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Esculturas públicas em Curitiba e a estética autoritária

Sculptures publiques à Curitiba et l'esthétique autoritaire

Public sculpture in Curitiba and authoritarian aesthetics

Resumos

Esculturas e monumentos públicos tradicionalmente foram construídos e pensados segundo a lógica do poder vigente, para difusão e fixação de seus pontos de vista. A partir do período entre guerras, o cenário político brasileiro discute as propostas iconográficas dos partidos nazifascistas e comunistas europeus, até o fim do regime Vargas, em uma política de afirmação de símbolos concretos de nacionalidade e poder. O escopo deste artigo é discutir essas heranças autoritárias por meio do estudo de monumentos encontrados em praças públicas de Curitiba, assim como entender como as idéias e o ambiente político da época informaram suas soluções visuais. O estudo da recepção das imagens ajuda-nos a entender as relações entre a população e o status quo, e as suas lutas internas, muitas vezes encobertas por debates aparentemente "apenas" estéticos.

arte; poder; escultura pública; arte e política; estética autoritária; Curitiba


Des sculptures et des momuments publics furent traditionnellement conçus et construits selon la logique du pouvoir en vigueur afin de diffuser et fixer ses points de vue. A partir de l'entre-deux-guerres, le monde politique brésilien discute les propositions iconographiques des partis nazisfascistes et communistes européens jusqu'à la fin du régime Vargas, menant une politique d'affirmation de symboles concrets de nationalisme et pouvoir. Le but de cet article est non seulement de discutir de cet héritage autoritaire en utilisant les monuments se trouvant sur des places de Curitiba, mais aussi de comprendre comment les idées et l'esprit public à l'époque présentent leur solutions visuelles. L'étude de la réception des images nous permet de comprendre les rapports entre la population et le status quo, leur disputes internes souvent cachées par des débats faisant semblant d'être esthétiques.

art; pouvoir; sculpture publique; art et politique; esthétique autoritaire


Traditionally, public sculptures and monuments have been thought and constructed according to the logic of the powers that be, serving to disseminate and consolidate their perspective. On the Brazilian political scene, discussions of the iconographic proposals of European nazi-fascist and communist parties began in the period between the two world wars and continued through the end of the Vargas regime, a politics that affirmed concrete symbols of nationality and power. This article discusses this authoritarian heritage through a study of monuments erected in city squares in Curitiba, seeking to understand how the ideas and political environment of that period informed the visual solutions that were devised. A study of the reception of images aids us in our attempt to comprehend the relationship between a population and the status quo, as well as the internal struggles that went on during the period, frequently camoulflaged by debates that were posed as "merely" aesthetic.

art; power; public sculpture; art and politics; authoritarian aesthetics


DOSSIÊ DEMOCRACIAS E AUTORITARISMOS

AUTORITARISMOS

Esculturas públicas em Curitiba e a estética autoritária

Public sculpture in Curitiba and authoritarian aesthetics

Sculptures publiques à Curitiba et l'esthétique autoritaire

Geraldo Leão Veiga de Camargo

RESUMO

Esculturas e monumentos públicos tradicionalmente foram construídos e pensados segundo a lógica do poder vigente, para difusão e fixação de seus pontos de vista. A partir do período entre guerras, o cenário político brasileiro discute as propostas iconográficas dos partidos nazifascistas e comunistas europeus, até o fim do regime Vargas, em uma política de afirmação de símbolos concretos de nacionalidade e poder. O escopo deste artigo é discutir essas heranças autoritárias por meio do estudo de monumentos encontrados em praças públicas de Curitiba, assim como entender como as idéias e o ambiente político da época informaram suas soluções visuais. O estudo da recepção das imagens ajuda-nos a entender as relações entre a população e o status quo, e as suas lutas internas, muitas vezes encobertas por debates aparentemente "apenas" estéticos.

Palavras-chave: arte; poder; escultura pública; arte e política; estética autoritária; Curitiba.

ABSTRACT

Traditionally, public sculptures and monuments have been thought and constructed according to the logic of the powers that be, serving to disseminate and consolidate their perspective. On the Brazilian political scene, discussions of the iconographic proposals of European nazi-fascist and communist parties began in the period between the two world wars and continued through the end of the Vargas regime, a politics that affirmed concrete symbols of nationality and power. This article discusses this authoritarian heritage through a study of monuments erected in city squares in Curitiba, seeking to understand how the ideas and political environment of that period informed the visual solutions that were devised. A study of the reception of images aids us in our attempt to comprehend the relationship between a population and the status quo, as well as the internal struggles that went on during the period, frequently camoulflaged by debates that were posed as "merely" aesthetic.

Keywords: art; power; public sculpture; art and politics; authoritarian aesthetics.

RÉSUMÉ

Des sculptures et des momuments publics furent traditionnellement conçus et construits selon la logique du pouvoir en vigueur afin de diffuser et fixer ses points de vue. A partir de l'entre-deux-guerres, le monde politique brésilien discute les propositions iconographiques des partis nazisfascistes et communistes européens jusqu'à la fin du régime Vargas, menant une politique d'affirmation de symboles concrets de nationalisme et pouvoir. Le but de cet article est non seulement de discutir de cet héritage autoritaire en utilisant les monuments se trouvant sur des places de Curitiba, mais aussi de comprendre comment les idées et l'esprit public à l'époque présentent leur solutions visuelles. L'étude de la réception des images nous permet de comprendre les rapports entre la population et le status quo, leur disputes internes souvent cachées par des débats faisant semblant d'être esthétiques.

Mots-clés: art; pouvoir; sculpture publique; art et politique; esthétique autoritaire.

"O que nós escolhemos chamar de arte é na verdade melhor interpretado pelo historiador quando estudado em conjunto com outros testemunhos disponíveis, mas ela realmente tem uma 'linguagem' própria que somente pode ser entendida por aqueles que buscam aprofundar suas múltiplas finalidades, convenções, estilos e técnicas. [Uma] cooperação frutífera entre historiadores e historiadores da arte pode apenas ser baseada no pleno reconhecimento das necessárias diferenças entre suas abordagens, não, como é freqüentemente implícito, na pretensão de que essas abordagens são basicamente as mesmas" (HASKELL, 1993, p. 10).

I. INTRODUÇÃO

Os anos 1930 viram a ascensão de um novo modo de realismo artístico, motivada por um lado por uma reação aos excessos do início do século e, por outro lado, pela crescente utilização de uma imagery1 1 Expressão em inglês, no original; significa " o ou um conjunto de imagens". "antiburguesa", isto é, antivanguardista, pelos partidos de massa, de esquerda ou os fascismos europeus. Em um período pouco propício a matizes intermediários, essa tendência, que afetou até mesmo o vanguardista por excelência, Picasso, foi chamada, no âmbito da Crítica e História da Arte, de "Retorno à Ordem".

Após sua subida ao poder, em 1933, Hitler organizou a célebre Exposição de Arte Degenerada, enquanto a partir de 1928, a Internacional Socialista declarava contra-revolucionária toda arte abstrata, abrindo oficialmente o caminho para a institucionalização do chamado "Realismo Socialista". Na Exposição Universal de 1937, em Paris, encontramos, ironicamente frente a frente, dois exemplos das visões artísticas oficiais dos dois regimes, competindo pela veiculação "artística" de seus valores, dos heróis arianos e dos trabalhadores vistos como super-homens (FER, BATCHELOR & WOOD, 1994, p. 260-264).

No Paraná, e em Curitiba especificamente, essas posturas políticas e estéticas deixaram suas marcas na paisagem. O escopo deste artigo é discutir essas heranças autoritárias, por meio do estudo de monumentos encontrados em praças públicas de Curitiba. Nosso estudo está concentrado no escultor Erbo Stenzel, que executou, em 1953, os projetos para as esculturas em homenagem ao Centenário da Emancipação Política do Paraná, na Praça 19 de Dezembro. Quase 20 anos antes, Stenzel já ficara em segundo lugar no concurso de protótipos para o monumento em homenagem a Santos Dumont, instalado na Praça Santos Andrade (UM ARTISTA DE FUTURO, 1939). Encomendado pelo Aeroclube do Paraná, após a morte de Dumont, em 1932, a escultura, prevista para ser inaugurada em 19 de dezembro de 1935, foi entregue em meio a muitas solenidades em 22 do mesmo mês. A obra vencedora, de um concurso do qual participaram "oito escultores de renome" (CALOMENO, 1997, p. 21-22), apresenta um homem de corpo atlético heroicamente estilizado, que ergue nos braços elementos mecânicos como um troféu da modernidade e apóia-se em um pedestal construído por Domingos Grecca. A obra foi encomendada ao escultor, radicado no Rio de Janeiro, Iolando Malozzi, vencedor do concurso.

Curitiba já testemunhara a proliferação de obras públicas e comemorações em grande escala, como as executadas para o Centenário da Independência do Brasil, que tinham como modelo as manifestações dos modernos partidos de massa da Europa. Também em Curitiba, "Novos locais [eram] destinados às massas, seguindo novamente as intenções do futurismo que fazia um grande elogio aos elementos modernos e urbanos" (PEREIRA, 1998, p. 161-162). Estudantes ensaiavam exercícios físicos sincronizados, destinados a apresentações públicas para demonstrar a capacidade de disciplina e os ideais de saúde do povo paranaense, em um momento em que textos médicos indicavam a "educação física como forma de obter a perfeição humana: mens sana in corpore sano2 2 Em latim, no original: "mente sã em corpo são" (nota do revisor). " (Gazeta Médica da Bahia apud SCHWARCZ, 1993, p. 215).

Essas transformações da cidade com vistas às comemorações inscreveram-se em uma política de construção de símbolos concretos da nacionalidade e do poder. Assim, podemos dizer que, "Nesse sentido, a 'questão urbana' emerge como uma transformação da 'questão social'. Transformação essa que já contém a terapêutica a ser adotada: change la ville pour changer la vie3 3 Em francês, no original: "mudar a vila [cidade] para mudar a vida" (N. R.). . O pensamento urbanístico aparece assim, no início do século, claramente associado às idéias de reforma social" (RIBEIRO & CARDOSO, 1996, p. 53).

Mais tarde, a retomada das novas obras de modernização da capital do estado, já no início dos anos 1950, concretizou a busca de uma imagem do poder, idealizada pelo governador Bento Munhoz da Rocha Netto, baseado no desenvolvimento econômico sustentado basicamente pela cafeicultura. Essa materialização monumental das idéias de vigor político e pujança econômica era a tônica no período getulista, como podemos ver ao refletirmos sobre a construção do Centro Cívico, que, com um conjunto de obras, buscava marcar as comemorações do Centenário da Emancipação Política do Paraná, em 1953. "A construção desta obra se coloca como um marco das potencialidades locais, da ação modernizadora do governo que investe sobre a construção de um 'lugar do poder'. [...] As obras do Centenário compreendem ainda o Teatro Guaíra, Biblioteca Pública, Colégio Tiradentes, avenidas de acesso ao Centro Cívico, Praça do Centenário e Monumento do Centenário. Em relação a esse, cabe observar que um pequeno lago artificial, um painel decorativo e a estátua completam o conjunto, todo cientificamente iluminado" (IPARDES, 1989, p. 47; grifos no original).

Apesar de executadas na boa e velha tradição dos monumentos oficiais comemorativos, as obras não passaram incólumes pelo fervor dos guardiões da moral e dos bons costumes. De fato, uma das esculturas pensadas para o conjunto de monumentos – uma mulher nua simbolizando a Justiça – ficou anos escondida no pátio do palácio do governo. A obra, projetada por Erbo Stenzel mas executada por Humberto Cozzo com uma série de "licenças poéticas", só foi colocada na praça em que já estava o homem nu, que representava o Paraná, no meio da década de 1970 (SANTOS, 1997, p. 60). A instalação tardia da obra desagradou o autor, que a idealizara para a frente do prédio da Secretaria Estadual de Justiça. A "união", talvez motivada por uma lógica discutível de reunir o "casal" projetado pelo mesmo artista, provocou ressentimentos da parte de Stenzel, pois a escultura feminina obedecia a uma escala e proporções inadequadas para o local onde hoje se encontra.

A escultura do Homem Nu, instalada na Praça 19 de Dezembro para a comemoração do Centenário da Emancipação Política do Paraná, em 1953, foi encomendada a Erbo Stenzel, participante de um grupo de artistas que se reunia, entre outras afinidades, por falarem alemão. O artista trabalhou no Instituto Teuto-Brasileiro até o final da década de 1930 (STENZEL, 1939) como alternativa à sua carreira artística, quando, após uma campanha de amigos junto ao governo do estado do Paraná, seguiu para o Rio de Janeiro para estudar escultura. A obra projetada tem caráter e constituição heróicos; assim como o mural, também de sua autoria e situado na mesma praça, a escultura é típica de uma morfologia corrente à época, baseada nas noções de realismo ligadas às polaridades ideológicas dominantes do período. Grosso modo, essas concepções eram, por um lado, o realismo-socialista, cuja adaptação brasileira foi decalcada principalmente do muralismo mexicano, e, por outro lado, as formulações realistas derivadas do nacional-socialismo e do fascismo italiano.

O conjunto de obras projetadas por Stenzel necessitava de um ateliê que comportasse suas proporções grandiosas e de alguém tecnicamente capacitado para trabalhos dessa envergadura. O artista associou-se então ao escultor Humberto Cozzo, radicado no Rio de Janeiro e habituado a encomendas oficiais e de grandes proporções. Cozzo executou a escultura, assim como o mural, com notáveis inovações em relação ao projeto original, o que também causou descontentamento ao autor. Muitas críticas da época apontavam os traços africanos da estátua, que, tendo sido idealizada para representar o "homem paranaense", não deveria, para os seus detratores, apresentar essas características, já que a mística do movimento paranista desde algumas décadas removera a contribuição africana da constituição do paranaense, que, para eles, seria o resultado da fusão das "raças" portuguesa e indígena.

Neste artigo, procuramos pensar em como as obras principais, concebidas para a Praça 19 de Dezembro, inscrevem-se nas relações entre as instituições e os artistas locais e as formulações visuais baseadas nos programas defendidos por partidos europeus e suas contrapartes brasileiras. Estas relações justificam-se pelas ligações concretas de alguns artistas com as idéias e as atividades do fascismo de Mussolini (PEREIRA, 1998, p. 150), explicitadas pelas publicações sobre o regime de Mussolini na Illustração Paranaense, revista ilustrada pelo escultor João Turin e pelas medalhas em bronze com a efígie de Plínio Salgado, confeccionadas por Erbo Stenzel. O fato de Turin ter sido um dos principais professores e mentores de Stenzel, assim como as ligações familiares deste com o nacional-socialismo, contribuem para indagarmos até que ponto as idéias e o ambiente político de sua época informaram suas soluções visuais. Utilizarei também conceitos de utilização de obras de arte como fonte histórica, propostos por Haskell (1993), em seu livro History and Its Images: Art and the Interpretation of the Past, assim como idéias retiradas de Freedberg (1991), em seu livro The Power of the images4 4 Este é o momento, também, de deixar registrado meu débito a Didonet Thomaz, pesquisadora da família Stenzel desde 1986, e a Pedro Moreira, da Casa Erbo Stenzel, que me auxiliaram com dados e informações, frutos de longo trabalho de pesquisa, sem os quais me teria sido impossível redigir este texto. Aparecida V. Silva, da Casa da Memória de Curitiba, foi de grande auxílio na indicação de fontes. Também é importante registrar que mesmo conversas rápidas, ao telefone ou nos corredores em direção ao cafezinho, podem trazer insights que se revelam importantes para o adensamento dos problemas, e este artigo deve a Antonio César de Almeida e Vera Vianna Baptista alguns deles. Finalmente, é necessário agradecer a atenção paciente de meu orientador, Luiz Geraldo Silva. .

II. ARTE E ENGAJAMENTO

O período entre as guerras mundiais viu o recrudescimento de disputas políticas que no Brasil poder ser exemplificadas, esquematicamente, pelas querelas entre os seguidores do Integralismo em um extremo, e do Partido Comunista, em outro. As discussões intelectuais entre os artistas e escritores da época mostram essa polarização, como as polêmicas entre Oswald de Andrade e Plínio Salgado, que, em 24 de fevereiro de 1927, provocou um artigo de Andrade, cujo alvo era o grupo Anta, a nova denominação do grupo modernista Verde-Amarelo, cujo manifesto fora publicado neste ano (SALGADO, 1935, p. 53). Liderado por Cassiano Ricardo e Plínio Salgado, esse grupo era tido como a "dissidência de direita" do modernismo de 1922 e publicou um manifesto em 1929 (NUNES, 1978, p. xxxvii), opondo-se ao Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, denominando-se Escola da Anta. O artigo de Andrade, intitulado Antologia, é uma crônica inteiramente baseada em trocadilhos com a palavra "anta", em que Oswald perpetra: "Pois vou-vos contar de pedanta grei, da qual recebi dois agravos durante a semana, que por certo esfalfaram as vísceras agravantas, demonstrativos porém ambos de espírito antanho e garganta que não sacode pedras mui longe do antro em que se antola" (ANDRADE, 1976, p. 32).

A presença de Plínio Salgado na escolha do animal-símbolo do grupo – a anta era totem dos Tupis – pode ser confirmada em seus textos posteriores, descrevendo as faculdades espiritualistas dos primeiros habitantes do Brasil. Como anota Ricardo Benzaquen de Araújo, para Salgado, em seu livro Despertemos a Nação, de 1935, os habitantes originais do Brasil demonstravam uma índole "naturalmente" boa, o que podia ser comprovado pela adoção, como seu "totem máximo, da figura da anta, um mamífero 'dócil' e 'meigo', definido, dessa forma, por propriedades que remetem diretamente ao mundo do espírito" (ARAÚJO, 1988, p. 51). Já em 1946, o tom oswaldiano deixa a ironia e passa a uma virulência mais à altura do recrudescimento das disputas, agora muito mais ligadas à política que à literatura: "Se não há dinheiro para o povo comer, há de sobra para os fascistas nacionais foguetearem nos apoiados à discurseira com que o Hitler de Sapucaí se despediu de Portugal, a fim de novamente trazer para cá a esmola – 'de uma obra civilizadora'. Foi como o político covarde e mau literato que é o sr. Plínio Salgado encerrou seu speech em Lisboa" (ANDRADE, 1976, p. 136).

Essas disputas ecoaram no Paraná, pois vemos como, "Em artigo publicado em dezembro de 1927, a revista paranista Illustração Paranaense aderiu ao projeto da Anta, e colocou o animal como símbolo da modernidade, como o totem da nossa raça" (PEREIRA, 1998, p. 107). A escolha era, segundo Luís Fernando Pereira, "na verdade, um elogio ao índio que" (ibidem) "[...] predominou no subconsciente dessas massas profundas de nossa população, dando-nos a unidade étnica, a unidade fisionômica, a unidade espiritual. Esse movimento que ausculta e segue as determinantes raciais, fundado em verdades biológicas incontestadas, em outros países da América Latina, como México que encontrou, embora sob formas diferentes a sua hora de atuação e de eternidade" (Illustração Paranaense apud PEREIRA, 1998, p. 107).

A geração dos intelectuais que participaram das discussões sobre o modernismo brasileiro buscava, desde o fim da I Guerra Mundial, o estabelecimento das especificidades da formação cultural – e racial – brasileira. Essas especificidades, baseadas no caráter mestiço da população, passavam, pouco a pouco e para alguns, a tomar um valor positivo, enfatizado pelos movimentos Antropofágico, liderado por Oswald de Andrade, e o nacionalismo do grupo Verde-Amarelo e depois do grupo da Anta.

Em autores escrevendo na virada do século XIX para o XX, como Sílvio Romero e Nina Rodrigues, a nacionalidade brasileira já era definida em termos da miscigenação racial entre os componentes das "três raças" que estavam, para eles, na base da formação do povo brasileiro. "Contudo, sua preocupação maior consistia em dar um valor, um sentido irredutivelmente diferente e desigual a cada um daqueles grupos, evitando, por conseguinte, que da facilidade que parecia caracterizar as relações inter-étnicas resultasse a fusão de negros, índios e brancos numa mesma raça, homogênea, sem distinções" (ARAUJO, 1988, p. 55).

De fato, esse esquema, ao mesmo tempo que reconhecia a proximidade sexual, prova da "cordialidade" que marcava as relações entre as raças desde o Brasil-Colônia, visava, fundamentalmente, a "tentar combinar duas coisas: a preservação das características específicas de cada raça, e a conseqüente e natural – fisicamente determinada – superioridade dos brancos" (idem, p. 56)

Plínio Salgado, como mostra Ricardo B. de Araújo, opta pelo caminho inverso, de resto como muitos intelectuais da sua geração que estiveram na constituição estética e política do modernismo brasileiro. Ele estava "igualmente obcecado pela totalidade, mas por uma totalidade democrática, que, na visão dele, exige a dissolução de todas as características distintas e singulares em prol da constituição de um conjunto absolutamente indiferenciado e uniforme" (ibidem). Dessa mistura, efetuada em um ambiente de cordialidade e camaradagem, garantido pelas características físicas e geográficas do Brasil – que desde os tempos coloniais impedia ou dificultava grandemente os contatos com a corte, induzindo assim a convivência – surgiu a figura que encarna a raça peculiar brasileira. Esta era a do caboclo, figura que permite a unidade buscada por Plínio Salgado e que, para ele, definia o Brasil. Quaisquer diferenças poderiam doravante ser superadas, ou suprimidas, pois o "pertencimento ao mesmo sangue automaticamente implica, segundo Plínio, na adesão a um mesmo quadro de sentimentos e valores, invariavelmente encontráveis em todos os brasileiros" (idem, p. 54).

No ambiente internacional, como vimos antes, a produção artística em suas formas de vanguarda sofria um refluxo em relação ao ímpeto do início do século XX. Os grandes partidos de massa, o nacional-socialismo alemão, o fascismo italiano e o movimento comunista internacional, buscavam construir pressupostos teóricos que arrebanhassem artistas e intelectuais para suas fileiras. As discussões sobre a importância da arte para o "esclarecimento" da população assumiam o primeiro plano. Em 1930, a abstração já fora oficialmente desqualificada na União Soviética e, em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, as manifestações de vanguarda na Alemanha passaram à categoria de arte degenerada, com direito à exposição – no duplo sentido – exemplar. A opção preferencial desses partidos era por uma arte realista, embora o termo "realismo" tenha englobado um grande número de interpretações, mesmo dentro do mesmo movimento.

Ao contrário do que poderia supor uma construção dicotômica da luta entre os movimentos realistas de combate político e a vanguarda, suas relações sempre se mostraram muito mais complicadas. Mesmo Picasso, um consagrado vanguardista desde as primeiras décadas do século XX, envolvido pelo clima do período, aderiu ao Partido Comunista depois da II Guerra Mundial, declarando que a "pintura não é feita para decorar apartamentos. Ela é um instrumento de guerra para ataque e defesa contra o inimigo" (Picasso apud FER, BATCHELOR, & WOOD, 1994, p. 263).

Na União Soviética do final dos anos 1920, o chamado realismo socialista impôs-se depois de uma série de batalhas dentro do Partido Comunista contra tendências que, por seu lado, advogavam igualmente algum tipo de "realismo". Embora o realismo da era de Stálin tenha-se tornado um parâmetro oficialmente indisputável, sua interpretação sempre se manteve passível de discussão entre os artistas, mesmo na URSS. "Muitos objetaram a sua relativa estaticidade, argüindo que o realismo deve responder dinamicamente a uma modernidade sem precedentes. Viram esta modernidade como determinada não tanto pelas pompas da tecnologia quanto pelas relações sociais, particularmente as relações entre classes: transformação tecnológica seguida a partir das relações sociais e não ao contrário. Esta visão de realismo foi muito claramente resumida por Brecht durante uma troca com Lukács nos anos 1930: 'O realismo não é uma mera questão de forma [...]. A realidade muda; para representá-la, os modos de representação devem mudar também'" (FER, BATCHELOR, & WOOD, 1994, p. 263).

O realismo socialista foi a doutrina que regulamentou a arte figurativa, com vistas à sua utilização na transmissão de valores ideológicos, que emergiu na União Soviética nos anos 1930, a partir de uma série de lutas internas que atravessou os anos 1920. Embora os teóricos do modernismo ocidental tenham, por uma série de motivos, inclusive a falta de acesso às informações sobre as discussões intelectuais na URSS na era da Guerra Fria, sustentado a polaridade entre vanguarda e arte realista, seus praticantes sempre se consideraram de "vanguarda" por seu papel transformador, continuando a criticar o realismo "tradicional" como retrógrado e "burguês" (idem, p. 264).

As relações entre liberdade de expressão e os interesses do Partido Comunista nunca foram simples e o próprio Lênin, em um artigo de 1905, Organização do partido e literatura partidária, registrou o que se deveria esperar de um artista ou escritor do partido: uma obra que estivesse totalmente a serviço dos ideais partidários, enquanto ressalvava que essas regras aplicavam-se – apenas – aos artistas-membros do partido. Lênin escreveu: "As novas condições para o trabalho Social-Democrático na Rússia, que foram levantadas pela Revolução de Outubro, trouxeram ao primeiro plano a questão da literatura partidária. [...] A literatura deve tornar-se parte da causa comum do proletariado, uma peça na engrenagem de um único grande mecanismo social-democrático posto em movimento por toda vanguarda politicamente consciente de toda classe trabalhadora. A literatura deve tornar-se um componente da obra organizada, planejada e integrada do Partido Social-Democrata" (LENIN, 1995, p. 136-137).

Ressaltando o aspecto apenas ilustrativo da metáfora "peça na engrenagem", chamou de capenga sua comparação da literatura, vista por ele como um movimento vivo, com um mecanismo, e prosseguiu afirmando: "Não há dúvida de que a literatura é a última a sujeitar-se a ajustamentos mecânicos ou ao nivelamento, ao domínio da maioria sobre a minoria. Não há dúvida, igualmente, que nesse campo um maior escopo deve indubitavelmente ser permitido à iniciativa pessoal, inclinações individuais, ao pensamento e fantasia, forma e conteúdo. Tudo isso é inegável, mas tudo isso simplesmente mostra que o lado literário da causa do partido proletário não pode ser mecanicamente identificado com seus outros lados" (idem, p. 138).

Depois de uma apologia do controle do partido sobre a produção literária partidária, Lênin exclamou ironicamente, dando voz a um hipotético "intelectual defensor da liberdade", que diria: "O quê?! Impor controle coletivo sobre uma questão delicada e individual, como o trabalho literário! Você quer que trabalhadores decidam questões de ciência, Filosofia ou Estética por uma maioria de votos!". A essa pergunta retórica, ele respondeu: "Calma, cavalheiros! Em primeiro lugar, estamos discutindo literatura partidária e sua subordinação ao controle do partido. Todos são livres para escrever e dizer o que quer que se queira, sem qualquer restrição. Mas toda associação voluntária (incluindo o partido) também é livre para expelir membros que usem o nome do partido para advogar pontos de vista antipartidários. A liberdade de fala e a de imprensa devem ser completas. Mas então a liberdade de associação deve ser completa também" (ibidem).

Assim, as vertentes ideológicas dominantes no período entre-guerras travaram uma série de disputas pelo engajamento de intelectuais e artistas e as formulações – teóricas e visuais – propostas pelos lados em questão desempenharam um importante papel nas construções visuais da arte moderna e do modernismo brasileiro, particularmente no período que vai do início dos anos 1930 ao fim do Estado Novo (1945).

Essas disputas, como vimos, ocorriam sobre o pano de fundo das discussões a respeito de raça e de nacionalidade, no que foi chamada por Dain Borges de "geração positivista Belle Époque de 1898-1914". As disputas constituíram uma discussão sobre a questão nacional, geralmente tratada em termos "dos critérios [...] intensamente debatidos pelos teóricos do século XIX, tais como etnicidade, língua comum, religião, território e lembranças histórias comuns" (HOBSBAWM, 1990, p. 33). Retomando Borges: "Devido à reação pós-abolicionista contra os afrobrasileiros, e porque a Antropologia européia classificou a África e os africanos no extremo do primitivismo, a ciência brasileira, explícita ou tacitamente, conduziu a repressão de expressões políticas e culturais afrobrasileiras. Isso resultou na pouca visibilidade da herança africana, que não fosse seu reconhecimento como um perigo" (BORGES, 1995, p. 60).

Uma forma de trazer à terra essas idéias e testar a pertinência da sua utilização para a análise de situações concretas pode ser o estudo das discussões que envolveram as obras e os monumentos que, em Curitiba, a partir de 1953, foram encomendadas por Rocha Netto, para a construção dos monumentos para as comemorações do Centenário da Emancipação Política do Paraná. As obras resultantes, criadas pelo escultor Erbo Stenzel, causaram uma polêmica que mostrou o quanto o assunto ainda estava longe de ser um ponto pacífico, tanto pelos aspectos estéticos, quanto pelas implicações ideológicas e raciais postas em jogo pelos monumentos.

III. MODERNISMO E TOTALITARISMO: ECOS NO PARANÁ DOS ANOS 1950

O que chamamos de modernismo, no Brasil, foi um amplo movimento intelectual de reconhecimento do hibridismo de sua formação étnica e o início das lutas para aceitar a contribuição dos componentes culturais e raciais que até pouco tempo eram relegados a papéis menores, ou francamente primitivos e inferiores, diante da cultura eurocêntrica vigente.

Essa movimentação, percebida principalmente a partir do fim da I Guerra Mundial, teve um momento de radicalização estética com a Semana de Arte Moderna de 1922, mas logo passou a perseguir uma formalização visual mais de acordo com os novos ares políticos, bastante polarizados naquele momento.

Essas soluções visuais, destinadas ao mesmo tempo a apresentar ares de modernidade e atualização artística e cumprir o papel social que as doutrinas políticas sugeriam, levaram a um conjunto de formulações estéticas, cujas características permaneceram influentes por muito tempo. Tais soluções chegaram mesmo a informar as celeumas que envolveram a construção das obras em homenagem ao Centenário da Emancipação política do Paraná, já em 1953.

A procura de uma imagem que fosse ao mesmo tempo uma imagem do "povo brasileiro", tivesse uma formalização "moderna" e fosse realista o suficiente para cumprir o papel político que se esperava delas estava inscrita em uma discussão mais ampla, que envolvia as disputas entre as grandes formulações ideológicas de massa do período.

Esse ambiente internacional ecoava, ao menos na teoria, na intelectualidade do Brasil de um modo fortemente polarizado, já que as práticas artísticas sempre ofereceram múltiplas interpretações aos preceitos doutrinários. Esses preceitos, fossem estéticos ou políticos, encontraram por aqui uma situação em que as discussões sobre nacionalidade e características do povo brasileiro já tinham, como vimos, uma tradição que remontava a meados do século XIX. Lílian Moritz Schwarcz, tratando desse século, lembra que a "década de [18]70 é entendida como um marco para a história das idéias do Brasil, uma vez que representa o momento de entrada de todo um novo ideário positivo-evolucionista em que os modelos raciais de análise cumprem um papel fundamental" (SCHWARCZ, 1993, p. 14). A partir daí, o conceito de "raça" foi composto de um modo que suas implicações políticas e sociais tornar-se-iam indissociáveis. Ser brasileiro era ser mestiço, o que possuía implicações muito pouco positivas ou promissoras – segundo uma interpretação evolucionista –, dependendo do ponto de vista político ou "científico" esposado pelos que buscavam a definição.

O termo "raça", introduzido na discussão científica especializada no começo do século XIX, abre uma nova frente nas discussões sobre nacionalidade e cidadania. Como lembra Schwarcz, tratava-se de uma investida contra os pressupostos igualitários das revoluções burguesas, cuja nova base intelectual concentrava-se na idéia de raça, que em tal contexto cada vez mais se aproximava da noção de povo. O discurso racial surgia como variante do debate sobre a cidadania, já que no interior desses novos modelos discorria-se mais sobre as determinações do grupo biológico do que sobre o arbítrio do indivíduo (idem, p. 47).

As interpretações sobre a formação do Brasil e do povo brasileiro misturavam, no século XIX, noções darwinistas e positivistas e versões ora otimistas ora apocalípticas, ecoando as teorias racistas do início do século na Europa, e aceitaram o transporte do conceito de raça, a partir da Biologia, para as querelas "de cunho político e cultural" (idem, p. 55). A autora assinala as conotações políticas dos modelos deterministas raciais, lembrando, porém, que "O modelo racial servia para explicar as diferenças e hierarquias, mas, feitos certos arranjos teóricos, não impedia pensar na viabilidade de uma nação mestiça" (idem, p. 65).

O filósofo Hyppolite Taine, para Schwarcz, "foi um dos responsáveis pela transformação que se operou na noção de raça no final do século XIX. O conceito era ampliado, já que, além de ser entendido como noção biológica, passava a equivaler à idéia de nação. Taine tornava o debate mais complexo ao introduzir um determinismo mais abrangente. Como afirmava o autor: "J'entends les nationalités, les climats et les tempéraments comme un doublet de race5 5 "Entendo as nacionalidades, os climas e os temperamentos como um equivalente da raça" (tradução livre do autor). " (Taine apud SCHWARCZ, 1993, p. 63).

O importante para nosso estudo é que Taine foi fundamental para o estabelecimento do pensamento crítico de alguns dos mais influentes pensadores da arte nos períodos modernista e pré-modernista brasileiros, como Félix Ferreira, Gonzaga-Duque e Monteiro Lobato, como indica Chiarelli em sua tese sobre Mário de Andrade. Para Chiarelli, "Dentro dos meandros da formação autodidata do crítico [i. e., Mário de Andrade], talvez os primeiros e principais conceitos no campo da teoria e da história da arte tenham sido retirados de suas leituras junto às obras do filósofo e historiador francês Hyppolite Taine" (CHIARELLI, 1995, p. 297).

Para Chiarelli, "Grosso modo pode-se resumir as bases da estética de Taine pelo seguinte axioma: a obra de arte é determinada pela raça e pelo meio onde vive o artista" (idem, p. 299). Para Taine, em um país liberto de qualquer dominação – a Holanda –, o homem "não mais subordina seu pensamento a um pensamento estrangeiro; o que procura e o que descobre é seu sentimento próprio; nele ousa confiar-se, segui-lo até o fim, não imitar, tudo tirar de si mesmo, inventar sem outro guia que as surdas preferências de seus sentidos e de seu coração. Suas forças íntimas, suas aptidões fundamentais, seus instintos primitivos e hereditários, solicitados e fortificados pela provação, continuam a atuar depois desta, e, após terem feito uma nação, fazem uma arte" (idem, p. 50).

Chiarelli encontra no livro de Angyone Costa, A inquietação das abelhas, de 1927, comprovação da espraiamento das discussões sobre a questão de uma arte nacional entre os artistas acadêmicos: "Essa obra, que reúne 31 entrevistas e depoimentos com artista e arquitetos ligados direta ou indiretamente à Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, demonstra como a questão do nacional atingia outros setores das artes no Brasil, não identificados com o modernismo. [...] Praticamente todos os entrevistados se posicionaram sobre o problema" (idem, p. 326). Continua o autor: "Outros, por sua vez, apontavam a necessidade dos artistas brasileiros se debruçarem no trabalho de estilização formal da flora e da fauna locais para a criação de uma arte decorativa autóctone – a base, para eles, de qualquer arte nacional" (idem, p. 327). Isso se vê na declaração de Henrique Cavalleiro: "Preocupam-se muitos, neste momento, com a formação de uma arte brasileira. Não é com a pintura, propriamente dita, que ela há de ser conseguida. Enquanto não cogitarmos seriamente da arte decorativa, base de toda a arte, não teremos arte brasileira. Fazer arte brasileira não é pintar ou esculpir motivos nacionais. É estilizar, é tirar da natureza pátria elementos de composição, que, lentamente embora, acabem por dar nascença a um tipo de arte própria e inconfundível.

À arquitetura, à pintura decorativa, à mobiliária, à cerâmica, e não à pintura propriamente, cabe a formação da arte brasileira" (Cavalleiro apud CHIARELLI, 1995, p. 327).

No Paraná, o escultor João Turin (1880-1949) parece ecoar essas idéias, pois em um texto intitulado A arte decorativa no Brasil – sem data mas com certeza escrito após sua volta ao país, em 1923, depois de 16 anos na Europa, e antes de 1930 – ele declara: "A arte decorativa que se possa chamar de arte brasileira não existe até agora no Brasil, tanto assim, que do Norte ao Sul, todos os artistas se reúnem sentindo a imperiosa necessidade de um esforço para combater as criações estrangeiras. [...] Todos os moldes ou modelos vêm prontos da Europa, é só aplicá-los.

Os nossos arquitetos e os nossos artistas nunca deram-se a pena de olharem para esta deslumbrante flora, a mais rica do mundo, onde existem elementos preciosos e suficientes para uma decoração genuinamente nossa e moderna. Entretanto até agora ela viveu esquecida e desprezada, na sua exuberante beleza, para dar lugar a ornamentos estrangeiros, que chegam deturpados dos modelos primitivos. [...] Não se compreende que um artista possa viver escravo das criações de outros povos e não aproveite a flora dessa terra fecunda, rica e bela.

De todos os estados do Brasil, o único é o Paraná que possui um início de arte decorativa indígena e para provar ali estão: o Salão Paranaense do Clube Curitibano, por ordem do senhor Ulysses Vieira e a fachada da casa do Dr. Leinig, os únicos que tiveram a audácia de aceitar a minha proposta de decorar com estilização, inspirando-me no gigantesco pinheiro. Apesar de essas decorações não serem mais que um esboço do que desejo executar, já está ali lançada a base de um estilo paranaense, que tem por base o arbusto gigantesco que simboliza esse solo maravilhoso onde nascemos" (TURIN, s/d).

Essas eram as discussões que informavam as disputas estéticas no início do século XX no Brasil e estavam na base do debate sobre a introdução no país das idéias "modernas" em arte e literatura. Os desdobramentos do modernismo no Brasil, depois da diminuição do barulho provocado pela vertente da Semana de 1922, parecem caminhar ao lado das tendências mais engajadas das formas artísticas européias, aqui envoltas na construção de uma temática ou imagery "brasileira". Mesmo artistas mais radicais do período vanguardista do modernismo, como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Lasar Segal, nunca demonstraram muito interesse na abstração e suas formas de figuração logo caíram em desuso pela corrente dominante da vanguarda brasileira dos anos 1930, cujo artista-símbolo foi Portinari.

Cândido Portinari, um artista de sólida formação acadêmica e que nunca abandonou as concepções da representação espacial tradicional, alinhou-se com a vanguarda artística brasileira da época pelo alinhamento às concepções estéticas defendidas pelo Partido Comunista. Sua interpretação de "realismo" e suas soluções formais para as demandas por uma arte entendida como meio de divulgação de idéias e pontos de vista políticos impressionaram fortemente grande parte da produção figurativa brasileira do período entre-guerras. Suas concepções, na verdade esquemas formais, buscaram no muralismo mexicano a maneira de apresentar uma figuração em que o "homem do povo" era construído em proporções heróicas, com uma morfologia diferente da das tipologias européias. Esses tipos humanos, com os membros aumentados pelo trabalho, eram principalmente a imagem do camponês mexicano e seus equivalentes brasileiros, com seus traços raciais indígenas ressaltados no caso dos mexicanos e, no Brasil, em Portinari e Di Cavalcanti, por exemplo, com características indígenas e africanas.

Em entrevista concedida em Paris a Plínio Salgado, o então jovem pintor ítalo-brasileiro Cândido Portinari "se posiciona francamente [...] naquela época em que se prepara para voltar ao país e assumir o papel que havia escolhido para si mesmo: '[...] Nós devemos no Brasil acabar com o orgulho de fazer uma arte para meia dúzia. O artista deve educar o povo mostrando-se acessível a esse público que tem medo da arte pela ignorância, pela ausência de uma informação artística que deve começar nos cursos primários. Os nossos artistas precisam deixar suas torres de marfim, devem exercer uma forte ação social, interessando-se pela educação do povo brasileiro. Todos os homens de espírito no Brasil vivem isoladamente sem sentimento de coletividade, por isso são eles os que têm menos força'" (Portinari apud CHIARELLI, 1995, p. 134-135; grifos no original).

Portinari posicionou-se em relação à influência estrangeira na arte brasileira: "[...] Devemos trancar as portas para a arte estrangeira. Nem a pintura do salão nem a da galeria Percier devem entrar de agora em diante no Brasil. A nossa natureza, o nosso povo estão cheios de surpresa. O nosso povo está se formando de todas as raças, tem todos os climas, aspectos bem nacionais, na angústia do seu crescimento, uma fisionomia moral e intelectual bem marcada; a arte deve traduzir essa inquietude, esse caráter de raça, o momento brasileiro na Humanidade".

Prosseguia, explicitando sua posição diante da vanguarda internacional que conhecera em Paris: "Abaixo a pintura do salon francês que os nossos acadêmicos fazem no Brasil; mas, tampouco, devemos aceitar as pinturas das galerias modernas de Paris, que os nossos vanguardistas lá fazem com a cabeça cheia de teorias e de pontos de vista" (ibidem)6 6 Esse nacionalismo exacerbado de Portinari fazia parte do clima artístico-cultural brasileiro da época, em que tanto o pintor quanto Mário de Andrade estavam mergulhados. . Sobre o tema brasileiro, ele mesmo um filho de italianos, declara: "O assunto brasileiro, por si mesmo, não vale; é preciso o espírito brasileiro. E como expressão de raça? O Brasil não é só o índio e o negro. Sobre a unidade de um sentimento comum, cada Estado do Brasil tem um tipo" (ibidem; grifos no original).

Essa tipologia era pensada como a construção de uma imagem do "povo" (latino-) americano, independente dos tipos físicos dos colonizadores europeus, embora derivasse principalmente das pinturas neoclássicas de Picasso, no seu período do Retorno à Ordem. Tal solução, embora bem-recebida pelos artistas e intelectuais de "vanguarda", isto é, ligados ao ou simpatizantes do Partido Comunista, nem sempre era bem-vinda nos setores em que tanto essa concepção de miscigenação racial quanto a ênfase na imagem do Brasil rural não eram exatamente bem-vistas.

Chiarelli mostra como Mário de Andrade "[...] parece ter enxergado que o viés realista usado por Cândido Portinari podia ser entendido igualmente como um índice de insubmissão ao poder instituído no Brasil na época da produção de seus trabalhos. Esta evidência deve ser percebida em dois níveis: em primeiro lugar, o realismo mais cru de algumas obras de Portinari se opunha à visão idealizada de Brasil que certos setores do governo Vargas, parece, desejavam implementar e que excluía, por exemplo, a representação de negros em obras de arte que fossem enviadas para o exterior. Mário de Andrade, não se identificando mais com aquele governo, parecia ver no franco realismo (sic) daquela faceta da obra portinariana um protesto contra preconceitos e mais uma afirmação do homem brasileiro em sua verdade. O realismo preocupado com a paisagem humana brasileira de Portinari, portanto, cumpria criticamente a função de tornar visível finalmente no imaginário local, o homem oriundo das camadas sociais marginalizadas"7 7 Foi o próprio Mário de Andrade quem deu notícias desse preconceito racial na diplomacia do governo Vargas: "[...] Muito mais fecundos serão porventura estes desprezos internacionais, não pelo Brasil, mas por uma orientação completamente ignara, que chega a recusar para exposições no estrangeiro quadros que representem negros. Porque isto rebaixa lá fora o Brasil! Palavra de honra que isto chega a ser mot d'ordre ["palavra de ordem"] diplomático" (Andrade apud CHIARELLI, 1995, p. 301). .

É sempre bom lembrar que a idéia de uma política oficial de branqueamento da raça ainda estava fresca na memória, senão na formação, de muitos dos personagens participantes desses eventos. Afinal, ainda em 1911, o Diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista Lacerda, participou como convidado do I Congresso Internacional das Raças, com a tese Sur les métis au Brèsil, cuja mensagem era "clara e direta: 'o Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução'" (SCHWARCZ, 1993, p. 11).

Porém, a incorporação da população estrangeira à convivência com os lusobrasileiros não se daria tão facilmente. Mesmo as relações com os imigrantes europeus, isto é, brancos, não era uma coisa fácil nem "natural", pois, ainda na década de 1910, o crítico e poeta paranaense Nestor Victor escrevia sobre os imigrantes italianos em Curitiba: "parece que mesmo o cheiro flagrante que os toldos das carroças tinham, e no próprio fartum que exalavam aqueles corpos, em tudo sentíamos a nossa falta de comunidade com eles" (Victor apud TRINDADE & ANDREAZZA, 2001, p. 57).

Por outro lado, o mesmo Nestor Victor, que "elogiou tanto a figura do caboclo, envolvendo-se em um debate com Monteiro Lobato e seu Jeca Tatu, defendia também a possibilidade de civilizar o negro pela miscigenação, embora tal processo ainda fosse lento" (Victor apud PEREIRA, 2002, p. 88). Em 1905, escrevia ele: "Para mim, a razão principal (do estágio atual de desenvolvimento brasileiro) está no grau de evolução em que se achavam as raças do africano e do aborígine, que se incorporaram, em grande proporção, à massa que constitui a nossa população atual. Eu não sou dos que negam a capacidade de progresso nessas raças, tidas hoje, em geral, como absolutamente inferiores; mas não reconhecer a lentidão com que elas caminham em comparação com as raças, é negar a própria evidência, parece" (ibidem).

O "mais novo" estado do Brasil trata de edificar características culturais próprias em relação aos outros estados. Com a consolidação da imigração, essas características passaram a ser utilizadas para identificar os lusobrasileiros com os estrangeiros imigrantes. Martius, no seu projeto sobre como se deveria escrever a História do Brasil, vencedor de concurso do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, em 1844, "propunha histórias 'regionais', narrativas que deviam ser tratadas conjuntamente aquelas porções do país que, por analogia da sua natureza física, pertencem umas às outras" (Martius apud NADALIN, 2001, p. 37; grifos no original). "[...] Essas diretrizes forma aprofundadas mais tarde por João Ribeiro, que indicou quatro (cinco se incluído o Maranhão/Pará) 'células fundamentais'. Estes seriam: 1. Pernambuco. 2. Bahia. 3. São Paulo. 4. Rio de Janeiro e 5. Maranhão ou Pará" (Ribeiro apud NADALIN, 2001, p. 37).

Talvez não se reconhecendo nesse esquema da construção da história do país, o historiador paranaense Brasil Pinheiro Machado, que escrevia uma coluna chamada Instantâneos Paranaen-ses, no jornal A Ordem, do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1930 declarou: "[...] O Paraná é um Estado sem relevo humano. Em toda a história do Paraná nada houve que realmente impressionasse a nacionalidade. Nenhum movimento com sentido consciente mais ou menos profundo. Nenhum homem de Estado. Nenhum sertanista. Nenhum intelectual. Nem ao menos um homem de letras, que saindo dele, representasse o Brasil, como o Maranhão teve Gonçalves Dias, a Bahia Castro Alves, o Ceará José de Alencar e Minas Gerais Affonso Arinos etc. A história e a geografia não tiveram forças bastantes para afirmarem o estado do Paraná. Ela se resumiu na conquista anônima da terra e na colonização (iniciativa de fora) sobre a selvageria, a semi-civilização ou o deserto. E depois da época dos bandeirantes ela dormiu até a imigração estrangeira. O aspecto geográfico, de pleno acordo com a história, é formado de trechos de toda a configuração do Sul do Brasil" (Machado apud PEREIRA, 2002, p. 9).

O futuro Governador do Paraná entre 1951-1955, Bento Munhoz da Rocha Netto – filho de Caetano Munhoz da Rocha, que governou o estado entre 1920 e 1924 e 1924 e 1928 –, provavelmente respondendo ao artigo de Brasil Pinheiro Machado, escreveu no Diário da Tarde, de Curitiba, em 4 de abril de 1930: "É verdade que somos ainda muito novos [...] Mas hoje não somos mais nem filhos de São Paulo. Somos nós mesmos [...] estamos criando em aspectos característicos, um pedaço da civilização brasileira. Não temos o tipo etnicamente definido do paranaense. Como não existe o tipo racial brasileiro. Mas vai aí, uma grande diferença. Fundem-se no Paraná, subordinados ao elemento disciplinador do nosso poder de adaptar, quase todas as raças européias. [...] É inteiramente falso que não tenhamos uma 'natureza característica'. Aí está o pinheiro. Ergue-se raquítico, tímido, hesitante, quando as terras paulistas se nos avizinham. Estende-se largamente pela faixa catarinense até rarear e extinguir-se no território gaúcho. Mas ao pinheiro grande, nobre e altivo é o nosso pinheiro. Grande e nobre como o paranaense que agasalha o forasteiro com todo o seu carinho, dá-lhe o melhor que tem [...] O pinheiro ereto e dominador simboliza o Paraná" (Rocha Netto apud PEREIRA, 2002, p. 26).

Esse cenário complexo de disputas estéticas e ideológicas, polarizado apenas na aparência, não se tornava mais claro no âmbito das estruturas de poder governamental. Como sabemos, o governo de Getúlio Vargas, com suas notórias simpatias fascistas, estabeleceu, com seu Ministro da Educação, Gustavo Capanema, uma política de atração de intelectuais de todo o espectro ideológico brasileiro, tendo inclusive absorvido o próprio Mario de Andrade, que trabalhou no Patrimônio Histórico do então Distrito Federal.

Na verdade, o período Vargas operou em plena efervescência das discussões nacionalistas, em que, segundo Hobsbawm, "Os Estados e regimes tinham todas as razões para reforçar, se pudessem, o patriotismo estatal com os sentimentos e símbolos da comunidade imaginária, onde e como eles se originassem, e concentrá-los em si mesmos. Tal como aconteceu, o tempo em que a democratização da política tornou essencial 'educar nossos mestres', 'fazer italianos', 'transformar camponeses em franceses' e fazer com que todos se ligassem a uma bandeira e a uma nação, foi também o tempo em que os sentimentos nacionalistas populares, de todos os modos xenófobos, se tornaram mais fáceis de ser mobilizados, junto com a superioridade nacional pregada pela nova pseudo-ciência do racismo. Pois o período que vai de 1880 a 1914 foi também o período das maiores migrações de massa já conhecidas, dentro dos Estados e entre eles, e o período do imperialismo e de rivalidades internacionais crescentes que terminaram na guerra mundial. Tudo isso enfatizava a diferença entre 'eles' e 'nós'" (HOBSBAWM, 1990, p. 112).

Vimos que o período entre-guerras no Brasil foi marcado pela discussão sobre as formas "nacionais" de fazer artístico. Essas formas, além de não serem consenso entre os artistas, nem sempre eram também do interesse dos poderes estabelecidos, desejosos de apresentar uma imagem nacional cada vez mais industrializada e urbana do Brasil, afastando-se das conotações mestiças e rurais.

As formas monumentais e grandiosas da arquitetura e das obras de arte oficiais definidas desde o Estado Novo pediam uma imagery heróica, de acordo com a imagem de poder – e do povo – desejada pelos governantes. Esse era o ambiente em que o governador Bento Munhoz da Rocha Netto, já nos anos 1950, espelhando-se em Juscelino Kubitschek, que remodelara Belo Horizonte em 1944, idealizou as obras de modernização da capital do Paraná; esse era o ambiente artístico que contextualizava os debates e informava os arquitetos e artistas que criavam as obras encomendadas pelos governantes.

Se abrirmos um parêntese em nossa discussão e pensarmos na idéia da cidade, especificamente da capital, vista como o centro do poder real e simbólico, poderemos ter uma idéia mais clara do significado dessas obras de modernização e da importância dos monumentos escolhidos para os pontos nevrálgicos das cidades, suas praças. Veremos a seguir como se deu essa crescente concentração física e simbólica, a partir das fronteiras nacionais recentemente definidas para suas capitais, condensando-se nas praças e finalmente em seus monumentos, tão cuidadosamente escolhidos.

IV. O LUGAR DO PODER: A RETÓRICA E A CIDADE

O historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan apresenta em seu livro L'âge barroque (ARGAN, 1994) uma sugestiva discussão sobre o surgimento as capitais nacionais, no início do movimento que deu origem aos modernos estados nacionais europeus, situado por ele a partir do século XVII, traçando uma associação com os objetivos e procedimentos da Retórica.

Argan observa como a orientação compositiva da pintura barroca segue formas e regras literárias, como as da tragédia clássica, em que as partes (prólogo, episódio, êxodo) correspondiam ao plano de composição das pinturas. Basicamente com assuntos históricos e religiosos, essas obras eram sempre encomendadas pelos poderosos mecenas, que buscavam, além da manifestação pública de seu status, o acúmulo de obras que perpetuassem a imagem de autoridade dos patronos, igualando-os aos heróis míticos da Antigüidade. Igualmente para Argan, a construção das cidades e monumentos seguia as formas literárias clássicas, mas, no contexto do estabelecimento de um poder geográfico central, a estrutura buscada foi a da Retórica: "A Retórica é um tratado da arte de persuadir, do discurso, mas, como o especifica Aristóteles, do discurso tido no Areópago, do discurso político. [...] O meio onde mais naturalmente a Retórica desempenha um papel é a polis, com suas assembléias, suas instâncias políticas e jurídicas" (idem, p. 28).

Vemos então que o ambiente adequado estava posto e que a inspiração na autoridade das formas clássicas da transmissão das narrativas heróicas e grandiosas do passado servia, pela analogia com a estrutura do seu enunciado, à confirmação da autoridade do governante. Este buscava, no manejo da estrutura da cidade, a materialização de sua forma de poder central que, devido à sua monumentalidade e à sua distribuição espacial, apresentasse ao habitante ou ao visitante a grandeza e a presença indiscutível de seu poder.

Com o desenvolvimento dos estados nacionais, a concentração de poderes políticos e econômicos acabou determinando, na visão de Argan, a supremacia política de uma cidade que centralizava a administração, tornando-se o foco irradiador das decisões e da autoridade do Estado. A capital define desse modo seu papel simbólico de representação: "ela tende assim a perder seu caráter municipal, seja na estrutura social, seja na planificação de seu urbanismo. [...] Ela não é mais uma cidade fechada em um cinturão de muralhas, mas um organismo aberto. Um cruzamento de vias de comunicação. Além disso, as transformações internas da capital não se produzem mais sob a iniciativa dos cidadãos ou da municipalidade, mas pela autoridade política; a vontade do soberano e de sua burocracia fazem da capital a imagem do Estado e o aparelho de seu poder" (ibidem; sem grifos no original). Desse modo, o manejo da cidade deixa de ser o resultado das necessidades de seus habitantes, mas resulta do "desejo de impor-se pela grandeza de seus monumentos como um espetáculo aos estrangeiros que a visitam" (idem, p. 31).

Os novos estados-nação, consolidados basicamente a partir do século XIX, dispunham de uma administração que necessitava do contato direto e sem intermediários com a população. Encontramos em Nações e nacionalismo, de Hobsbawm, auxílio para entendermos esse processo de concentração e disputas em torno das idéias de nacionalidade e de como o poder passou a concentrar-se nas cidades-sedes do Estado constituído: nos "Estados que contavam com uma alternativa civil para as celebrações eclesiásticas dos grandes ritos humanos, e a maioria deles dispunha dessa alternativa, os habitantes podiam encontrar os representantes do Estado nessas ocasiões emocionalmente intensas" (HOBSBAWM, 1990, p. 102). Isso levava as atenções a dirigirem-se rápida e crescentemente para a cidade-sede, o centro nacional. Essa mesma concentração administrativa, política e simbólica, em torno das sedes do poder, foi retomada, concentricamente, na centralidade das suas praças e monumentos.

A idéia mesma de capital é a representação do que Mumford, citado por Argan, chama de "a ideologia do poder". A rua e a praça tornam-se as novas "unidades típicas" da arquitetura (ARGAN, 1994, p. 32). O processo de planejamento urbano busca a racionalidade, a uniformidade salpicada por monumentos que pontuam os traçados viários, constituindo-se em novos núcleos simbólicos da autoridade, ecoando a posição central da cidade.

IV.1. O monumento

"Unidade plástica ou arquitetônica, o monumento representa a autoridade e os valores que ele é chamado a traduzir em sua retórica. Não se pode concebê-lo sem o associar à idéia de cidade-capital, não mais que não se pode pensar nesta última sem evocar o estado absoluto. O monumento constitui um núcleo de grande prestígio no conjunto da cidade e ele se situa geralmente no centro de uma zona aberta que está disposta de maneira a lhe colocar em evidência" (ARGAN, 1994, p. 41).

A idéia de que um monumento deve exprimir os valores ideológicos é de origem clássica e remonta, segundo Argan, ao século XVI, sendo a basílica de São Pedro, em Roma, para o autor, o exemplo fundador (ibidem).

Camillo Sitte, talvez um dos inauguradores das reflexões sobre o Urbanismo, um conceito novo no início do século XX, lembra que o Fórum Romano era pensado e construído em termos de um espaço fechado com o centro deixado vazio. Ali, a população ocupava o centro, "como um tipo de salão de festas; da mesma maneira, aqui também os monumentos não são dispostos no centro da praça, mas ao longo de sua borda. [...] O exemplo mais perfeito desse modelo é a Acrópole de Atenas. [...] Com efeito, este é o ponto central de uma cidade de grande importância, a materialização da visão de mundo de um grande povo" (SITTE, 1992, p. 35). O autor chama a atenção para o fato de que, "No Fórum Romano, a preservação do centro livre é de uma evidência quase tangível. [...] Mesmo em Vitrúvio podemos ler que o centro da praça não concernia às estátuas, mas sim aos gladiadores" (ibidem). Finalizando em um tom desiludido, o autor lembra que, "quanto mais nos aproximamos de nosso tempo, mais freqüente torna-se a disposição de monumentos no centro da praça" (ibidem).

Na realidade concreta da cidade moderna, ao contrário da ágora grega, o monumento articula a regularidade do traçado urbano como as pausas abertas na malha viária, onde as figuras escolhidas pelo governante ocupam o lugar central. Essas figuras, afastadas de formulações simbólicas eruditas, desempenham agora uma função alegórica, com seu significado compartilhado pela população, pois está baseado na história da própria cidade. "O monumento em seu alegorismo concilia a autoridade e a persuasão: como forma plástica que tende a revelar a universalidade de um valor ideal; como forma alegórica que não esboça somente mas explica o tema ideológico; como forma urbana que abre, desenvolve e articula o monumento 'sagrado' no espaço da cidade 'sagrada'" (ARGAN, 1994, p. 42).

Assim, Argan mostra como o monumento, ao constituir-se em manifestação dos valores da autoridade, constitui-se do mesmo modo em seu fundamento; longe de ser a base da arquitetura de prédios e sedes individuais do poder, permeia a racionalidade mesma que desenha a própria cidade. Esta, para ele, é em si mesma, em seu traçado, uma estrutura monumental. Então, vemos, com a ajuda de Argan, que o caráter fundamental do monumento reside na sua função de representação e que ele tem sempre um conteúdo ou um significado ideológico. "Destinado a representar a estabilidade de certos valores ideais, ele funda-se sobre o princípio da autoridade e sobre a história" (idem, p. 45).

Essa discussão sobre as ligações entre o planejamento da cidade, visto como estratégia do poder de construir uma representação espacial exemplar de seus valores, é apoiada pelas idéias de David Freedberg (1994) em seu livro The Power of the Images. Studies in the History and Theory of Response, sobre as funções que uma imagem poderia ter. Para ele, "Através dos tempos foi sendo construída uma 'total assunção da efetividade das imagens' – ao ponto de que elas têm o potencial de afetar mesmo (ou talvez especialmente) os mais jovens dos espectadores e afetá-los não apenas emocionalmente, mas de maneiras que têm conseqüências comportamentais de longa duração" (idem, p. 4).

Essa longa digressão sobre a construção da imagem da cidade e seus monumentos como a construção da imagem desejada pelo poder pretende auxiliar nosso entendimento dos modos como as relações entre o ambiente intelectual, político e ideológico informam a concepção dos monumentos que estudamos neste artigo. A tendência de aceitar-se o caráter exemplar, ou "educativo", das imagens deve estar presente ao pensarmos o papel que as idéias dos governantes, sobre os projetos dos monumentos que encomendam, desempenham no diálogo com as formas de representação escolhidas pelos artistas. Tais idéias e formas fazem parte de um repertório que, como vimos, está associado a um contexto de disputas em que a estética e a ideologia misturam-se.

V. STENZEL E COZZO

Erbo Stenzel, filho de imigrantes austríacos e alemães, nasceu em Curitiba em 17 de dezembro de 1911 e morreu na mesma cidade em 1980. Estudou com Frederico Lange de Morretes, que tinha sido aluno de Andersen e fazia parte do grupo Paranista assim como Turin, e por influência do último passa a dedicar-se à escultura. Em 1939, com a ajuda de amigos que iniciaram uma movimentação na imprensa, Stenzel ganhou uma bolsa de estudos na Escola Nacional de Belas Artes, onde estudou com outro paranista, Zaco Paraná, permanecendo no Rio por 11 anos. Lá participou de várias edições do Salão Nacional e conviveu com artistas, entre os quais Humberto Cozzo, com quem trabalharia no projeto do Monumento ao Centenário do Paraná.

Com a morte de Turin, em 1949, foi chamado a retornar ao Paraná para terminar várias obras que o escultor deixara inacabadas. Voltou definitivamente a Curitiba em 1950, para assumir a cadeira de Anatomia Artística da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, embora no final seu registro e salário no estado tenham-se mantido para Inspetor de Alunos do Colégio Estadual do Paraná. Da mesma forma, com a morte de Turin, o Diretor do Departamento de Cultura, Fernando Correa de Azevedo, também primeiro Diretor da Escola de Música e Belas Artes, enviou um ofício ao Secretário de Educação e Cultura do Paraná, solicitando o tombamento do ateliê de Turin e a vinda de Erbo Stenzel ao Paraná, "para que fosse nomeado para um lugar onde pudesse auferir um vencimento razoável" e "um cargo efetivo no Estado, ficando, no entanto, à disposição da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, para que, além de reger as cadeiras de Modelagem e Escultura, disponha de tempo para a produção artística" (Azevedo apud DEPARTAMENTO DE CULTURA: JOÃO TURIN, 1949).

Stenzel foi o autor do projeto da Praça 19 de Dezembro, concebida como parte das comemorações do Centenário da Emancipação Política do Paraná. Embora autor do projeto vencedor do concurso para a construção do conjunto dos monumentos, os desenhos e idéias originais foram realizados a partir de fortes sugestões do governador Bento Munhoz da Rocha Netto. Stenzel entrou em contato com Humberto Cozzo, escultor atuando no Rio de Janeiro, para a finalização do projeto e a execução das obras escultóricas, que incluíam a estátua de um adolescente de punhos cerrados dando um passo à frente, simbolizando o Paraná saindo à frente dos outros estados do Brasil. Também faziam parte do conjunto um obelisco com o brasão do estado e um painel em baixo relevo com uma descrição da história do Paraná de um lado e um painel em cerâmica encomendado ao jovem Poty Lazarotto, de outro.

Uma curiosidade, que provavelmente ficará sem resposta, foi levantada pela historiadora Vera Vianna Baptista, ao perceber uma notável semelhança entre a maquete de Stenzel e uma feita por Brecheret, em 1944, para uma obra encomendada por Juscelino Kubitschek, então Prefeito de Belo Horizonte e que não chegou a ser executada. A maquete foi mostrada por ocasião de um encontro de arte e arquitetura modernas, patrocinada pela Prefeitura de Belo Horizonte, em que, entre outros, expôs Poty Lazarotto. Amigo e colaborador de Stenzel no mural da Praça 19 de Dezembro, Lazarotto, assim como Stenzel, residia no Rio de Janeiro à época da exposição. O jovem artista deu notícias, em 1946, sobre a visão cosmopolita de Juscelino Kubitschek em matérias para a revista Joaquim, de que também eram colaboradores vários intelectuais do círculo de Bento Munhoz da Rocha. Provavelmente nunca saberemos se um dos artistas realmente viu a maquete, cuja foto constava do catálogo da exposição, ou se ela chegou ao conhecimento do Governador Bento Munhoz da Rocha, que, segundo Cassiana Lacerda (cf. LACERDA, 2003a; 2003b; 2003c), propôs ao escultor os motivos do conjunto de monumentos.

Em uma carta a Stenzel, datada de 28 de março de 1953, atualmente nos arquivos da Casa Erbo Stenzel, em Curitiba, Cozzo acusou o recebimento de carta do paranaense, dando conta da conversa com o historiador Lourenço Fernandes, que lhe passou as informações sobre a história do Paraná que deveriam constar dos painéis em baixo-relevo e de azulejos. Cozzo comunicou que já modelara um estudo da figura com 50 cm de altura, o que confirmou seu envolvimento anterior com o projeto, tendo já concluído os orçamentos de corte e transporte do granito de pedreiras de Petrópolis, e informou que "seguirá na próxima segunda–feira para Curitiba", onde o contrato para a execução das obras foi assinado em 7 de abril de 1953. O escultor carioca continuou: "espero que tenhas feito algum croquis para o baixo-relevo. Em todo o caso vou ver se entre hoje e amanhã, me é possível fazer também alguns 'croquis' respeitando as indicações que me enviastes na carta, assim poderemos compará-los e discutirmos o definitivo. [...] Creio que gostarás do estudo que fiz da figura, pois ficou bem imponente e monumental e agradou aqui a todos" (COZZO, 1953a). Poderíamos inferir daí que o escultor carioca trabalhava a partir de informações escritas, enviadas por Stenzel?

Na mesma carta, Cozzo revela sua personalidade e o grau de envolvimento no projeto, ao relativizar a importância do convite, feito por Stenzel, a Poty para a execução do painel em azulejos. Declara achar "prematuro ainda" o convite, dizendo já ter "um plano para o painel de mosaico", o que talvez tenha sido o motivo das reticências. Em um adendo apressado ao final da carta, Cozzo acusa o recebimento dos croquis do baixo relevo, declarando que "gostei da idéia geral", mas que, "no desenvolvimento geral, devemos entretanto tirar um pouco o caráter pictórico, tornando-o mais escultural, imprimindo mais vigor às figuras, com caráter mais moderno" (ibidem).

Em carta de 18 de abril de 1953, Cozzo dá mais uma pista da intensidade de seu envolvimento com o projeto ao afirmar: "Com respeito à colocação do monumento na praça, aguardo os desenhos e a planta da mesma para estudar o assunto com vagar" (COZZO, 1953b). Mais adiante cobra: "Não me mandaste nada sobre o estudo do baixo-relevo; espero que já o tenhas iniciado. Eu já tenho a estátua toda esboçada e espero em poucos dias terminá-la" (ibidem). Em carta de 24 do mesmo mês, pede: "Quando fores ao Centro Cívico peço-te o favor de ver em que situação está a parede, onde farei o baixo-relevo" (COZZO, 1953c; sem grifo no original). Uma presença tão marcante parece ter feito o paranaense pensar em desistir de sua parte do projeto, pois, em 30 de abril, Cozzo escreveu novamente, respondendo a uma carta de 28 do mesmo mês: "Conversaremos também sobre tua desistência. Havemos de, como bons amigos, solucionar o assunto" (COZZO, 1953d). Mas continua, sempre profissional e condescendente: "Não interrompas porém a modelagem do baixo-relevo. Esboça o todo, que eu te ajudarei a terminá-lo" (ibidem).

Não há informação sobre qualquer eventual simpatia política por parte de Cozzo, apesar da desenvoltura com que circulava nas concorrências para obras oficiais. Percebe-se porém uma adesão a um padrão de visualidade corrente, composto de figuras de proporções grandiosas e com traços simplificados, como os que encontramos nos monumentos de Brecheret.

Já Stenzel, como muitos descendentes de alemães do período, fazia parte de um ambiente com franca simpatia pelas idéias nacional-socialistas, fato comum no período em que os imigrantes, saídos de um país em ruínas, sofrendo discriminações por suas características culturais, vislumbram a sedutora possibilidade de poder voltar a fazer parte do que lhes era apresentado como uma Grande Alemanha. Conhece-se uma efígie de Plínio Salgado, em bronze e datada de 1935, executada por Stenzel, atualmente sob a guarda do Museu Oscar Niemeyer, assim como se têm notícias, por meio de declarações de seu irmão, Nestor Stenzel, à pesquisadora de Stenzel, Didonet Thomaz, de que Erbo teria modelado uma cabeça de Adolf Hitler, que teria enterrado após a II Guerra Mundial no quintal de sua casa, temendo represálias (STENZEL, 1995). Após a sua morte, sua biblioteca guardava uma coleção de livros relativos ao regime hitlerista, além de várias peças, como medalhas e adereços nazistas, embora não se possa afirmar, baseado apenas nessas posses, que o regime realmente contasse com as simpatias do escultor. Essa parte de seu acervo está na sua maioria perdida, vendida por familiares a sebos de Curitiba, segundo Thomaz e o proprietário do sebo curitibano Fígaro, Paulo José da Costa, declaram em entrevista (ibidem; COSTA, 2006).

O que interessa para o nosso estudo não é atribuir qualquer pretensa afinidade política de Stenzel com o regime hitlerista, mas definir o universo conceitual que informava sua visão de mundo. A estética defendida pelos partidos europeus, ecoando no Brasil durante a primeira metade do século XX, está, como vimos, na base de muitas das produções artísticas de grande porte, notadamente as encomendas públicas. As obras destinadas às coleções privadas contavam, por sua própria natureza, com uma filiação estética diversa, pois, como vimos, eram outros os seus objetivos.

É necessário também cautela na ligação automática entre as simpatias políticas de um artista e sua obra, pois esta, além de ter o componente muitas vezes incontornável da vontade do patrono ou do cliente, recebe também o impacto das experiências pessoais, irredutíveis às cartilhas ideológicas. Exemplo disso é a sua escultura Água pro morro, hoje instalada na Praça José Borges de Macedo, atrás do antigo prédio do Paço Municipal, depois sede do Museu Paranaense, em que, sob assunto aparentemente popular, quase folclórico, esconde-se uma interessante história amorosa.

O modelo da escultura foi Anita Cardoso Neves, que posava na Escola Nacional de Belas Artes, a quem Erbo conheceu quando estudava no Rio de Janeiro e com quem manteve um caso amoroso que não terminou, com seu retorno para Curitiba. Anita manteve uma correspondência de notável conteúdo passional, hoje de posse de Didonet Thomaz, em que se percebe a forte relação, com o registro do envio de quantias em dinheiro para ela, o que pode indicar uma relação que rendeu desdobramentos. O fato de Stenzel não a trazer com ele em seu retorno a Curitiba pode indicar inclusive a previsão pelo escultor de dificuldades de relacionamento da modelo, negra e pobre, com sua família.

A escultura apresenta traços muito mais realistas que os encontrados na obra da Praça 19 de Dezembro, em que se vê claramente a forte presença do olhar de Cozzo e um toque mais pessoal, resultando em um forte apelo sensual, que poderia parecer inexplicável, dado o assunto da obra, sem o conhecimento da sua história.

VI. MORALISMO COMO CRÍTICA IDEOLÓGICA VELADA: A RECEPÇÃO DO HOMEM NU

"As pessoas são sexualmente estimuladas por pinturas e esculturas; elas destroem pinturas e esculturas; elas as mutilam, beijam-nas, choram diante delas, e viajam até elas; Elas são acalmadas por elas, perturbadas por elas, e incitadas à revolta. Elas agradecem por meio delas, esperam ser elevados por elas, e são alçadas aos mais altos níveis de empatia e medo" (FREEDBERG, 1991, p. 1).

Para Francis Haskell, a utilização de uma obra de arte ou monumento como fonte histórica implica que, "antes que o historiador possa tentar fazer uso válido de uma fonte visual, conquanto condescendente, conquanto simples, ele tem que saber para o que ele está olhando, se aquilo é autêntico, quando e para qual objetivo ele foi feito e mesmo se ele pretendeu ser considerado belo" (HASKELL, 1993, p. 2). Mas, mesmo ao considerarmos o contexto e as características artísticas, ou as questões estéticas envolvidas na apreciação de uma obra ou monumento como fonte de informação histórica, não poderemos nunca esquecer que "tais imagens freqüentemente têm sido criadas para servir a esse próprio objetivo e têm sobrevivido (ou, às vezes, têm sido destruídas) justamente devido a isso. [...] [Pois] a recusa a reconhecer esta memória e esta contingência pode realmente diminuir a intensidade de nossa percepção" (idem, p. 3).

O reverso da moeda pode ser o fato de que muitas vezes o estudo contextualizado de uma imagem pode abrir a possibilidade de interpretações opostas às que nortearam sua construção ou encomenda – daí o cuidado para manter-se certo saudável ceticismo.

A Praça 19 de Dezembro foi inaugurada em 1953, com a presença do Presidente Getúlio Vargas e do Governador Bento Munhoz da Rocha Netto, entre outras autoridades; todavia, apenas o obelisco fora concluído a tempo para as festividades. A escultura do homem e o painel foram entregues apenas em 1955, sofrendo forte oposição estética e "filosófica" de várias camadas da população. O jornal O Dia publicava a coluna Tópicos da cidade, que, com títulos sensacionalistas, apresentava declarações de "autoridades" e intelectuais, unidos na condenação do "monstro de granito", do "Taradão" ou da "obcenidade". Aqui percebemos ecos do que Borges chamara de "temas centrais da prévia geração positivista 'Belle Époque' de 1898-1914, temas que foram amalgamados de um modo complexo em sua categoria global de 'raça'" (BORGES, 1995, p. 60).

Extremamente importante para nosso estudo da recepção da obra por parte da população de Curitiba – embora deva-se ressaltar que O Dia era um jornal de oposição – é a declaração de um autor, que assinava Ariel e que, certamente ecoando opiniões autorizadas, afirma a "má sorte do pobre MONSTRO de granito, que aliás não é culpado da absurdidade daquela interpretação inchada e atarracada da esbelteza apolínea da mocidade do Paraná!" (ARIEL, 1955a; 1955b).

Em tais declarações podemos perceber o componente racial das declarações críticas, mas, se tomarmos em consideração a cultura visual em que a escultura inscrevia-se, ela também poderia indicar a negação das características estéticas, que, por sua vez, traziam em seu bojo toda uma concepção política que estava longe de agradar aos envolvidos no debate "artístico". Não podemos esquecer que o tipo de figuração difundido por Portinari, notoriamente associado ao Partido Comunista, ou a monumentalidade das figuras de Brecheret, que traziam características anatômicas semelhantes às criticadas na representação do homem paranaense, eram correntes desde, pelo menos, a década de 1940.

Foi provavelmente o historiador David Carneiro, um conhecido positivista, quem esteve por trás dessas opiniões, pois, em uma reportagem assinada por Jofre E. Gineste, em O Estado do Paraná de 10 de julho de 1955, em que os depoentes são identificados, lemos que "o matutino da praça Carlos Gomes, provavelmente por razões políticas, vem realizando acérrima campanha contra aquilo que ele chama de 'o monstro', estátua da praça Dezenove de Dezembro" (GINESTE, 1955). Nela o jornal publica a opinião do historiador: "Aquilo não representa coisa nenhuma. Não tem expressão. Não significa coisa alguma, e muito menos o adolescente, ou o homem deste Paraná dolicocéfalo, loiro e belo. Um simples bloco de granito nos representaria melhor" (ibidem).

Ecoando nas palavras do positivista Carneiro, vemos em plena década de 1950 alguns assuntos que estiveram na ordem do dia das discussões sobre nacionalidade e raça brasileira na virada do século XIX para o XX, quando um expressivo número de intelectuais brasileiros convergiu para os pontos de vista do positivismo de Augusto Comte. Nos estertores da monarquia travou-se uma verdadeira guerra simbólica "em torno da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos. [Pois] A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime político. [...] É nele que as sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro" (CARVALHO, 1990, p. 10).

José Murilo de Carvalho escreve sobre a construção de símbolos com finalidade política, mas adverte que "sua aceitação, sua eficácia política, vai depender da existência daquilo que Baczko chamou de comunidade de imaginação, ou comunidade de sentido. Inexistindo esse terreno comum, [...] a relação de significado não se estabelece e o símbolo cai no vazio, se não no ridículo" (idem, p. 13-14).

O grupo positivista conseguiu impor sua visão dos fatos em vários monumentos republicanos, "salientando-se os dedicados a Benjamin Constant, localizado na Praça da República, no Rio de Janeiro; a Floriano Peixoto, na Cinelândia, também no Rio" – o último inaugurado em 1910, mas cujo edital, de acordo com José Murilo de Carvalho, data de 1901. "O culto cívico, no caso brasileiro, segundo a orientação do Apostolado Positivista, incluía, além da Bandeira republicana, desenhada por Décio Villares, as figuras de Tiradentes, José Bonifácio e Benjamin Constant" (idem, p. 45).

Em Curitiba, na praça que leva o nome do herói da Inconfidência, temos as estátuas de Benjamin Constant, Monumento à República, instalada em 13 de outubro de 1933, e a de Tiradentes, colocada em 21 de abril de 1927 (LACERDA, 1998, p. 32-40); a primeira foi concebida por David Carneiro na mesma linha do Monumento a Benjamin Constant, executado por Décio Villares no Rio de Janeiro, e a última, um "presente da colônia italiana a Curitiba às comemorações do centenário da Independência", conforme consta da placa da estátua. Ambas foram realizadas por João Turim, que executara o gesso para o Tiradentes ainda em sua estada em Paris, alguns anos antes. Elas convivem com a já existente estátua do Marechal Floriano Peixoto, inimigo político dos positivistas nas lutas pelo estabelecimento do poder simbólico no início da República, mas reconhecido por David Carneiro como seu "consolidador". Com essa obra, "os paranaenses prestaram sua homenagem ao ditador republicano Marechal Floriano Peixoto, nas comemorações da emancipação política do estado a 19 de dezembro de 1904, inaugurando a primeira estátua de Curitiba que, de uma forma significativamente simbólica dominava a principal praça da cidade" (PEREIRA, 2002, p. 143; sem grifos no original). Podemos inferir, a partir da simples cronologia das escolhas, as tendências dominantes na política paranaense do período.

Como vimos, o ideário positivista foi um forte influência na base das construções das imagens visuais e teóricas da nação no final da monarquia e início da república; além disso, "um denominador comum da indagação intelectual na geração positivista latino-americana foi um estilo biomédico" (BORGES, 1995, p. 60). Desse modo, articulam-se representações das formas de governo e imagens do povo altamente idealizadas, de que o homem comum não fazia parte. Assim, escreve Dain Borges, os "pensadores sociais brasileiros colocaram ênfase local especial no diagnóstico da 'falta de energia' e da incoerência cultural, mas suas terapias assemelharam-se àquelas dos críticos europeus. A esperança do Brasil reside em 'regenerar' e 'purificar' sua raça" (ibidem).

Essas afirmações são confirmadas em Hobsbawm, que lembra que o "nacionalismo étnico recebeu reforços enormes; em termos práticos através da crescente e maciça migração geográfica; na teoria, pela transformação da 'raça' em conceito central das ciências sociais do século XIX" (HOBSBAWM, 1990, p. 131). Para esse autor, fica claro que "Os liames entre o racismo e o nacionalismo são óbvios. A língua e a "raça" eram facilmente confundidas como no caso dos 'arianos' e 'semitas', para a indignação de estudiosos escrupulosos como Max Muller, para quem a 'raça', um conceito genético, não pode ser inferida da língua, que não era herdada. Além disso há uma evidente analogia entre a insistência dos racistas na pureza racial e nos horrores da miscigenação, e também a insistência de tantas formas de nacionalismo lingüístico – a maioria, talvez –, sobre a necessidade de purificar a língua nacional de elementos estrangeiros" (idem, p. 132).

Assim, percebemos que as declarações de David Carneiro, segundo quem a estátua de Stenzel "não representa coisa nenhuma. [...] Muito menos o adolescente, ou o homem deste Paraná dolicocéfalo, loiro e belo", ecoam um debate que remonta a pelo menos o meio do século XIX e por trás de sua aparente objetividade, esconde intrincada rede de relações filosóficas, estéticas e ideológicas.

VII. CONCLUSÃO

As obras de arte, principalmente as obras públicas, têm tradicionalmente sido utilizadas como exemplo das qualidades ou defeitos das sociedades que as produziram. Elas revelam muito do que os governantes desejavam ao encomendá-las e muitas vezes o que não desejavam. O estudo da recepção dessas imagens pela população ajuda a entender melhor não só as relações entre esta e o poder, mas também as lutas internas a esse poder, que muitas vezes se entrevêem pelas frestas abertas por debates aparentemente "apenas" estéticos.

Os motivos de tamanha potência provocativa das imagens permanecem um assunto digno de estudo, do mesmo modo como ainda temos o que conhecer "sobre os impulsos fundamentais que são institucionalizados dessas maneiras" (FREEDBERG, 1991, p. 9). Mas o problema permanece, pois, para Freedberg, "Há uma abundante evidência, histórica e etnográfica, para a eficácia das imagens. Mas, como iremos avaliar este material? [...] Deixem-nos dizer que a evidência para a eficácia somente pode ser articulada em termos de chavões e de convenções e que nós estamos crescentemente ignorantes desses chavões e convenções. [...] Como então descrever até que ponto o contexto condiciona a recepção?" (idem, p. 10).

Pensando nessas questões, empreendemos neste trabalho a tentativa de levantar uma série de dados que nos permitiu iniciar um processo interpretativo com resultados, se não concretos, pelo menos passíveis de aumentar a densidade dos problemas. Vimos de que forma o modernismo no Brasil, com toda sua complexidade, estava ligado a um debate ideológico que sugeria as formas de representação das figuras para fins de propaganda política. Vimos também como as doutrinas nazifascistas, bastante presentes no cenário político brasileiro do período entre-guerras, apresentavam suas versões de uma arte figurativa "realista", igualmente com intenções de propagação de seu ideário. Procuramos demonstrar como a produção dos artistas estava ligada a esse cenário, de que deveria retirar, consciente ou inconscientemente, a inspiração para as suas obras que, por sua vez, deviam cumprir o papel para o qual foram contratadas.

Com respeito ao tema específico deste trabalho, pudemos ver como a constituição dos monumentos obedecia a uma lógica do poder, desejoso da fixação de suas "conquistas" e pontos de vista. Para isso, essa lógica utilizava um repertório iconográfico retirado, atestando a complexidade das relações políticas e sociais, das extrações de ambos os espectros ideológicos envolvidos na polarizada situação política brasileira do período.

Se os extremos encontram-se, a produção realista do nacional-socialismo e a do realismo socialista parecem-se na forma e na intenção. No Brasil e em Curitiba, encontramos essas formas exemplificadas em monumentos que parecem misturar as características autoritárias de esquerda e direita, provocando uma celeuma que, por sob a aparência de indignação moral, revelava o caráter francamente ideológico, e reacionário, das discussões.

OUTRAS FONTES

Recebido em 14 de março de 2004

Aprovado em 1 de outubro de 2005

Geraldo Leão Veiga de Camargo (g.leao@mps.com.br) é Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor do Departamento de Artes da mesma instituição.

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  • 1
    Expressão em inglês, no original; significa "
    o ou
    um conjunto de imagens".
  • 2
    Em latim, no original: "mente sã em corpo são" (nota do revisor).
  • 3
    Em francês, no original: "mudar a vila [cidade] para mudar a vida" (N. R.).
  • 4
    Este é o momento, também, de deixar registrado meu débito a Didonet Thomaz, pesquisadora da família Stenzel desde 1986, e a Pedro Moreira, da Casa Erbo Stenzel, que me auxiliaram com dados e informações, frutos de longo trabalho de pesquisa, sem os quais me teria sido impossível redigir este texto. Aparecida V. Silva, da Casa da Memória de Curitiba, foi de grande auxílio na indicação de fontes. Também é importante registrar que mesmo conversas rápidas, ao telefone ou nos corredores em direção ao cafezinho, podem trazer
    insights que se revelam importantes para o adensamento dos problemas, e este artigo deve a Antonio César de Almeida e Vera Vianna Baptista alguns deles. Finalmente, é necessário agradecer a atenção paciente de meu orientador, Luiz Geraldo Silva.
  • 5
    "Entendo as nacionalidades, os climas e os temperamentos como um equivalente da raça" (tradução livre do autor).
  • 6
    Esse nacionalismo exacerbado de Portinari fazia parte do clima artístico-cultural brasileiro da época, em que tanto o pintor quanto Mário de Andrade estavam mergulhados.
  • 7
    Foi o próprio Mário de Andrade quem deu notícias desse preconceito racial na diplomacia do governo Vargas: "[...] Muito mais fecundos serão porventura estes desprezos internacionais, não pelo Brasil, mas por uma orientação completamente ignara, que chega a recusar para exposições no estrangeiro quadros que representem negros. Porque isto rebaixa lá fora o Brasil! Palavra de honra que isto chega a ser
    mot d'ordre ["palavra de ordem"] diplomático" (Andrade
    apud CHIARELLI, 1995, p. 301).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Nov 2005

    Histórico

    • Aceito
      01 Out 2005
    • Recebido
      14 Mar 2004
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