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A ONU EM FACE DO RELATIVISMO CULTURAL O caso dos Direitos Humanos no mundo muçulmano* * Este artigo é fruto da pesquisa realizada no doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

United Nations facing the cultural relativism: the case of Human Rights in the muslim world

L’ONU FACE AU RELATIVISME CULTUREL Le cas des Droits de l’homme dans le monde musulman

Resumos

O caráter universal da Declaração de Direitos Humanos formulada pelas Nações Unidas vem sendo um tema de debate político e acadêmico bastante frequente. Inserido nesse debate, este artigo tem como objetivo saber como a ONU atua em defesa de Direitos Humanos em países islâmicos onde a legitimidade de seu documento é relativizada, dadas as particularidades religiosas. Tendo em vista as divergências nos documentos de duas Organizações Internacionais, propõe-se, aqui, a análise de casos de conflitos entre legitimidades distintas: a Carta de Direitos Humanos da ONU e as leis islâmicas reafirmadas na Declaração do Cairo de 1990 e adotadas pela Organização da Conferência Islâmica. O interesse, especificamente, pelos casos de defesa de direitos de liberdade de religião e de expressão norteou a realização de uma pesquisa documental de caráter qualitativo, que apontou, como resultado, principal a forma recomendatória de atuação do organismo que centraliza as atividades da ONU em matéria de Direitos Humanos.

Palavras-chave:
Direitos Humanos; Mundo muçulmano; Organização das Nações Unidas; Organização da Conferência Islâmica


The universal character of the Declaration of Human Rights formulated by the United Nations has been a frequent topic of political and academic debate. In this debate, this article aims to know how the UN acts in defense of human rights in Islamic countries where the legitimacy of its document is relativized, given the religious particularities. It is in view of the divergences of the documents of two International Organizations that it is proposed here to analyze cases of conflicts between distinct legitimacy: the UN Human Rights Charter and the Islamic Law reaffirmed in the Cairo Declaration of 1990 and adopted by the Organization of the Conference Islam. With interest in the cases of defense of rights of freedom of religion and of expression, specifically, a documentary research of qualitative character was carried out. As a result, it is above all the recommended form of action of the body that centralizes the activities of the UN in the field of Human Rights.

Keywords:
Human Rights; Muslim countries; United Nations; Organization of Islamic Cooperation


Le caractère universel de la Déclaration des droits de l’homme des Nations Unies est un sujet très fréquent de débat politique et académique. Cet article fait partie de ce débat et a pour but de comprendre comment l’ONU agit pour la défense des droits de l’homme dans les pays islamiques où la légitimité de cette Déclaration est relativisée étant donné les particularités religieuses. Compte tenu des divergences dans les documents de deux organisations internationales, nous proposons ici d’analyser des cas de conflits entre différentes légitimités: la Charte des droits de l’homme des Nations Unies et les lois islamiques réaffirmées dans la Déclaration du Caire de 1990 et adoptées par l’Organisation de la Conférence islamique. L’intérêt particulier par les cas de défense des droits à la liberté de religion et d’expression a guidé la réalisation d’une recherche documentaire de caractère qualitatif, qui a indiqué comme résultat principal le caractère non contraignant de l’action de l’organisme qui centralise les activités de l’ONU en matière de droits de l’homme.

Mots-clés:
Droits de l’homme; Monde musulman; Organisation des Nations Unies; Organisation de la Conférence Islamique


Introdução

Datada de 1948, a Declaração Universal de Direitos Humanos“DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos”. (1948), Organização das Nações Unidas. Disponível em http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf, consultado em 14/02/2015.
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1 1 Ao longo deste texto, o termo Direitos Humanos escrito com letras maiúsculas fará referência à Declaração de Direitos Humanos da ONU. suscita, desde a fase de elaboração do documento, discussões sobre a própria ideia de que é pertinente postular a existência de direitos universalmente válidos. É sobre alguns conflitos acerca da validade universal deste documento, que trata o presente artigo e, mais especificamente, sobre conflitos de legitimidade em relação à liberdade de religião e de expressão em países de maioria islâmica.

As críticas quanto à pretensão de universalidade da Declaração de Direitos Humanos, elaborada pelas Nações Unidas em meados do século XX, destacam-se, desde a fase de formulação do documento, na revisão da literatura da área. Em um momento inicial, as discussões tomaram forma no confronto entre as duas superpotências em disputa na Guerra Fria. Nesse cenário, a crítica ao reivindicado caráter universal da declaração da ONU partiu da União Soviética e se caracterizou pela demanda por uma maior inclusão de direitos econômicos, sociais e culturais, no referido documento. Durante o período da Guerra Fria tem-se, assim, uma polarização dos discursos acerca do significado político dos direitos humanos, encabeçada pelos dois grandes atores dessa disputa. Por um lado, os Estados Unidos defendiam a universalidade da Declaração de 1948, cujo caráter é essencialmente liberal; e, por outro, a URSS criticava a validade universal do documento, justamente por sua essência liberal.

As Nações Unidas tiveram que lidar com tal controvérsia ao tentar formular um documento que vinculasse os Estados à proteção e defesa dos Direitos Humanos. Sem consenso para a elaboração de um único documento de direitos humanos vinculatórios, o debate acerca do caráter universal da Declaração de 1948, nesse momento histórico, resultou na elaboração de dois Pactos, em 1966: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos“PACTO Internacional sobre Direitos Civis e Políticos”. (1966), Organização das Nações Unidas. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm, consultado em 14/04/2015.
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, e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Em um segundo momento, a controvérsia em torno da validade universal da Declaração de Direitos Humanos da ONU se deu de outra forma. Outros atores e outras vozes se inseriram no debate internacional, criticando a pretensão de universalidade do documento de 1948. Neste caso, ganhou destaque o modo como o mundo muçulmano se inseriu no debate de direitos humanos. Representantes do mundo muçulmano chegaram a criar uma declaração de direitos do homem em contraposição à proposta das Nações Unidas e, a partir da década de 1980, declarações de direitos humanos embasadas na religião islâmica foram formuladas.

Tem-se, então, um conflito acerca da legitimidade dos Direitos Humanos, tal como formulados no Ocidente, levando à produção de documentos próprios do mundo muçulmano. A crítica à legitimidade universal do documento da ONU não consistiu, como anteriormente, em reivindicar a inclusão e/ou exclusão de determinados direitos da Declaração de 1948. Tratava-se, nesse momento, de rejeitar a pretensão de universalidade da Declaração, sob o argumento de que aquilo que se pretendia universal era, na verdade, apenas ocidental. Tal crítica levou à elaboração de documentos alternativos de direitos humanos; e, no caso, a uma leitura islâmica desses direitos.

Isso culminou na formulação da denominada Declaração dos Direitos do Homem no Islã, com uma primeira reunião sobre o tema, em 1978. Durante a década de 1980, representantes de países muçulmanos se reuniram para preparar um documento de direitos humanos, que assinado pela Organização da Conferência Islâmica (OCI), foi adotado pelos Ministros do Exterior da OCI: “um cartel que congrega a maioria dos Estados de tradição muçulmana” (PACE, 2005PACE, Enzo. (2005), Sociologia do Islã: fenômenos religiosos e lógicas sociais. Petrópolis, Vozes., p. 340). Tal documento foi elaborado por representantes estatais, a fim de alinhar o paradigma de direitos humanos com a religião islâmica e, dessa maneira, apresentar aos Estados membros da OCI uma suma de orientações que cada governo deveria seguir, no trato dos direitos do homem no mundo muçulmano.

Depois de um longo processo de elaboração, foi na década de 1990 que países muçulmanos apresentaram, em conjunto, uma releitura dos direitos do homem, tal como proposta pelas Nações Unidas em 1948. Trata-se de uma (re)definição do que seriam os direitos do homem para o Islã. Alinhada aos particularismos da religião, a Declaração dos Direitos do Homem no Islã, também conhecida como Declaração do Cairo2 2 A Declaração do Cairo, assinada, em 1990, pelos ministros das Relações Exteriores dos Estados membros da Organização da Conferência Islâmica (OCI), pode ser interpretada como o sinal de um duplo reconhecimento: por um lado, da autoridade moral da ONU e, por outro, das razões dos movimentos sociais de reivindicação e tutela dos direitos humanos, presentes em muitos países muçulmanos. A Declaração representa o ponto de chegada de uma longa caminhada. A elaboração demorou mais de uma década e é fruto de uma negociação entre os líderes dos Estados, empenhados na defesa intransigente da Lei corânica, e os expoentes de governos mais abertos a uma interpretação modernista da mesma Lei (PACE, 2005, p. 339). , data de 1990.

Formulada nos termos da declaração da ONU, a Declaração do Cairo“CAIRO Declaration on Human Rights in Islam”. (1990), Nineteenth Islamic Conference of Foreign Ministers. Disponível em http://www1.umn.edu/humanrts/instree/cairodeclaration.html, consultado em 04/02/2015.
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exprime exemplarmente o modo como a legitimidade universal do paradigma dos Direitos Humanos veio a ser questionada. É significante, nesse contexto, a iniciativa de elaboração de outro documento de direitos do homem – o homem islâmico –, dentro de uma organização internacional – a Organização da Conferência Islâmica –, ao invés de uma tentativa de modificar a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O homem no Islã, de acordo com a Declaração do Cairo“CAIRO Declaration on Human Rights in Islam”. (1990), Nineteenth Islamic Conference of Foreign Ministers. Disponível em http://www1.umn.edu/humanrts/instree/cairodeclaration.html, consultado em 04/02/2015.
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, é sujeito de direitos que, em parte, não condizem com os direitos dos homens declarados universais em 1948. Para os países islâmicos, especificamente aqueles que assinaram a Declaração do Cairo, a recusa à universalidade da declaração da ONU baseia-se, especificamente, em duas questões: os direitos de liberdade de religião e de expressão. A Declaração do Cairo não reconhece como universais os direitos de renunciar à religião e de insultar símbolos sagrados, por exemplo.

Diante disso, a pergunta que orienta o presente artigo é: tendo em vista a crítica islâmica à legitimidade da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, como se dá a atuação das Nações Unidas, em defesa dos direitos de liberdade de religião e de expressão, em países signatários da Declaração do Cairo? Pensando em casos-limite, como a blasfêmia e a apostasia, os quais podem ser considerados crimes, nas interpretações da lei islâmica em alguns países, pretendemos, por meio da pesquisa realizada, analisar como essas questões aparecem nos documentos públicos que relatam as atividades da ONU no mundo muçulmano.

Assim sendo, este trabalho se propõe a analisar a atuação das Nações Unidas em defesa dos direitos de liberdade de religião e de expressão em alguns países muçulmanos. Para tanto, primeiramente apresentaremos os dissensos acerca dos direitos a que se refere a pesquisa que realizamos, seguidos de considerações sobre o organismo da ONU que centraliza as iniciativas de Direitos Humanos; a saber: o Alto Comissário e seu Escritório (ACNUDH/EACNUDH)“OFFICE of the United Nations High Commissioner for Human Rights”. OHCHR. Disponível em http://www.ohchr.org/EN/Pages/WelcomePage.aspx, consultado em 18/10/2014.
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. No terceiro momento, lançaremos mão de uma breve revisão teórica sobre o tema, e abordaremos as questões metodológicas apontadas na pesquisa realizada. Tendo em vista a criação e a atuação do ACNUDH/EACNUDH, analisaremos, por fim, os casos em defesa de direitos de liberdade de religião e de expressão no âmbito da ONU, em países signatários da Declaração do Cairo.

Neste sentido, o objetivo do estudo aqui apresentado consistiu em saber como atua o ACNUDH/EACNUDH em países membros da OCI, quando as interpretações de direitos humanos elaboradas nos documentos das diferentes Organizações Internacionais entram em conflito. Dito de outro modo, tratou-se de analisar como as Nações Unidas veiculam sua atuação em defesa dos Direitos Humanos, em territórios em que há tensões acerca da legitimidade das normas de liberdade de expressão e de liberdade de religião defendidas pelo ACNUDH/EACNUDH, haja vista as normas estabelecidas pela OCI com base nos princípios islâmicos.

Os documentos de direitos humanos e seus dissensos: os casos da ONU e da OCI

A Declaração Universal de Direitos Humanos foi aprovada em 10 de dezembro de 1948, pela Resolução n. 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas. A aprovação do texto final contou, por sua vez, com quarenta e oito votos a favor, dentre os cinquenta e oito Estados membros das Nações Unidas, não havendo, na ocasião, nenhum voto contrário. Com duas ausências, foram oito os países que se abstiveram: Bielorússia, Checoslováquia, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Polônia, Ucrânia, África do Sul, Iugoslávia e Arábia Saudita (TRINDADE, 2003TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. (2003), Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre, S. A. Fabris.).

É notável, como visto, o restrito número de países que participaram da aprovação da denominada Declaração Universal de Direitos Humanos. Vale igualmente recordar que, naquele momento, o cenário internacional era marcado tanto pela grande polarização entre EUA e URSS gerada pela Guerra Fria, como pelo sistema de colonização ocidental, que concentrava cerca de dois terços da humanidade em territórios colonizados e sem qualquer participação na definição internacional de tais direitos.

Dentre os países que se abstiveram do voto na ocasião, o posicionamento da Arábia Saudita representa o foco de interesse do estudo aqui apresentado, uma vez que o país entendeu que a liberdade de mudar de religião, expressa no artigo 18 da Declaração, era incompatível com o que professava a fé islâmica:

Artigo 18°: Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948, grifos nossos).

Este é, portanto, o ponto central de divergência entre o documento de Direitos Humanos e as leis religiosas do Islã, já apontado no momento de aprovação da declaração da ONU. Outro ponto que aqui nos interessa diz respeito à concepção de liberdade de expressão, tal como colocada na Declaração de 1948:

Artigo 19°: Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).

Em resposta à Declaração das Nações Unidas, a Declaração do Cairo“CAIRO Declaration on Human Rights in Islam”. (1990), Nineteenth Islamic Conference of Foreign Ministers. Disponível em http://www1.umn.edu/humanrts/instree/cairodeclaration.html, consultado em 04/02/2015.
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sobre Direitos Humanos no Islã foi assinada pela Organização da Conferência Islâmica3 3 Criada em setembro de 1969, consta em sua carta de constituição que a Organização de Cooperação Islâmica1 é guiada pelos valores islâmicos de unidade e de fraternidade. A OCI contava, em 1969, com os seguintes Estados membros: Jordânia, Afeganistão, Indonésia, Irã, Paquistão, Turquia, Chade, Tunísia, Argélia, Arábia Saudita, Senegal, Sudão, Somália, Guiné, Palestina, Kuwait, Líbano, Líbia, Mali, Malásia, Egito, Marrocos, Mauritânia, Níger, Iêmen. (OCI), em 5 de agosto de 1990. Foi na XIX Conferência Islâmica dos Ministros dos Negócios Estrangeiros (Sessão da Paz, Interdependência e Desenvolvimento), realizada no Egito, em 1990, que a Declaração do Cairo foi preparada e formalmente adotada pelos Ministros do Exterior da OCI, após mais de uma década de elaboração. Por reunir a maioria dos Estados de tradição muçulmana, tal reunião representa a síntese de orientações jurídicas que cada Estado se dispõe a seguir, sem comprometer a soberania nacional de cada um deles. Apesar de não se caracterizar como um tratado internacional que vincule os países signatários – tal como a declaração da ONU –, o documento continua sendo até hoje a mais articulada carta dos direitos assumidos do ponto de vista dos Estados de tradição muçulmana, segundo Pace (2005)PACE, Enzo. (2005), Sociologia do Islã: fenômenos religiosos e lógicas sociais. Petrópolis, Vozes..

A Declaração do Cairo“CAIRO Declaration on Human Rights in Islam”. (1990), Nineteenth Islamic Conference of Foreign Ministers. Disponível em http://www1.umn.edu/humanrts/instree/cairodeclaration.html, consultado em 04/02/2015.
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conta com 25 artigos e é precedida de um amplo preâmbulo que enfatiza seu caráter islâmico e seu embasamento de acordo com a Lei corânica (xaria). Dispõe-se, já no texto inicial, que os direitos humanos, como parte integrante da religião muçulmana, devem conservar o que está preconizado no Alcorão e na tradição do Profeta, sendo essas as fontes de lei maior e às quais o indivíduo deve obediência. O conteúdo dos artigos da Declaração de 1990 deixa claro tanto a subordinação a Deus, como a superioridade da Lei corânica como guia de todo o sistema de direitos.

Pensando os direitos de liberdade de expressão, tema caro ao mundo muçulmano em relação ao Ocidente – vide os emblemáticos casos de protestos islâmicos ligados à acusação de blasfêmia -, vale citar:

Artigo 16°: Todos têm o direito de gozar os frutos do seu trabalho científico, literário, artístico ou técnico do qual ele é o autor, e ele terá o direito à proteção dos seus interesses morais e materiais decorrentes deles, desde que não seja contrário aos princípios da Xaria [...].

Artigo 22°: (A)Toda pessoa terá o direito de expressar sua opinião livremente da forma que não seria contrário aos princípios da Xaria (NINETEENTH ISLAMIC CONFERENCE OF FOREIGN MINISTERS, 1990, tradução nossa).

Quanto à liberdade de religião, uma questão efetivamente de suma importância na tradição islâmica, o artigo 18 da referida declaração deixa claro o respeito às minorias religiosas, afirmando que toda pessoa terá o direito de viver em segurança com sua religião, seus dependentes, sua honra e sua propriedade. Já o artigo que trata da religião islâmica faz objeção à mudança de credo:

Artigo 10º: O Islã é a religião da natureza intocada. É proibido exercer qualquer forma de coerção sobre o homem ou explorar a sua pobreza ou ignorância, a fim de convertê-lo a outra religião ou ao ateísmo. (NINETEENTH ISLAMIC CONFERENCE OF FOREIGN MINISTERS, 1990; grifos e tradução nossos).

Como visto, contrariamente ao que afirma a Declaração da ONU sobre liberdade religiosa, a Declaração do Cairo não defende, nesses mesmos termos, a liberdade de crença aos muçulmanos. A Declaração do Cairo afirma, em consonância com preceitos islâmicos, que o Islã é a religião natural do ser humano (o que faz lembrar que apostasia pode ser considerada crime, de acordo com a xaria), e defende a formação religiosa como direito.

A ONU tomou conhecimento oficialmente da Declaração do Cairo“CAIRO Declaration on Human Rights in Islam”. (1990), Nineteenth Islamic Conference of Foreign Ministers. Disponível em http://www1.umn.edu/humanrts/instree/cairodeclaration.html, consultado em 04/02/2015.
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durante a II Conferência Mundial para os Direitos Humanos, realizada em Viena, no ano de 1993: ocasião em que a Declaração do Cairo foi apresentada à comunidade internacional, especificamente em um evento organizado pelas Nações Unidas para tratar da defesa dos Direitos Humanos, tais como formulados em 1948.

A Conferência de Viena foi o maior evento internacional da história, dedicado à temática dos direitos humanos, com a participação de mais de 170 delegações de Estados e um grande número de ONGs. Mesmo sem ser pauta da organização do evento, foi na Conferência de Viena que as críticas à legitimidade universalista da Declaração de 1948 e os discursos pautados no relativismo cultural repercutiram oficial e publicamente nas Nações Unidas. Juntamente com a apresentação da versão islâmica de direitos humanos, contida na Declaração do Cairo, foram apresentadas, por delegações do leste da Ásia, críticas ao ideal de universalidade presente no documento de 1948, a partir do que se denominou Valores Asiáticos. Tal debate ressalta as particularidades regionais que a Declaração Universal de Direitos Humanos deixa de contemplar, questionando e relativizando, portanto, a legitimidade universalista de tal documento.

A criação do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e seu Escritório (EACNUDH)“OFFICE of the United Nations High Commissioner for Human Rights”. OHCHR. Disponível em http://www.ohchr.org/EN/Pages/WelcomePage.aspx, consultado em 18/10/2014.
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, e as razões para análise de sua atuação

Foi também na II Conferência Mundial para os Direitos Humanos, em 1993“DECLARACIÓN y Programa de Acción de Viena”. (1993), Naciones Unidas. Disponível em http://www.ohchr.org/Documents/Events/OHCHR20/VDPA_booklet_Spanish.pdf, consultado em 17/01/2015.
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, em Viena, que a criação do cargo de Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos foi considerada oficialmente pelas Nações Unidas. No documento final da Conferência foi incluída a necessidade de a Assembleia Geral tratar como pauta prioritária a criação de um cargo de Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o ACNUDH4 4 Segundo Hernandez (2015, p. 13), “Em português, geralmente a organização é chamada de Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Entretanto, a expressão Alto Comissariado é ambígua e não possui correspondente nas línguas oficiais da ONU. Ela é ambígua na medida em que não permite diferenciar o posto individual aprovado em 1993, o ACNUDH, de seu escritório surgido em 1997, o EACNUDH. Como o mandato aprovado pelos Estados em 1993 instituiu um posto individual e não um escritório propriamente dito, chamá-lo de Alto Comissariado ou de EACNUDH seria impreciso e incoerente diante do processo político de negociações. Por outro lado, chamá-lo apenas de ACNUDH eclipsaria o surgimento inesperado de uma institucionalidade mais robusta, o EACNUDH. ACNUDH e EACNUDH conformam uma unidade institucional peculiar [...]”. Assim, sendo, “o uso de ACNUDH refere-se ao posto individual. O uso de EACNUDH refere-se ao escritório composto de funcionários e dispostos de modo hierárquico em diferentes setores. E ACNUDH/EACNUDH refere-se a esse compósito político que conforma uma institucionalidade internacional” (op. cit., p. 13). .

À época, a criação do ACNUDH foi repassada à Assembleia Geral, pois a recomendação direta no documento final da Conferência foi inviabilizada justamente em virtude das tensões que os debates sobre a universalidade dos Direitos Humanos provocaram no ambiente político do evento. A própria ideia de haver direitos humanos passíveis de uma declaração universal, tal como consta do título da Declaração de 1948, foi apresentada como tema de discussão, por parecer para alguns, incompatível com demandas referentes à diversidade cultural. Apesar da ausência de consenso sobre a existência do que poderia ser chamado de direitos humanos universais, bem como das controvérsias acerca da proposta de um posto de Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos na Conferência de Viena, o ACNUDH foi criado com a aprovação da Assembleia Geral, em dezembro de 1993. O ACNUDH iniciou suas atividades em 1994 e três anos depois foi criado o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos (EACNUDH), atuando em diversos setores e composto por um quadro de funcionários dispostos de modo hierárquico.

Sendo da competência do ACNUDH/EACNUDH prestar apoio especializado aos organismos de direitos humanos das Nações Unidas, coordenar as atividades de promoção e proteção, e integrar os direitos humanos no sistema da ONU, a organização engloba, como dito, todos os mecanismos de que a ONU dispõe para atuar em defesa desses direitos. Assim sendo, o ACNUDH e seu Escritório trabalham em três dimensões: no estabelecimento de normas, em sua supervisão, e na aplicação em campo. Para tanto, a organização é composta por quatro divisões: 1) Direito ao Desenvolvimento & Pesquisa; 2) Tratados e Conselho de Direitos Humanos; 3) Procedimentos Especiais; e 4) Operações de Campo.

O presente artigo não tem a pretensão de abordar propriamente as operações de campo; entretanto, como é também a partir dessas atividades, que as questões da pesquisa foram colocadas, os documentos que foram para ela selecionados tratam da atuação do ACNUDH/EACNUDH nessas operações, assim como no âmbito do Conselho de Direitos Humanos e nos Procedimentos Especiais. Os Comitês de Tratados, para os quais a organização também presta suporte, não foram incluídos, por tratarem exclusivamente da normatividade de direitos humanos (seja da assinatura dos Estados ou do cumprimento), o que não contribuiria para o que se propõe aqui analisar.

O ACNUDH/EACNUDH atua, pois, junto ao Conselho de Direitos Humanos, nas operações de campo e no mecanismo de procedimentos especiais, o que permite uma abordagem ampla daquilo que buscamos verificar. Como nosso objetivo residiu em saber como os dissensos aparecem, e como uma organização da ONU opera frente a esses dissensos, entendemos que nenhum outro organismo internacional de direitos humanos viabilizaria a análise, tanto quanto o ACNUDH/EACNUDH. Entidade líder da ONU em matéria de direitos humanos, o ACNUDH/EACNUDH é parte do Secretariado das Nações Unidas, e mantém sua sede em Genebra e um escritório em Nova York. Atualmente, a organização está presente em quase 60 países em operações de campo, com escritórios regionais e nacionais, em Missões de Paz ou escritórios políticos, e ainda nas UNCTs (United Nations Country Teams).

Por fim, vale ressaltar que o ACNUDH/EACNUDH tem como objetivos, sobretudo, a investigação sobre violações de direitos humanos e o fortalecimento dos sistemas nacionais de proteção desses direitos. Dessa forma, tal organização não só monitora os Estados, como também presta assistência à implementação das normas de direitos humanos em terrenos diversos, desempenhando algumas atividades junto aos governos, a favor da proteção de direitos humanos, tais como estabelecidos pela ONU na Declaração Universal de 1948 e nos demais Tratados e Convenções.

Logo, o cargo de Alto Comissário (ACNUDH), juntamente com seu Escritório (EACNUDH), conformam uma organização internacional (ACNUDH/EACNUDH), que centraliza as iniciativas de direitos humanos das Nações Unidas. Ao analisar a atuação desta organização no mundo muçulmano, o presente artigo aborda, mais especificamente, como tal atuação se torna pública através de documentos oficiais. Ou seja, tendo em vista os dissensos nos documentos das Organizações Internacionais consideradas, à pesquisa interessou saber como o ACNUDH/EACNUDH lida com tais controvérsias, a partir de uma análise das publicações da organização. É nesse sentido que nos interessa examinar a atuação do ACNUDH/EACNUDH em alguns países de maioria islâmica: os países signatários da Declaração do Cairo.

Apontamentos teóricos

Para os fins a que se dispôs o estudo realizado, algumas considerações acerca da teoria de regimes internacionais são válidas. Segundo Krasner, regimes internacionais “podem ser definidos como princípios, normas e regras implícitos ou explícitos e procedimentos de tomada de decisões de determinada área das relações internacionais em torno dos quais convergem as expectativas dos atores” (2012, s/p.). Ainda, segundo o autor,

Os princípios são crenças em fatos, causas e questões morais. As normas são padrões de comportamento definidos em termos de direitos e obrigações. As regras são prescrições ou proscrições específicas para a ação. Os procedimentos para tomada de decisões são práticas predominantes para fazer e executar a decisão coletiva (KRASNER, 2012KRASNER, STEPHEN D. (2012), “Causas estruturais e consequências dos regimes internacionais: regimes como variáveis intervenientes”. Revista de Sociologia e Política, 20, 42: 93-110. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782012000200008, consultado em 04/06/2016.
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, s/p., grifos nossos).

Nesse sentido, são os princípios e as normas que fornecem as características básicas definidoras de um regime, os quais, no caso estudado, são claramente de fundamentos ético-morais. O regime internacional de direitos humanos define, portanto, garantias e obrigações embasadas em questões morais; logo, as regras seguem a lógica própria da cultura em questão. Podemos, nessa perspectiva, compreender as diversidades nas propostas de documentos de direitos do homem, quando comparamos as declarações formuladas no seio da ONU e no âmbito da OCI.

Pensando no regime internacional de direitos humanos e no papel das Nações Unidas como Organização Internacional, vale considerar que as críticas sobre a legitimidade universalista da declaração não põem em xeque nem o regime, nem a organização. Como não é este o ponto focalizado neste artigo, destacamos, no caso, um conflito de legitimidades que envolve princípios e normas, regras e procedimentos de tomadas de decisões de um regime e, em certa medida, uma inconsistência entre o regime e o comportamento correspondente dos membros. Portanto, não analisamos, aqui, somente as violações de Direitos Humanos, mas também a validade dos próprios direitos em jogo.

Como dito, não se trata, aqui, de analisar se há, ou não, certo enfraquecimento do regime de Direitos Humanos em curso. Todavia, se há, por parte de países de maioria muçulmana, certa relativização dos direitos humanos, é porque o regime internacional de Direitos Humanos estabelecido pela ONU tem sido alvo de questionamentos e ponderações de cunho cultural.

Questões sobre o relativismo cultural estão muito presentes também no debate acadêmico sobre a validade universal da Declaração de Direitos Humanos de 1948, assim como no campo político. Contrapondo a posição de defesa da legitimidade universal do documento, que se baseia sobretudo na ideia de defesa da dignidade humana, enquanto valor intrínseco à condição de homens e mulheres na terra – em uma concepção kantiana –, têm-se posições relativistas:

Para os relativistas, a noção de direitos está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Cada cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade. Não há moral universal, já que a história do mundo é a história de uma pluralidade de culturas. Há uma pluralidade de culturas no mundo e estas culturas produzem seus próprios valores (VINCENT, R. J., 1986, apud PIOVESAN, 2006PIOVESAN, Flávia. (2006), “Direitos Humanos: desafios da ordem internacional contemporânea”. Cadernos de Direito Constitucional. Disponível em: https://www.academia.edu/23860430/DIREITOS_HUMANOS_DESAFIOS_DA_ORDEM_INTERNACIONAL_CONTEMPOR%C3%82NEA_1?auto=download, consultado em 05/06/2015.
https://www.academia.edu/23860430/DIREIT...
, p. 12).

Em outras palavras, a noção de direitos humanos é construída socialmente e traz consigo perspectivas culturais. Nesse sentido, Piovesan destaca a perspectiva de Hannah Arendt, segundo a qual tal noção não constitui um dado, mas sim uma invenção humana, em constante processo de construção e de reconstrução, que: “Compõe um construído axiológico, fruto da nossa história, de nosso passado, de nosso presente, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social” (PIOVESAN, 2006PIOVESAN, Flávia. (2006), “Direitos Humanos: desafios da ordem internacional contemporânea”. Cadernos de Direito Constitucional. Disponível em: https://www.academia.edu/23860430/DIREITOS_HUMANOS_DESAFIOS_DA_ORDEM_INTERNACIONAL_CONTEMPOR%C3%82NEA_1?auto=download, consultado em 05/06/2015.
https://www.academia.edu/23860430/DIREIT...
, p.6). Tanto os fundamentos éticos, como a própria pretensão de legitimidade universal da Declaração da ONU dizem respeito, portanto, às características da cultura ocidental – e sobretudo eurocêntrica – de meados do século XX. Neste sentido, independentemente da posição sobre a validade universal dos Direitos Humanos, tais como estabelecidos pelas Nações Unidas, é preciso situá-los, ainda, como produtos de seu tempo e de seu espaço.

O sistema internacional de direitos humanos da ONU reflete, pois, “a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos – o ‘mínimo ético irredutível’” (PIOVESAN, 2006PIOVESAN, Flávia. (2006), “Direitos Humanos: desafios da ordem internacional contemporânea”. Cadernos de Direito Constitucional. Disponível em: https://www.academia.edu/23860430/DIREITOS_HUMANOS_DESAFIOS_DA_ORDEM_INTERNACIONAL_CONTEMPOR%C3%82NEA_1?auto=download, consultado em 05/06/2015.
https://www.academia.edu/23860430/DIREIT...
, p. 9) - sendo este, segundo a autora, o ponto chave das posições universalistas.

Ainda sobre a pretensão universal dos direitos defendidos pela ONU, destacamos, conforme Lafer, que:

[...] apesar de todas as deficiências que possa ter, a ONU, sem dúvida, é um fator essencial na promoção de ideais éticos, em geral, e dos direitos humanos, em particular. Essa capacidade da ONU deriva dos princípios consagrados em sua Carta, cuja origem é o reconhecimento da legitimidade do patrimônio das ideias éticas da humanidade. O triunfo definitivo dessas ideias é, no entanto, uma incógnita (LAFER, 1995LAFER, Celso. (1995), “A ONU e os direitos humanos”. Estudos Avançados, 9, 25: 169-185. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141995000300014, consultado em 10/03/2015.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 185, grifos nossos).

Para o triunfo dessas ideias, como aborda Celso Lafer, é necessária a “associação convergente de três grandes temas: direitos humanos e democracia no plano interno e a paz no plano internacional” (LAFER, 1995LAFER, Celso. (1995), “A ONU e os direitos humanos”. Estudos Avançados, 9, 25: 169-185. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141995000300014, consultado em 10/03/2015.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 172). Um ponto essencial na universalização dos Direitos Humanos – um consenso na literatura da área – é a defesa da democracia nos Estados. Sobre isso, Piovesan destaca que o desafio central à implementação dos Direitos Humanos é o da laicidade estatal: “Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis, que, ao impor uma moral única, inviabiliza qualquer projeto de sociedade aberta, pluralista e democrática” (PIOVESAN, 2006PIOVESAN, Flávia. (2006), “Direitos Humanos: desafios da ordem internacional contemporânea”. Cadernos de Direito Constitucional. Disponível em: https://www.academia.edu/23860430/DIREITOS_HUMANOS_DESAFIOS_DA_ORDEM_INTERNACIONAL_CONTEMPOR%C3%82NEA_1?auto=download, consultado em 05/06/2015.
https://www.academia.edu/23860430/DIREIT...
, p. 15). Este é, como se sabe, o caso de muitos países do mundo muçulmano.

Porém, como nos lembra Rossana Reis, “[...] é importante destacar que a crescente exigência de que os estados sejam democráticos para serem considerados legítimos no sistema internacional contrasta fortemente com o baixo grau de democratização das instituições internacionais [...]” (2006, p. 40, grifos nossos). Neste contexto, ao tratarmos do regime internacional de direitos humanos e de seus desafios, é importante destacar que nas disputas por legitimidade dos organismos internacionais e de seus instrumentos estão envolvidas tanto questões políticas, como questões levantadas sob a luz do relativismo cultural:

Assim, a década de 1990 caracterizar-se-ia [...] por um duplo processo: de um lado, existe um avanço no reconhecimento e na proteção dos direitos humanos e, “por outro lado, a situação política internacional mostra como essas relações estão ainda indefinidas, dada a proteção internacional seletiva dos direitos humanos, submetidas aos interesses geopolíticos das principais potências, assim como as reações de suas lideranças e de grupos políticos fundamentalistas, nacionalistas e defensores de outros particularismos, que contestam mudanças mais profundas no campo dos Direitos Humanos” (KOERNER, 2002, p. 89 apud REIS, 2006REIS, Rossana Rocha. (2006), “Os Direitos Humanos e a política internacional”. Revista de Sociologia e Política, 27: 33-42. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n27/04.pdf, consultado em 01/06/2015.
http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n27/04.pd...
, p. 37).

É diante desse processo de construção da legitimidade do regime internacional de Direitos Humanos, tendo em vista as diversas culturas e a inserção de outros grupos no debate sobre a validade da Declaração da ONU, que o presente artigo se situa. Diante de certo conflito de legitimidades, a pesquisa que o originou buscou abordar, em alguma medida, as tensões entre a legitimidade das Nações Unidas e a legitimidade da Organização da Conferência Islâmica, no trato com os direitos de liberdade de expressão e de religião em países de maioria muçulmana.

Notas metodológicas

A decisão de pesquisar a atuação do ACNUDH/EACNUDH se justifica, como já apontado, pelo fato de este ser o organismo que concentra as iniciativas de Direitos Humanos da ONU. Em última instância, é a partir da atuação do ACNUDH/EACNUDH, que podemos analisar como atua as Nações Unidas em casos de conflitos de legitimidade dos direitos humanos no mundo muçulmano. Assim sendo, é da voz da ONU que se trata a pesquisa que originou o presente artigo, uma vez que são utilizadas as fontes dessa organização para saber como ela atua, nos seus limites e por meio do ACNUDH/EACNUDH, em alguns países em que há dissensos claros em relação às liberdades de religião e de expressão.

Para tanto, utilizamos como critério na escolha dos países, a presença física do ACNUDH/EACNUDH, na forma de escritório e sedes5 5 Excluímos, apesar de serem membros da OCI, os países em que as operações do ACNUDH/EACNUDH são de Missão de Paz e de Conselheiros de Direitos Humanos: Chade, Somália, Líbia, Níger, Azerbaijão, Tadjiquistão, Serra Leoa, Iraque, Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Maldivas e Mali. . Assim, dentre os países de maioria islâmica, elegemos os membros da Organização de Cooperação Islâmica nos quais há escritórios nacionais do ACNUDH/EACNUDH: Tunísia, Guiné, Palestina, Mauritânia, Iêmen, Uganda e República do Togo; como também naqueles em que há sedes regionais: Líbano, Senegal, Quirguistão e Camarões; e, ainda, nos países que compõem o escritório regional do Sudeste da Ásia: Brunei, Malásia e Indonésia. O recorte de países membros da Organização de Cooperação Islâmica (OCI) se explica pelo fato de que o recente Estatuto da Comissão de Direitos Humanos da OCI“STATUTE of the OIC Independent Permanent Commission of Human Rights”. (2010), Organisation of Islamic Cooperation. Disponível em http://oicun.org/75/20120607051141117.html, consultado em 03/04/2015.
http://oicun.org/75/20120607051141117.ht...
assegura a cooperação com as Nações Unidas, ao mesmo tempo em que reafirma e defende a Declaração do Cairo.

Tendo em vista nosso foco de interesse, o método empregado para o desenvolvimento do estudo foi uma pesquisa documental, pautada no que é veiculado oficialmente pelo ACNUDH/EACNUDH e pelas Nações Unidas. As principais fontes de conhecimento sobre sua atuação em defesa de direitos humanos pelo mundo são os documentos que a própria organização disponibiliza em sua página na internet, e alguns outros documentos publicados no endereço eletrônico das Nações Unidas. Sendo assim, são esses dois sites as fontes principais do estudo que resultou no presente artigo6 6 A saber: <http://www.ohchr.org/> e <http://www.un.org/>. .

Considerando as publicações a que se tem acesso, a base de dados construída – e que tornou possível responder à pergunta que orientou a pesquisa – é composta pelos seguintes documentos: os Relatórios Anuais do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos e seu Escritório“OFFICE of the United Nations High Commissioner for Human Rights”. OHCHR. Disponível em http://www.ohchr.org/EN/Pages/WelcomePage.aspx, consultado em 18/10/2014.
http://www.ohchr.org/EN/Pages/WelcomePag...
, os discursos de Alto Comissários, os comunicados à imprensa, os editoriais de opinião, os informes assinados pelo ACNUDH/EACNUDH para sessões do Conselho de Direitos Humanos, os documentos da Revisão Periódica Universal, e documentos que compõem os Procedimentos Especiais – os relatórios anuais dos Relatores Especiais sobre liberdade de religião ou crença, e os relatórios anuais dos Relatores Especiais sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão.

É válido dizer, por fim, que os documentos selecionados para análise foram rastreados nos sites oficiais da ONU e do ACNUDH/EACNUDH, tendo em vista os seguintes parâmetros: localizando-se os países eleitos para a investigação; as palavras chaves ‘religião’ e ‘expressão’; e, ainda, os crimes correlatos – apostasia e blasfêmia –, bem como as palavras ‘Islã’ e ‘islamismo’7 7 Os documentos são, em sua maioria, disponibilizados em língua inglesa, mas há também um número considerável de documentação redigida em espanhol e francês. . Seguindo este método, a pesquisa documental apontou diversas questões envolvendo tensões entre as normas de liberdades de religião e de expressão das duas organizações internacionais: a Organização das Nações Unidas e a Organização da Conferência Islâmica. Com isso, os dados levantados para o estudo possibilitaram uma análise qualitativa dos casos – como segue nas próximas sessões.

Pesquisa documental: os documentos analisados

Os primeiros documentos analisados foram os Relatórios Anuais. Como meio de divulgação do andamento geral dos trabalhos desenvolvidos pelo ACNUDH/EACNUDH, os Relatórios Anuais são documentos extensos que, além de tratar das atividades realizadas em operações de campo, reservam grande espaço ao campo orçamentário da organização. Formulados desde 1994, foi a partir dos anos 2000 que os relatórios passaram a trazer dados orçamentários cada vez mais detalhados; sendo que, a partir de 2010, os documentos têm reservado um espaço maior e mais direcionado às operações de campo, de forma a facilitar o conhecimento sobre tais atividades. Aqui, foram analisados os documentos emitidos durante o período de 1994 a 20138 8 Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/PublicationsResources/Pages/AnnualReportAppeal.aspx>. .

A análise de documentos disponibilizados na página do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos e seu Escritório incluíram também os discursos ou mensagens9 9 Disponíveis em: <http://www.ohchr.org/sp/NewsEvents/Pages/NewsSearch.aspx?PTID=HC&NTID=STM> , comunicados de imprensa10 10 Disponíveis em: <http://www.ohchr.org/sp/NewsEvents/Pages/NewsSearch.aspx?PTID=HC&NTID=PRS> e editoriais de opinião11 11 Disponíveis em: <http://www.ohchr.org/sp/NewsEvents/Pages/NewsSearch.aspx?PTID=HC&NTID=OED> . Tendo selecionado aqueles publicados até o ano de 2014, e tendo em vista o recorte de países e de temas que a pesquisa propôs abordar, o número de documentos disponíveis nessas sessões não é tão extenso como nas demais.

Também foram analisados os informes do ACNUDH/EACNUDH para as sessões do Conselho de Direitos Humanos. Diferentemente do ACNUDH/EACNUDH que, no organograma da ONU, está sob a alçada do Secretariado Geral12 12 Isso faz do ACNUDH/EACNUDH uma organização não propriamente dita intergovernamental: ele tem autonomia para contatar governos sem a espera de um mandato de algum órgão político da ONU, trabalhando justamente na articulação entre o sistema de direitos humanos das Nações Unidas e seus mecanismos de promoção e defesa. , o Conselho de Direitos Humanos é um órgão subsidiário da Assembleia Geral. O Conselho de Direitos Humanos, que substituiu, em 2006, a Comissão de Direitos Humanos, é um órgão intergovernamental que se reúne em Genebra durante um período do ano com algumas sessões. Ele é composto por quarenta e sete Estados membros da ONU, eleitos por três anos e somente, por dois mandatos consecutivos. O Conselho recebe apoio do ACNUDH/EACNUDH, tanto em suas reuniões, como em suas deliberações. Aqui, foram analisados informes de vinte e sete sessões, sendo que a primeira delas foi realizada em 2006, e a última, em 201413 13 Disponível em: < http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/Pages/Sessions.aspx>. .

Outros documentos analisados também se encontram no âmbito do Conselho de Direitos Humanos: a Revisão Periódica Universal (RPU). A RPU é um processo estabelecido já na resolução de aprovação do Conselho, em 2006, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e teve sua primeira sessão realizada em 2007. Desde então, e até o final de 2014, foram realizadas vinte sessões, cada qual com revisões de quinze países em média14 14 Sessões disponíveis em: <http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/UPR/Pages/UPRSessions.aspx>. . Sendo um processo único, que acontece periodicamente, a RPU conta com a participação do Estado avaliado e de suas instituições de direitos humanos, com a assistência de diversas organizações não governamentais atuantes nos países sob revisão, e com a presença de representantes de diversos Estados, assim como de organismos das Nações Unidas. Pertencente ao âmbito do Conselho de Direitos Humanos e com o objetivo de direcionar seu trabalho, a RPU é um processo de avaliação dos registros de (violações dos) direitos humanos dos Estados membros da ONU, que visa ainda fornecer assistência técnica para promoção desses direitos. O ACNUDH/EACNUDH participa deste processo em dois momentos: fornecendo informações sobre a situação de direitos humanos nos países avaliados, e prestando assistência técnica aos governos na defesa e promoção desses direitos, tendo em vista o que é recomendado pela RPU.

Os últimos documentos aqui analisados são os relatórios anuais apresentados ao Conselho de Direitos Humanos e à Assembleia Geral das Nações Unidas, assinados pelos relatores especiais nomeados para tratar dos temas de interesse à nossa pesquisa: o Relator Especial sobre liberdade de religião e crença15 15 Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/Issues/FreedomReligion/Pages/FreedomReligionIndex.aspx>. e o Relator Especial sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão16 16 Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/Issues/FreedomOpinion/Pages/OpinionIndex.aspx>. . Esses relatores compõem o quadro dos Procedimentos Especiais, uma das divisões do ACNUDH/EACNUDH, e disponibilizam diversos documentos sobre o monitoramento realizado em países onde há atuação da organização, dentre eles os relatórios anuais – selecionados para análise17. Tais documentos foram incluídos na pesquisa, pelo fato de o trabalho realizado pelos relatores especiais, instituídos pelo Conselho de Direitos Humanos, depender inteiramente do apoio do ACNUDH/EACNUDH. Tendo em vista que o insumo que o ACNUDH/EACNUDH dispensa aos relatores especiais é imprescindível para atuação destes, e que os temas da liberdade de expressão e de religião são objetos de trabalho desses cargos, os Procedimentos Especiais foram, nesses termos, incorporados à pesquisa.

O ACNUDH/EACNUDH e sua atuação em países de maioria muçulmana

Com base na pesquisa documental realizada, a presente seção do texto propõe uma análise breve – devido ao enorme volume de documentos abordados – sobre a atuação do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos e de seu Escritório (ACNUDH/EACNUDH), frente ao conflito de legitimidade em matéria de direitos de liberdade de religião e de expressão, em países signatários da Declaração do Cairo.

Como resultado da pesquisa, temos que, de maneira geral, cabe ao ACNUDH/EACNUDH denunciar violações à Carta de Direitos Humanos da ONU. Tais denúncias são seguidas de condenações, nos termos onusianos, a violações dos direitos internacionais tidos como universais. Os documentos públicos aqui estudados também mostram que, além de denunciar e condenar, a organização confirma, a todo o tempo, as normas a que presta serviço com sua atuação nesses países. Ou seja, uma forma recorrente de o ACNUDH/EACNUDH lidar com casos de violações que dizem, ou não, respeito aos dissensos abordados ocorre por meio de recomendações aos países violadores. Recomenda-se que se cumpram as normas acordadas nas Nações Unidas: esta é, sobretudo, a forma como o ACNUDH/EACNUDH atua em defesa dos Direitos Humanos, a partir dos documentos estudados.

Outro aspecto que se destaca na análise é o fato de o ACNUDH/EACNUDH promover encontros e seminários temáticos com a presença de especialistas convidados. Temas, como liberdade de expressão e liberdade de religião, tornaram-se temas a serem, por diversas vezes, abordados por um corpo técnico específico no âmbito da ONU. Sabe-se que, como proposto desde a criação do cargo de Alto Comissário para Direitos Humanos, a assistência oferecida pelo ACNUDH e seu Escritório aos países em que atuam, juntamente com o apoio prestado a diversas instituições, têm a intenção de reforçar as normas internacionais das Nações Unidas; proporcionar estruturas para implantação dos Direitos Humanos, tais como estabelecidos pela ONU; bem como recomendar o cumprimento desses direitos.

O que nos chamou atenção na pesquisa foi o fato de que direitos de liberdade de religião e de expressão sejam temas a serem discutidos por corpos técnicos especializados que, frente às divergências existentes entre as normas da ONU e as interpretações de direitos no Islã, contam com especialistas em direitos. Um exemplo emblemático foi o Seminário realizado em Genebra, em 2008, intitulado “Liberdade de expressão e apologia do ódio religioso que constitui incitação à discriminação, à hostilidade e à violência”. Neste caso particular, compatibilizar liberdade de expressão e crítica à religião constituiu um problema a ser resolvido por especialistas e, mais especificamente, por aqueles que conhecem as leis de blasfêmia e seus fundamentos no mundo muçulmano.

Dito isso, passamos a uma breve análise sobre as formas de atuação do ACNUDH/EACNUDH, em casos de dissensos em relação à universalidade dos Direitos Humanos. Para tanto, fazemos uso de quatro categorias, que nortearam a análise realizada no estudo. Considerando os casos mais recorrentes da pesquisa documental e aqueles mais relevantes, o ACNUDH/EACNUDH atua, nos países muçulmanos selecionados para análise, das seguintes formas: incorporando, ignorando, reafirmando normas, ou enfrentando, de fato, os conflitos de diversidade cultural.

ACNUDH/EACNUDH incorpora, em alguma medida, o conflito

Tratamos, aqui, de incorporação, no sentido de inclusão de demandas com relação à crítica aos Direitos Humanos, nos casos estudados. De formas distintas, algumas posições contrárias à validade desses direitos foram incorporadas, em certa medida, pelo ACNUDH/EACNUDH, nos documentos analisados. Mencionamos, então, os casos que se destacaram nesse sentido.

Os relatórios anuais citam alguns casos de movimentos internos em países muçulmanos que propunham a discussão sobre os alcances e os limites da xaria, em suas legislações. No relatório de 2011, embora sem demais especificações, consta que agências da ONU apoiaram um encontro organizado pela Associação de Ulemás na Mauritânia, no qual se discutiu a eliminação de práticas de mutilação genital feminina. Já o relatório de 2012 menciona os debates entre secularistas e religiosos, sobre possíveis reformas legislativas em países do norte da África e do Oriente Médio.

A inclusão desses debates nos documentos que tratam da atuação do ACNUDH/EACNUDH constitui uma forma de incorporar a discussão, ou melhor, sublinhar a sua importância nos países muçulmanos. Entretanto, essa incorporação é relativa, uma vez que casos como esses são citados brevemente nos documentos, e até mesmo a informação de que agências da ONU apoiaram um evento organizado por religiosos é esvaziada de detalhes. A referência a essas discussões é, portanto, restrita, embora o debate sobre os alcances e os limites da xaria no mundo muçulmano atualmente seja recorrente e igualmente importante para a atuação do ACNUDH/EACNUDH em países em que há dissensos quanto às normas das Nações Unidas.

Outro caso que se destaca na análise está relacionado à difamação da religião para o Islã. Tendo em vista que condenações de blasfêmia são recorrentes no mundo muçulmano, alguns casos são anexados em documentos que reconhecem a estreita vinculação entre a difamação da religião e a liberdade de expressão como um problema.

Nesse sentido, a inclusão da posição de um dos especialistas convidados para compor o corpo técnico do Seminário supracitado (em Genebra, no ano de 2008) configura a incorporação de demandas do relativismo cultural. Nos informes do ACNUDH/EACNUDH para o Conselho de Direitos Humanos, consta que um dos convidados, Mohamed Saeed Eltayeb, discutiu o problema da compatibilização entre liberdade de expressão e crítica à religião. Se no âmbito das Nações Unidas defende-se o vínculo entre liberdade de religião e liberdade de expressão, para Eltayeb o debate se insere na complementariedade das duas liberdades, considerando-se o contexto, as condições locais e as tensões políticas. Na ocasião, o pesquisador fez lembrar que é muito próprio de cada religião tudo o que configura ofensa a símbolos e a referências religiosas, e que a proteção dos símbolos religiosos contra a injúria e a difamação fazem parte da liberdade de religião. Assim sendo, segundo Eltayeb, só é possível determinar se as críticas, os comentários depreciativos, os insultos ou o escárnio da religião infringem o direito do crente à liberdade de religião, se for considerado que tais atos afetam os diferentes aspectos daquela religião ou crença. Nesse sentido, a análise não caberia a um órgão externo (dentre eles, a ONU), mas derivaria de considerações sobre aquela crença em particular. Eltayeb relativiza, portanto, o conceito de liberdade de expressão, quando se trata de questões religiosas. A posição do especialista foi anexada ao documento, embora não mais citada ou comentada, assim como não houve referência a possíveis medidas após o citado Seminário.

De maneira geral, há nos documentos o reconhecimento de que blasfêmia e apostasia são questões sensíveis, frente às quais o ACNUDH/EACNUDH deve atuar no mundo muçulmano. No entanto, embora mencionando casos em que os direitos de liberdade de religião e de expressão são postos em xeque por alguns países, devido a interpretações da lei islâmica, isso é feito de maneira breve e sem demais comentários, quando os discursos relativistas são incorporados pelos documentos que tratam da atuação do ACNUDH/EACNUDH.

ACNUDH/EACNUDH ignora, muitas vezes, as divergências

Abordaremos, agora, uma categoria que se relaciona diretamente com a anterior, e que, por vezes, poderia ser fundida a ela. Se, anteriormente, tratamos de casos que são incorporados apenas parcialmente pelo ACNUDH/EACNUDH em seus documentos, abordamos, agora, os casos que, embora citados nos documentos, são ignorados pela organização, de diversas formas. Ignorar remete, aqui, ao silêncio do ACNUDH/EACNUDH e dos demais representantes da ONU frente aos dissensos referentes à legitimidade universal dos Direitos Humanos.

Destacamos, nesse sentido, o fato de o Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos e seu Escritório terem ignorado as demandas referentes a um projeto de lei, citado nos informes do ACNUDH/EACNUDH para o Conselho de Direitos Humanos. O projeto de resolução foi levado em três momentos diferentes às sessões do Conselho: em 2008, 2009 e 2011; sendo que, no primeiro momento, não constou a assinatura de países elencados para análise na pesquisa que realizamos; enquanto, nos dois outros, tem-se a assinatura de Togo e, em seguida, as da Indonésia, Malásia e Palestina. O projeto de resolução trata da demanda de alguns países para serem representados com um número maior de funcionários no EACNUDH. Alegando falta de representatividade dentre os membros do EACNUDH, o projeto de resolução exige uma distribuição geográfica mais equitativa na organização. O texto do projeto aciona o discurso relativista, citando a importância de considerar as particularidades nacionais e regionais, os diversos contextos históricos culturais e religiosos, e os diferentes sistemas políticos, econômicos e jurídicos, para então pensar na promoção e defesa de direitos humanos universais. Nesse sentido, a atuação das Nações Unidas é questionada por esses países, uma vez que a diversidade cultural é desconsiderada. O projeto apresentado em 2011 lamenta, consequentemente, que tal desequilíbrio não tenha sido corrigido, apesar das reiteradas tentativas do projeto de resolução apresentado à ONU. As solicitações feitas pelo projeto não foram atendidas, tampouco tratadas pelos demais documentos analisados. Predominando o silêncio sobre tal demanda, consideramos que o ACNUDH/EACNUDH ignorou a posição dos países signatários de tal projeto.

Nos documentos referentes à Revisão Periódica Universal, nos momentos em que as normas das Nações Unidas foram confrontadas pelas legislações nacionais que têm por base interpretações religiosas, a reação da ONU diante desses casos foi novamente o silêncio. Dando prioridade à ratificação de tratados, à assinatura de convenções e à retirada de reservas, as exigências feitas, sobretudo quanto a divergências sobre os direitos das mulheres, correspondem a ignorar tais dissensos e suas questões fundamentais, ainda que tenham sido expostos.

O silêncio, como forma de ignorar, também esteve presente em alguns documentos que tratam dos procedimentos especiais, com destaque para dois casos: uma detenção por blasfêmia foi relatada em 2009, na Malásia, seguida de silêncio sobre o caso, no decorrer do documento. Em 2011, foi relatado um caso de incriminação por apostasia ocorrido na Indonésia, sobre o qual o documento procedeu da mesma maneira: o episódio foi citado e não mais abordado, sem recomendações ou alguma consideração da parte dos relatores especiais.

Neste sentido, podemos afirmar que o ACNUDH/EACNUDH ignora, muitas vezes, tanto divergências quanto à sua atuação no mundo muçulmano, como conflitos em relação à legitimidade universal da Carta de Direitos Humanos da ONU.

ACNUDH/EACNUDH reafirma, com frequência, as suas próprias normas

Reafirmar a Carta de Direitos Humanos da ONU é uma forma de atuação bastante frequente do ACNUDH/EACNUDH, frente aos dissensos quanto à validade universal das normas das Nações Unidas em alguns países muçulmanos.

Diante de situações de conflito entre diferentes legitimidades – a de representantes das Nações Unidas e a de representantes de leis fundamentadas no Islã –, tanto o Alto Comissário como demais membros do EACNUDH optaram, muitas vezes, por reafirmar os Direitos Humanos, tais como enunciados pelos documentos da ONU, sem nenhuma disposição para discussões interessadas nos termos dos conflitos instaurados. Como são muitos os casos em que isso ocorre, citamos alguns.

Os discursos de Altos Comissários representam bem o que denominamos reafirmação na pesquisa realizada. Em maio do ano de 2000, a então Alta Comissária Mary Robinson condenava casos em que a liberdade de imprensa havia sido violada em alguns países muçulmanos, e, para tanto, reafirmava um artigo específico da Declaração de 1948. Verifica-se, portanto, que recorrer às normas das Nações Unidas para legitimar condenações a países que discordam de tais normas é fato usual nos documentos analisados. Isso demonstra que a legitimidade dos direitos a serem protegidos e defendidos pela ONU em diversos contextos não estão em questão para a Organização; logo, a universalidade dos Direitos Humanos também não.

É neste sentido que Navi Pillay, ocupando, em 2011, o cargo de Alta Comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, reafirma os direitos de liberdade de expressão e de liberdade de religião, frente a casos de discriminação de muçulmanos e difamação do Islã. A Alta Comissária sublinhou a interdependência e o reforço mútuo das duas liberdades, afirmando, por fim, que a liberdade de expressão é necessária para a criação de um ambiente de respeito às religiões – ausentando-se, pois, da discussão sobre o que configuraria desrespeito para cada religião especificamente.

A afirmação do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos“PACTO Internacional sobre Direitos Civis e Políticos”. (1966), Organização das Nações Unidas. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm, consultado em 14/04/2015.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
foi reiterada nas demais ocasiões em que a validade de plenos direitos de liberdade de expressão foi posta em xeque por países muçulmanos, referindo-se a questões religiosas. O mesmo ocorreu em relação aos direitos de liberdade de religião, por diversas vezes: diante de divergências quanto à sua validade, os representantes do ACNUDH/EACNUDH limitaram-se a reafirmar o que consta nos documentos das Nações Unidas.

ACNUDH/EACNUDH enfrenta, algumas vezes, o conflito

O ACNUDH/EACNUDH, diante de divergências quanto à legitimidade universal dos Direitos Humanos, também atuou em países muçulmanos enfrentando, algumas vezes, tais divergências. Um exemplo disso pode ser encontrado nos Relatórios Anuais, com as críticas do ACNUDH/EACNUDH direcionadas a duas outras organizações internacionais: à Liga Árabe e à Associação do Sudeste Asiático (ASEAN). A crítica à Liga Árabe se referia à não criação de uma Corte Árabe de Direitos Humanos: de acordo com o ACNUDH/EACNUDH, era preciso que o sistema árabe estivesse em conformidade com as “normas internacionais”. Já a crítica direcionada à ASEAN concernia ao próprio conteúdo da Declaração de Direitos Humanos da Associação do Sudeste Asiático de 2012: de acordo com o relatório anual deste mesmo ano, “o documento estava aquém do padrão internacional de direitos humanos”. Tais afirmações só fazem sentido tendo como referência a validade universal, tanto da estrutura da ONU, como do conteúdo da sua Carta de Direitos Humanos. Neste sentido, afirmamos que o ACNUDH/EACNUDH enfrentou a relativização do “padrão preestabelecido pelas Nações Unidas” por outras organizações internacionais.

Dentre os discursos de Altos Comissários, cabe citar dois momentos em que o enfrentamento foi considerado como bem caracterizado, tendo em vista a pesquisa realizada. Em 2011, a Alta Comissária Navi Pillay se pronunciou sobre leis que criminalizavam a homossexualidade em diversos países: em sua fala, tais leis configuravam um “anacronismo”. A Alta Comissária Mary Robinson, em 1998, ressaltou, na Conferência de Oslo sobre liberdade de religião, que o princípio da individualidade como base da linguagem dos Direitos Humanos garantia a universalidade das normas das Nações Unidas. Embora reconhecendo que esse conjunto de direitos apresentava vieses filosófico e religioso ocidentais, Robinson considerava que tais direitos poderiam ser aplicados nas diversas culturas. Nesses dois momentos, diante de temas caros ao Islã (como a homossexualidade e o que se considera ofensa à religião), o ACNUDH enfrentou posicionamentos contrários ao documento de 1948.

Verifica-se, portanto, que os discursos das duas Alto Comissárias, aqui mencionados, alinham-se à posição de especialistas em direitos humanos das Nações Unidas, os quais afirmaram, em 2010 em Genebra, que valores universais e, portanto, a legitimidade dos direitos humanos não deve ser subserviente a normas sociais, culturais ou religiosas.

Em diversas ocasiões em que violações aos Direitos Humanos foram identificadas pelo ACNUDH/EACNUDH – mesmo quando motivadas pelas divergências entre as normas onusianas e as leis islâmicas cumpridas por diversos países –, o enfrentamento foi uma das reações da organização ocidental em atuação no mundo muçulmano. Nesses contextos, as normas das Nações Unidas são reiteradas diante de casos de conflitos como os citados, seguidas de condenações às leis que as contradizem.

Na análise dos procedimentos especiais, dois casos se destacam. No primeiro deles, a relatora especial que tratava da perseguição à comunidade Bahai na Indonésia, em 2008, afirmou, frente ao crime de apostasia de acordo com o Islã, que são inaceitáveis as limitações impostas à liberdade de adotar, alterar ou renunciar a uma religião ou crença. O segundo caso se refere à tentativa da cidadã, Lina Joy, de mudar sua identidade religiosa na Malásia. A relatora especial que abordava o caso, em 2006, pronunciou-se, igualmente, contra as limitações quanto à substituição de crença ou religião, que intimidavam os representantes da Malásia: segundo a relatora, o Estado tinha como obrigação, dado o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, proteger o direito de liberdade de religião total.

Tendo em vista os resultados da pesquisa documental a que nos propusemos, são estas as formas mais recorrentes com as quais ACNUDH/EACNUDH lida em casos de conflitos acerca da legitimidade de seus documentos, na sua atuação em defesa da Carta de Direitos Humanos das Nações Unidas: incorporando, ignorando, reafirmando normas, ou enfrentando os dissensos em relação aos direitos de liberdade de expressão e de religião.

Considerações finais

O estudo aqui apresentado buscou examinar como a ONU atua em casos de conflito de legitimidade, tendo em vista as publicações da organização internacional em defesa dos Direitos Humanos em países signatários da Declaração do Cairo. Como visto, o ACNUDH/EACNUDH centraliza todas as iniciativas de direitos humanos das Nações Unidas, e é por isso que analisamos a atuação do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos e, também, a de seu Escritório, em determinados territórios. Neste sentido, o estudo tratou, em última instância, do modo como a ONU lida com posições que se contrapõem à legitimidade universal da Carta de Direitos Humanos, formulada no âmbito da organização ocidental.

Como exposto, as controvérsias em torno da validade da Declaração Universal dos Direitos Humanos dizem respeito, no caso da Declaração do Cairo, aos direitos de liberdade de religião e de expressão, especificamente. A partir disso, realizamos uma pesquisa documental, em que algumas considerações sobre seus resultados são aqui apresentadas.

A fim de responder à pergunta que orientou a pesquisa, fizemos uso de quatro categorias que enquadram as formas como a ONU lida com conflitos de legitimidade acerca dos Direitos Humanos, em seu exercício de proteção e promoção em países de maioria islâmica. Como resultado da análise, tem-se que o ACNUDH/EACNUDH atua nos países selecionados pelo estudo, ora incorporando – em alguma medida – as demandas específicas do mundo muçulmano, ora ignorando posições divergentes ou, ainda, diante dos dissensos em relação à validade universal dos Direitos Humanos, ora reafirmando as normas internacionais postas pelas Nações Unidas, ora enfrentando criticamente o relativismo cultural.

Entretanto, os resultados da pesquisa não permitem estabelecer previsões sobre a forma específica de atuação da organização, em casos de divergências entre interpretações sobre os direitos dos homens. Tais resultados apenas apontam que as diferentes maneiras de o ACNUDH/EACNUDH lidar com as divergências em relação aos direitos de liberdade de religião e de expressão no mundo muçulmano dizem respeito à impossibilidade de a organização aplicar sanções àqueles que violam as normas estabelecidas pela organização.

Se, por um lado, a atuação do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos e de seu Escritório é fincada na normatividade, por outro, a ONU tem uma peculiaridade considerável: a organização estabelece normas, mas não tem o poder de sancioná-las. Do ponto de vista sociológico, lembrando Durkheim, isso pode ser visto como uma contradição em termos, uma vez que de acordo com a sociologia clássica, norma é aquele ato cuja violação envolve uma sanção.

Contudo, sem o poder de sancionar, uma vez que o sistema das Nações Unidas não conta com mecanismos de coerção, restam à ONU e, por conseguinte, ao ACNUDH/EACNUDH as citadas reações diante de violações às normas de Direitos Humanos, que tais organizações se empenham em defender: incorporar, ignorar, reafirmar ou enfrentar. Resultados distintos poderiam ser encontrados em uma pesquisa como a realizada, caso a ONU contasse com medidas de repressão para fazer cumprir as normas que estabelece, haja vista as normas de direito que se fazem cumprir no âmbito dos Estados, com penalidades correspondentes a cada tipo de violação. Estados nacionais, nesse sentido, não recorrem à incorporação dos dissensos, à reafirmação das regras ou ao enfrentamento crítico daqueles que se contrapõem à validade das normas estabelecidas. O que se pode inferir, de maneira geral, é que se houvesse o poder de sanção, no âmbito da ONU, as violações seriam repreendidas e suas motivações seriam apenas ignoradas pela organização.

Como considerações finais, destaca-se, pois, que a atuação do ACNUDH/EACNUDH é pautada pela normatividade, e que as diferentes formas de lidar com as divergências acerca da validade universal dos Direitos Humanos correspondem diretamente ao caráter não coercitivo da ONU. Isso porque a autoridade da ONU não é construída em uma relação diretamente dependente de um poder de coerção, como demonstra Lopes (2012)LOPES, Dawisson Belem. (2012), A ONU entre o passado e o futuro: a política da autoridade. Curitiba, Appris., que, em sua análise, afirma que “uma entidade com as características da ONU, desprovida de “dentes” operacionais, não deve aspirar ao papel de enforcer internacional, nem se orientar pelo ditame da eficácia, ou ser avaliada pelo critério do exercício efetivo do poder” (p. 250). É neste sentido que o autor reitera a autoridade política da ONU:

Nossa avaliação é de que a dinâmica política do mundo contemporâneo ajuda no alargamento da constituency da ONU. O que implica reconhecer que a possível evolução das relações internacionais para um cenário de governança global e a emergência de fontes de “autoridade privada” (acompanhada pelo relativo enfraquecimento da autoridade política do Estado territorial moderno) contribuem para que a ONU venha projetar internacionalmente os valores e as regras que emergem de um processo de produção normativa cujo centro é ela própria. Perceber, ademais que, na análise da autoridade da ONU na política internacional, o que está em jogo é menos a capacidade operacional da Organização das Nações Unidas de intervir efetivamente em todas as questões e campos mencionados anteriormente (Direitos Humanos, proteção ambiental, gestão conjunta de global commons), e mais a autoridade política de que a organização se encontra investida para agir, para exercer as funções de governança global. Assim, se há uma entidade autorizada a conceber padrões de comportamento, parâmetro, metas, estratégias de longo alcance etc. sobre “temas globais” no mundo de hoje, essa é a Organização das Nações Unidas (LOPES, 2012LOPES, Dawisson Belem. (2012), A ONU entre o passado e o futuro: a política da autoridade. Curitiba, Appris., p. 234, grifos nossos).

Consequentemente, Celso Lafer enfatiza que: “[...] os documentos negociados no âmbito da ONU, mesmo se vazados em linguagem vaga, têm necessariamente conteúdo ético” (1995, p.184). As posições da ONU têm, portanto, um peso político bastante considerável no cenário internacional e, ao analisarmos o regime internacional de direitos humanos, temos claramente um encontro entre a ética e a política na forma de atuação da organização.

17 Disponíveis em: <http://www.ohchr.org/EN/Issues/FreedomReligion/Pages/Annual.aspx>; <http://www.ohchr.org/EN/Issues/FreedomOpinion/Pages/Annual.aspx>.

  • 1
    Ao longo deste texto, o termo Direitos Humanos escrito com letras maiúsculas fará referência à Declaração de Direitos Humanos da ONU.
  • 2
    A Declaração do Cairo, assinada, em 1990, pelos ministros das Relações Exteriores dos Estados membros da Organização da Conferência Islâmica (OCI), pode ser interpretada como o sinal de um duplo reconhecimento: por um lado, da autoridade moral da ONU e, por outro, das razões dos movimentos sociais de reivindicação e tutela dos direitos humanos, presentes em muitos países muçulmanos. A Declaração representa o ponto de chegada de uma longa caminhada. A elaboração demorou mais de uma década e é fruto de uma negociação entre os líderes dos Estados, empenhados na defesa intransigente da Lei corânica, e os expoentes de governos mais abertos a uma interpretação modernista da mesma Lei (PACE, 2005PACE, Enzo. (2005), Sociologia do Islã: fenômenos religiosos e lógicas sociais. Petrópolis, Vozes., p. 339).
  • 3
    Criada em setembro de 1969, consta em sua carta de constituição que a Organização de Cooperação Islâmica1 1 Ao longo deste texto, o termo Direitos Humanos escrito com letras maiúsculas fará referência à Declaração de Direitos Humanos da ONU. é guiada pelos valores islâmicos de unidade e de fraternidade. A OCI contava, em 1969, com os seguintes Estados membros: Jordânia, Afeganistão, Indonésia, Irã, Paquistão, Turquia, Chade, Tunísia, Argélia, Arábia Saudita, Senegal, Sudão, Somália, Guiné, Palestina, Kuwait, Líbano, Líbia, Mali, Malásia, Egito, Marrocos, Mauritânia, Níger, Iêmen.
  • 4
    Segundo Hernandez (2015HERNANDEZ, Matheus Carvalho. (2015), O Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos e seu Escritório: criação e desenvolvimento institucional (1994-2014). Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas., p. 13), “Em português, geralmente a organização é chamada de Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Entretanto, a expressão Alto Comissariado é ambígua e não possui correspondente nas línguas oficiais da ONU. Ela é ambígua na medida em que não permite diferenciar o posto individual aprovado em 1993, o ACNUDH, de seu escritório surgido em 1997, o EACNUDH. Como o mandato aprovado pelos Estados em 1993 instituiu um posto individual e não um escritório propriamente dito, chamá-lo de Alto Comissariado ou de EACNUDH seria impreciso e incoerente diante do processo político de negociações. Por outro lado, chamá-lo apenas de ACNUDH eclipsaria o surgimento inesperado de uma institucionalidade mais robusta, o EACNUDH. ACNUDH e EACNUDH conformam uma unidade institucional peculiar [...]”. Assim, sendo, “o uso de ACNUDH refere-se ao posto individual. O uso de EACNUDH refere-se ao escritório composto de funcionários e dispostos de modo hierárquico em diferentes setores. E ACNUDH/EACNUDH refere-se a esse compósito político que conforma uma institucionalidade internacional” (op. cit., p. 13).
  • 5
    Excluímos, apesar de serem membros da OCI, os países em que as operações do ACNUDH/EACNUDH são de Missão de Paz e de Conselheiros de Direitos Humanos: Chade, Somália, Líbia, Níger, Azerbaijão, Tadjiquistão, Serra Leoa, Iraque, Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Maldivas e Mali.
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    Os documentos são, em sua maioria, disponibilizados em língua inglesa, mas há também um número considerável de documentação redigida em espanhol e francês.
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    Isso faz do ACNUDH/EACNUDH uma organização não propriamente dita intergovernamental: ele tem autonomia para contatar governos sem a espera de um mandato de algum órgão político da ONU, trabalhando justamente na articulação entre o sistema de direitos humanos das Nações Unidas e seus mecanismos de promoção e defesa.
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  • DOI: 10.1590/3510214/2020
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    Este artigo é fruto da pesquisa realizada no doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Referências Bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2019
  • Aceito
    08 Set 2019
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