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Não podendo viver como antes: a dinâmica familiar na experiência do transplante hepático da criança

Resumos

Este trabalho teve como objetivos compreender a dinâmica familiar na experiência do transplante hepático pediátrico e identificar as demandas e recursos da família. Utilizou-se como referencial teórico o Interacionismo Simbólico e, como referencial metodológico, a Teoria Fundamentada nos Dados. Os dados foram coletados através de entrevistas semi-estruturadas com 8 famílias em um hospital escola do município de São Paulo. Foi possível identificar dois fenômenos que compõem essa experiência: tendo a vida controlada pelo transplante, representando a vulnerabilidade da família ao vivenciar as incertezas, e o medo constante no decorrer da experiência de doença da criança; e lutando para resgatar a autonomia, que consiste no movimento de reação da família diante do primeiro fenômeno, adaptando-se continuamente para enfrentar o estresse e sofrimento desencadeados pela situação. A articulação desses fenômenos permitiu identificar a categoria central não podendo viver como antes, a partir da qual propõe-se um modelo teórico explicativo da experiência.

transplante de fígado; enfermagem pediátrica; família


This study aims to understand families' dynamics during the experience of pediatric liver transplantation, and to identify families' demands and resources. Symbolic interactionism was used as the theoretical framework and grounded theory as the methodological reference. Data were collected through semi-structured interviews with eight families at a public hospital in Sao Paulo, SP, Brazil. Two phenomena were identified: having life controlled by the transplantation represents the vulnerability of families experiencing uncertainty and fear during their children's disease experience; and struggling to reacquire autonomy refers to families' reaction when exposed to the first phenomenon, which consists of continuous adaptation to overcome suffering caused by the situation. The relationship of these two phenomena allowed for the identification of the central category: not being able to live like before. Based on this analysis, a theoretical model could be proposed to explain the experience.

liver transplantation; pediatric nursing; family


Esta investigación tuvo como objetivos entender la dinámica familiar durante la experiencia del trasplante de hígado pediátrico e identificar las demandas y los recursos de la familia. El estudio utilizó como marco teórico el Interaccionismo Simbólico y como marco metodológico la Teoría Fundamentada en los Datos. Los datos fueron recolectados durante entrevistas semiestructuradas con 8 familias en un hospital escuela en el municipio de San Pablo. Fue posible identificar dos fenómenos que componen esta experiencia: teniendo la vida controlada por el trasplante, que representa la vulnerabilidad de la familia al vivir las incertidumbres y el miedo constante durante la experiencia de la enfermedad del niño; y, luchando para rescatar la autonomía, que consiste en el movimiento de reacción de la familia para enfrentar el primer fenómeno, adaptándose continuamente para enfrentar el estrés y el sufrimiento desencadenados por la situación. La articulación de esos fenómenos permitió identificar la categoría central, que fue - no pudiendo vivir como antes - a partir de la cual se propone un modelo teórico explicativo de la experiencia.

trasplante de hígado; enfermería pediátrica; familia


ARTIGO ORIGINAL

Não podendo viver como antes: a dinâmica familiar na experiência do transplante hepático da criança

Ana Márcia Chiaradia MendesI; Regina Szylit BoussoII

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Professor da Universidade Paulista, UNIP, Brasil, e-mail: amcm@usp.br

IIProfessor Livre-Docente da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Brasil, e-mail: szylit@usp.br

RESUMO

Este trabalho teve como objetivos compreender a dinâmica familiar na experiência do transplante hepático pediátrico e identificar as demandas e recursos da família. Utilizou-se como referencial teórico o Interacionismo Simbólico e, como referencial metodológico, a Teoria Fundamentada nos Dados. Os dados foram coletados através de entrevistas semi-estruturadas com 8 famílias em um hospital escola do município de São Paulo. Foi possível identificar dois fenômenos que compõem essa experiência: tendo a vida controlada pelo transplante, representando a vulnerabilidade da família ao vivenciar as incertezas, e o medo constante no decorrer da experiência de doença da criança; e lutando para resgatar a autonomia, que consiste no movimento de reação da família diante do primeiro fenômeno, adaptando-se continuamente para enfrentar o estresse e sofrimento desencadeados pela situação. A articulação desses fenômenos permitiu identificar a categoria central não podendo viver como antes, a partir da qual propõe-se um modelo teórico explicativo da experiência.

Descritores: transplante de fígado; enfermagem pediátrica; família

INTRODUÇÃO

O transplante de órgãos é uma intervenção cirúrgica aceita e recomendada para o tratamento de disfunções degenerativas e progressivas, proporcionando aumento da sobrevida dos pacientes e melhor qualidade de vida. Avanços contínuos têm sido feitos principalmente no que diz respeito ao aprimoramento da técnica cirúrgica e mecanismos de imunossupressão cada vez mais eficientes(1-2).

Encontra-se, no entanto, dados na literatura indicando que, diferente dos avanços tecnológicos, pouco se tem estudado sobre o impacto emocional da experiência do transplante sobre a criança e sua família(3-4). A experiência do transplante traz aspectos importantes que afetam a qualidade de vida dessas famílias. A qualidade de vida do paciente transplantado e da família tem sido considerada como o fator que avalia o sucesso do transplante, e não mais o tempo de sobrevida desses pacientes(5-6).

Ao acessar a percepção da qualidade de vida das crianças submetidas a transplante renal, ou hepático, e suas famílias, há evidências de que as mães das crianças sofrem grande impacto em sua qualidade de vida em decorrência da doença do filho, principalmente em suas relações sociais(7). Encontrou-se suficientes evidências na literatura sustentando que toda a família sofre o impacto da experiência de transplante da criança, o que leva a se concordar que a doença é um evento da família(8).

As alterações no funcionamento do sistema familiar podem exercer impacto negativo sobre o prognóstico da criança transplantada. O impacto do transplante pediátrico na família deve ser considerado pela equipe, pois o resultado do procedimento e o prognóstico são otimizados quando a unidade familiar permanece intacta e unida em meio à experiência(9-10).

Se a equipe de enfermagem pediátrica e de transplante estiver apta para identificar as necessidades dessas famílias, bem como possíveis recursos, atuando de forma a se aproximar da família, muitas das dificuldades podem ser trabalhadas, e tanto a família quanto a criança podem enfrentar a experiência de forma menos sofrida. Um estudo nacional que buscou compreender a vivência dos enfermeiros no programa de transplante hepático, num hospital público, revelou que os enfermeiros consideram a família do paciente transplantado como parte da assistência. No entanto, consideram que a assistência de enfermagem a tais pacientes fica prejudicada devido à fragmentação, já que o enfermeiro que acompanha o pré-operatório raramente é o mesmo que acompanha o pós-operatório(11). Diante disso, faz-se importante a realização de estudos que abordem a dinâmica familiar em meio a tais condições, buscando equipar os profissionais que atuam junto a essas famílias para promover melhor compreensão da experiência.

Sendo assim, diante desta indagação - "como é a experiência da família que tem uma criança submetida a transplante hepático", realizou-se este estudo, que teve como objetivos compreender a dinâmica familiar na experiência do transplante hepático da criança, bem como identificar as demandas e recursos da família que experiencia o transplante hepático pediátrico.

METODOLOGIA

Referencial teórico e metodológico

Trata-se de estudo qualitativo, uma vez que se buscou compreender o fenômeno a partir da perspectiva dos próprios sujeitos. Como referencial teórico, utilizou-se o Interacionismo Simbólico e, como referencial metodológico, a Teoria Fundamentada nos Dados.

O Interacionismo Simbólico é uma teoria sobre o comportamento humano que se baseia primordialmente na premissa de que a experiência humana é toda mediada pela interpretação. Segundo essa perspectiva, à medida que o ser humano interage consigo mesmo e com os demais objetos sociais, e a eles atribui significado, ele reage com base nesses significados atribuídos, que são dinâmicos e mudam à medida que as interações ocorrem(12).

A Teoria Fundamentada nos Dados tem sido utilizada de forma crescente nas pesquisas de enfermagem. Consiste numa forma de estudar fenômenos e tem como objetivo gerar teoria. O desenvolvimento conceitual se dá por meio de um processo de coleta e análise sistemática dos dados coletados. O resultado de todo o processo é uma teoria que emerge a partir das relações entre os conceitos que são gradualmente descobertos(13).

Passos metodológicos

Os dados foram coletados no período de dezembro de 2005 a outubro de 2006, em um ambulatório de especialidades de um hospital escola da cidade de São Paulo. O início da coleta de dados somente ocorreu após aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.

Participaram do estudo oito famílias que vivenciavam a experiência de ter um filho na situação de transplante hepático pediátrico. Dessas, duas estavam com o filho aguardando o transplante no momento das entrevistas e seis já estavam em acompanhamento pós-transplante, com períodos variando entre 6 meses e 5 anos após o transplante. Sete das oito famílias vivenciaram o transplante da criança com doador falecido, e uma teve transplante com doador vivo, sendo o pai o doador. As seis primeiras famílias, pertencentes ao primeiro grupo amostral, eram de crianças acometidas por condição crônica que justificou o transplante, e as duas famílias que compuseram o segundo grupo amostral eram famílias cujos filhos contraíram hepatite fulminante e tiveram que fazer o transplante em caráter emergencial.

A participação no estudo foi voluntária. Antes de cada entrevista, os objetivos do trabalho eram detalhadamente explicitados, e abria-se espaço para esclarecer possíveis dúvidas em relação à natureza do estudo. A seguir, caso houvesse interesse em participar do estudo, era solicitado que os entrevistados preenchessem o termo de consentimento livre e esclarecido. Nenhuma família recusou a participação no estudo.

A coleta de dados foi inicialmente realizada por meio dos instrumentos de avaliação estrutural da família, denominados genograma e ecomapa(8,14). Após a confecção desses instrumentos, era realizada uma entrevista semi-estruturada, que permitia obter dados qualitativos a respeito da experiência vivenciada pela família. Para as primeiras entrevistas, a questão norteadora foi "como tem sido, para você e sua família, a jornada de ter uma criança submetida a transplante hepático?". Nas entrevistas subseqüentes, conforme as categorias foram se formando, acrescentava-se novas perguntas que pudessem esclarecer as idéias trazidas pelos participantes. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra logo após a sua realização, para evitar a perda de dados significativos.

Os dados foram analisados seguindo todos os passos preconizados pela Teoria Fundamentada nos Dados(15). Os passos do método incluem a codificação, na qual procurou-se significados para todas as unidades de informações (códigos), revisão dos códigos, agregação e agrupamento em categorias teóricas. O segundo nível da análise, a codificação axial, envolveu processo de elaboração de categorias, de acordo com suas propriedades e dimensões, bem como suas relações com outras categorias, até que a saturação teórica tivesse sido atingida. A fase final da análise envolveu a construção de definições conceituais para as categorias. Buscou-se, então, compreender o fenômeno central - aquele que constitui o elo entre as categorias. Essa fase é caracterizada pelo desafio de integrar as categorias, com o intuito de "elaborar a história" e formar uma Teoria Fundamentada nos Dados. Na composição da história, as categorias devem ser de forma a propiciar destaque maior do que o de uma experiência individual.

Partindo da análise dos fenômenos identificados e da maneira como interagem na experiência da família que tem uma criança submetida a transplante hepático, foi possível propor um modelo teórico explicativo da experiência. Para validar o modelo teórico, usou-se, aqui, a estratégia de apresentá-lo a duas famílias, que fizeram parte do último grupo amostral. Ambas as famílias identificaram-se com a experiência, considerando o modelo representativo do que vivenciaram.

RESULTADOS

A análise comparativa minuciosa dos dados permitiu desvendar os significados da experiência da família da criança na situação de transplante hepático. Trata-se de experiência permeada por uma gama de sentimentos diferentes, a todo momento intercalados, caracterizada por processo de contínuos acontecimentos ao longo da experiência de doença.

Nesse processo, foi possível identificar dois fenômenos que compõem a experiência: tendo a vida controlada pelo transplante e lutando para resgatar a autonomia. Ambos representam uma interação entre desafios e aprendizagens, vividos pela família ao longo do percurso da doença, e são recorrentes na medida em que a família é exposta a novas situações conseqüentes à doença.

A partir da análise dos fenômenos e da maneira como interagem, na experiência da família, foi possível identificar a categoria central não podendo viver como antes, que integra os dois fenômenos.

Tais dimensões da experiência são apresentadas a seguir, obedecendo a seguinte forma: em negrito encontram-se os fenômenos e cada um deles é composto por categorias, que aparecem sublinhadas. A categoria central aparece destacada em itálico.

O primeiro fenômeno, tendo a vida controlada pelo transplante, representa a vulnerabilidade da família ao vivenciar as incertezas e o medo constantes no decorrer da experiência de doença da criança. A descoberta da doença hepática na família e a confrontação com a necessidade do transplante hepático para garantir a sobrevivência da criança estilhaçam a vida familiar. Ela se depara com seus sonhos e planos sendo despedaçados e tem agora que enfrentar nova e dura realidade, completamente desconhecida e assustadora, estando cercada pelo desconhecido. Ao longo do processo, ela vai se desgastando, principalmente à medida que percebe a perda de vitalidade da criança. Defronta-se com inabilidades para lidar com os desafios impostos pela doença, seja na vida pessoal, seja nas relações familiares ou extrafamiliares. A família se sente insegura e vulnerável. Não sabe o que fazer e, aprendendo sobre a progressão da doença, entende que as crises que a criança tem em decorrência da doença e os cuidados que serão necessários durante toda a sua vida fazem com que a família se perceba não podendo viver como antes, estando cercada pelo desconhecido que invadiu seu cotidiano.

Diante das demandas crescentes de cuidado da criança doente, todas as atividades passam a ser definidas em função dela. Vivendo em estado de alerta representa a família agindo de forma a preservá-la cuidadosamente, para que não seja exposta a nenhum tipo de risco. Com medo de que a criança não esteja apta a receber o transplante no momento em que for chamada, a família cancela planos de viagens, muda-se para perto do centro de transplante e, tendo a vida controlada pelo transplante, age de forma a garantir que a criança esteja apta para receber o órgão no momento em que for chamada.

Diante do primeiro fenômeno, a família reage. O evento do transplante ou da necessidade dele impõe mudanças para cada um dos membros da família e, conseqüentemente, para ela como um todo. O comportamento convencional que alguns membros desenvolviam, antes da doença, precisa ser readaptado não só às novas demandas advindas da doença, mas também às expectativas de um membro em relação ao outro. A família, não podendo viver como antes, busca maneiras de se adaptar à nova condição, de forma a não mais permitir que o transplante exerça controle sobre ela.

O segundo fenômeno, lutando para resgatar a autonomia, é a reação da família diante do primeiro, consistindo na adaptação contínua do sistema familiar para enfrentar o estresse e sofrimento, desencadeados pela situação de doença. A família utiliza recursos e estratégias que, ainda que saiba que não poderá voltar a ter a vida que planejara e almejara, consegue dar sentido às adversidades.

Mudando o jeito de ser e estar na família representa a reorganização e as novas formas de se relacionar dentro do ambiente familiar, através de mudanças nos papéis familiares e desempenho de tarefas dos seus membros, bem como a adoção de um estilo de comunicação que também respeite os limites dos seus membros e a melhor adaptação de todos no contexto da doença.

Revendo relacionamentos externos é a famílialutando para resgatar a autonomia, buscando e recebendo suporte fora do contexto familiar para conseguir dar significado às adversidades impostas pela experiência. A família encontra suporte reforçando vínculos familiares, percebendo que não está sozinha e pode contar com os membros da família extensa para suprir demandas práticas, impostas pela doença, como cuidar dos outros filhos ou revezar no cuidado da criança doente, além de contar com apoio emocional.

A família procura persistir forte, apoiando-se em suas crenças, na igreja ou na fé que professa. Buscando vínculos, a família busca ter bom relacionamento com a equipe, conhecer cada integrante da equipe de transplante e escolhe profissionais de sua preferência para trocar confidências a respeito da experiência do transplante hepático na família. Revendo relacionamentos externos integra ainda a família buscando vínculos com as famílias de outras crianças transplantadas que, atravessando a mesma situação, a auxiliam a desenvolver força e persistência. A aproximação com essas famílias lhes dá um sentimento de identidade, não se sentem mais incompreendidas e solitárias na experiência, compartilhando suas vivências umas com as outras como forma de incentivo e crescimento mútuos.

A família, ao atravessar a experiência do transplante da criança, passa por momentos em que tudo está bem, sente-se amparada pelos recursos dos quais dispõe e confiante no sucesso do tratamento e nas condições de manejo da doença da criança, e momentos nos quais, reconhecendo limitações, ela volta a perceber que sua vida mudou para sempre - não podendo viver como antes. Isso lhe traz profunda tristeza, pois é quando ela pensa em como era antes, ou como poderia ser, e como está agora. Lutando para resgatar a autonomia, a família procura prosseguir mantendo esperança no futuro. Essa categoria representa a família buscando manter seus pensamentos ao que pode acontecer de bom no futuro da criança e da família. Ainda sabendo que o transplante não é a cura para a criança, a família consegue prosseguir focando nos resultados positivos, como a melhora na qualidade de vida e adaptação satisfatória que a criança pode ter, retomando suas atividades escolares, ganhando peso, tendo amigos e podendo prosseguir no convívio familiar.

A família consegue prosseguir em seu caminho lutando para resgatar a autonomia, ficando fortalecida e persistente, ainda que sempre se perceba não podendo viver como antes.

Reconhecer as conquistas advindas do cuidado, tendo sido apoiada por diferentes fontes de suporte, adquirir certo domínio da doença em função do acúmulo de conhecimentos e manter a esperança de que a criança possa ser curada impulsionam a família a ir adotando um estilo de vida compatível. Essa categoria representa a habilidade da família de transformar sonhos e estilos de vida adotados anteriormente e se manter conectada à realidade e às possibilidades atuais. É reconhecer as mudanças na criança e na família e ter como meta seguir em frente, apesar de tudo, incorporando comportamentos para buscar o equilíbrio dentro das condições nas quais se encontra, fazendo com que o transplante passe a ser incorporado à rotina da família. A partir desses comportamentos, a família passa a lidar com a vida, consciente de que as complicações da doença, da espera do transplante ou do pós-transplante podem surgir a qualquer momento e que elas, as famílias, não podem vacilar, mas não se deixam dominar por tais pensamentos e vão vivendo um dia de cada vez, cada momento em seu devido tempo, desenvolvendo paciência, como se fossem vencer um passo por vez de uma caminhada e que elas desconhecem quantos passos têm.

Adotando um estilo de vida compatível é o resultado de lutando para resgatar a autonomia e traz um novo sentido ao não podendo viver como antes. A todo instante, não podendo viver como antes pode assumir significados diferentes na experiência da família, dependendo da intensidade e duração dos obstáculos que ela enfrenta. Se vulnerável diante das condições adversas apresentadas, não podendo viver como antes é a família tendo a vida controlada pelo transplante. Quando interage com os elementos presentes na experiência, buscando formas de se adaptar à condição, mudando o jeito de ser e estar na família, revendo relacionamentos externos e mantendo esperança no futuro, o significado para a família é lutando para resgatar a autonomia. Tais significados emergem das experiências vividas pela família à medida que interagem com os elementos presentes na situação de transplante hepático pediátrico.

Assim, o modelo teórico descrito e representado pela Figura 1 tem como categoria central não podendo viver como antes, capaz de integrar todos os componentes relacionados à experiência vivenciada pela família com um filho submetido a transplante hepático.


REFLETINDO SOBRE O PROCESSO

Neste estudo, as famílias trouxeram a descrição de suas experiências ao terem que conviver com o sofrimento desencadeado pelo medo e pela incerteza, sempre presentes na trajetória da doença hepática terminal e, posteriormente, do transplante hepático. A vida das famílias é completamente alterada. Quando elas se percebem não podendo viver como antes, procuram atravessar a experiência do transplante hepático buscando estratégias que as façam sentir que estão se fortalecendo em meio às adversidades impostas pela condição da doença da criança. Os fenômenos e categorias que emergiram da categoria central, não podendo viver como antes, levam-nas a considerar esses resultados sob a dimensão da resiliência familiar.

O modelo de resiliência é um recurso para o trabalho com famílias que vivenciam o sofrimento. Resiliência é definida como a capacidade de renascer da adversidade fortalecido e com mais recursos(16). Um recente trabalho de revisão sobre o conceito de resiliência descreve a utilidade clínica do modelo Sistema Familiar-Doença, e de uma abordagem de resiliência familiar para ajudar famílias a vencer os desafios impostos pela doença, hospitalização e morte da criança e do adolescente(17).

No modelo apresentado, os recursos da família são influências significativas para a adaptação positiva às adversidades da vida, como a doença grave. Quando se pensa em enfrentamento e adaptação da doença, é necessário considerar o desdobramento dinâmico da doença em estudo e seus tratamentos e processos de acordo com o tempo. Assim, adaptando o modelo à experiência de doença da criança que vivencia o transplante hepático, cujas fases têm sido descritas como saber da necessidade do transplante, esperar por ele, recebê-lo e conviver com ele, temos: duas fases de crise, representadas por saber da necessidade do transplante e receber o transplante, ambas marcadas por um desequilíbrio mais intenso na família, devido às adaptações que são mais intensas nesses períodos; e duas fases crônicas, que são esperar pelo transplante e conviver com ele, marcadas por relativa constância e estabilidade, embora ainda exposta a riscos e incertezas(17-18).

Os dados deste estudo indicam o movimento espontâneo da família em direção à resiliência familiar, a partir da primeira fase de crise da doença, ao saber da necessidade do transplante. No entanto, a família pode e deve ser ajudada nesse processo em todas as fases, e não apenas nos momentos de crise, como quando se depara com a notícia da necessidade do transplante, bem como quando o recebe.

O período de espera pelo transplante é evidenciado como uma fase crítica, determinada pelas incertezas da família em relação ao procedimento e prognóstico. O reconhecimento do dilema que a família passa nesse período, questionando todos os aspectos que permeiam a questão cirúrgica do transplante, pode gerar oportunidades de diálogos e intervenções que promovam alívio no estresse vivido pela família, reduzindo o estresse das demandas emocionais e cognitivas impostas por - tendo a vida controlada pelo transplante.

A fase de conviver com o transplante é quando a família se vê em maiores condições de viver adotando um estilo de vida compatível, adequando o transplante ao cotidiano da família e incorporando comportamentos que permitam o equilíbrio dentro da nova realidade familiar. No entanto, a diminuição de suporte social nessa fase é prejudicial à família, que ainda precisa de suporte e apoio para permanecer resiliente, o que também já foi observado anteriormente(19). Reconhecer essa fase da trajetória da doença como período que ainda impõe demandas sobre a família possibilita ao enfermeiro um olhar direcionado para promover recursos e reconhecer as forças da família de forma a ajudá-la a viver lutando para resgatar a autonomia.

Os dados mostram evidências que certas condições do contexto são essenciais para a família passar pela experiência com menos sofrimento. Ambientes que beneficiam o desenvolvimento da resiliência são aqueles que disponibilizam suporte social. A interação entre a equipe e as outras famílias que aguardam pelo transplante, ou já sofreram o procedimento, são recursos importantíssimos no decorrer da experiência.

O profissional que trabalha com crianças transplantadas pode, a partir dos resultados apresentados neste trabalho, compreender o processo no qual suas famílias estão inseridas. A partir do conhecimento desse processo e de seus desafios, bem como das demandas da família, seus recursos e suas forças, o profissional obterá subsídios para identificar em sua prática as necessidades que ela vivencia durante a experiência de ter um filho submetido a transplante hepático, procurando caminhos que possam atender as demandas da família no decorrer de toda a experiência, e não somente nos momentos de internação e cirurgia.

CONCLUSÕES

Acredita-se que a análise dos relatos e reflexões aqui apresentados permitiu vivenciar e compreender a dinâmica familiar na experiência do transplante hepático de crianças, bem como identificar as demandas e estratégias dessas famílias em relação à referida experiência.

Diante dos resultados e reflexões aqui apresentados, estudos que apontem e testem possíveis intervenções de enfermagem com essas famílias se fazem necessários, de forma a aprimorar ainda mais o cuidado prestado a elas e possibilitar que se caminhe um passo adiante na prática avançada de enfermagem.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2009
  • Data do Fascículo
    Fev 2009

Histórico

  • Aceito
    16 Dez 2008
  • Recebido
    09 Nov 2007
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