”, dentre outras possibilidades, são evidências sólidas para se considerar a língua portuguesa sensível a essa função. Além disso, a autora defende que todas as sentenças do português apresentam um constituinte Tópico na primeira posição, com exceção das sentenças de molde de conteúdo téticas e apresentativas, o que também justifica a orientação voltada ao Tópico no português. .

Dessa composição (Para x em posição inicial de enunciado, com função de estabelecer a informação conhecida entre os interlocutores), podemos depreender ainda duas implicações para os efeitos de sentido do texto. A primeira delas, mais óbvia e diretamente recuperável, é a de direcionar o assunto principal da mensagem a certos segmentos socioeconômicos e à própria instituição pública (resumidos, no caso, no elemento introduzido no enunciado sete: Para quem defende a vida dos brasileiros e as condições para que todos vivam com qualidade, saúde e dignidade). Assim, argumentase que O Brasil não pode parar - de gerar riquezas, de arrecadar impostos, de criar empregos, de possibilitar a abertura de empresas - para os ambulantes, engenheiros, feirantes, arquitetos, pedreiros, advogados, professores particulares e prestadores de serviço em geral [...], ou seja, para os setores responsáveis pela movimentação da economia, que seriam as principais macro categorias socioeconômicas afetadas pelo isolamento social e pela crise econômica daí consequente. Na correlação entre texto verbal e não verbal, observamos que, mesmo estando listadas profissões de maior prestígio social como engenheiros, arquitetos, advogados e professores particulares, as imagens postas em evidência são somente as de pessoas que demonstram menor poder aquisitivo ou que estão no exercício de suas funções em trabalhos como feirantes, lixeiros e trabalhadores da construção civil. Tal seleção de imagens leva-nos a afirmar que o público-alvo dessa propaganda institucional é a classe trabalhadora brasileira de menor poder aquisitivo, que depende de serviços essenciais do governo como segurança pública, assistência médica e educação. Ocioso dizer que são justamente esses setores os historicamente negligenciados pelos governos brasileiros ou, ao menos, são eles que não têm recebido os investimentos que deveriam.

A segunda implicação para os efeitos de sentido no texto da estrutura Para x, desdobrada da primeira, é a de dar voz aos segmentos listados. Assim, o uso de para x, em que x se coloca como fonte de informação, é uma construção comum de evidencialidade em língua portuguesa. Dall’Aglio-Hattnher (2018DALL’AGLIO-HATTNHER, M. M. A expressão lexical da evidencialidade: reflexões sobre a dedução e a percepção de evento. Entrepalavras, Fortaleza, v. 8, n. esp., p. 98-111, 2018. Disponível em http://www.entrepalavras.ufc.br/revista/index.php/Revista/article/view/1244. Acesso em 01 maio, 2020.
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, p.99) explica que a teoria da Gramática Discursivo-Funcional (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008HENGEVELD, K.; MACKENZIE, L. Functional Discourse Grammar. A Typologically-based Theory of Language Structure. Oxford: Oxford University Press, 2008.) entende a evidencialidade8 8 Por se tratar de assunto complexo, com tipologia diversificada, lidaremos, neste texto, apenas com a macro noção de evidencialidade, que pode ser exemplificada, segundo Dall’Aglio-Hattnher (2018, p.101), em “estudos feitos dizem que o produto não é cancerígeno” (que explicita a fonte); “em princípio, parece que a definição de renda se apresenta bastante clara e precisa” (que deixa a fonte implícita). Para uma discussão mais detalhada a respeito da evidencialidade, conferir Dall’Aglio-Hattnher (2018), Vendrame (2005; 2010) e Carioca (2005). como “a categoria responsável pela indicação da fonte da informação veiculada por um enunciado”, e se alinha a outras categorias como tempo, aspecto e modalidade, uma vez que a evidencialidade no português é, muitas vezes, lexicalmente expressa por verbos.

Como um efeito pragmático-discursivo da marcação de evidencialidade, Vendrame (2010)VENDRAME, V. Os verbos ver, ouvir e sentir e a expressão da evidencialidade em língua portuguesa. 2010. 176f. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São José do Rio Preto, 2010. destaca que as estratégias de atribuição do discurso à voz do outro, ao mesmo tempo que se descomprometem com o conteúdo da informação, também buscam a credibilidade do interlocutor. Carioca (2005)CARIOCA, C. R. A manifestação da evidencialidade nas dissertações acadêmicas do português brasileiro contemporâneo. 2005. 115f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005. Disponível em http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3608/1/2005_dis_crcarioca.pdf. Acesso em 22 set. 2020.
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destaca que a evidencialidade constrói uma aparente neutralidade no discurso, já que o locutor não se assume e não se compromete com o seu conteúdo.

Desse modo, a estrutura Para x, nessa leitura de construção de evidencialidade, de reportação ao outro do conteúdo do discurso, seria equivalente ao uso de expressões como de acordo com ou segundo, que, nesse contexto de uso, indicam as fontes da informação (todas as classes trabalhadoras, empresariais e os setores públicos) que declarariam que a pandemia do coronavírus não é motivo para fechar escolas, comércio, empresas, aeroportos etc., pois o país precisa continuar crescendo economicamente, arrecadando impostos e gerando renda, mesmo que isso custe a vida de milhares de pessoas9 9 Segundo informações disponibilizadas no site da Organização Mundial da Saúde, no dia 28 de setembro de 2020, havia 33.034.598 casos confirmados em todo o mundo, e 996.342 mortes; no Brasil, 4.717.991 casos e 141.406 mortes (WORLD, 2020). . Assim, seguindo esse direcionamento, o locutor desse discurso não estaria representando a voz do governo em si, que afirma que o Brasil não pode parar, mas sim a voz de todas as categorias listadas, que o afirmariam. Essa leitura fica apenas sugerida, já que as categorias listadas atuam na construção do discurso do vídeo ao mesmo tempo como setores afetados e fontes de informação.

Com o uso de uma estrutura evidencial, que atribui ao outro a responsabilidade da informação, podemos inferir, no discurso do governo, uma forma de responsabilizar/antecipar o outro, no caso, os próprios brasileiros, por atitudes intransigentes em relação às suas políticas de (não) enfrentamento do coronavírus. Ao mesmo tempo, o uso dessa estratégia pragmático-discursiva de composição das vozes do enunciado permite inferir, também, a existência de uma tentativa de dar neutralidade ao discurso governamental.

Essas duas implicações de efeito de sentido recuperadas do diálogo entre o modo de enunciação verbal e não verbal, na elaboração do gênero do discurso em análise, ilustram o caráter dialógico de alusão ao outro, configuradas na “[...] incorporação pelo enunciador da(s) voz(es) de outro(s) no enunciado” (FIORIN, 2016FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016., p.37), estabelecendo uma alusão responsiva do outro sobre o jogo de imagens que produz.

É interessante notar, também em relação à composição linguística do vídeo, a ordem de aparecimento dos elementos que compõem as categorias listadas, considerando que a ordem de aparecimento dos elementos em um texto tem relevância pragmático-discursiva. No discurso do vídeo, é mostrada uma série de profissionais, uma instituição, uma variedade de indivíduos especificados, uma categoria generalista de atores sociais e, por fim, o próprio Estado, sintetizadas conforme a figura a seguir.

Figura 1
Categorias que ocupam a posição x em “para x”

Assim, na exibição dos atores sociais, destacamos - em paralelo a toda significação que o interlocutor é capaz de atribuir a esse vídeo de propaganda política institucional a partir do conjunto dos elementos linguísticos e dos elementos multissemióticos abordados anteriormente - a ênfase ao tom de leveza que a narração na voz masculina propõe representar. Aliada a essa voz, há o som de notas musicais agudas e espaçadas, emitidas por um piano, que, no início do vídeo, acompanha a mudança de fotografia apresentada. Depois da terceira imagem, há um espaçamento maior entre uma nota e outra, até que, por volta dos quarenta segundos do vídeo, o narrador enuncia Para dezenas de milhões de brasileiros assalariados e suas famílias, seus filhos e seus netos, seus pais e seus avós #oBrasilNãoPodeParar. Nesse momento, os sons de piano cessam e dão lugar a vozes de um coral, como em um canto sacro, denotando um tom quase religioso às cenas que se sucedem; talvez com o intuito de despertar nos interlocutores uma comoção generalizada de compaixão ao próximo, às pessoas trabalhadoras que perderão/poderão perder seus empregos ou terão seus ganhos dramaticamente atingidos pela crise econômica decorrente das ações de governos estaduais no intuito de frear, ou ao menos impedir a rápida disseminação do coronavírus. O coro de vozes, que acompanha a narração até o final do vídeo (os 47 segundos restantes), em tom ascendente, aumenta conforme a narrativa avança e apresenta a gravidade do problema, não o problema da pandemia, mas o eminente problema econômico que atingirá a todos.

Para finalizarmos a análise linguística e multissemiótica do vídeo #OBrasilNãoPodeParar, afirmamos que o estilo de linguagem, composto pelos aspectos verbais, sonoros e imagéticos, dialoga com a construção composicional do vídeo que reforça a argumentação pretendida no discurso proferido. Podemos exemplificar esse fato reportando-nos à primeira imagem enunciativa, que alude a uma cena discursiva presentificada no Rio de Janeiro. Trata-se de um vendedor ambulante em uma praia, vestindo uma camiseta em que se vê escrito “fé”. Tem-se aqui a representação de um dos ícones utilizados pelo atual governo, que se pauta não só em símbolos nacionais, como a bandeira brasileira, mas também na crença em um ser superior que rege e sustenta a humanidade em sua frágil existência, a qual, de acordo com posicionamentos e discursos de figuras do governo, não se mostra de forma eclética, ecumênica, mas, ao contrário, “terrivelmente cristã” - conforme declarou a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves (VIVAS, 2019VIVAS, F. ‘Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã’, diz Damares ao assumir Direitos Humanos. In: Portal G1, Brasília, 02 jan. 2019. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/02/estado-e-laico-mas-esta-ministra-eterrivelmente-crista-diz-damares-ao-assumir-direitos-humanos.ghtml. Acesso em 28 jul. 2020.
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). Assim, a “fé” da camiseta do ambulante estaria restrita a uma única, a fé cristã, materializada, discursivamente, no enunciado-slogan da campanha eleitoral de Jair

Messias Bolsonaro, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, numa retomada discursiva que alude/recupera explicitamente, na sutileza da imagem, esse outro na elaboração ideológica do vídeo.

Na contramão do discurso de #oBrasilNãoPodeParar é que o #FiqueEmCasa, de autoria do Governo do Estado de São Paulo, parece se assumir como resposta ao governo federal sobre as ações empreendidas em decorrência da pandemia do coronavírus na sociedade brasileira. Igualmente ao primeiro vídeo analisado, apresentamos, no quadro 3 a seguir, a transcrição dos enunciados verbais (E1, E2, E3...) correlacionados a cenas/tempo do vídeo às quais se referem.

Quadro 3
Descrição e transcrição do vídeo #FiqueEmCasa10 10 O texto verbal foi apresentado em caixa-alta, conforme a apresentação gráfica disponibilizada na legenda do vídeo em questão.

O caráter responsivo desse discurso não reside, apenas, em características factuais de sua divulgação. Há dois aspectos de sua composição no reforço dessa leitura: a organização sintática, na maior parte dos enunciados, em itens binários, como no vídeo do governo federal, e a admissão explícita das fontes de informação destacadas, que ressoam a ideologia a ser defendida. Assim, no primeiro aspecto - a organização sintática dos enunciados do vídeo #FiqueEmCasa -, podemos notar que o texto verbal dessa peça publicitária segue, em parte, a estrutura binária encontrada no vídeo anteriormente analisado. Dito de outro modo, enquanto o vídeo anterior guiava-se pela díade Para x, #OBrasilNãoPodeParar, o vídeo agora analisado compõe-se, basicamente, pela estrutura Contra o coronavírus, siga o que diz(em) x: #FiqueEmCasa, em que x corresponde a quatro fontes de autoridade sobre o assunto.

O estilo desses enunciados, no entanto, é mais enfático em relação ao destaque que se dá ao tema central dos vídeos, quando comparado aos enunciados do primeiro.

Isso porque, antes da estrutura binária com a orientação de ficar em casa, aparece, logo no início, o problema a ser combatido - a pandemia - por meio do enunciado verbal Contra o coronavírus. Assim, com a delimitação do problema contra o qual se deve agir, se estabelece, nesse enunciado, o tema que permeia a totalidade do discurso, indiciando, juntamente com imagens de lugares vazios, a orientação do isolamento social, de forma a dar ênfase ao posicionamento ideológico defendido.

Complementando o enunciado Contra o coronavírus, tem-se: siga o que dizem os especialistas em pandemia: #FiqueEmCasa, estrutura orientada pelo verbo no imperativo siga (ora mostrado, ora subentendido nos enunciados), que sugere uma ordem para o público-alvo (todos os moradores do estado de São Paulo). Essa estrutura explicitada pelo ato enunciativo O que diz(em) x apresenta-se em categorias bem determinadas. Na verdade, x é composto por quatro agentes, a saber: os especialistas em pandemia, os governantes europeus, o presidente dos Estados Unidos e a Organização Mundial de Saúde (OMS), que tomam voz no texto - uma vez que são os sujeitos do verbo “dizer”.

No discurso em análise, a ordem de aparecimento assumida por esses locutores não é aleatória, mas composta por um enunciador mais generalizado, os especialistas em pandemia, para a explicitação desses especialistas enquanto atores internacionais - líderes de países da Europa e dos Estados Unidos e a OMS, maior autoridade de saúde no mundo.

Além disso, percebemos que a ordem de aparecimento nos enunciados também reflete uma sucessão temporal e um aumento da importância de tais locutores: os dirigentes europeus, que lidaram primeiro com o coronavírus no Ocidente; o presidente dos Estados Unidos, que teve a contaminação com coronavírus depois do caos estabelecido na Itália e que é o país de maior visibilidade no mundo ocidental; a OMS, que produz e distribui os protocolos de atenção à saúde no mundo e que ganhou atenção após as primeiras contaminações no Brasil.

A denominação explícita de tais agentes políticos e a ação de dizer atribuída a eles também atuam como uma resposta ao vídeo do governo federal, que apenas apresenta uma sugestão da fonte veiculada. Ao dar a voz, enunciativamente, aos quatro agentes citados, o vídeo de São Paulo coloca-se em outro lugar discursivo: o lugar da argumentação baseada em evidências, ou seja, no discurso científico. Uma vez que o vídeo atribuído ao governo federal se coloca no lugar da dúvida, do boato, da especulação e das fake news, uma forma de se contrapor (de atuar contra, como marca o vídeo em seu primeiro anúncio) é justamente a ancoragem em seu oposto, a ciência, os fatos, os dados e as discussões fundamentadas em práticas cientificamente legitimadas. Os dois vídeos se comportam, portanto, como antagônicos, sendo que o vídeo de São Paulo indicia o vídeo atribuído ao governo federal o lugar da opinião não fundamentada e coloca a si mesmo no lugar da argumentação evidenciada. A figura 2 a seguir sintetiza a argumentação do segundo vídeo, evidenciando a responsividade ativa que se contrapõe ao discurso do governo federal.

Figura 2
Organização argumentativa do vídeo #FiqueEmCasa

Em relação ao posicionamento do governo federal, de que o isolamento social em tempos de pandemia poderia destruir o cenário econômico brasileiro, o governo estadual lança argumento voltado para a defesa da vida, como sintetizado na figura 2: A economia a gente trabalha e recupera. A vida de quem a gente ama não dá para recuperar [portanto]: #FiqueEmCasa, finalizando com essa hashtag, que tem o intuito de promover uma campanha de impacto nas redes sociais para fomentar o engajamento de internautas em prol dessa causa.

Essa argumentação em “defesa à vida” é reforçada com aspectos multissemióticos. Nas cenas enunciativas em análise, observam-se espaços característicos da grande São Paulo (e não do estado paulista - o que seria mais coerente, considerando a assinatura daquele que se assume como locutor no discurso). Entretanto, não é essa a única problemática do vídeo, no que se refere às discrepâncias entre texto verbal e texto não verbal, pois a seleção de imagens, tanto de pessoas quanto de lugares, retrata uma São Paulo e interlocutores bastante específicos e homogeneizados, muito diferentes da realidade multicultural da metrópole paulista. Tem-se, na verdade, o retrato da exclusão das classes periféricas e a valorização da classe elitizada.

Nesse sentido, embora linguisticamente a campanha reforce a necessidade do isolamento social para o Estado de São Paulo, imageticamente muitos segmentos sociais foram postos à margem pelo próprio governo na materialização do discurso, como a população das cidades interioranas, dos bairros periféricos, das comunidades distantes e, principalmente, aqueles que mais sofrem pela desigualdade de renda, pela precariedade do sistema educacional e pela falta de acesso a um sistema de saúde de qualidade. Ou seja, aqueles que não têm vez e não têm voz, os que mais seriam afetados pelas consequências da pandemia, são justamente os que também ficam de fora do vídeo.

Por fim, considerando os argumentos por nós apresentados, frisamos que o primeiro vídeo defende a ideia de flexibilização do isolamento social, em razão do colapso econômico resultante dessa medida, enquanto o segundo põe-se como resposta ao primeiro, contrariando suas orientações e indicando recomendações de especialistas em quadro de pandemia, de autoridades políticas e da OMS, que defendem o isolamento social como medida protetiva para a população. Portanto, os dois discursos, no cenário de combate à pandemia, demonstram modos antagônicos de refletir/refratar essa realidade, marcados pelo dialogismo evidenciado no vídeo 2 em relação ao vídeo 1, devido à necessidade de se assegurar a responsividade ativa do governo de São Paulo em relação a um posicionamento ideológico que exalta a economia e negligencia vidas humanas, divulgado pelo vídeo do governo federal.

Conclusão

Retomando o objetivo deste artigo, que é o de analisar os elementos que indicam a responsividade ativa estabelecida no vídeo #FiqueEmCasa, elaborado e divulgado em resposta ao vídeo #oBrasilNãoPodeParar, destacamos que os estilos de linguagem utilizados nesses vídeos de propaganda política institucional aludem a uma polarização de posições discursivas para o enfrentamento do cenário instaurado pela covid-19. Segundo a ideologia divulgada em #oBrasilNãoPodeParar, necessária é a flexibilização do isolamento, em razão da economia. Em relação às marcas linguísticas, há o predomínio da terceira pessoa do discurso e o tom impessoal constrói a argumentação por meio das imagens verbais e não verbais que intencionam, implicitamente, uma adesão/reconhecimento da classe trabalhadora menos favorecida à campanha. Já de acordo com a ideologia que se pretende divulgar no vídeo #FiqueEmCasa, o necessário é o isolamento social. Elaborada a partir da repetição do verbo “ficar” no modo imperativo, o vídeo aproxima explicitamente o interlocutor da campanha publicitária, uma vez que o locutor se dirige de forma direta a seu público-alvo, a quem quer persuadir a aceitar a ideia propagada. É uma negociação interna/externa em que, “[...] o discurso verbal impresso [e multissemiótico que circula nas diversas hipermídias] participa de uma espécie de discussão ideológica em grande escala: responde, refuta ou confirma algo, antecipa as respostas e críticas possíveis, busca apoio e assim por diante” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio Introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.219).

Antagônicos na argumentação em relação ao enfrentamento da covid-19, esses vídeos demonstram os vários outros discursos com os quais negociam, mas é o do Estado de São Paulo, numa responsividade ativa mostrada, que emerge enquanto discurso que dialoga com outros enunciados, caracterizados como argumentos de autoridade (especialistas em pandemia, governantes europeus que estão enfrentando a pandemia, o presidente dos Estados Unidos e Organização Mundial de Saúde). Tais argumentos funcionam como contrapontos discursivos ao que é indicado no vídeo

#oBrasilNãoPodeParar. O caráter de réplica no discurso assumido pelo Estado de São Paulo, e evidenciado no corpus em análise, já inicia com uma estrutura binária - o que dizem x, fique em casa - que recupera um implícito de não seguir outras orientações que não sejam as das vozes de conhecimento autorizado para falar sobre a situação de pandemia e refutar as posições que se opõem a tais vozes. Portanto, essa estrutura binária mostra, linguisticamente, um posicionamento responsável/responsivo em relação ao discurso ao qual se contrapõe, que também usa de uma estrutura binária - Para x, o Brasil não pode parar - em sua composição.

Por fim, em relação ao modo de abordar o tema pandemia nos gêneros discursivos em pauta, o que se percebe é que, no discurso #FiqueEmCasa, ao se eleger economia e pessoas como categorias centrais da argumentação proposta pelos enunciadores, ocorre uma aproximação estilística com a propaganda política institucional do governo federal, pois a centralidade argumentativa deste também se constrói em torno de economia e pessoas. Contudo, diferentemente do discurso assumido pelo governo do Estado de São Paulo para que se fique em casa, o locutor do vídeo do governo federal assume posicionamento contrário, o de que, em meio à pandemia, o Brasil/os brasileiros não pode(m) parar. Portanto, para além da aproximação do tema e da construção composicional observada no discurso #FiqueEmCasa, em resposta ao discurso #OBrasilNãoPodeParar, ocorre um distanciamento argumentativo entre eles, evidenciado pelo estilo de linguagem que assumem. Evidencia-se, assim, pela análise dos elementos linguísticos que os compõem, essa relação dialógica responsável/responsiva, que resulta em um refletir/refratar quase que antagônicos em relação aos modos de combate à covid-19 no Brasil.

  • 1
    O vídeo #FiqueEmCasa pode ser acessado no canal do Governo do Estado de São Paulo no YouTube, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=D2zESBXbauA. Acesso em: 25 abr. 2020.
  • 2
    Levando em consideração a indefinição sobre a autoria do vídeo, não é possível acessá-lo em canais oficiais de divulgação. No entanto, pode ser visto no YouTube, a partir do endereço https://www.youtube.com/watch?v=hQQZE7LQIGk&t=1s . Acesso em: 25 abr. 2020.
  • 3
    Não foi apenas no Brasil que campanhas contra as medidas de isolamento social como forma de controle da disseminação da doença foram produzidas. Em Milão, no final de fevereiro, a prefeitura divulgou o vídeo “Milano NON si ferma”. Um mês depois, com um número alto de casos e mortes na região da Lombardia, o prefeito de Milão pediu desculpas e admitiu ter errado com a campanha, conforme informações da imprensa (PREFEITO, 2020PREFEITO de Milão admite erro após campanha para não parar a cidade. Veja, 27 de mar. 2020. Disponível em https://veja.abril.com.br/mundo/prefeito-de-milao-admiteerro-apos-campanha-para-nao-parar-a-cidade/. Acesso em 07 ago. 2020.
    https://veja.abril.com.br/mundo/prefeito...
    ).
  • 4
    A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News tem como finalidade investigar (i) os ataques cibernéticos que atentam contra a democracia e o debate público; (ii) a utilização de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições 2018; (iii) a prática de cyberbullying sobre os usuários mais vulneráveis da rede de computadores, bem como sobre agentes públicos; e (iv) o aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio (BRASIL, 2020BRASIL. Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito - Fake News. Disponível em https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?0&codcol=2292. Acesso em 15 jul. 2020.
    https://legis.senado.leg.br/comissoes/co...
    ).
  • 5
    O pronunciamento do presidente da República, Jair Bolsonaro, em Cadeia de Rádio e Televisão, em 24 de março de 2020, explicita essa posição. O vídeo com o pronunciamento está disponível para visualização no YouTube, no link: https://www.youtube.com/watch?v=Vl_DYb-XaAE. Acesso em: 25 abr. 2020.
  • 6
    Levando em consideração a arquitetura e a notação específicas da GDF, por ser uma função pragmática do Nível Interpessoal, a notação da categoria Tópico é sempre feita em letra maiúscula.
  • 7
    Pezatti (2012)PEZATTI, E. G. Ordenação de constituintes em construções categorial, tética e apresentativa. DELTA (online), v. 28, n. 2, p.353-385, 2012. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-44502012000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 25 abr. 2020.
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    explica que as diversas possibilidades de atribuição da função pragmática Tópico a constituintes de categorias gramaticais distintas - como subatos referenciais em função de sujeito, como em “a criança cresceu, subatos referenciais sem função de sujeito, como em “mousse de barbear também temos, subatos que servem para indicar o cenário de estado-de-coisas evocado, como em “no primeiro dia fizemos uma visita”, dentre outras possibilidades, são evidências sólidas para se considerar a língua portuguesa sensível a essa função. Além disso, a autora defende que todas as sentenças do português apresentam um constituinte Tópico na primeira posição, com exceção das sentenças de molde de conteúdo téticas e apresentativas, o que também justifica a orientação voltada ao Tópico no português.
  • 8
    Por se tratar de assunto complexo, com tipologia diversificada, lidaremos, neste texto, apenas com a macro noção de evidencialidade, que pode ser exemplificada, segundo Dall’Aglio-Hattnher (2018DALL’AGLIO-HATTNHER, M. M. A expressão lexical da evidencialidade: reflexões sobre a dedução e a percepção de evento. Entrepalavras, Fortaleza, v. 8, n. esp., p. 98-111, 2018. Disponível em http://www.entrepalavras.ufc.br/revista/index.php/Revista/article/view/1244. Acesso em 01 maio, 2020.
    http://www.entrepalavras.ufc.br/revista/...
    , p.101), em “estudos feitos dizem que o produto não é cancerígeno (que explicita a fonte); “em princípio, parece que a definição de renda se apresenta bastante clara e precisa (que deixa a fonte implícita). Para uma discussão mais detalhada a respeito da evidencialidade, conferir Dall’Aglio-Hattnher (2018)DALL’AGLIO-HATTNHER, M. M. A expressão lexical da evidencialidade: reflexões sobre a dedução e a percepção de evento. Entrepalavras, Fortaleza, v. 8, n. esp., p. 98-111, 2018. Disponível em http://www.entrepalavras.ufc.br/revista/index.php/Revista/article/view/1244. Acesso em 01 maio, 2020.
    http://www.entrepalavras.ufc.br/revista/...
    , Vendrame (2005VENDRAME, V. A evidencialidade em construções complexas. Estudos linguísticos (São Paulo), v. XXXIV, s/n, p.177-182, 2005. Disponível em http://www.gel.hospedagemdesites.ws/estudoslinguisticos/edicoesanteriores/4publicaestudos-2005/4publica-estudos-2005-pdfs/a-evidencialidade-833.pdf?SQMSESSID=a38ffc79c82bcbe561e1c641326fd16c. Acesso em 22 set. 2020.
    http://www.gel.hospedagemdesites.ws/estu...
    ; 2010) e Carioca (2005)CARIOCA, C. R. A manifestação da evidencialidade nas dissertações acadêmicas do português brasileiro contemporâneo. 2005. 115f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005. Disponível em http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3608/1/2005_dis_crcarioca.pdf. Acesso em 22 set. 2020.
    http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/...
    .
  • 9
    Segundo informações disponibilizadas no site da Organização Mundial da Saúde, no dia 28 de setembro de 2020, havia 33.034.598 casos confirmados em todo o mundo, e 996.342 mortes; no Brasil, 4.717.991 casos e 141.406 mortes (WORLD, 2020WORLD Health Organization. Situation Report - 198. Disponível em https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200805covid-19-sitrep-198.pdf?sfvrsn=f99d1754_2. Acesso em 28 set. 2020.
    https://www.who.int/docs/default-source/...
    ).
  • 10
    O texto verbal foi apresentado em caixa-alta, conforme a apresentação gráfica disponibilizada na legenda do vídeo em questão.

Agradecimentos

Agradecemos a Universidade Federal do Acre que, por meio do edital PROPEG Nº 14/2020 Programa de Incentivo à Publicação Científica Qualificada, financiou a tradução do texto para a língua inglesa.

Declaração de autoria e responsabilidade pelo conteúdo publicado

Todas as autoras desse artigo declaram que:
  1. Tiveram acesso ao corpus da pesquisa;

  2. Participaram ativamente da discussão dos resultados;

  3. Procederam à revisão e à aprovação da versão final do trabalho.

As autoras.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Oct/Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2020
  • Aceito
    15 Set 2021
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