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Cuidado, crise e os limites do direito do trabalho brasileiro

Care, crisis and the limits of Brazilian Labor Law

Resumo

Este artigo propõe uma análise da provisão do cuidado na atualidade, com objetivo de apontar os limites do direito do trabalho brasileiro no tratamento do cuidado no Brasil. Para isso, aborda a crise do cuidado no atual arranjo do capitalismo e as peculiaridades do trabalho de cuidado no Brasil. Ao final, apresentam-se limites diagnosticados e possíveis respostas a partir do rompimento das divisões disciplinares do direito.

Palavras-chave:
Crise do cuidado; Trabalho doméstico; Direito do trabalho

Abstract

This article proposes an analysis of the provision of care today, aiming to point out the limits of Brazilian labor law in treating care in Brazil. To achieve this goal, the article addresses the care crisis in the current arrangement of capitalism and the peculiarities of care work in Brazil. On its concluding remarks, limits and possible responses are diagnosed, beginning with the break of the disciplinary division of law.

Keywords:
Care crisis; Domestic work; Labor law

Introdução

A realidade brasileira parece cada vez mais distante do ideal de proteção social representado pelo direito do trabalho, uma vez que, em decorrência da crise econômica, houve redução expressiva dos postos de trabalho formais e ampliação do contingente de pessoas excluídas das garantias trabalhistas. Em termos estatísticos, o número de trabalhadores subutilizados no primeiro semestre de 2019 chegou a 25% da força de trabalho, ou 28,3 milhões de pessoas (IBGE, 2019a), e a população ocupada em serviços informais atingiu 41,5% do total de ocupados, o que equivale a 38,3 milhões de pessoas (IBGE, 2019b, p. 18).

Somado a medidas neoliberais de retirada de investimento público e redução de direitos sociais, como a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) e da previdência (EC 103.2017), esse quadro tornou a população que vive do trabalho mais vulnerável em termos sociais. Um contingente cada vez maior de pessoas foi condenado “às incertezas do mercado em todas as dimensões da vida”, abrindo caminho para que gerações presentes e futuras não tenham “nem condições de disputar a xepa da feira para sua sobrevivência imediata” (COHN, 2017COHN, Amélia. Um assassinato cruel. Le Monde Diplomatique [online], 11 abr. 2017. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/um-assassinato-cruel/>. Acesso em: 22 abr. 2018.
https://diplomatique.org.br/um-assassina...
).

Em épocas de crise como a atualidade, algumas atividades que o mercado incorporou - refeições em restaurantes, compra de produtos já processados, lavagem de roupa na lavanderia etc. - tendem a regressar para as casas, saindo da esfera do interesse mercantil e sendo (re)incorporadas ao espaço doméstico (CARRASCO, 2013CARRASCO, Cristina. El cuidado como eje vertebrador de una nueva economía. Cuadernos de Relaciones Laborales [online], v. 31, n. 1, p. 39-56, 2013., p. 43-44). Isso significa, de um lado, aumento da carga de trabalho doméstico não remunerado realizado dentro das famílias; de outro, aumento tanto na demanda por trabalho doméstico remunerado, quanto na oferta, pois há um maior número de trabalhadoras buscando meios de sustento.

Nesse contexto, o cuidado, que de forma multidimensional pode ser entendido como as atividades relacionadas à atenção a pessoas dependentes e à manutenção da vida, torna-se mais evidente na sociedade. Mulheres de classes baixas e médias assumem mais tarefas de cuidado dentro de seus lares, seja por estarem subocupadas ou porque seus salários não permitem pagar creches ou cuidadoras particulares para membros da família; ao mesmo tempo, mais trabalhadoras domésticas integram a força de trabalho, devido ao cenário de desemprego elevado e redução de vagas formais - em novembro de 2019, o Brasil registrou número recorde de trabalhadoras domésticas (6,356 milhões), com baixíssimo patamar de formalização (1,757 milhão tinham registro em carteira) (AMORIM, 2020AMORIM, Daniela. Número de empregados domésticos no país bate recorde. O Estado de S. Paulo [online], 30 jan. 2020. Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,numero-de-empregados-domesticos-no-pais-bate-recorde,70003178662>. Acesso em: 20 mar. 2020.
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).

Cristina Carrasco (2013CARRASCO, Cristina. El cuidado como eje vertebrador de una nueva economía. Cuadernos de Relaciones Laborales [online], v. 31, n. 1, p. 39-56, 2013., p. 45) explica que o capitalismo se constrói “sobre uma imensa massa de trabalho não assalariado, e nem baseado em relações contratuais, que torna possível a acumulação do capital”. Segundo ela, a partir da esfera doméstica é fornecida às empresas “uma força de trabalho abaixo de seu custo real, já que no custo de reprodução dessa mão de obra as energias e o tempo dedicado a reproduzi-la, que vem dos lares, não são levados em consideração” (CARRASCO, 2013CARRASCO, Cristina. El cuidado como eje vertebrador de una nueva economía. Cuadernos de Relaciones Laborales [online], v. 31, n. 1, p. 39-56, 2013., p. 45).

Logo, como os salários não são suficientes para a manutenção da vida, o sistema depende de outros trabalhos voltados a transformar os bens adquiridos no mercado em refeições, limpeza e gestão da casa e atenção à pessoas; trabalhos cuja fronteira com o trabalho mercantil é porosa, mudando de acordo com o desenvolvimento tecnológico e os níveis de renda das sociedades e das casas (CARRASCO, 2013CARRASCO, Cristina. El cuidado como eje vertebrador de una nueva economía. Cuadernos de Relaciones Laborales [online], v. 31, n. 1, p. 39-56, 2013., p. 43). Essa porosidade fica ainda mais evidente em épocas de crise e de calamidade, como uma guerra1 1 Vale lembrar que diante do desabastecimento gerado pela II Guerra Mundial no Reino Unido, o governo investiu na campanha “Victory is in the kitchen” (a vitória está na cozinha), pois a ilha era essencialmente dependente da importação de alimentos e, no período bélico, precisaria produzir mais e consumir menos. Itens como carne, queijo, manteiga e açúcar foram racionados, enquanto pão e batatas tornaram-se a base da alimentação britânica, recaindo sobre as mulheres, nas casas e no campo, a responsabilidade cozinhar e alimentar a população no período de escassez (CLOUTING, 2016). Para aprofundamento sobre a política alimentar em tempos de guerra, cf.: COLLINGHAM, 2013. ou uma pandemia2 2 No momento em que redijo este artigo, o planeta passa pela pandemia do coronavírus (covid-19), cujos reflexos econômicos podem levar a uma crise sem proporções. Ainda que não seja possível prever os efeitos de medidas como isolamento social e fechamento de estabelecimentos, já é certo que o cuidado tem garantido parte considerável da sustentação do sistema durante a pandemia: sem escolas, as mães cuidam das crianças em casa, precisando em muitos casos cumular esta atividade com suas jornadas de teletrabalho ou home office; a carga de trabalho doméstico aumentou devido ao maior número de pessoas e refeições feitas em casa, bem como pela impossibilidade de transferir tais encargos para outras mulheres, devido à quarentena. , quando parte do cuidado precisa ser reassumida pela esfera privada.

O trabalho de cuidado, portanto, “funciona como um amortecedor contra os efeitos devastadores da crise no bem-estar das pessoas” (CARRASCO, 2013CARRASCO, Cristina. El cuidado como eje vertebrador de una nueva economía. Cuadernos de Relaciones Laborales [online], v. 31, n. 1, p. 39-56, 2013., p. 53). Ao mesmo tempo, assiste-se à chamada “crise do cuidado”, inserida em um contexto de aumento da expectativa de vida e envelhecimento demográfico da população, principalmente nos países ricos, somado à maior presença feminina no mercado de trabalho e à escassez da oferta pública de serviços de cuidado, o que de certa forma evidenciou que “a oferta de cuidado das mulheres não é infinita como poderia se supor” (CARRASCO; BORDERÍAS; TORNS, 2011, p. 55).

Diante disso, e compreendendo a crise do capitalismo como um conflito entre mercantilização, proteção social e emancipação (Cf. FRASER, 2011FRASER, Nancy. Mercantilização, proteção social e emancipação: as ambivalências do feminismo na crise do capitalismo. Revista Direito GV, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 617-634, jul.-dez. 2011.), o presente artigo propõe uma análise da realidade da provisão do cuidado na atualidade, com objetivo de apontar os limites do direito do trabalho brasileiro no amparo jurídico a quem provê cuidado no Brasil, de forma remunerada ou não, especialmente em momentos de retração econômica e maior vulnerabilidade da classe trabalhadora. Justifica-se essa escolha pelo fato de cuidado ser variável central para a desigualdade de gênero, por conta da divisão sexual do trabalho (KERGOAT, 2009KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et al. (org.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 67-75.), bem como pela necessidade de formular respostas jurídicas ao ataque sistemático a direitos sociais.

Antes de começar, ressalto que as reflexões3 3 Aproveito para agradecer à Helena Hirata e Gilberto Bercovici pelas críticas à minha tese doutoral e sugestões de caminhos a serem trilhados a partir dela; ao Marco Aurélio Braga pela leitura crítica deste artigo e importantes aportes reflexivos; ao Gustavo Seferian Machado pela oportunidade de colocar tudo isso no papel; e à Luiza Regina Coutinho Corrêa pela leitura e correções linguísticas. aqui apresentadas são desdobramentos de minha pesquisa doutoral, intitulada “O trabalho como cuidado: uma interpelação do direito do trabalho a partir da perspectiva de gênero”, defendida em 2018 na Universidade de São Paulo4 4 A referida pesquisa doutoral foi apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2016/18865-6. . Nela, desenvolvo uma crítica à noção de trabalho que alicerça o direito do trabalho brasileiro, contraposta à ideia de “cuidado”, propondo evidenciar as raízes sexistas em suas normas de “proteção” das trabalhadoras e em suas categorias fundantes (VIEIRA, 2018VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O cuidado como trabalho: uma interpelação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva de gênero. 2018. Tese (doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo.).

Em termos metodológicos (Cf. GOLDENBERG, 2004GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004.), respaldada na feminist standpoint theory (HARDING, 2004HARDING, Sandra. Introduction: standpoint theory as a site of political, philosophic, and scientific debate. In: HARDING, Sandra (ed.). The feminist standpoint theory reader: intellectual and political controversies. New York: Routledge, 2004. p. 1-15.), aliei pesquisa bibliográfica, formando escopo teórico sobre cuidado e trabalho; documental, que permitiu a análise de normas e documentos legislativos relacionados ao tema; e entrevistas com personagens que atuam politicamente pela ampliação de direitos relativos ao cuidado, como integrantes de sindicatos de trabalhadoras domésticas e de cuidadoras, militantes feministas, gestoras públicas e uma deputada federal.

Este artigo está organizado em quatro partes, incluindo a presente introdução. A segunda seção expõe a questão do cuidado nos atuais arranjos do capitalismo, que envolvem a financeirização das economias e a globalização, de modo a permitir compreender, ainda que brevemente, o contexto que levou à crise do cuidado, em especial nos países ricos. Em seguida, o foco passa para a realidade da provisão de cuidado no Brasil, cujas peculiaridades não permitem falar em crise, mas revelam problemas relacionados à sobrecarga das mulheres nas famílias e ao tratamento das trabalhadoras domésticas como categoria segregada, possibilitando apontar limites do direito do trabalho perante a esfera do cuidado. As considerações finais pontuam que parte desses limites derivam do escopo disciplinar do direito do trabalho, de modo que para elaborar respostas jurídicas que efetivamente contribuam para a valorização social do cuidado é preciso integrar diferentes áreas do direito a partir de perspectivas feministas.

Crise do cuidado no contexto do capitalismo financeiro globalizado

O primeiro passo para pensar a “crise do cuidado” vivenciada, principalmente, em países do Norte é sua interpretação enquanto expressão das contradições do capitalismo financeirizado, que sistematicamente vem minando a reprodução social (FRASER, 2016FRASER, Nancy. Contradictions of capital and care. New Left Review [online], v. 100, p. 99-117, jul./ago. 2016.). Nancy Fraser (2016FRASER, Nancy. Contradictions of capital and care. New Left Review [online], v. 100, p. 99-117, jul./ago. 2016., p. 99) afirma que “as tensões atuais sobre cuidado não são acidentais, mas têm raízes sistêmicas profundas na estrutura de nossa ordem social”, de modo que a referida crise é indicativo de que há “algo podre não só na forma atual, financeirizada do capitalismo, mas na sociedade capitalista per se” (FRASER, 2016, p. 99).

A autora argumenta, como abordado anteriormente, que o sistema capitalista depende que atividades de reprodução social não remuneradas produzam e mantenham vínculos sociais5 5 Esse argumento é aprofundado pela Economia Feminista, que se propõe a “reformular conceitos centrais de análise econômica, desenvolver novos quadros analíticos e elaborar políticas públicas que respondam à realidade” de todas as pessoas, alargando a visão de mundo das tradicionais escolas do pensamento econômico (CARRASCO, 2013, p. 42). Nesse sentido, sua perspectiva “amplia o circuito de trabalho, integrando o que pode ser designado como economia do cuidado”, de modo a incluir a economia não monetizada nos circuitos econômicos (CARRASCO, 2014, p. 32). . O trabalho assalariado, a acumulação de mais-valia e o funcionamento do capitalismo enquanto tal não poderiam existir sem trabalho doméstico, educação das crianças, cuidado afetivo e outras atividades que permitem a formação de novas gerações de trabalhadores e o reabastecimento das atuais (FRASER, 2016FRASER, Nancy. Contradictions of capital and care. New Left Review [online], v. 100, p. 99-117, jul./ago. 2016., p. 101-102).

No atual contexto, o capitalismo global e financeirizado moveu indústrias para regiões com menos proteções trabalhistas, recrutou um número crescente de mulheres para a força de trabalho remunerada e promoveu o desinvestimento nos Estados de bem-estar social, externalizando o cuidado para famílias e comunidades, reduzindo sua capacidade de realizá-lo (FRASER, 2016FRASER, Nancy. Contradictions of capital and care. New Left Review [online], v. 100, p. 99-117, jul./ago. 2016., p. 104). O resultado foi “uma nova e dividida organização da reprodução social”, comodificada para quem pode pagar por ela e privatizada para quem não pode (FRASER, 2016, p. 112).

O efeito disso é a intensificação da contradição inerente ao capitalismo entre produção econômica e reprodução social, atrelada à divisão sexual do trabalho. A esse respeito, Fraser (2016FRASER, Nancy. Contradictions of capital and care. New Left Review [online], v. 100, p. 99-117, jul./ago. 2016., p. 114) explica que o capitalismo financeiro reduziu os salários reais, aumentando o número de horas de trabalho remunerado necessário para sustentar uma família e provocando uma disputa para transferir trabalho de cuidado para outros. Ocorre então que,

para preencher o ‘déficit de cuidado’, o regime importa trabalhadoras migrantes de países pobres para ricos. (...) Mas, para fazer isso, as migrantes devem transferir suas próprias responsabilidades familiares e comunitárias para outras cuidadoras ainda mais pobres, que devem, por sua vez, fazer o mesmo - e assim por diante, em cada vez mais longas ‘cadeias globais de cuidado’. Longe de preencher o déficit de cuidados, o resultado concreto é deslocá-lo - das famílias mais ricas para as mais pobres, do Norte para o Sul Global (FRASER, 2016FRASER, Nancy. Contradictions of capital and care. New Left Review [online], v. 100, p. 99-117, jul./ago. 2016., p. 114) (tradução nossa).

Nesse sentido, Saskia Sassen (2003SASSEN, Saskia. Global cities and survival circuits. In: EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russel (ed.). Global Woman: nannies, maids, and sex workers in the New Economy. New York: Metropolitan Books, 2003. p. 254-274., p. 254), ao propor uma análise da globalização diversa da narrativa dominante, revela que quando mulheres do Sul migram para o Norte em busca de trabalho - como babás, trabalhadoras domésticas ou prostitutas -, elas participam de dois conjuntos de configurações dinâmicas: a cidade global e os circuitos de sobrevivência. A autora explica que as cidades globais concentram as principais funções e recursos da economia global, sendo habitadas por profissionais altamente remunerados; ao mesmo tempo, as empresas e o estilo de vida desses profissionais geram a demanda por trabalhadores de baixa remuneração, atraindo um grande número de mulheres e imigrantes para postos de serviços (SASSEN, 2003SASSEN, Saskia. Global cities and survival circuits. In: EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russel (ed.). Global Woman: nannies, maids, and sex workers in the New Economy. New York: Metropolitan Books, 2003. p. 254-274., p. 225).

Enquanto isso, as economias dos países periféricos do sistema global lutam contra a dívida e a pobreza, construindo “circuitos de sobrevivência nas costas das mulheres”, que enviam remessas para casa (SASSEN, 2003SASSEN, Saskia. Global cities and survival circuits. In: EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russel (ed.). Global Woman: nannies, maids, and sex workers in the New Economy. New York: Metropolitan Books, 2003. p. 254-274., p. 256). Isso transforma as trabalhadoras que emigram para executar trabalho de cuidado, antes consideradas atores econômicos sem valor, em peças cruciais para construir e expandir tais economias (SASSEN, 2003, p. 256).

De modo semelhante, Arlie Hochschild (2003HOCHSCHILD, Arlie Russell. Love and Gold. In: EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russel (ed.). Global Woman: nannies, maids, and sex workers in the New Economy. New York: Metropolitan Books, 2003. p. 15-30.) aborda as cadeias globais de cuidado propondo tirar de foco à “frente da cena” da globalização e do livre mercado, com seus elegantes homens de negócios em Wall Street ou no Vale do Silício, para olhar os bastidores, em que se encontram trabalhadoras imigrantes. A atividade dessas imigrantes deixa de ser construir estradas ou erguer prédios, “para se tornar o trabalho emocional de cuidar das pessoas”, no que se inclui “enfrentar as dilacerantes rupturas na sua relação com a própria família e consigo mesma” (HOCHSCHILD, 2003, p. 20).

Hochschild (2003HOCHSCHILD, Arlie Russell. Love and Gold. In: EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russel (ed.). Global Woman: nannies, maids, and sex workers in the New Economy. New York: Metropolitan Books, 2003. p. 15-30.) afirma que muitas das trabalhadoras que migram são direcionadas ao emprego doméstico, frente a um número cada vez maior de mulheres no mercado de trabalho em países desenvolvidos, mas cujas carreiras estão moldadas no padrão masculino, o que exige delas dedicação de muitas horas ao trabalho remunerado. Do outro lado, as imigrantes também sofrem com longas jornadas de trabalho, ao mesmo tempo em que deixam seus filhos com as avós ou outros parentes em seus países de origem, transplantando o afeto (global heart transplant) para a família a ser cuidada (HOCHSCHILD, 2003, p. 22).

Essa realidade, segundo a autora, segue a lógica imperialista de extração de recursos do Terceiro Mundo para enriquecer o Primeiro Mundo, sendo que o amor e o cuidado se tornaram o “novo ouro”, extraído não mais pela força como em tempos coloniais, mas por pressão econômica (HOCHSCHILD, 2003HOCHSCHILD, Arlie Russell. Love and Gold. In: EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russel (ed.). Global Woman: nannies, maids, and sex workers in the New Economy. New York: Metropolitan Books, 2003. p. 15-30., p. 26). Nesses termos, conclui-se que o baixo valor atribuído ao trabalho de cuidado não resulta da pouca demanda, nem da simplicidade ou facilidade de fazê-lo, mas sim de uma “política cultural de desigualdade”, que pode ser comparada “ao declínio do valor dos produtos alimentares básicos em relação aos manufaturados no mercado internacional”:

(...) Embora claramente mais necessárias para a vida, às culturas como trigo e arroz obtêm preços baixos e em queda, enquanto os produtos manufaturados são mais valorizados. Assim como o preço de mercado dos produtos primários mantém o Terceiro Mundo abaixo na comunidade das nações, o baixo valor de mercado do cuidado mantém o status das mulheres que o fazem - e, em última análise, de todas as mulheres - baixo (HOCHSCHILD, 2003HOCHSCHILD, Arlie Russell. Love and Gold. In: EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russel (ed.). Global Woman: nannies, maids, and sex workers in the New Economy. New York: Metropolitan Books, 2003. p. 15-30., p. 29, tradução nossa).

Evidenciam-se, assim, significativas dimensões internacionais da economia do cuidado e seus relevantes fluxos migratórios, entrando em jogo o que Nancy Folbre (2006FOLBRE, Nancy. Measuring Care: Gender, Empowerment, and the Care Economy. Journal of Human Development, v. 7, n. 2, p. 183-199, 2006.) chama de “dreno de cuidado” (care drain). De acordo com a autora, as muitas mulheres de países pobres que deixam suas famílias para trabalhar como babás ou cuidadoras de idosos em países ricos ganham acesso a empregos melhores, mas suas comunidades de origem perdem cuidadoras; ademais, “os países anfitriões desfrutam dos benefícios do atendimento relativamente barato que as imigrantes oferecem”, o que reduz a pressão para fornecer maior financiamento público para cuidados dependentes (FOLBRE, 2006FOLBRE, Nancy. Measuring Care: Gender, Empowerment, and the Care Economy. Journal of Human Development, v. 7, n. 2, p. 183-199, 2006., p. 190).

Na mesma linha argumentativa, Silvia Federici (2012FEDERICI, Silvia. Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle. Oakland: PM Press, 2012. Não paginado (e-book).) defende que a globalização se apresentou como um processo de acumulação primitiva, tendo assumido formas diferentes no Norte - desconcentração e realocação industrial, flexibilização e precarização do trabalho, produção just in time - e no Sul globais - maquiladoras, liberalização das importações e privatização das terras. Independente da forma, os resultados vão no mesmo sentido: destruição de economias de subsistência, tornando milhões dependentes de rendimentos monetários; desterritorialização do capital e financeirização das atividades econômicas, quebrando a força de resistência de trabalhadores frente à exploração do capital; desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social; apropriação e destruição de florestas, oceanos, rios, recifes de coral, espécies animais e vegetais (FEDERICI, 2012FEDERICI, Silvia. Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle. Oakland: PM Press, 2012. Não paginado (e-book)., cap. 9).

Ao afetar toda a população do planeta, ainda que em níveis diferentes, Federici (2012FEDERICI, Silvia. Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle. Oakland: PM Press, 2012. Não paginado (e-book).) percebe a nova ordem global como um processo de recolonização, com “radicais processos de expropriação e pauperização e o mais radical desinvestimento do Estado na reprodução da força de trabalho”. Nesse contexto, ela interpreta os atuais fluxos migratórios como indicadores da crise da reprodução social, evidenciada pelo fato de que metade dos migrantes são mulheres, justamente aquelas que normalmente ficam “porque são as que se sentem mais responsáveis pela reprodução de suas famílias”; logo, “quando centenas de milhares deixam suas casas para enfrentar anos de humilhação e isolamento (...), sabemos que algo bastante dramático está acontecendo na organização da reprodução mundial” (FEDERICI, 2012FEDERICI, Silvia. Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle. Oakland: PM Press, 2012. Não paginado (e-book)., cap. 9).

Desse modo, não foi a tecnologia que reduziu o trabalho de cuidado, o que ocorreu foi sua redistribuição “nos ombros de diferentes sujeitos por meio de sua comercialização e globalização”, sujeitos esses que continuam sendo majoritariamente mulheres (FEDERICI, 2012FEDERICI, Silvia. Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle. Oakland: PM Press, 2012. Não paginado (e-book)., cap. 9). Foram as mulheres que absorveram o “choque da globalização econômica”, precisando “compensar com seu trabalho a deterioração das condições econômicas produzidas pela liberalização da economia mundial e o crescente desinvestimento dos Estados na reprodução da força de trabalho”; isso se somou à expansão do emprego feminino e do trabalho em domicílio para reforçar a condição de vulnerabilidade social e econômica das mulheres perante o capital (FEDERICI, 2012, cap. 9).

Em termos políticos, a crise do cuidado revelou que, longe de ser apenas um arranjo privado das famílias, o cuidado é um problema público (DAMAMME; HIRATA; MOLINIER, 2017DAMAMME, Aurélie; HIRATA, Helena; MOLINIER, Pascale (coord.). Le travail entre public, privé et intime: comparaisons et enjeux internationaux du care. Paris: Éditions L’Harmattan, 2017., p. 5). Para os países desenvolvidos, a crise é reflexo da política neoliberal que gradualmente reduziu a atuação do Estado no fornecimento de creches para crianças, instituições de acolhimento para idosos e refeitórios públicos. Já para os países pobres, que nunca forneceram tais serviços de cuidado público suficientes, os problemas decorrentes dessa crise têm relação com a transferência, para outras mulheres, do dever social de cuidado de mulheres que estão no mercado de trabalho ou que emigraram.

Em relação ao cuidado infantil, vale notar que o papel socialmente atribuído às mulheres de cuidadoras prioritárias desvia o foco das obrigações do poder público em prover cuidado coletivo, bem como do dever dos pais em relação a seus filhos e filhas (PARREÑAS, 2003PARREÑAS, Rhacel Salazar. The care crisis in the Philippines: children and transnational families in the new global economy. In: EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russel (ed.). Global Woman: nannies, maids, and sex workers in the New Economy. New York: Metropolitan Books, 2003. p. 39-54., p. 53). Nesse sentido, Rhacel Salazar Parreñas (2003PARREÑAS, Rhacel Salazar. The care crisis in the Philippines: children and transnational families in the new global economy. In: EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russel (ed.). Global Woman: nannies, maids, and sex workers in the New Economy. New York: Metropolitan Books, 2003. p. 39-54., p. 41), em pesquisa sobre a crise do cuidado nas Filipinas decorrente da emigração feminina6 6 Um volume expressivo de mulheres filipinas emigram para serem babás e empregadas domésticas em países ricos, o que constitui a maior fonte de entrada de moeda estrangeira do país (Parreñas, 2003). , descreve que o conflito entre necessidade econômica e papéis de gênero faz com que as migrantes sejam vistas como mães más, reforçando um ideal de família nuclear incompatível com a realidade.

Quanto às pessoas idosas, o envelhecimento populacional impacta na redução da população economicamente ativa e no aumento do número de aposentados, desgastando instituições estatais que precisam atender pessoas cuja expectativa de vida cresceu mais nos últimos 50 anos que nos cinco mil anteriores (NEILSON, 2017NEILSON, Brett. Globalização e as biopolíticas do envelhecimento. In: DEBERT, Guita Grin; PULHEZ; Mariana Marques (org.). Desafios do cuidado: gênero, velhice e deficiência. Campinas: Unicamp/IFCH, 2017. p. 29-59., p. 31). Essa realidade, somada à financeirização neoliberal, têm impulsionado reformas nos regimes nacionais de aposentadoria, incentivando planos previdenciários privados, baseados no mercado financeiro, expondo a risco a subsistência de aposentados (NEILSON, 2017, p. 52). Vale frisar que as idosas não são unicamente receptoras do cuidado, tendo historicamente sido provedoras também, pois são as mães, sogras ou outras parentes que substituem mulheres que estão no mercado de trabalho no cuidado de crianças e nas tarefas domésticas (CARRASCO; BORDERÍAS; TORNS, 2011CARRASCO, Cristina; BORDERÍAS, Cristina; TORNS, Teresa (ed.). El trabajo de cuidados: historia, teoría y políticas. Madrid: Catarata, 2011., p. 28).

Como já apontado, outro fator que gera influência direta sobre a crise do cuidado é crise econômica, pois na atualidade tem gerado “uma redistribuição selvagem da renda e da riqueza e também dos tempos e trabalhos”, desencadeando um processo de reprivatização da reprodução social, com drástica redução dos gastos públicos em serviços e o consequente aumento do trabalho que recai sobre as mulheres, incrementado com a redução da renda das famílias, sobretudo por conta do desemprego (CARRASCO, 2013CARRASCO, Cristina. El cuidado como eje vertebrador de una nueva economía. Cuadernos de Relaciones Laborales [online], v. 31, n. 1, p. 39-56, 2013. p. 45-46).

No entanto, as diferentes realidades no mundo fazem com que as crises do sistema tenham reflexos diversos na realidade das populações. Assim, a crise do cuidado é vivida em países do Norte e do Sul globais de maneiras significativamente diferentes. Ainda, no caso da América Latina e especialmente do Brasil, por uma série peculiaridades, é questionada a própria existência de uma crise no sentido descrito por pesquisadoras europeias e norte-americanas. Essas diferenças serão abordadas no próximo item, incorporando reflexões sobre o tratamento jurídico-trabalhista do cuidado e seus limites.

Provisão de cuidado no Brasil e os limites do direito do trabalho

O contexto da crise do cuidado anteriormente apresentada descreve principalmente a realidade de países do Norte global. A narrativa da eminência de um déficit de cuidado, decorrente de um crescente número de pessoas que precisam de cuidado, frente à diminuição da oferta de cuidado - seja pela redução do investimento público ou pela diminuição da força de trabalho no setor - é válida para países desenvolvidos e com modelos de Estado de Bem-Estar Social implantados (GLENN, 2010GLENN, Evelyn Nakano. Forced to care: coercion and caregiving in America. Harvard: Harvard University Press, 2010., p. 183).

A crise do cuidado, porém, é multidimensional, conforme Amaia Pérez Orozco (2014, p. 171-173), tendo impactado o Sul global há mais tempo, desde a imposição de severas medidas neoliberais que derivaram uma crise da reprodução social, na qual o sustento da vida tanto na dimensão material quanto emocional torna-se incerto ou impossível. No Norte global, com a crise financeira de 2007-2008, consolidaram-se políticas de austeridade, com “socialização dos riscos do processo de acumulação do capital”, surgindo ali uma crise da reprodução social similar à vivida pelo Sul, caracterizada pelo agravamento das situações de precariedade.

Há semelhanças compartilhadas por quase todos os países, como aponta Silvia Federici (2012FEDERICI, Silvia. Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle. Oakland: PM Press, 2012. Não paginado (e-book)., cap. 10) ao descrever que quanto mais as mulheres dedicam-se a cuidar dos outros, menos cuidado elas recebem em troca, pois o trabalho de cuidado não remunerado não é contabilizado nos sistemas de previdência, ao passo que o trabalho de cuidado remunerado é tratado como uma ‘subclasse’, à qual são conferidos menos direitos. Assim, “em quase todos os lugares do mundo as mulheres encaram a velhice com menos recursos que os homens, mensurados em termos de suporte familiar e recursos monetários” (FEDERICI, 2012FEDERICI, Silvia. Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle. Oakland: PM Press, 2012. Não paginado (e-book)., cap. 10).

No entanto, para este artigo é fundamental destacar as diferenças na realidade da provisão do cuidado no Brasil, que assume contornos bastante próprios, por confluência de fatores históricos, territoriais e socioeconômicos. Entendo que não é possível falar em uma crise do cuidado brasileira nas mesmas proporções e com o mesmo sentido do que ocorre no Norte. Por aqui, o projeto de desenvolver um Estado de Bem-Estar Social não chegou a se estruturar (LAGARDE, 2003LAGARDE, Marcela. De la igualdad formal a la diversidad. Una perspectiva étnica latinoamericana. Anales de la Cátedra Francisco Suárez, v. 37, p. 57-79, 2003.) e a provisão de cuidado público nunca foi próxima de se tornar universal, de modo que a grande maioria das mulheres que exerce atividade remunerada depende de redes de apoio - mães, filhas, vizinhas, amigas - ou paga outras mulheres para assumirem o trabalho de cuidado a elas designado.

Assim, há no Brasil uma tendência ao crescimento da demanda por atividades de cuidado remuneradas, ligado a fatores como a fixação das mulheres no mercado de trabalho, observável na expressiva ampliação da taxa de atividade feminina nas últimas décadas7 7 A taxa de atividade entre as mulheres no Brasil saiu de 18% em 1970 (FCC, 2010) para 54,6% em 2010; vale dizer, porém, que há ainda significativa diferença com relação aos homens, cuja taxa de atividade no mesmo ano foi de 75,7% (IBGE, 2014, p. 108) , somado ao aumento do número de idosos na população brasileira, que saltou de 14,2 milhões em 2000, para 19,6 milhões em 2010, com a previsão de que em 2060 atinja 73,5 milhões de pessoas (IBGE, 2016, p. 146).

No entanto, isso não significa uma crise do cuidado tal como enfrentada no Norte global, já que os números devem ser considerados em conjunto com informações sobre a provisão do cuidado no Brasil. Com relação à população idosa, por exemplo, Guita Grin Debert (2016DEBERT, Guita Grin. Políticas públicas diante do envelhecimento no Brasil. In: ABREU, Alice Rangel de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa. Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo, Boitempo, 2016. p. 247-256., p. 249) explica que o sistema de seguridade social da Constituição de 1988 e o Estatuto do Idoso preveem um sistema integrado de proteção, mas que há uma persistente desigualdade no acesso a direitos da cidadania. A dificuldade de implantar políticas públicas adequadas a este segmento populacional - asilos públicos e conjuntos para idosos são oferecidos em número diminuto e, normalmente, funcionam em condições precárias -, faz com que a responsabilidade pela velhice avançada recaia sobre as famílias, ainda mais sobre as mulheres (DEBERT, 2016DEBERT, Guita Grin. Políticas públicas diante do envelhecimento no Brasil. In: ABREU, Alice Rangel de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa. Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo, Boitempo, 2016. p. 247-256., p. 252).

Nesse sentido, Maria Betânia Ávila (2017ÁVILA, Maria Betânia de Melo. SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia. Entrevista concedida a Regina Stela Corrêa Vieira e Fabiana Sanches Grecco [via Skype], 10 abr. 2017.) explica:

(...) o que nós temos de crise de cuidados é uma crise estrutural para as mulheres trabalhadoras. Porque há a ausência de instrumentos públicos, uma situação de trabalho remunerado das mulheres que se precariza cada dia mais, no contexto atual. E ao se precarizar ainda mais, ela se torna mais incerta na sua extensão de tempo de trabalho e com muito mais dificuldades de contar com outras mulheres da mesma classe social, porque elas estão vivendo a mesma situação. Então, os arranjos estão mais difíceis. Para a classe média e para a alta burguesia, as soluções sempre foram dadas por meio do emprego doméstico das trabalhadoras domésticas, da requisição de uma força de trabalho que também é das mulheres.

Assim, independente da atividade de cuidado executada - cuidado de crianças, idosos ou pessoas com deficiência, manutenção da casa, faxina ou cozinha -, a responsabilidade pelo cuidado no país recai predominantemente sobre os membros da família, em geral as mulheres em redes de solidariedade, ou é redistribuída para trabalhadoras domésticas e outras profissionais do cuidado pouco valorizadas (GUIMARÃES; HIRATA; SUGITA, 2012GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena Sumiko; SUGITA, Kurumi. Cuidado e cuidadoras: o trabalho do care no Brasil, França e Japão. In: GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena (org.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012.).

Pelo ângulo familiar, são de fato as mulheres que absorvem a maior parte do trabalho doméstico não remunerado que precisa ser feito no interior dos lares brasileiros. De acordo com o IBGE (2018), 91,7% das mulheres no Brasil executam tarefas domésticas, frente a 76,5% dos homens; 37% das mulheres cuidam de moradores do domicílio ou de parentes fora, frente a 25,6% dos homens. Em volume de tempo, as mulheres dedicam 20,9 horas semanais a tarefas domésticas, enquanto os homens dedicam 10,8 horas (IBGE, 2018). Em conjunto, tempo dedicado ao trabalho remunerado e ao trabalho doméstico não remunerado, bem como a sobrecarga mental gerada pelo cuidado, geram jornadas extenuantes para as mulheres.

Verifica-se a necessidade de instrumentos que alterem a lógica da atribuição do cuidado prioritariamente às mulheres no Brasil. No entanto, as normas do ordenamento jurídico nacional e as políticas públicas que se ocupam dessa realidade ou não têm efetividade necessária para atingirem um número expressivo de pessoas, como no caso da bastante limitada oferta de serviços públicos de cuidado, ou pecam em sua formulação, dificultando uma distribuição mais igualitária as responsabilidades familiares entre os sexos (Cf. MAZZINI, 2019).

O primeiro caso pode ser retratado pelo direito à assistência gratuita às filhas e filhos pequenos - direito à creche -, previsto na Constituição de 1988 tanto como direito de trabalhadoras e trabalhadores (art. 7o, inciso XXV), quanto como direito da criança à educação infantil (art. 208, inciso IV). Mesmo sendo garantia constitucional, a taxa de escolarização das crianças de 0 a 3 anos é de apenas 34,2% (IBGE, 2019c).

A dificuldade de garantir o direito à creche pelo menos às mulheres pobres que não podem contratar cuidado privado foi abordada na entrevista concedida por Tatau Godinho (2018GODINHO, Tatau. Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Entrevista concedida a Regina Stela Corrêa Vieira, São Paulo, 26 abr. 2018.), que vivenciou os esforços de aumento da rede de atendimento da educação infantil durante os governos Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Para a antiga coordenadora da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM), falta fortalecer no país a “ideia da creche como prioridade social”, o que ela explica da seguinte forma:

Parece uma coisa boba, mas é impressionante a resistência das pessoas em entender que a creche e a jornada integral também são direitos sociais das mulheres. (...) Mas isso tem crescido muito mais fortemente, a ideia da creche como direito da criança, a importância da educação e o comprometimento das gerações futuras. No governo isso é um discurso e uma lógica muito mais aceitável do que a questão das mulheres. E, um segundo elemento, como toda política, as prioridades reais definem orçamento. E a política de creches infantis, do ponto de vista imediato, é cara, porque demanda investimento grande, porque tem que aumentar a rede, ter uma rede integral, ter uma equivalência, professor/servidor e criança é maior a proporção do que em outros níveis de educação. (GODINHO, 2018GODINHO, Tatau. Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Entrevista concedida a Regina Stela Corrêa Vieira, São Paulo, 26 abr. 2018.).

Já o segundo caso é evidenciado, no direito do trabalho, pelas licenças por nascimento de filho, que no Brasil são marcadamente desproporcionais. Ficou consignada na Constituição de 1988 o direito à licença-maternidade de 120 dias, com pagamento de salário assumido pelo Estado (art. 7o, inciso XVIII), e o direito à licença-paternidade a ser fixado em lei posterior (art. 7o, XIX), que nunca foi editada, de modo que é aplicado o prazo de 5 dias do ADCT, período de afastamento arcado pelo empregador. Tal desproporcionalidade acaba por reforçar o estereótipo da mãe-cuidadora e pai-provedor, não dando a oportunidade da própria família decidir quem ficará responsável pelo cuidado infantil após as 6 semanas necessárias para recuperação do organismo após o parto (OMS, 2013 e VIEIRA, 2019VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Direito e gênero na saúde e segurança das mulheres no trabalho. Belo Horizonte: Letramento, 2019., p. 126 ss.).

É preciso, porém, contextualizar a crítica, pois tanto a ampliação do período da licença-maternidade, quanto a previsão da licença-paternidade tiveram grande interferência da bancada feminina da Assembleia Nacional Constituinte, tendo sido as conquistas possíveis à época (VIEIRA, 2018VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O cuidado como trabalho: uma interpelação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva de gênero. 2018. Tese (doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo., p. 132 ss.). Na Carta das Mulheres à Assembleia Constituinte postulava-se “a maternidade e paternidade como valores sociais fundamentais, devendo o Estado assegurar os mecanismos de seu desempenho”, incluindo “licença ao pai nos períodos natal e pós-natal”, a “licença especial às pessoas no momento da adoção” e o “direito do marido ou companheiro a usufruir dos benefícios previdenciários decorrentes da contribuição da esposa ou companheira” (CNDM, 1987).

Saindo agora do enfoque do cuidado não remunerado para o remunerado, a contratação de trabalhadoras do cuidado no Brasil é possível para famílias de classes médias e altas8 8 Segundo Bila Sorj e Adriana Fontes (2012, p. 108-109), “(...) em média, 17,5% das famílias no Brasil têm gastos com serviços domésticos, mas esse percentual varia de 2,2%, entre os mais pobres, a 51,7%, no quinto mais rico. O uso de serviços domésticos é mais elevado nos quintos de renda mais ricos, sobretudo nos domicílios com filhos dependentes (até seis anos de idade) Quando se restringe a esse tipo de família, a proporção de famílias com esse tipo de gasto chega a 73% no quinto mais rico”. , seja com mensalistas ou diaristas, o que gera como contrapartida a existência de um amplo contingente de trabalhadoras em condições de trabalho precárias (SORJ; FONTES, 2012SORJ, Bila; FONTES, Adriana. O care como um regime estratificado: implicações de gênero e classe social. In: GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena (org.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012. p. 103-116., p. 110). A maioria delas é identificada como trabalhadora doméstica em sentido amplo, o que revela a percepção social de que tarefas de cuidado de toda espécie são atividades domésticas, muito raramente reconhecidas como “cuidado”, demonstrando “escasso reconhecimento institucional de que gozam essas profissionais” (GUIMARÃES; HIRATA, SUGITA, 2012GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena Sumiko; SUGITA, Kurumi. Cuidado e cuidadoras: o trabalho do care no Brasil, França e Japão. In: GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena (org.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012., p. 87).

Em termos numéricos, segundo o IBGE (2019b, p. 25), o Brasil possui 6,2 milhões de pessoas ocupadas em serviços domésticos remunerados, das quais 93% são mulheres. A questão racial é acentuada nessas profissões, sendo que 65,1% das pessoas que as integram são negras ou pardas (IBGE, 2019b, p. 26). Ademais, o trabalho doméstico é a atividade que concentra o maior percentual de informalidade, chegando a 72,2% (IBGE, 2019b, p. 40), o que se reflete no fato de ser também a categoria com menor rendimento médio do país, de R$ 878,00 mensais, abaixo inclusive do salário mínimo nacional (IBGE, 2019b, p. 21).

Segundo Heleieth Saffioti (1984SAFFIOTI, Heleieth. Mulher Brasileira: Opressão e Exploração. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984., p. 48), a presença de um número tão expressivo de trabalhadoras domésticas no Brasil apresenta “um profundo significado para o padrão nacional de desenvolvimento do capitalismo, podendo servir de parâmetro para a apreciação do modelo econômico que aqui tem lugar”. Além disso, a concentração de funções do cuidado em torno de uma única profissão, trabalhadora doméstica, invisibiliza as cargas que recaem sobre ela, o que corrobora com sua desvalorização.

Nesse sentido, importante destacar que a categoria é historicamente segregada no Brasil, devido a características de sua formação política, econômica e social. De forma bastante breve, friso que até fim do século XIX, o trabalho doméstico no país foi assumido por pessoas escravizadas, de origem indígena ou africana, e seus descendentes, enquanto os fluxos de imigrantes europeus e japoneses que chegaram no início do século XX destinaram-se para o trabalho industrial e agrícola (GUIMARÃES; HIRATA; SUGITA, 2012GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena Sumiko; SUGITA, Kurumi. Cuidado e cuidadoras: o trabalho do care no Brasil, França e Japão. In: GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena (org.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012.). Até hoje, vale dizer, o trabalho doméstico remunerado é realizado predominantemente por brasileiras, muitas migrantes internas, mas não por imigrantes como ocorre na Europa e na América do Norte (HIRATA, 2011, p. 88).9 9 A melhor compreensão das relações imbricadas às migrações internas para o cuidado no Brasil talvez possa começar nas formulações de Francisco de Oliveira (1972; 2003) sobre a especificidade da forma brasileira de subdesenvolvimento, na qual é funcional a manutenção das desigualdades regionais e a convivência entre o crescimento industrial e a manutenção do padrão ‘primitivo’ das atividades agropecuárias. Para aprofundamento a respeito das desigualdades regionais no país, cf. também: BERCOVICI, 2003.

Na Era Vargas, as decisões relativas à industrialização nacional e normatização das relações de trabalho levou à chamada “cidadania regulada” (SANTOS, 1979SANTOS, Vanderlei Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979.), cujo padrão juridicamente adotado foi o do homem trabalhador industrial provedor principal da família, seguindo os países do centro (GEORGES, 2017GEORGES, Isabel. O ‘cuidado’ como ‘quase-conceito’: por que está pegando? Notas sobre a resiliência de uma categoria emergente. In: DEBERT, Guita Grin; PULHEZ; Mariana Marques (org.). Desafios do cuidado: gênero, velhice e deficiência. Campinas: Unicamp/IFCH, 2017. p. 123-151., p. 130). Consoante Vanderlei Guilherme dos Santos (1979SANTOS, Vanderlei Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979., p. 75), a cidadania passou a ser condicionada por um “sistema de estratificação ocupacional” definido por norma legal, o que significa que o acesso aos direitos de cidadania dependia do registro em carteira.

As trabalhadoras domésticas, porém, foram excluídas da CLT10 10 CLT. “Art. 7º - Os preceitos constantes da presente Consolidação, salvo quando for, em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam: a) aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas; (...)”. no momento de sua promulgação, em 1943, tendo sua cidadania negada de certa forma, estigma que as acompanha até hoje. Isso fica evidente na ideia de que o registro como empregada doméstica “sujaria” a carteira de trabalho, ouvido de forma recorrente nos relatos das dirigentes sindicais quando falam da dificuldade de organizar uma categoria na qual muitas das trabalhadoras têm vergonha da profissão (ACCIARI, 2016ACCIARI, Louisa. “Foi difícil, mas sempre falo que nós somos guerreiras” - o movimento das trabalhadoras domésticas entre a marginalidade e o empoderamento. Mosaico [online], v. 7, n. 11, p. 125-147, 2016., p. 131).

Maria Betânia Ávila (2016ÁVILA, Maria Betânia de Melo. O tempo do trabalho doméstico remunerado: entre cidadania e servidão. In: ABREU, Alice Rangel de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa. Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo, Boitempo, 2016. p. 137-146.) explica que, pela via da industrialização no século XX, o poder da burguesia nacional se consolidou por meio da dominação de classe, assentada na população negra e na opressão das mulheres. Dentre as consequências disso está a “permanente reconstrução de uma ideologia discriminatória e de desvalorização das trabalhadoras domésticas” (ÁVILA, 2016ÁVILA, Maria Betânia de Melo. O tempo do trabalho doméstico remunerado: entre cidadania e servidão. In: ABREU, Alice Rangel de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa. Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo, Boitempo, 2016. p. 137-146., p. 138-139), mecanismo que encobre e justifica os nexos de exploração e dominação de raça, classe e gênero dessa relação de trabalho em distintos contextos.

Essa ideologia discriminatória fica evidente quando visualizada dentro do ordenamento jurídico. Se em 1943 a comissão que organizou a CLT decidiu excluir de sua aplicação o trabalho doméstico, por entender que “a vida familiar apresenta aspectos de nenhuma similaridade com as atividades econômicas em geral” (MONTEIRO et. al., 1943MONTEIRO, Luiz Augusto de Rego et. al. Relatório da Comissão. Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil, Suplemento ao n. 3, 5 de janeiro de 1943. Disponível em: <https://juslaboris.tst.jus.br/>. Acesso em 11. mai. 2018.
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), essas trabalhadoras ainda ficaram três décadas em “um constrangedor limbo jurídico, sem direito sequer a salário mínimo e reconhecimento previdenciário do tempo de serviço” (DELGADO, 2017DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. São Paulo, LTr, 2017., p. 380).

Apenas em 1972 foi editada a Lei 5.859, que conferiu às trabalhadoras domésticas “o mínimo de cidadania jurídica”, mas que na prática acabou por formalizar a exclusão da categoria “ao não estender inúmeros direitos trabalhistas clássicos” (DELGADO, 2017DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. São Paulo, LTr, 2017., p. 420). Salário mínimo e descanso semanal remunerado, por exemplo, não foram garantidos a elas. Mesmo na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, em que as demandas das trabalhadoras domésticas por direitos iguais ganharam espaço (Cf. VIEIRA, 2018VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O cuidado como trabalho: uma interpelação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva de gênero. 2018. Tese (doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo., p. 145 ss.), a redação final do artigo 7o da Constituição de 1988 as segregou em um parágrafo apartado (art. 7o, parágrafo único), no qual foram listados os direitos aplicáveis ou não a elas.

A proximidade da equiparação dos direitos conferidos às trabalhadoras domésticas veio apenas com a Emenda Constitucional 72/2013, que inseriu importantes incisos ao parágrafo único do artigo 7o da Constituição, inclusive a limitação de jornada a 8 horas diárias e 44 semanais, e com a ratificação pelo Brasil da Convenção 189 da OIT, via Decreto Legislativo 172/2017. Para ambas as construções legislativas houve a convergência entre o interesse político do governo federal à época (governo Lula, 2003-2011), a atuação dos sindicatos de trabalhadoras domésticas e da FENATRAD - Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, e das parlamentares mulheres (GODINHO, 2018GODINHO, Tatau. Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Entrevista concedida a Regina Stela Corrêa Vieira, São Paulo, 26 abr. 2018.).

Entretanto, para grande parte das trabalhadoras domésticas que se engajaram na luta pela aprovação da Emenda Constitucional 72/2013, a regulamentação de sua aplicação pela Lei Complementar 150/2015 limitou a aplicação dos direitos recém-conquistados, gerando grande decepção. De acordo com Creuza Oliveira (2016OLIVEIRA, Creuza Maria de. Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. Entrevista concedida a Regina Stela Corrêa Vieira, Brasília, 10 nov. 2016.), secretária-geral da FENATRAD,

(...) pegaram uma comissão de regulamentação cheia de macho, não tinha uma mulher, e é uma comissão que não entende, e não quer entender de trabalho doméstico. (...) Essa Lei Complementar 150/2015 tem artigos que são inconstitucionais, como, por exemplo, o banco de horas que só pode acontecer se houver sindicato patronal e sindicato dos trabalhadores para negociar. Então continua o banco de horas para não pagar horas-extras. Tem também a empregada viajante, que a trabalhadora viaja com o patrão e só recebe 20% a mais do salário, sendo que ela está à disposição e não recebe horas-extras e nem adicional noturno. Tem a trabalhadora diarista, como criaram essa modalidade para poder continuar tendo trabalhadora doméstica em suas casas sem se responsabilizar em assinar a carteira de trabalho. Isso fez com que esse trabalho, que já era precarizado e terceirizado, continuasse dessa forma (OLIVEIRA, 2016OLIVEIRA, Creuza Maria de. Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. Entrevista concedida a Regina Stela Corrêa Vieira, Brasília, 10 nov. 2016.).

Em uma análise da condição das trabalhadoras domésticas na atualidade, Maria Betânia Ávila (2016ÁVILA, Maria Betânia de Melo. O tempo do trabalho doméstico remunerado: entre cidadania e servidão. In: ABREU, Alice Rangel de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa. Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo, Boitempo, 2016. p. 137-146., p. 139) conclui que “ainda estão presentes elementos servis que se chocam e contradizem os direitos formalmente conquistados” pela categoria, “estabelecendo e preservando uma situação de forte tensionamento, cotidiano e histórico, entre servidão e cidadania”. Essa servidão vinculada ao trabalho doméstico tem dois sentidos: um ligado à concepção de que mulheres têm uma propensão natural e permanente de servir aos outros; outro que diz respeito à sua associação com a escravidão da população negra (ÁVILA, 2016ÁVILA, Maria Betânia de Melo. O tempo do trabalho doméstico remunerado: entre cidadania e servidão. In: ABREU, Alice Rangel de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa. Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo, Boitempo, 2016. p. 137-146., p. 139).

Por fim, vale destacar a imensa dificuldade de regulamentar no Brasil profissões específicas voltadas ao cuidado, de modo que muitas babás e cuidadoras de idosos ou de pessoas com deficiência são contratadas sob a denominação genérica de trabalhadoras domésticas. Essa regulamentação é vista como um meio de promover o “reconhecimento e a valorização do trabalho doméstico e do trabalho familiar como ‘trabalho’ possibilitando sua visibilidade, profissionalização e uma maior igualdade de gênero.” (GUIMARÃES; HIRATA; SUGITA, 2012GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena Sumiko; SUGITA, Kurumi. Cuidado e cuidadoras: o trabalho do care no Brasil, França e Japão. In: GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena (org.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012., p. 84). Mais recentemente, o projeto de lei 1385/2007, que propunha a criação da profissão de cuidador de idoso, foi aprovado pelo Congresso, mas acabou vetado pela presidência da República (NEVES, 2019NEVES, Julia. PL que criaria profissão de cuidador é vetado pelo presidente. EPSJV/Fiocruz, Rio de Janeiro, 12 jul. 2019. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/pl-que-criaria-profissao-de-cuidador-e-vetado-pelo-presidente>. Acesso em: 03 mar. 2020.
http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/rep...
).

Logo, temos no Brasil uma situação de aumento da demanda por cuidado, sobrecarga das mulheres pelo trabalho doméstico não remunerado, exploração das trabalhadoras domésticas e não regulamentação da profissão de cuidadora. Paralelamente, o direito do trabalho prescreve normas de proteção à maternidade e paternidade, licenças para cuidado de filhos recém-nascidos, creches para mães e pais que trabalham, bem como direitos de trabalhadoras domésticas de outras profissões do cuidado.

Contudo, o panorama aqui traçado permitiu revelar alguns dos limites do direito do trabalho no tratamento do cuidado: limites de abrangência, pois as garantias da CLT e as leis referentes ao emprego doméstico não resguardam trabalhadoras na informalidade ou autônomas, tendo aplicação restrita em face da quantidade de pessoas em formas precarizadas de trabalho, principalmente nos períodos de crise econômica; limites políticos à efetivação de normas ligadas à provisão serviços públicos para socialização do cuidado; limites ideológicos, considerando que algumas normas ainda guardam raízes sexistas e racistas, reproduzindo e reforçando papéis sociais e ocultando o valor do trabalho doméstico das mulheres; e limites da própria forma jurídica a serviço do sistema capitalista.

Conclusão

No presente artigo, apresentei uma análise da realidade da provisão do cuidado na atualidade, considerando contextos de crise, com objetivo de apontar os limites do direito do trabalho brasileiro no amparo jurídico a quem é responsável pelo trabalho doméstico e de cuidado no Brasil, seja remunerado ou não. Para isso, a introdução apresentou referenciais da teoria feminista, que revelam o trabalho de cuidado como amortecedor dos efeitos da crise econômica na vida das pessoas, garantindo a continuidade da reprodução social e do sistema.

Na segunda seção foi apresentada a questão do cuidado nos atuais arranjos do capitalismo, que envolvem a financeirização das economias e a globalização, de modo a explicitar o contexto que levou à crise do cuidado nos países do Norte global. A terceira seção debruçou-se, de forma mais detida, à realidade da provisão de cuidado no Brasil, a qual não pode ser considerada em crise devido a peculiaridades políticas e sociais - que passam pelo histórico de escravização da população negra, pela noção de “cidadania trabalhista” e pela formação de redes de apoio entre as mulheres -, revelando problemas relacionados à sobrecarga das mulheres nas famílias e ao tratamento das trabalhadoras domésticas como categoria segregada.

Com isso, a última seção se encerra com o apontamento dos limites do direito do trabalho no tratamento do cuidado, que foram diagnosticados ao longo das reflexões apresentadas. São limites de abrangência, pois o direito do trabalho não chega de forma igual a trabalhadoras informais e autônomos; limites políticos, derivados do não investimento em serviços públicos como creches; limites ideológicos, vistos em normas que reproduzem opressão de gênero e raça; e limites da forma jurídica, forjada para garantir o funcionamento do capitalismo.

Os limites da forma jurídica estão atrelados às configurações sociais e econômicas, de modo que respostas jurídicas têm pouca capacidade de alterá-los. Em compensação, os limites de abrangência, políticos e ideológicos derivam do escopo disciplinar do direito do trabalho, que impõe uma forma de pensar muitas vezes restrita à “ideologia do trabalho assalariado” (ANDRADE, 2008ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. Princípios de Direito do Trabalho e seus fundamentos teórico-filosóficos: problematizando, refutando e deslocando o seu objeto. São Paulo: LTr, 2008.) e a modelos universais de trabalhadores que consideram como excepcional e desviante o trabalho das mulheres (VIEIRA, 2018VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O cuidado como trabalho: uma interpelação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva de gênero. 2018. Tese (doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo.).

Consequentemente, a ampliação desse escopo mostra-se como uma possibilidade de elaboração de respostas jurídicas que efetivamente contribuam para a valorização socioeconômica do cuidado. É fundamental para o avanço deste debate, portanto, integrar diferentes áreas do direito a partir de perspectivas feministas, a fim de conjugar lições de direito econômico, direito do trabalho e da seguridade social, constitucional, direito de família e até do direito penal no sentido de encontrar formas próprias de tratar o cuidado sem reproduzir opressões.

Se a desvalorização do cuidado é parte de um programa sistêmico de exploração do trabalho e manutenção do sexismo e do racismo, sustentada por modelos ideais que valorizam o individualismo ao cuidado, o masculino ao feminino, a capacidade à vulnerabilidade (VIEIRA, 2018VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O cuidado como trabalho: uma interpelação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva de gênero. 2018. Tese (doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo.), só o uso do instrumental de disciplinas do direito conjugadas poderá romper com essa sustentação.

Em termos propositivos, a conjugação da perspectiva trabalhista e do direito econômico, por exemplo, permite situar trabalho e cuidado dentro da ordem econômica constitucional, que em seu programa previu o fortalecimento do Estado para inclusão da população vulnerável e oprimida na cidadania política e social (BERCOVICI, 2019BERCOVICI, Gilberto. O trabalho na ordem econômica constitucional. In: FEITOSA, Enoque; FREITAS, Lorena (org.). Brasil e Moçambique: os direitos humanos econômicos, sociais e culturais entre promessas formais e as demandas por sua concretização. João Pessoa: Ideia, 2019. p. 213-232.). Logo, pensar o direito como instrumento para garantir a dignidade de trabalhadoras e trabalhadores, por meio da universalização de direitos e políticas sociais, permite formular propostas de financiamento público do cuidado, tal como um espectro ampliado da seguridade social, além de pensar melhor a distribuição das responsabilidades familiares entre homens e mulheres e ampliação da oferta de serviços públicos que diminuam a carga de trabalho doméstico não remunerado, como creches, refeitórios e instituições longa permanência para idosos.

Portanto, o movimento que parece mais adequado na atual conjuntura é o de funcionalizar os instrumentos jurídicos para englobar o cuidado como uma das chaves que respondem aos desafios de nosso pacto social e econômico. Compreendendo a Constituição brasileira como um sistema de redução das desigualdades sociais (BERCIVICI, 2019), a incorporação do cuidado como elo de análise da Carta Constitucional a partir do cabedal das diversas disciplinas jurídicas permite avançar em termos metodológicos e práticos para a concretização dos objetivos da República, nos quais a igualdade de gênero esteja de fato incorporada.

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  • 1
    Vale lembrar que diante do desabastecimento gerado pela II Guerra Mundial no Reino Unido, o governo investiu na campanha “Victory is in the kitchen” (a vitória está na cozinha), pois a ilha era essencialmente dependente da importação de alimentos e, no período bélico, precisaria produzir mais e consumir menos. Itens como carne, queijo, manteiga e açúcar foram racionados, enquanto pão e batatas tornaram-se a base da alimentação britânica, recaindo sobre as mulheres, nas casas e no campo, a responsabilidade cozinhar e alimentar a população no período de escassez (CLOUTING, 2016). Para aprofundamento sobre a política alimentar em tempos de guerra, cf.: COLLINGHAM, 2013.
  • 2
    No momento em que redijo este artigo, o planeta passa pela pandemia do coronavírus (covid-19), cujos reflexos econômicos podem levar a uma crise sem proporções. Ainda que não seja possível prever os efeitos de medidas como isolamento social e fechamento de estabelecimentos, já é certo que o cuidado tem garantido parte considerável da sustentação do sistema durante a pandemia: sem escolas, as mães cuidam das crianças em casa, precisando em muitos casos cumular esta atividade com suas jornadas de teletrabalho ou home office; a carga de trabalho doméstico aumentou devido ao maior número de pessoas e refeições feitas em casa, bem como pela impossibilidade de transferir tais encargos para outras mulheres, devido à quarentena.
  • 3
    Aproveito para agradecer à Helena Hirata e Gilberto Bercovici pelas críticas à minha tese doutoral e sugestões de caminhos a serem trilhados a partir dela; ao Marco Aurélio Braga pela leitura crítica deste artigo e importantes aportes reflexivos; ao Gustavo Seferian Machado pela oportunidade de colocar tudo isso no papel; e à Luiza Regina Coutinho Corrêa pela leitura e correções linguísticas.
  • 4
    A referida pesquisa doutoral foi apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2016/18865-6.
  • 5
    Esse argumento é aprofundado pela Economia Feminista, que se propõe a “reformular conceitos centrais de análise econômica, desenvolver novos quadros analíticos e elaborar políticas públicas que respondam à realidade” de todas as pessoas, alargando a visão de mundo das tradicionais escolas do pensamento econômico (CARRASCO, 2013, p. 42). Nesse sentido, sua perspectiva “amplia o circuito de trabalho, integrando o que pode ser designado como economia do cuidado”, de modo a incluir a economia não monetizada nos circuitos econômicos (CARRASCO, 2014, p. 32).
  • 6
    Um volume expressivo de mulheres filipinas emigram para serem babás e empregadas domésticas em países ricos, o que constitui a maior fonte de entrada de moeda estrangeira do país (Parreñas, 2003).
  • 7
    A taxa de atividade entre as mulheres no Brasil saiu de 18% em 1970 (FCC, 2010) para 54,6% em 2010; vale dizer, porém, que há ainda significativa diferença com relação aos homens, cuja taxa de atividade no mesmo ano foi de 75,7% (IBGE, 2014, p. 108)
  • 8
    Segundo Bila Sorj e Adriana Fontes (2012, p. 108-109), “(...) em média, 17,5% das famílias no Brasil têm gastos com serviços domésticos, mas esse percentual varia de 2,2%, entre os mais pobres, a 51,7%, no quinto mais rico. O uso de serviços domésticos é mais elevado nos quintos de renda mais ricos, sobretudo nos domicílios com filhos dependentes (até seis anos de idade) Quando se restringe a esse tipo de família, a proporção de famílias com esse tipo de gasto chega a 73% no quinto mais rico”.
  • 9
    A melhor compreensão das relações imbricadas às migrações internas para o cuidado no Brasil talvez possa começar nas formulações de Francisco de Oliveira (1972; 2003) sobre a especificidade da forma brasileira de subdesenvolvimento, na qual é funcional a manutenção das desigualdades regionais e a convivência entre o crescimento industrial e a manutenção do padrão ‘primitivo’ das atividades agropecuárias. Para aprofundamento a respeito das desigualdades regionais no país, cf. também: BERCOVICI, 2003.
  • 10
    CLT. “Art. 7º - Os preceitos constantes da presente Consolidação, salvo quando for, em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam: a) aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas; (...)”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2020
  • Aceito
    07 Jun 2020
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